Project Gutenberg's Ás Mulheres Portuguêsas, by Ana de Castro Osório This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you'll have to check the laws of the country where you are located before using this ebook. Title: Ás Mulheres Portuguêsas Author: Ana de Castro Osório Release Date: December 2, 2020 [EBook #63943] Language: Portuguese Character set encoding: UTF-8 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ÁS MULHERES PORTUGUÊSAS *** Produced by Pedro Saborano, Gonçalo Silva and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.)
Typ. a vapor da Emprêsa Litteraria e Typographica
178, Rua de D. Pedro, 184—Porto
pag. | |
Prologo | 5 |
Feminismo: | |
I—Ser feminista | 11 |
II—Uma resposta | 27 |
III—A Instrução | 43 |
As mulheres e a politica | 57 |
Ser português | 67 |
No anniversario duma escola | 85 |
A mulher de ha trinta annos e a mulher de hôje | 101 |
As pobres mães | 113 |
A miseria do povo | 133 |
A ignorancia do povo | 149 |
Mulheres desnaturadas, mães desnaturadas | 161 |
A proposito duma gréve | 177 |
A mulher em Portugal: | |
I—A mulher e o casamento | 193 |
II—A mulher casada perante o codigo civil | 207 |
III—A mulher solteira perante o codigo civil | 223 |
IV—O trabalho da mulher | 241 |
Na incerteza pelo futuro, caracteristica muito acentuada do actual momento historico, não ha ninguem, por mais ferozmente que se ensimesme ou por mais alto que se alheie em sonhos e ficções, que se não surprehenda, um dia, meditando, transido de duvidas, nalgum dos multiplos problemas que agitam a alma moderna.
São tantos e tão variados, tão dolorosos por vezes, recordam tanta lagrima, evocam tanta dôr soffrida pela mísera humanidade—que em vão lhe quer fugir e se debate e grita de desespero, ou ri de inconsciente goso, conforme é alevantada aos ares em triumfo ou mergulhada na indifferente desgraça—que o nosso espirito[Pg 6] se detem e pergunta, no augusto silencio da propria consciencia—se vale a pena existir num mundo assim?!
Todos os sinceros têm formulado esta interrogação: uns, fortificados pelo pensamento, no desejo de remediar o mal, concebem a esperança de trazer, embora com o sacrificio proprio, alguma melhoria á sociedade; outros desanimam, a mesma dôr os mata ou anula para o trabalho paciente do futuro.
Mas o desânimo e a renuncia é uma dupla falta—pelo que deixâmos de fazer e pelo que consentimos que os egoistas e os sem escrupulos façam impunemente.
Para todos é de responsabilidade a hora presente,[Pg 7] na qual, a par de muito crime e muita injustiça, um bello e salubre movimento se opéra por todo o mundo.
Ninguem se poderá isentar dessa tremenda responsabilidade moral, que tanto cabe ao homem como á mulher, a esta mais ainda porque nas suas mãos, com a educação da infancia, que lhe pertence, está confiado o futuro.
Á mulher, pois, ou seja pobre operaria que mal ganha para o pão de cada dia, ou opulenta dama avergada ao pêso dos seus deveres sociaes; ás mães que têm filhos a entrar na lucta pela existencia e que ansiados esperam o conselho, que os guie para a felicidade e para o bem, dos labios que lhes ensinaram as primeiras[Pg 8] palavras e lhes deram os primeiros beijos; como ás raparigas que, mal iniciadas nos seus deveres, têm de arcar com um futuro de que nem chegam a comprehender as responsabilidades; a todas, repetimos, corre o dever de se deterem, ao menos um instante, a pensar no remedio a dar a tanto mal e a tanta iniquidade.
Por isso é ás mulheres, e principalmente ás mulheres do meu paiz—que tão insuficientemente são educadas para serem as companheiras e as mães do homem moderno—que me dirijo.
Possa este modesto trabalho corresponder dalgum modo ás necessidades espirituaes da alma feminina, que desperta emfim para uma nobre e mais util missão social.
Feminismo: É ainda em Portugal uma palavra de que os homens se riem ou se indignam, consoante o temperamento, e de que a maioria das proprias mulheres córam, coitadas, como de falta grave cometida por algumas colegas, mas de que ellas não são responsaveis, louvado Deus!...
E, no entanto, nada mais justo, nada mais rasoavel, do que este caminhar seguro, embora lento, do espirito feminino para a sua autonomia.
O homem português não está habituado a deparar no caminho da vida com as mulheres[Pg 12] suas iguais pela ilustração, suas companheiras de trabalho, suas colegas na vida pública; por isso as desconhece, as despresa por vezes, as teme quasi sempre.
Mas siga a mulher o seu caminho, intemerata e digna, sem recear o isolamento como o ridiculo—que nem um nem outro atingem o verdadeiro mérito e a sã razão.
Tenha o coração alto e o espirito alevantado; não faça do amôr o ideal unico da existencia nem o seu unico fim. Pense no trabalho e no estudo, e deixe que as suas faculdades afectivas se desenvolvam livremente, ou se não desenvolvam mesmo, que isso deve ser indiferente á sociedade. Cuidados de amôr devem ser cuidados tão absolutamente pessoais e intimos, que não os assoalhar deveria ser a maior prova de pudôr.
Tal não sucede, porêm. Toda a gente publíca os seus afectos, puros ou impuros, verdadeiros ou falsos; e, por mais absurdos, por mais indesculpaveis que sejam, despertam mais simpathia e compaixão do que verdadeiras desgraças sociaes. Na vida real, como no drama, no romance, na poesia, ou na musica, só cai bem no[Pg 13] gosto do publico o amavío voluptuoso do amôr sentimental.
Assim o quer a sucessão de seculos, em que a mulher foi a reclusa do convento ou da familia, tendo na vida um só fim—agradar.
Assim o estima o homem, que fez do amôr carnal o seu culto e da mulher a sacerdotisa desse culto. Mas sacerdotisa que se torna em escrava, deusa que se cobre de injurias e se lança ao monturo das velhas coisas inuteis, logo que o capricho, a paixão dos sentidos, foi como o fumo desfeito no céo sem nuvens.
O homem, passada a idade da poesia, segue triumphante o caminho da existencia, sem mais lhe importar com a sua inspiradora. Da deusa ideal dos seus sonhos faz a cozinheira habil, a dôna de casa ignorante e util, mixto de costureira e governante, a mãe paciente e sofredora dos filhos que são o seu orgulho.
A mulher, em geral, é, quando esposa, a companheira só para a vida banal e mesquinha—que nem por sombras deve abordar os graves pensamentos que preocupam o marido!...
Porque quando o homem, por acaso, encontra[Pg 14] méritos intelectuaes que o confraternisem com um individuo do sexo feminino, é rarissimo confessar que a sorte lho deu para companhia da sua vida.
Mas quantas vezes se enganam na escolha, e, por castigo, na companheira ignorante e inferior que procuram para seu descanço, não encontraram, hipocritamente velados por uma habil ingenuidade, todos os baixos instinctos dos seres inferiores?!
Quantos, procurando nas ignorantes criaturinhas que nunca se poluiram com o estudo e com o trabalho, as previdentes mães de familia, destinadas a fazer prodigios de economias, de método e de arranjo, não depararam com desditosas mulheres roídas de ambições e vaidades, tanto mais ásperas quanto maior é a sua impotencia para as realisar—a fantasia só presa nas galanices e módas, inuteis para os trabalhos caseiros como para outro qualquer, sofrendo e fazendo sofrer todos os seus por não possuir o que deseja e vê ás outras, transformando os lares em gehenas onde féras da mesma raça se espesinham e abocanham?!
Quando ao homem fôr dado encontrar facilmente a mulher sua igual, comprehenderá quanto era louco preferindo-lhe esses pobres sêres que não têm assumpto para conversa fóra do ultimo figurino, da vida alheia e das criadas e seus costumes.
Comprehenderá então o que é o verdadeiro afecto entre esposos, e não mais preferirá essas que hoje diz amar, mas que no intimo despresa, como suas inferiores, que supõe.
E digo que supõe, porque está provado pela sciencia que intelectualmente não ha sexos privilegiados, mas unicamente individuos e, quando muito, raças.
Foram os sabios que desmentiram esse grosseiro e velho erro de que o cerebro feminino é menos pesado e consequentemente inferior ao do homem. Foram elles, os mesmos que lhe tinham levantado barreiras sobre barreiras e escreveram sobre cada porta da sciencia o fatal non possumus, os primeiros a desmentir-se e a penitenciar-se próbamente a cada manifestação da mentalidade feminina.
Foi a sciencia, fonte de toda a verdade e de[Pg 16] toda a justiça, e na qual devemos pôr os olhos como na unica libertadora, que fez cahir por terra esse argumento tão falado da superioridade intelectual do homem, fundando-a no peso do cerebro.
Se a massa cinzenta contida no craneo feminino é menor, corresponde harmonicamente ao tamanho do corpo, em regra mais pequeno.
Foi esse o primeiro passo, o mais importante e decisivo, para o triumfo da ideia feminista. Até lá, quando a mulher pretendia estudar, trabalhar, ser um ente de razão e de luz, cahia-lhe como avalanche de gelo, a sufocar-lhe as aspirações, essa cruel e deprimente opinião. E a pobre, se não era um espirito de excepcional brilho ou um caracter de excepcional tempera, sentia-se amesquinhada aos seus proprios olhos e desistia do enorme esforço requerido para subir onde a multidão das suas pobres irmãs nem sequer se atrevia a pôr as vistas ambiciosas.
Ás vezes, ou porque fossem realmente excepcionaes, ou porque as condições mesologicas as favorecessem extraordinariamente, dentre[Pg 17] as mulheres sahiam algumas que os proprios homens eram os primeiros a reclamar e incensar, mas passando-lhes cautelosamente o diploma de raridades, quasi fóra do sexo, sêres hibridos, masculinos pela inteligencia e só fisicamente femininos.
De modo que essas aclamadas, e afastadas do caminho trilhado pela turba-multa das ignorantes, exactamente porque eram superiores e se julgavam intangiveis, abandonavam a causa das suas irmãs, que já não era a sua, concedendo-lhes apenas, e isto nem sempre, a sua piedade diluida em conselhos de resignação e submissão para desempenharem o papel de escravas, nascidas sómente para a felicidade e regalo do homem. Desta maneira, a causa feminina perdia as suas mais legitimas defensoras, deixando nas mãos dos homens os melhores argumentos.
É como algumas esposas, que, por serem ditosas no casamento, porque tiveram a fortuna—que não digo rara—de encontrar para maridos homens inteligentes e justos, encolhem os hombros com indiferença á desgraça das que tiveram destino contrario.
É uma prova de egoismo, que é uma deploravel qualidade, e é, peor do que isso, o abandono duma causa justa que, se não toca individualmente a cada mulher, interessa colectivamente o sexo a que pertencem.
Acabar com os fenómenos, com os monstros femininos, julgar todos os individuos intelectualmente semelhantes sem distinção de sexo, aptos igualmente a estudar e progredir pelo trabalho, foi sem dúvida o passo definitivo para a libertação feminina.
As mulheres poderão, assim como os homens, distinguir-se pela sciencia, pela industria, pela arte, pelo comercio, pela pedagogia, ou ficarem tão-sómente dônas de casa,—mas fazendo do seu lar a primeira e a mais nobre escola dos filhos.
Haverá, decerto, tal-qual entre os homens, umas que se superiorisam num trabalho, outras em outro, mas serão todas educaveis, todas melhoraveis, todas uteis, laboriosas e conscientes obreiras, ajudando á melhoria da grande colmeia social.
As mulheres de hôje não têm desculpa se[Pg 19] continuarem na ignorancia e na inactividade, tudo esperando do homem, que as hade procurar para a sua conveniencia.
As escolas estão abertas por igual aos dois sexos e não ha já quem, nesta hora alta da civilisação, se atreva a banir dellas um individuo que as queira frequentar sob o pretexto da diferença do sexo.
Tempos atrás, quando a mulher pensava em sahir do anonimato da sua missão caseira, tinha apenas por campo aberto á sua actividade, a literatura, visto que é a unica profissão onde o talento e o estudo individual dispensam a educação preparatoria.
Hoje não é assim. Toda a gente aceita uma senhora que tem a profissão de medica, pintora, esculptora, engenheira ou professora, tudo que requer habilitações e estudos publicos, e que lhe tinham ensinado a crêr que nunca poderia atingir por falta de genio criador e persistencia no estudo.
Não se sobresaltem os homens com a concorrencia, que é antes auxilio. Pequena, por mal da humanidade, hade ser sempre a percentagem[Pg 20] dos cerebros verdadeiramente superiores em qualquer dos sexos. Não é, pois, justo que por falta de educação se percam aptidões que nem sequer chegaram a manifestar-se, talentos de que nem sequer se suspeita...
Se os mais ardentes sectarios dos velhos preconceitos já chegaram á conclusão egoista de que é preciso educar o povo para que se não percam tantissimos talentos que podem beneficiar a humanidade, não é justo—ainda que não seja senão pelo mesmo motivo—condenar á ignorancia, na mulher, metade dessa mesma humanidade.
Dever-se-ha pensar que Clemence Royer, honra e gloria da França, sabia entre os sabios, espirito todo precisão, clarêsa e método, não teria sido o que foi se, por um mero acaso, tivesse nascido em Portugal ou em outro qualquer paiz, onde, como no nosso, se descure a educação feminina.
As mulheres conservam-se entre nós numa indiferença quasi total pelas conquistas que dia a dia vão marcando um passo de avanço para o triumfo definitivo do espirito sobre a materia,[Pg 21] da inteligencia sobre a força, da educação sobre a ignorancia, embora doiradas pela fortuna ou pelos privilegios de classe.
Mas esperemos serenamente, porque á mulher portuguêsa hade chegar tambem a sua vez de comprehender que só no trabalho póde encontrar a sua carta de alforria. Não no trabalho esmagador, exercido como castigo, mas no trabalho que enobrece o espirito, que dá o bello orgulho dos que só contam comsigo e nunca foram um peso para ninguem.
E desde que se torne independente pelo seu proprio esforço, desde que saiba agenciar o pão que come, a casa que habita, os vestidos que veste, sem estar á espera do homem, fonte perene de todo o dinheiro que hoje a sustenta—seja como pai, como marido ou irmão—a sua alforria está decretada.
Uma vez será um artigo do codigo que se modifica (porque as leis devem seguir e não preceder os costumes); ámanhã um preconceito que cahe no desuso; depois um habito que se vence; até que obrigações e direitos se igualem entre as duas metades do genero humano, hôje[Pg 22] em guerra sob a aparencia do amôr e do respeito social.
Os proprios homens as ajudarão nesse empenho, porque nenhum ha que não seja feminista se a mulher victimada fôr a sua propria filha, aquella para quem ambicionou maior soma de venturas e de bem estar.
Não ha pai que não aspire a deixar nas mãos de suas filhas, senão um dote em dinheiro—cada vez mais dificil de juntar honestamente, com as necessidades sempre crescentes da vida moderna—pelo menos um dote em educação e aptidões de trabalho que as pônha ao abrigo de toda a servidão.
Não haverá pai que se não insurja contra a lei, se vir o marido de sua filha pôr e dispôr da fortuna que lhe deu, e sem que a dôna possa sequer gastar o rendimento. Nenhum que se não indigne se o genro a despresar ou maltratar, se lhe prohibir qualquer intervenção na educação dos filhos, se a não atender nos seus conselhos e opiniões, se a não consultar para os negocios decisivos da sua vida, se por capricho ou vaidade se oposer a que exerça uma[Pg 23] profissão honesta que a dignifique a seus proprios olhos, se, emfim, o homem fizer da esposa o que de facto a lei quer que seja—a menor sem vontade nem discernimento, a coisa de que o marido é o senhor, o ser humano pertença absoluta doutro sêr, que devia ser seu igual.
Os homens mais autoritarios e rotineiros como maridos, são, como pais, incapazes de apoiar um estado de coisas que apenas dá por garantia de felicidade á mulher que casa, a bondade, a inteligencia e a tolerancia do marido.
É evidente que, na maioria dos casos, mórmente no nosso paiz onde o homem é bondoso por temperamento, ninguem se importa com a letra do codigo feito para uma sociedade onde a esposa era ainda, ou apenas, uma escrava submissa, sem azas para grandes vôos de vontade nem ansias de libertação.
Nas mãos de um doido ou de um perverso, porém, o que poderá ser a vida da mulher que se volta para a lei e a lei manda-lhe simplesmente e implacavelmente: que obedeça! Que se volta para a sociedade, que lhe ordena hipocritamente:[Pg 24] disfarce e submissão! Que se volta para a familia, e essa propria, temendo o escandalo, a violação das conveniencias sociaes, lhe aconselha: que se resigne!
Portanto, ser feminista é o dever de todos os pais. Porque ser feminista não é querer as mulheres umas insexuais, umas masculinas de caricatura, como alguns cuidam; mas sim desejá-las criaturas de inteligencia e de razão, educadas util e praticamente de modo a vêrem-se ao abrigo de qualquer dependencia, sempre amarfanhante para a dignidade humana.
II
Não imagina V. Ex.a o prazer que me deu a sua carta, sabido como é que da discussão inteligente e sincera têm sahido as mais claras verdades, conhecido como é, por todos os propagandistas, quanto se ganha em fazer interessar pelas nossas opiniões, ainda os adversarios que mais as combatem.
E não sendo V. Ex.a um adversario, mas um confesso adepto, embora moderado, maior prazer o meu em lhe vir expôr serenamente as [Pg 28]ideias feministas, tais como as comprehendo e preconíso. Diz V. Ex.a que é feminista, embora moderado, que o é como todos os ilustrados não poderão deixar de o ser, segundo a sua propria frase.
Eis o nosso primeiro triumfo, a nossa principal batalha vencida; tudo mais, creia, é questão de tempo, de paciencia, de serena e pertinaz energia, e de muito bom senso.
Ora aquellas qualidades não faltam ás mulheres, este é que ás vezes tem faltado, e não estamos longe de confessar que faltará ainda por largos annos á maior parte...
Mas, neste ponto, ninguem no nosso paiz poderá lançar á mulher a primeira pedra; culpados dessa falta somos todos e talvez mais o homem do que a mulher, talvez...
Voltando ao assumpto dizia eu, que está ganha a principal batalha do feminismo; efectivamente assim é desde que todos os homens, que se presam de inteligentes, reconhecem a mulher como um sêr quasi autonomo, com direito a pensar, trabalhar e luctar pelo seu proprio ideal. Nós não temos a fazer mais do que[Pg 29] expôr ideias, e realisar pela prática as conquistas a que nos julgâmos com direito.
Que victoria imensa não representa essa sua simples frase! Que soma enorme de trabalho intelectual, que acumulação de esforços, para que os homens inteligentes nos concedam a outorga da sua restricta carta constitucional!...
E se pensarmos que esta primeira, mas definitiva conquista do espirito masculino, representa quasi o trabalho de meio seculo, temos vontade de dizer como o mais brilhante dos feministas francêses, Camille Mauclair:—que as mulheres apresentando as suas ideias e luctando pela educação que as superiorisa, lembram a paciencia das aluviões que fazem recuar o mar e mudam o aspecto de um paiz.
Se á geração que nos precedeu alguem falasse em feminismo, que apenas lá fóra começava a fazer-se perceber pela guarda avançada de exageradas e desiquilibradas, como adeante das procissões solemnes vem sempre o rapasío gralhando e correndo a foguetes, não haveria homem inteligente que não soltasse uma gargalhada[Pg 30] escarninha, nem, com certeza, rapaz das escolas, que madrigalisasse pelos passeios publicos ou para os balcões floridos das vizinhas, que não encolhesse os hombros com desdem.
Os que não rissem, por temperamento sombrio e sentimentalesco, ergueriam os braços em clamôr chamando em auxilio da propria opinião a ignorancia das pobres mães e descrevendo, com enthusiasmo lamecha, o encanto duma carta amorosa com erros de ortografia como ironisava dôcemente Gonçalves Crespo, elle que na prática tão flagrantemente mostrou estimar o contrario.
Homens de incontestavel mérito não se pejavam de dizer—que só apreciavam as mulheres para os lavores caseiros, chegando a pôr em duvida a competencia intelectual do sexo feminino, não obstante as tradições gloriosas de excepcionaes, que tem vindo sempre a acompanhar a humanidade na sua evolução social através dos seculos.
Se a um dos mais bem organisados cerebros da geração a que me refiro, ouvi responder a quem citava o enorme talento de George Sand[Pg 31] como prova da igualdade intelectual dos sexos—que essa não era mulher, era o diabo!...
Se é do meu tempo, se ouvi muitas vezes, eu mesma, a novos e a velhos, a homens e a senhoras, troçar das doutoras, citar por troça aquelle estupido dictado portuguez da mulher que sabe latim... já V. Ex.a vê o que representa para nós a sua simples confissão de que não ha hoje homem inteligente que não deva ser feminista.
Agora permita-me que explique o meu pensamento, que, certamente por deficiencia de clareza na fórma, não foi interpretado como desejava que o fosse.
O que entendo por—desenvolver livremente as qualidades afectivas na mulher,—é deixar-lhe o pleno direito da escolha, o direito sagrado de amar ou não amar, de casar ou ficar solteira, sem que isso represente uma vergonha ou, pelo menos, um ridiculo.
Entendo que o ser humano que pertence ao sexo feminino, não deve ser coagido pela educação, nem pelos costumes, nem pelas conversas, nem pelos pais—que têm a mania de talhar[Pg 32] muito discricionariamente o futuro dos filhos—a vêr no casamento um fim, um ideal completo e único, quasi uma obrigação.
Assim como o homem pode ser professor, jornalista, sabio, artista, empregado, operario, tudo emfim, sem que ninguem lhe pergunte pela certidão do matrimonio, sem embargo de serem quasi todos chefes de familia, não vejo inconveniente a que a mulher procure a sua colocação, tenha o seu curso scientifico, estude, trabalhe para si, para o seu futuro, para a sua vida autonoma, sem se lhe inquirir do seu estado...
Que essa mulher fique solteira, porque não encontrou o companheiro ao qual lhe seria grato ligar o seu destino, ou que, encontrando-o, seja sentimentalmente feliz, que temos nós com isso?
Por acaso nos preocupa a vida conjugal do politico A. ou do artista B.?
O maior erro do homem é, a meu ver, estar convencido de que a mulher nasce e existe só para o seu prazer e encanto. Partindo deste principio, é claro que não nos encontraremos nunca, visto eu pensar de modo tão contrario.
A mulher, como o homem, nasce para si mesma. Tanto um como o outro fazem parte da sociedade, de que são factores igualmente imprescendiveis, que se não comprehenderia nem sequer existiria sem a união dos dois sexos, mas na qual individuos isolados podem coexistir igualmente, decentes, honestos e respeitaveis—quando muito pagando maior contribuição, como querem alguns economistas francêses...
Quando digo que não temos nada com a vida sentimental de cada um, não quero dizer que a mulher case por ambição monetaria ou intelectual, se é exatamente para a livrar dessa baixesa que a desejamos independente pelo seu trabalho, quando o não seja pela fortuna, e mais independente ainda pela razão que a torne um ente de consciencia justa.
Diz V. Ex.a que é o amôr que salva a mulher?!...
Efectivamente, por muito amar se salvou uma—a biblica Magdalena.
Mas não é desse amôr que se trata, dirá, é do amôr puro e honesto da mulher honesta por[Pg 34] temperamento, educada e instruida, que escolhe com toda a liberdade do seu coração e do seu espirito o homem que lhe agrada.
Ora não é esta mulher assim elevada, assim honesta, assim livre na sua escolha, a que, pelo mais futil motivo, irá mudar de afecto, enredar-se em aventuras galantes, para as quais geralmente não tem vocação, e que podem preencher a existencia duma frívola e ignorante criaturinha cheia de vaidades e que no triumfo dessas vaidades tem os seus unicos gosos intelectuaes.
O que não quer dizer que todas as mulheres instruidas sejam honestas—quem o pudésse dizer, que seria essa a nossa maior gloria!—mas tão sómente que a mulher, que por seu desgraçado temperamento, educação ou influencia de meio, é deshonesta, o é, tanto ou mais, quando ignara e frívola.
Um dos mais graves defeitos da raça latina é o de dar ao amôr a importancia maxima da vida. Os romancistas não sabem nem podem falar em outros assumptos, querendo ser lidos e comprehendidos. O theatro explora-o em todas[Pg 35] as gamas, desde o amôr ingenuo e sentimental até ao amôr falsificado dos adulteros. Os poetas choram os seus e os alheios; os musicos dão-lhe a fórma ritmica; os pintores e os esculptores divinisam-no no marmore polido e na policromia das suas telas...
Rapazes e raparigas, antes mesmo de chegar á puberdade, não pensam noutra coisa, e uns e outros julgar-se-hiam inferiorisados se estivessem cinco minutos na mesma casa sem se defrontarem valorosamente num complicado tiroteio de olhadelas amorosas.
Não será muito pensar num assumpto que só interessa a duas criaturas e por um tempo relativamente curto na vida humana?! Sim, que não interessa nem póde interessar senão a quem o sente e com elle é feliz ou infeliz.
Senão vejamos: V. Ex.a, que leu e respondeu ao meu artigo, sabe porventura se eu sou casada ou solteira, feliz ou infeliz no casamento, ou pensou sequer em tal?
Porcerto que não, nem isso importaria para lêr o que escrevo e responder o que entende.
É a prova de que a vida psíchica de cada[Pg 36] individuo é completamente autonoma do seu estado civil.
A independencia da mulher não pode importar o não reconhecimento da autoridade do marido, (um dos grandes receios de V. Ex.a) porque essa autoridade existe, senão de facto, pelo menos de direito, emquanto existirem as leis que hôje nos governam, leis que a mulher deveria conhecer quando vai casar, leis que a tornam uma menor sob a tutella directa do homem.
O que será o futuro não o podemos prevêr, de tal maneira a educação da mulher modificará a sociedade.
Diz V. Ex.a que a mulher independente poder-se-ha desafrontar do marido que a atraiçôa atraiçoando-o por sua vez.
Poderá ser, mas isso o que prova? Apenas o que já disse—que, infelizmente, o cultivo da inteligencia nem sempre acompanha a honestidade e que essas mulheres se subalternisam tornando-se criminosas como aquelles que condemnam, irmanando-se ás levianas que hôje o fazem, a maior parte das vezes por inconsciencia.
A mulher independente que tal fizer, não terá por motor a independencia mas tão sómente o capricho ou o temperamento, e em qualquer circumstancia, portanto, faria o mesmo.
Com respeito á proscripção da mulher erudita da familia, não é, não pode ser, uma regra. Assim como ha homens que, não obstante serem intelectuaes, são bons chefes de familia, o mesmo sucede ás mulheres.
Nem em Portugal temos o direito de pensar doutra maneira, tendo na ilustre mulher, que é uma verdadeira erudita, D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, o exemplo vivo do que se pode ser ao mesmo tempo como mulher de sciencia, como esposa e como mãe exemplar.
Haverá mulheres que, pela sua profissão, se vejam obrigadas a estar afastadas do lar e dos filhos uma parte dos seus dias?... É certo; mas quantas os não abandonam hôje, sem esse imperioso motivo? E quantas, tambem, estando sempre em casa, tendo por unica obrigação o seu amânho ou direcção, não mandam as criancitas, ainda mal desmamadas, para a sujeição das mestras?! Quantas?!... Quasi todas as mães[Pg 38] sem oficio nem emprego, as da pequena burguesia, essas mesmas que não querem instruir-se mais, nem se querem tornar independentes,—exatamente para não terem a maçada de trabalhar...
Se, em geral, a mulher portuguêsa filosófa—que para trabalhar escusava de casar!... Já os senhores estão vendo o que lhes devem.
Depois, álêm dessas mulheres que mandam os filhos para os colegios embora não tenham emprego fóra de casa, o que diz ás que têm as suas visitas, os seus passeios, os seus divertimentos, e que por igual são por esses motivos imperiosos afastadas dos filhos, com menos utilidade, parece-me, do que pela doença de um semelhante ou pela retorta de um laboratorio?!
Poder-se-ha dizer que a mulher intelectual despresa os modestos mesteres do seu lar, quando a propria Clemence Royer costurava a sua roupa e entretinha os seus ocios trabalhando como qualquer críaturinha que não saiba ao certo em que parte do mundo está situado o paiz que tem a dita de lhe ser berço?
Não se póde dizer que a mulher erudita tem[Pg 39] fatalmente de ser uma proscripta do lar exactamente quando o nome de um homem e duma mulher, ligados pelo casamento, se uniram para a sciencia, num triumfo para os dois sexos; exactamente quando as revistas francêsas nos trazem o retrato de Mr. e M.me Curie acompanhados muito burguezamente de seu filhito.
É possivel que eu esteja enganada e seja exatamente V. Ex.a quem tenha razão, mas como estamos de acôrdo em que se não regateie educação ao sexo feminino e se acabe assim com o regimen de prodigios e excepções que só á causa das mulheres tem prejudicado, é o principal.
Que o resto não nos deve preocupar muito nem devemos aventar hipóteses faliveis, como tudo que pertence ao futuro e que não temos base segura para julgar.
O homem de ámanhã hade procurar a sua felicidade e a maior porção de bem estar compativel com a sociedade do seu tempo. Como o fará não o sabemos, mas é certo que pensará de maneira diferente do de hôje, como o de [Pg 40]hôje, como V. Ex.a mesmo, pensa decerto diferentemente do que pensou seu pai e seu avô sobre os mesmos transcendentes assumptos.
Acabe-se com todas as prepotencias e todos os privilegios, tanto de raça, como de classe, como de sexo, e deixemos que, individualmente, cada homem e cada mulher, procurem ser felizes a seu modo, organisem os seus lares como entenderem,—desde que esse conjuncto se harmonise numa sociedade de mais justiça e tolerancia.
III
É fundamental este assumpto, visto que a nossa civilisação se baseia não na força mas na inteligencia, não na rotina mas no progresso.
Todos sabem, e apregôam aos quatro ventos, que a mulher portuguêsa é ignorante e futil, que a mulher portuguêsa tem todos os defeitos dos incultos, não merecendo do homem a consideração que se tem pelos iguais, mas a tolerancia que se dispensa ás crianças irresponsaveis.
Coisas de mulheres, dizem por vezes os homens, mostrando o seu despreso; notando-se[Pg 44] que os que mais clamam esta superioridade são, quasi sempre, os mais inferiores...
Não é isso, porém, o que nos interessa; é certo que o homem português tem tantos ou mais defeitos do que a mulher, mas se ella se transformar, facilmente o corrijirá.
A mulher tem, em si mesma, bastantes elementos bons para se modificar, sem se queixar do homem e esperar que lhe ensine o que elle mesmo não sabe nem é da sua competencia saber.
O homem tem culpa em não elevar a mulher, em não fazer della a sua companheira de trabalho e luctas, em temer a ilustração da mãe de seus proprios filhos; o homem faz mal, porque rebaixando a mulher não se lembra que se rebaixa a si proprio que nasceu della e dos seus labios escutou as primeiras lições da vida. Mas a mulher póde reagir, póde educar-se a si mesma, póde, pelo menos, mostrar desejo de progredir, de se igualar ao homem pelo trabalho e pela inteligencia cultivada.
A mulher falha de educação é muito mais inferior do que o homem, porque são os seus[Pg 45] proprios defeitos que se tornam qualidades, elevados pela cultura, encaminhados pela educação. O que na mulher educada é espirito, é na outra grossería; o que numa é presciencia, é na outra desconfiança; o que numa é desenvoltura e graça, é na outra descaramento; o que numa é observação, é na outra bisbilhotice...
Vai-se a uma fabrica ou a uma oficina, passa-se por uma rua onde ha desenas de homens, principalmente se forem do povo, não se ouve um dito desagradavel, não se ouve um riso que moleste; mas onde estiverem duas mulheres ás quaes a educação não depurou os defeitos, ou cujos espiritos não estejam perfeitamente humilhados pela dependencia, temos dois intoleraveis animaesinhos que riem, falam, troçam, olham miúdamente, com o proposito ferino de irritar e de ferir.
Por isso, tanto ou mais do que o homem, necessita a mulher ser educada e ilustrada, e é, a meu ver, por onde deve principiar a remodelação duma sociedade que seja progressiva.
Educar a mulher—eis o problema maximo a desenvolver e pôr em prática.
A isso é que chamâmos feminismo, que não em pôr gravatas e colarinhos de homem, que se podem usar como prova de simplicidade ou de extravagancia, mas nunca como afirmação de opiniões.
Educar a mulher dando-lhe meios de poder auferir com o seu trabalho o suficiente para a sua sustentação—quando é só—de auxiliar o homem, esgotado pelo trabalho de sobre-posse que lhe exige a concorrencia e a carestia da vida moderna,—quando casada,—parece-nos a maneira mais prática de a tornar um ser livre, apta a escolher por motu-proprio o caminho a seguir direitamente na vida.
Não temam os homens que a mulher instruida, por mais liberta, quebre mais facilmente os laços de conveniencias com que a sociedade a prendeu. Nem sempre foram os conventos, com todas as suas grades e portarias, o mais puro exemplo da castidade feminina; ainda hôje os harens, com todos os seus guardas e eunúcos, são para o ciume do macho bem fragil garantia...
A mulher entregue ao seu proprio discernimento[Pg 47] fará o que a consciencia esclarecida e o respeito proprio lhe ensinam, e não o que o mêdo lhe dictar.
Que mérito tem a criatura que não falta aos seus deveres porque está guardada á vista, como um doido furioso?
É certo que no nosso povo está tão enraísado o habito de fazer acompanhar as mulheres, como signal de grandêsa, que é mais uma nobilitação do que uma prova de desconfiança.
Andar só é, ainda hôje, em muitas terras de provincia, uma vergonha para a mulher, mostrando que o marido a não présa bastante para a fazer acompanhar.
Lá diz a cantiga:
Ir á missa sem criada seria, realmente, para as nobres damas que abrigavam em casa uma legião de serviçais—criados e filhos de criados, como outrora tambem os escravos trazidos das[Pg 48] terras conquistadas a moiros e a negros—a maior prova de miseria, ou de decadencia financeira.
A vaidade da fidalguia que é, ainda hôje, um dos caracteristicos do genio português, nesta terra em que todos se dizem filhos dalgo e se sentem com direitos de senhores para escravisar os mais pequenos, não tolerava á mulher que aparecesse em publico sem comitiva... ainda que constasse apenas duma pequena criadinha.
É esta fidalguia, mal interpretada, que faz com que o homem fuja ao trabalho, como á mais deprimente das servidões, reflectindo-se bem claramente na educação que se tem dado, até aqui, á mulher, convencendo-a de que se inferiorisa se trabalhar para ganhar dinheiro e auxiliar o homem.
O nosso paiz resente-se dum mal-estar e desiquilibrio que vem do conflicto entre o passado que se desmorona, com todas as suas velhas ideias e preconceitos, e o presente que ainda não conquistou todos os espiritos ligados ás convenções, que já despresâmos no fundo.
A nossa geração sofre duplamente pelo embate dos sentimentos que se entrechocam em nós mesmos e nas nossas proprias familias...
Todos apresentam as suas queixas, todos falam, mas tudo se diz no ar, sem provas nem proposito firme de conhecer o mal e enveredar pelo caminho que se nos afigura ser o melhor.
Quem quizer fazer alguma coisa entre nós é preciso revestir-se duma paciencia sem limites e ter uma coragem excepcional, por isso que tem de se defrontar com a indiferença de toda uma nação cançada de aventuras, exausta por um longo periodo de desilusão e enganos. Tudo contribue para o desleixo fisico e moral em que vivemos, desde o sol dôcemente enlanguecedor, até á ironia dissolvente com que se recebem todos os enthusiasmos e todas as emprezas que não tenham por fim o lucro material.
E no emtanto não devemos desistir da lucta, devemos pelo contrario ir juntando elementos e amontoando verdades até que a luz se patenteie a todos os olhos e seja visivel a todos os cerebros.
Uma das nossas maiores vergonhas nacionaes é, por certo, o analfabetismo, mas o que agrava essa vergonha é que, no continente, é a grande maioria das mulheres que eleva pavorosamente a cifra dos analfabetos.
E ha ainda quem lhes diga que fiquem em casa a educar os filhos, em vez de pretenderem ganhar o seu pão honestamente pelo trabalho!
Mas ensinar o quê, se ellas não sabem o mais elementar, se muitas vezes nem sabem ler e escrever!?
Dirão que só a mulher do baixo povo é tão completamente ignorante, mas o que é certo é que pequenissimo é o numero das mulheres que, embora saibam ler, se preocupem com as questões intelectuais e possam, portanto, ser educadoras dos proprios filhos.
E todos sabem, principalmente os professores, quanto custa ensinar crianças que não tiveram a abrir-lhe o caminho da inteligencia, o cultivo amoravel da familia, principalmente da mãe.
Para ellas tudo é novidade, desde o que[Pg 51] seja uma montanha até ao pão que metem na bôca.
Os professores, mesmo sem querer, o fazem sentir ás crianças, e é esse sem dúvida o maior castigo das mulheres ignorantes, que julgam cumprir o seu dever de mães de familia governando a casa e vestindo com elegancia os filhos.
Mas a triste verdade a confessar, e que é muito para meditar, é que—do milhão de portuguêses que sabem ler e escrever a sua lingua, apenas um terço são mulheres!
E ainda se queixam quando se diz que a mulher no nosso paiz é inerte, ignorante e frivola!
A unica superioridade admitida no nosso tempo, por mais que se queiram iludir os grandes da terra, é a da inteligencia. Os mais instruidos são, evidentemente, os superiores, os fortes, seja qual fôr a sua posição.
No tempo em que o mundo se levava á espadeirada, a força fisica era superior á intelectual e os homens podiam tornar-se senhores pelo poder musculoso do seu braço; hôje a[Pg 52] força fisica vale muito como educação e muitissimo para produzir saudaveis criaturas, mas vale muito pouco para aferir superioridades. Aliás teriamos de acatar o moço de fretes, que pega numas poucas de arrobas como quem pega num braçado de flôres, e proclamá-lo superior, nosso indiscutivel chefe.
Ninguem irá buscar um hercules de feira broncamente estupido para o comparar e achar superior ao sabio empalidecido e enfraquecido pelas vigilias do estudo.
O que falta no nosso paiz é a instrução, principalmente a instrução prática que faz progredir um povo. Quando é preciso traçar uma linha ferrea, vêm engenheiros do estrangeiro; quando necessitâmos dum porto, lá estão as companhias estrangeiras; quando uma cidade quer abastecer-se de agua, lá estão os estrangeiros para lha fornecer; quando é preciso montar um arsenal ou uma fabrica, lá estão os especialistas estrangeiros.
Quasi tudo o que se faz no nosso paiz é práticamente dirigido por estrangeiros e estrangeiras. Ainda destas a quantidade não é tão[Pg 53] grande, mas lá chegaremos, e quando quizermos utilizar as nossas mulheres em muitos e variados mesteres, que o futuro por força lhes hade entregar, já não encontraremos logares vagos.
Não nos deixemos embalar com o sonho do passado; pensemos no futuro, que é o trabalho e a educação.
Fomos ha tres seculos um punhado de aventureiros que realisou a maior aventura que ainda se havia visto, e imaginâmos que tudo será perdoado a quem tanto fez e a quem tão maravilhosamente o soube cantar.
Mas os tempos são outros, as necessidades muito outras, e a vida já se não leva a descobrir caminhos por mares nunca dantes navegados.
Hôje, que o nosso pequeno planeta está visto por todos os lados, achâmo-lo pequeno e temos fome e sêde de mais alguma coisa. O homem não se cança de saber, de procurar lêr o passado nas pedras fragmentadas dos monumentos soterrados, como de procurar o futuro nos espaços faiscantes de sóes; a tudo aspira[Pg 54] pela inteligencia, tudo quer comprehender e possuir.
A mulher entre nós não póde, por deficiencia de educação e excessivo acanhamento, ser a util companheira de tal homem.
Na idade-média a mulher podia esperar o marido, que ia ás aventuras fabulosas, sentada ao bastidor ou á róda de fiar, tecendo com suas brancas mãos o linho que por si e pelas suas criadas fôra fiado. Ignorante e passiva, era a digna esposa do senhor brutal que só conhecia o direito da força.
No seculo XX a mulher tem de ser outra, porque outro é tambem o homem e muito diferente o seu ideal.
Educar a mãe para ser a educadora dos filhos; educar a mulher em geral para viver de si mesma, e para si, quando pertença á enorme legião das que ficam solteiras e portanto,—sem filhos a educar nem casa a governar, deve ser um dos nossos mais porfiados empenhos.
É este o verdadeiro feminismo.
AS MULHERES E A POLITICA
A mulher não hade fazer politica? Então não hade ocupar-se, já não digo da sua, mas da sorte de seu marido, dos seus filhos, ella que é toda dedicação?!
Dr. Bernardino Machado.
Transcreve um diario radical,[2] não sei se irritado pelos ultimos casos da politica portuguêsa, um artigo de Urbain Gohier, publicado no jornal L'Action, em que as mulheres são verberadas violentamente, por isso que se prova que em politica só se obedece aos seus caprichos, e os seus desejos se antepõem [Pg 58]aos mais urgentes negocios de estado, de que dependem os destinos duma nação.
Porventura é isso novidade para alguem? Julgaram os homens, por acaso,—tamanha será a sua ingenuidade?!—que podiam em vão dispôr de metade da humanidade, redusi-la ao papel farfalhudo de deusa do lar, nuvem, anjo, demonio, e todas quantas mais banalidades se têm dito e escripto ha seculos, e dizer-lhe:—fica ahi! o teu destino é agradar-me ou servir-me, conforme o meu capricho de senhor!?
Não penses; não queiras sahir dos meus braços, que é só onde podes encontrar o luxo, a alegria, a vaidade satisfeita, a preguiça que te pode conservar a belleza material, mas que te anúla por completo a vontade e a inteligencia, que dispenso... Salvo se precisar da tua graça e do teu espirito para chamar aos meus salões os que a minha energia não conseguir domar, mas é conveniente que esse mesmo espirito seja frivolo, feito de sorrisos e de frases do dia, facil para qualquer mulher, medianamente inteligente, posta num meio em que as emoções de arte aguçam os nervos, e o conforto, o luxo, e o[Pg 59] convivio com pessôas distinctas, adelgaçam intelectos e limam as arestas plebeias, que denunciariam logo a humilde procedencia...
Pois a mulher que só vive de vaidades, que tem a sua orbita limitada a seguir o astro rei como palida lua sem luz propria; a mulher que geralmente só tem um nome respeitado quando o homem lho dá; a mulher que é educada para agradar ao homem, para arranjar pelo casamento uma situação definida na sociedade; a mulher sem um fim determinado na sua vida individual, sem um pensamento nobre a elevar-lhe as aspirações; a mulher escrava pela força e submetida pelas leis, vinga-se como sempre se vingaram os escravos—corrompendo.
O que desejam as mulheres auferir do homem que as não associou a nenhum dos seus pensamentos e actos, que a aceita como um presente e a conserva como um luxo? O que todo o inferior pretende tirar do que se lhe quer impôr como senhor, numa revolta amarga de impotencia—a maior soma de gôso proprio junto ao menor esforço para o conseguir; o seu prazer,[Pg 60] a felicidade egoista de quem não tem um nobre ideal a orientar-lhe a senda da vida.
É pois criminosa a mulher, e muito, mas criminosa como a criança que inconscientemente empurrasse para o abysmo o seu proprio irmão.
Responsavel é só o homem, que, cheio de orgulho, não procura na mulher uma companheira, uma igual, mas uma inferior, embora finja endeusá-la para a conservar na rotina e no servilismo. Tira-lhe a instrução e a sciencia, como alimentos improprios para estomagos delicados, e deixa-lhe o sonho e a fantasia, que as tortura na ânsia louca de encontrar na vida real o imprevisto de sensações romanescas, que seduz principalmente os ignorantes.
Culpado é só o homem que afastou a mulher proba e culta de todas as luctas em que o destino de ambos se joga,—pois que a politica é, ou deve ser, a arte de bem dirigir uma nação, e a nação pertence tanto ao homem como á mulher—para se deixar governar por intrigantes quasi sempre deshonestas, as mais das vezes inconscientes instrumentos doutros ambiciosos.
Afastaram a mulher das altas preocupações do espirito, puzeram-lhe ao pensamento e á vontade uma barreira de preconceitos e de ignorancia, e queixam-se porque ella usa das armas que tem e gosa o fructo do orgulho masculino!
Indignam-se contra as mulheres e são os proprios homens cultos que transigem com ellas, nas suas crenças e prejuisos; elles, os que não têm pejo de dizer publicamente que—embora se sintam libertados, embora os seus espiritos pairem alto numa atmosfera de saber e de certeza que os orgulha—consentem que as esposas continuem a crêr o que elles descrêm, a vêr o que elles não vêem, a seguir o que elles não seguem,—porque querem ser tolerantes!
Não comprehendem, ou não querem comprehender, o que é peor, que a mulher representa mais do que o homem na constituição da familia, porque é a ella que pertence o filho nos seus primeiros annos, porque á mãe está confiada a filha até passar para as mãos do marido. E quantas vezes o homem, num ingenuo sorriso de criança, encontra os laços que no futuro lhe hão de manietar o espirito, ou, em[Pg 62] caso de resistencia, o fundamento para luctas que lhe despedaçarão a felicidade se teimar em não se deixar vencer pela persistente e dôce propaganda das crenças femininas.
A mulher não póde cortar abruptamente com um passado, que é toda a sua vida espiritual.
É preciso que uma forte instrucção a liberte de caprichos infantis e lhe dê a lucida e precisa noção do que deve ser a sua força moral.
Torna-se preciso que o homem já educado eduque a sua companheira; que o homem livre escolha a mulher já livre; ou que o homem saiba transigir com os laços seculares que muitas vezes ligam a mulher solteira á familia e á tradição, mas só quando tiverem a certeza de que esses espiritos, momentaneamente libertados pelo amôr, não voltarão mais tarde, numa crise de fastio e abandono, aos ideaes com que fôram embalados os seus aureos sonhos de menina...
Não é negando e demolindo que se fórma a nova alma feminina, que, por sua vez, transformará o mundo; é elevando a consciencia e[Pg 63] construindo um novo templo de amôr e bondade humana, irredutivel e forte, onde o espirito se inunde de luz e não possa mais mergulhar na treva.
O homem livre, o mais responsavel, aquelle que nos seus jornaes, nos seus livros, nas suas conferencias, mais clama pela educação da mulher, reconhecendo na sua falta toda a servidão das sociedades burguêsas; esse mesmo, falto de logica quasi sempre, não se faz acompanhar da sua esposa ou das suas filhas, não as póde apresentar como exemplo ás outras mulheres, porque, em geral, são ellas as primeiras a abominar as suas ideias.
Quando mesmo as não contrariem nem abominem, perfilhando-as algumas vezes, são raras as que o queiram confessar publicamente, sabendo muito bem que o homem português tem o terror instinctivo da mulher culta e intelectualmente independente.
E só assim ella deixará de ser a pedra atada ao pescoço do homem, que em vão se esforça por fugir á corrente da moda em que a maior parte dos espiritos masculinos vem a naufragar.
Não é a mulher educada e orientada na consciencia dos seus deveres e obrigações sociaes a que merecerá nunca a frase seguinte do jornal a que me refiro:—capricho que é um erro proprio da fórma de ser do espirito feminino.
O espirito da mulher não tem atributos proprios, como a sua inteligencia e as suas aptidões não podem ser limitadas autoritariamente, circunscriptas a um certo e inultrapassavel perimetro.
Ha mulheres caprichosas por defeitos de educação ou de temperamento, consumidas de mesquinhas invejas e pequenas revoltas de impotentes, como ha tantissimos homens sem energia, que nas suas proprias revoltas são irritantes, falsos e untuosos, como costumam classificar as mulheres.
Escolham os homens livres companheiras que egualmente o sejam; determinem-se os campos, forme-se a familia pelas convicções de cada um e não pelas convenções duma sociedade que não tem sinceridade nem nobrêsa, e a transformação será completa.
SER PORTUGUÊS
«Como hade a mulher educar os filhos no civismo, se o não praticar?»
Dr. Bernardino Machado.
Conserva-se a mulher portuguêsa numa entorpecida indiferença pelas questões da actualidade, mesmo por aquellas que mais de perto a deviam interessar.
Alem dos cuidados, mais ou menos caseiros, deveria a mulher interessar-se pelas questões de civismo, como pelos varios problemas sociaes, que tambem de perto e profundamente a tocam, não só na sua vida individual como na sua influencia na familia.
O individuo pertence á familia, a familia á sociedade, e o que interessa esta por força hade interessar aquelle, numa sociedade bem organisada e equilibrada.
Não póde pois a mulher, principalmente quando é mãe, conservar-se na abstenção culposa em que tem vivido até aqui a mulher portuguêsa.
Ao seu espirito desocupado passa tão despercebido que um pedaço das colonias seja retalhado á patria, como um novo emprestimo ou uma sobrecarga de impostos—que venham agravar as condições geraes da vida, já de si tão dolorosas—sejam votados e postos em execução.
Qual a alma de mulher que vibra de enthusiasmo ao lêr uma pagina vehemente de patriotismo? Qual a que se desespera e indigna vendo a derrocada de caracteres que nos arrasta para um fim vergonhoso?!
Convenceram-na—e ella acreditou!—de que não deve pensar em politica, porque isso lhe tira toda a modestia e ductil graça tornando-a uma desagradavel Maria da Fonte; e, no entanto, não sendo ouvida quando se trata de[Pg 69] novos emprestimos, despesas extraordinarias e desequilibrios orçamentaes, mais do que ninguem os sente e sofre ella, na sua qualidade de reguladora das despesas da familia.
A mulher, e, o que é mais, a mãe, não se interessa pelos trabalhos intelectuais que o filho tem a seguir, não estuda as questões pedagogicas, não impõe a sua vontade, só se fôr para lamentar a criança, que tem de se maçar com tantos livros... Não pensa nem dá importancia á educação dos rapazes, isto é, dos homens que hão-de ser os maridos das suas filhas, os pais educadores dos seus netos; não se indignam nem protestam contra as injustiças e prepotencias que a seu lado se praticam, como não se enthusiasmam por uma manifestação da arte nacional ou por um acto de coragem e hombridade que levante, ao menos por instantes, o nome português.
A mulher, a mãe, recebe com o mesmo sorriso carinhoso o filho que passou num exame por empenhos, como se elle fosse um consciencioso estudante; o que compra o emprego, sabendo que comete uma ilegalidade; o marido[Pg 70] que por comodismo ou por interesse aceita todas as imposições dos superiores, sem um protesto de consciencia; o noivo que apresente mais valiosos titulos de renda, seja qual fôr a sua procedencia.
A mulher, que hade no futuro ser acusada por todas as faltas civicas do seu tempo, julga-se desobrigada porque delegou no homem todas as responsabilidades e todos os encargos da governança publica.
Ora isto não é assim, porque, de todos os crimes civicos do homem, é a mulher a verdadeira culpada.—«Deante da esposa e talvez ainda mais das filhas, quando civicamente educadas—diz o sr. dr. Bernardino Machado—ninguem se atreveria a aparecer depois duma má ação na sua vida publica.»
Grande é pois a responsabilidade da mulher no estado de depressão moral, que é a caracteristica da sociedade portuguêsa dos nossos dias.
Não posso crêr que seja isto falta de sentimento, essa flôr delicada que dizem ser apanagio do coração feminino e que é a ultima que[Pg 71] nelle fenece; não posso crêr que a generosidade, o altruismo, a coragem, que em todos os tempos nimbaram de luz o espirito da mulher portuguêsa, a tenham abandonado de todo, para sómente se manifestarem em algumas almas masculinas.
Não, não é isso possivel, que seria contrariar todas as leis da natureza, falsear todas as tradições, duvidar de tantissimos factos que nobilitam a mulher do nosso paiz.
É que hoje, desinteressadas por educação e por habito das questões que tanto preocupam o espirito masculino, não pensam que—em todos os actos da vida nacional em que os seus nomes entrassem, protestando pelo direito e pelo dever contra a injustiça, a força e a intriga politica, seria uma afirmação dos seus sentimentos civicos e a próva de que comprehendiam as questões de que depende a felicidade da sua Patria, o futuro honrado dos seus filhos.
Com esse simples acto espontaneo da vontade, provariam que o seu sexo, embora afastada das luctas que se dirimem dia a dia no jornalismo[Pg 72] e na politica de dize tu direi eu, que é a politica portuguêsa dos ultimos tempos, acompanha e apoia os homens, quando justa e nobre é a sua causa.
Mostrariam conhecer os deveres e os direitos que assistem a todo o cidadão livre, seja homem ou mulher, de protestar contra os actos que a sua consciencia repudía, embora praticados á sombra das leis.
Tendo dado essa prova de individualidade mostrarieis ser, senhoras, as mulheres que deveis ser para que os vossos filhos, no futuro proximo que os espera—quem sabe de que vergonhas e miserias tecido!—tenham a nobre coragem de se sacrificarem pelo resurgimento da Patria Portuguêsa.
Mas sabeis porventura o que é sêr português, vós que falais a lingua que tem todas as energias do mar bravo e todas as doçuras dum poente entre pinhaes rumorejantes?...
Sabeis o que é sêr português, vós que pizais indiferentes uma terra tantas vezes embebida em sangue dos que luctaram até á morte para a tornar uma Patria livre?...
Sabeis o que é sêr português, vós que respirais o aroma das flôres que por toda a parte desabrocham em hilariantes coloridos, neste abençoado canto do universo?!...
Sabeis o que é sêr? português, vós que recebeis a dulcida caricia dum céo limpido, que passeais os vossos olhos sobre as aguas movediças que levaram os nossos antepassados á aventura gloriosa de descobrir novos caminhos e novos mundos maravilhosos, essas aguas que trouxeram, em paga de tanto esforço e tanta heroicidade, o oiro, as pedrarias, a riquêsa que deslumbrou o mundo e—ai de nós!—pela vaidade nos perdeu!?
Sabeis o que é sêr português, senhoras!?...
Pesa-me dizer-vos que, salvo algumas excepções, não o sabeis.
Que isto vos não cause enôjo, e que sobre a minha cabeça não cáiam as vossas ironias e odios!
Se vós o não sabeis, pouca ou nenhuma culpa tendes, que de longe vem o despreso pela vossa educação, que de bem longe vem o mal que nos está ligando como cadaver embalsamado[Pg 74] prompto a entrar para o tumulo historico das nações que só vivem do passado.
Mas podeis ainda resistir. É tempo ainda de sacudir a apathia egoista em que vos conservaes ante todas as angustias colectivas do paiz, e mostrar ao mundo que o povo português não morreu ainda, porque as suas mulheres, as mães, têm sempre no coração a imagem estremecida da Patria, e ensinam os filhos a respeita-la, a ama-la mais do que á sua noiva, mais do que aos seus proprios pais.
A nação amada pelas mulheres não morre nunca na historia.
Martirisada, dividida, conquistada, não morre emquanto as mães transmitirem aos filhos, com o leite dos seus peitos, o sangue das suas veias, o fogo das suas palavras, o despreso aos vencedores e o amôr á terra que foi de seus avós, á terra onde existe a sua casa, que é o seu lar.
Começam por ensinar-lhes no berço, acalentando-os com ellas, as lendas e cantares da sua patria; acabam por lhes indicar o caminho por onde enveredaram os que sofreram e morreram contentes pela sua gloria.
Falo-vos ao sentimento, eu sei, mais do que á razão, mas prouvéra a Deus que fôsse o sentimento que guiasse ainda o nosso paiz! Quando uma patria é nova, crente, esperançada e forte, firmando-se no amôr e no enthusiasmo dos seus filhos, não se prende por conveniencias, não recúa ante o perigo, não sabe contar os inimigos que a atacam, para os vencer. Por isso avança, torna-se inolvidavel na historia, como nós o fômos!
Só na decadencia se aprende a transigir, decadencia que tanto póde ser material como moral, decadencia que é, a maior parte das vezes, filha só do egoismo, do desejo inferior de gosar sem que o gôso dos outros nos seja preciso para a felicidade propria.
E no nosso paiz transige-se para se estar bem com todos, transige-se por preguiça de discutir, transige-se por uma emaranhada teia de preconceitos, de pequeninas considerações que amolecem o ânimo, quebrantam as vontades, e fazem das oposições uma coisa ridicula, porque não têm éco nas almas, ou são, quando muito, um brado louco e desacompanhado de[Pg 76] quem vê uma grande multidão correr para um abismo e nada póde fazer para a sustêr e salvar.
Mas não ensineis a vossos filhos essa excessiva transigencia, senhoras! Deixai aos moços o enthusiasmo e a fé; não estanqueis a fonte de coragem e energia e justiça que existe em toda a alma joven!
Levantai o espirito para mais nobres ideais, não vos amesquinheis numa abstenção que não é modestia mas ignorancia, indiferença, covardia das vossas almas que assim querem fugir á dôr forte e nobre do sêr que aspira—a ascender, na escala zoologica, de simples animal de instinctos para criatura de espirito e de vontade.
Não tenhais mêdo da dôr intelectual que retorce febrilmente os nervos em convulsões de agonia e aperta a garganta inchada de soluços num estrangulamento de desespero, vós, as mães, que sofresteis corajosamente a dôr fisica de ter um filho! Tornai-vos conscias da grande missão que é de vosso dever desempenhar, com a firme certeza de que não ha paiz grande onde a mulher seja inferior.
Vós, mães e educadoras, que tendes a vosso cargo pequenas almas em embrião a despertar para a luz, ensinai-lhes primeiro do que tudo, e antes de tudo,—a serem portuguêses.
E ser português é amar a sua terra entranhadamente, religiosamente, esta terra de que somos filhos e não podemos despresar sem nos despresarmos a nós mesmos.
Ser português é aprender a sua lingua antes de nenhuma outra; é lêr os livros que portuguêses têm escripto; é conhecer os seus artistas; não despresar as suas industrias; comer o producto da sua terra; amar as paisagens, ora recortadas em fundo grandioso de montanhas, ora espraiando-se em campinas onde as searas ondulam em marés verdes de esperança e os gados pastam com fartura; cantar as suas canções; folgar com as festas do seu povo; amar a sua flóra tão simples e graciosa; estudar a sua arte em todas as manifestações, desde a bilha de barro abrindo-se em duas azas, recordando a amfora romana, tão gentilmente posta sobre a cabeça da rapariga de Coimbra, até á magnificente fabrica do mosteiro da Batalha,[Pg 78] sem esquecer o mobiliario severo e nobre dos nossos avós, a ourivesaria subtilmente trabalhada, os tecidos, a ceramica, as rendas, que, em tudo, houve tempo em que fomos alguem.
Se o não somos hôje, cuidais que os artistas e a patria é que são os responsaveis de tão grandes decadencias?
Não; uma, não póde nada, prisioneira do oiro nas mãos dos usurarios; os outros, sem estímulo nem público que lhes pague as fadigas e os empurre para o exito, ou lhes mostre pelo despreso a inferioridade do trabalho, retiram-se do campo onde a mediocridade dá leis. São poucos os que á força de vontade e coragem conseguem não esmorecer, trabalhando mais para satisfação propria do que pelos lucros materiais.
Que a Arte não dá hôje gloria em Portugal, e muito menos riqueza.
Se não sômos o que já fômos é que uma educação fundamentalmente portuguêsa falta por completo no nosso paiz.
A criança começa por interessar os olhos[Pg 79] ingenuos nas estampas dos livros estrangeiros—ou vindas do estrangeiro para adaptar a coisas portuguêsas, o que é peor ainda!—por lêr traduções das historias que nos outros paizes se fazem para os pequeninos; por vestirem luxuosos vestidos cujos modelos vieram de fóra; por só apreciarem as flôres exoticas cultivadas com mimos de estufa, despresando a simples e honesta flora portuguêsa, tão espontanea e bella; por vêr as habitações dum tão duvidoso gosto de importação, os brinquedos, a loiça, os navios, os carros, os velocipedes, que tudo nos vem do estrangeiro e nos dá o aspecto banal e miseravel de povo sem nacionalidade.
Só vós, senhoras, podereis levantar-nos desta situação por demais incaracteristica e infamante!
Só vós podereis insuflar na alma dos moços o respeito pelo passado, o horror da situação presente, e a esperança consoladora num futuro melhor!
Num futuro que não está nos cursos complicados, nas repartições da burocracia, nos feitos das vanglorias militares com sobados africanos,[Pg 80] mas nas oficinas, nas fabricas que nos poderão criar industrias exportadoras, no cultivo da terra que nos dá o pão do nosso sustento, o linho da nossa roupa, as fructas mais delicadas, o arroz, a cortiça, o vinho, as conservas, e tantissimas coisas que já hôje se exportam a mêdo e que poderão ser outras tantas fontes de riqueza, se a ellas se dedicarem inteligencias e dinheiro que mal parados andam umas e outro.
E nós, as mulheres, que temos nas nossas mãos a alma dos nossos filhos, que é como quem diz o futuro e a esperança, ensinêmos-lhes a despresarem o caminho das transigencias acomodaticias e a fugir do fatalismo musulmano com que temos acolhido, de braços cruzados, todos os desastres e toda a decadencia da nossa nacionalidade.
Preparêmo-los para que entrem na vida cheios de coragem e energia para o trabalho, renegando as miserias e as vergonhas de agora, e façam resurgir das ruinas duma sociedade que se anulou a si mesma, um Portugal novo, conscio de si, altivo e digno.
Nas vossas mãos, senhoras, está a rehabilitação das humilhações e vergonhas que ha dois seculos formam o triste fundo da nossa vida pública.
Nas vossas mãos está a morte definitiva da Patria Portuguêsa ou o seu resurgimento para o trabalho e para a vida.
Ponhâmos de parte as frivolidades que nos ensinaram a crêr que são a maior graça do nosso sexo, e sejâmos mulheres como o devemos ser:—criaturas conscientes e autónomas, companheiras e aliadas do homem, as verdadeiras educadoras de seus filhos.
Como a dama romana que mostrava os filhos como as unicas joias de preço que possuia, tiremos nós mais gloria em mostrar os nossos como cidadãos livres, sobrios e honestos, em vez de lhes darmos exemplos de ostentação e grandêsa que se não coadunam com a modestia da nossa terra e só provam a decadencia moral da sociedade em que vivemos.
Pensai nisto, senhoras, e ensinai-o a pensar a vossas filhas, porque tem mais interesse para o seu futuro e para o dos seus noivos do que o[Pg 82] ultimo figurino, ou a ultima valsa tocada de ouvido ao piano.
Fazei de vossos filhos homens saudaveis de corpo e de alma, e das vossas filhas as companheiras dignas desses homens, capazes de os auxiliar no trabalho, alegres nas privações como modestas na grandêsa, e tereis cumprido a mais bella missão da mulher, dado a mais alta lição de verdadeiro e salutar patriotismo.
NO ANNIVERSARIO DUMA ESCOLA
Pela descripção da festa realisada este anno[3] na «Escola 31 de janeiro» deveis saber que alguns homens dos mais notaveis pelos seus talentos e caracteres se referiram a nós, mulheres, em varias passagens das suas orações eloquentes. E para frisar essas passagens vos escrevo, porque é do vosso interesse, do interesse de nós todas que se trata,—e todas deveis saber o que valeis e quanto a sociedade espera e tem direito a esperar da vossa cultura e ação inteligente.
Foi-me grato encontrar nas palavras da luminosa e bondosa alma que é o dr. Manuel de Arriaga, um apêlo á mulher portuguêsa—que tem sido até hôje, no seu proprio dizer, o maior auxiliar da tirania.
Mas um auxiliar inconsciente, dizemos por desculpa, se a inconsciencia a póde ser, não o sendo a ignorancia das leis perante o delicto a punir.
Apraz-me conhecer a opinião do infatigavel batalhador sr. Heliodoro Salgado, porque essa opinião coincide com a minha, expressa em muitas paginas destas mesmas cartas, espalhada por artigos e correspondencia particular que sobre o assumpto ha muito tenho escripto.
Comoveu-me o pedido do sr. dr. Teixeira de Carvalho, o energico e brilhante espirito, feito ás Mães Portuguêsas.
Não fômos esquecidas, nessa manifestação de quanto póde a inteligencia e a vontade aliadas no bem—exercicio de força que não tem por campo de manobras os montes e as encostas duma região, mas o espaço infinito do pensamento. Não tem horizontes que se fechem[Pg 87] em recorte de montanhas agrestes, é campo aberto a todas as energias e vontades, esplendente de luz que não queima em fantasmagorias dolorosas de febre, mas que ilumina as almas e aclara os espiritos, fazendo-os ascender ás regiões superiores da verdadeira e pura Consciencia.
Se pudessemos ter assistido a essa reunião em que festejou a criança—a pobre criança portuguêsa, tão tristemente educada, tão despresada mesmo!—o amoravel apostolo da educação dr. Bernardino Machado, mortificar-nos-ia o sentimento da propria inferioridade, que não nos deixaria responder com a confissão das nossas culpas, mas tambem com o nosso libello acusatorio aos homens livres, que têm consentido em que as mulheres sejam as mais ardentes adversarias dos seus ideais, o auxiliar passivo e inconsciente da tirania e do retrocesso.
É justa, se bem que implicada de censura amarga aos homens, a frase do sr. Heliodoro Salgado:—resgatêmos a mulher da ignorancia a que a temos condenado e ella será a nossa cooperadora na revolução.
Educar a mulher; torná-la util a si e aos seus, pelo trabalho remunerado; escolher cada homem livre esposa que o seja, não só do corpo mas tambem do espirito, não só humilde e paciente dôna de casa, mas nobre e inteligente educadora, fóco de luz e de bondade superior, irradiando na familia, como sol por onde se norteia a alma caminhando para o futuro.
Se assim fosse, a revolução deixaria de ser um facto brutal e rude para ser tão sómente uma evolução triumfante para a humanidade que marcha e se resgata...
Não ha homem que se possa dizer livre, e que afoitamente possa responder pela sua propria consciencia, em todas as horas de desfalecimento e de dôr, quando a seu lado tenha—ignorante, mas teimosa na crença; sem brilho na palavra, mas cheia de convicção no olhar; sem convencer pela razão, mas abalando pelo comentario de cada hora—a mulher que é a sua companheira, que foi talvez a sua paixão, que é a mãe dos seus proprios filhos.
A mulher, sempre atrazada, por mingua de educação, no evolucionar das aspirações e das[Pg 89] novas crenças sociaes é o agente mais importante do retrocesso e da rotina.
É ella que em politica, como em sciencia, como em tudo mais, é sempre pelos velhos preconceitos, pelo estatuído, pelo comodismo egoistico e enervante do seguro, pelo que ouviu tradicionalmente e não discute nem quer ouvir julgar nem discutir...
Ora a tradição e o respeito pelo passado, se é uma virtude e um estudo indispensavel para o conhecimento perfeito dos costumes e reconstituição historica de uma época, como norma de vida e como crédo intangivel é a negação de todo o progresso e de toda a civilisação.
Conversando ha dias com um pobre barqueiro, de rio acima, ouvimos-lhe, no limitado e pitoresco vocabulario do seu chão estilo, esta observação que é curiosa, pelo que nos revela mais do que pelo que nos diz:—agora—dizia—está tudo mais esperto. O que antigamente só podia fazer um homem velho no oficio e cheio de experiencia, fa-lo hôje, quasi sem custo, um rapaz de dezeseis annos. Os senhores haviam de vêr como rapazinhos governam ahi[Pg 90] barcos, rio acima, conhecendo todos os esteiros e manobrando dentro dos canaes das marinhas, como os velhos só o faziam dantes ao cabo de muitos annos lidarem por aquelles sitios. É que está agora tudo mais esperto!—Repetia, concluindo, a frase que era o seu bordão.
Não é porque esteja tudo mais esperto, como queria o homensinho, comprehendem muito bem, mas é porque está tudo um pouco mais instruido. Um rapaz de dezeseis annos que sabe lêr o seu roteiro é incomparavelmente superior ao velho ignorante que só na memoria póde armazenar conhecimentos e esses mesmos com lentidão e insuficiencia adquiridos pela prática.
A mulher portuguêsa tem vivacidade de espirito e assimilação facil; não lhe falta o enthusiasmo nem a paixão; bastaria pois que a educassem e a orientassem.
Mas de quem póde esperar esse forte impulso libertador, unico capaz ainda de levantar a alma portuguêsa a toda a altura da exigente vida moderna? Dos pais que não educam as filhas como criaturas humanas e sim como bonecas de corda, de que é preciso vigiar o[Pg 91] maquinismo, e que em vez de lhes fornecerem educação que lhes garanta o futuro pensam com afinco em lhes amoedar o dóte, que mais facil lhes torne o casamento? Das mães, que não comprehendem o que hôje se chama educação feminina e ainda se surprehendem e assustam com inovações de que ouvem falar vagamente? Do homem, já amezendado na vida, comodista, defendendo por egoismo o que lhe satisfaz as aspirações de senhor; querendo a esposa muito sua humilde companheira, hôje prompta a servi-lo, ámanhã a ser a criada dos seus filhos?...
De nenhum desses póde receber o salutar influxo que a torne a companheira condigna do homem civilisado, que a sociedade prepara no seio revoltoso das luctas e desesperos de hôje para um ámanhã mais justo.
É dos rapazes novos—não daquelles que entraram na vida tarados para o ramerrão comodista dos empenhos e empregos públicos, numa covardia mórbida para a revolta e para a lucta—mas duma pleiade de moços a sair das escolas, cuja alma sentimos palpitar numa aspiração perfeita das suas responsabilidades,[Pg 92] como disse o Snr. Teixeira de Carvalho. São esses os que as podem encaminhar para a emancipação intelectual, esses os que devem colocar-se ao lado das suas irmãs e, tornando-as as suas verdadeiras companheiras, prepararem o seu proprio futuro de serenidade e confiança no lar.
Então o homem póde entrar com segurança na vida e ferir as batalhas mais sangrentas sem o receio de ver atraiçoada a sua obra na propria casa, na sua familia, pela companheira da sua vida, e pelos filhos educados no despreso e no odio ás suas ideias.
O que em Portugal se tem feito pela mulher é pouco e máu, mas o que se tem feito pela criança é ainda menos e peor, se é possivel.
Por isso nos consola uma festa como a da Escola 31 de Janeiro, iniciativa de rapases das escolas, sustentadas em annos consecutivos de lucta pela esforçada coragem de dois ou três que não debandaram nem desanimaram, passado o primeiro momento do arrebatado enthusiasmo da alma meridional.
Era isto, que fizeram alguns rapases das escolas,[Pg 93] isto que fazem hôje e sempre os snrs. Luiz Derouet, Santos Franco e outros, não afrouxando nunca na propaganda, não esmorecendo na campanha contra a indiferença do público; era isto o que eu desejava que as mulheres fizessem. Não as casadas, que têm a sua vida, os seus filhos, os seus encargos, mas as raparigas que estudam e pensam; senhoras novas e inteligentes que do pouco fizessem muito á força de energia e amôr pelas crianças, raparigas modestas que desejassem fazer obra de honestidade e proveito e não especulação caridosa para arranjar noivo mais depresa.
Seriam essas, as futuras mães e educadoras, quem desejariamos á frente de escolas e institutos infantis, criados pela sua iniciativa, vivendo do seu benefico influxo.
Ahi, no convivio da alma da infancia, tão obscura e complexa, aprenderiam o seu papel de mulheres na familia.
Na créche, ellas aprenderiam a enfachar um pequenino corpo leitoso e mole, que mais tarde a natureza lhe porá ao seio e que as suas mãos inhabeis mal poderão tocar com mêdo de que[Pg 94] se despedace. Aprenderiam quais as doenças que mais adquire a primeira infancia; qual a maneira de as evitar e combater, o que se chama a hygiene propriamente infantil.
Na escola maternal, aprenderiam, ensinando, como é facil educar e instruir crianças de menos de seis annos, conservando-as sempre na atmosfera alta da curiosidade e da aprendisagem.
Na escola primaria comprehenderiam quanto é agradavel e facil ensinar crianças, quando a familia ou a primeira escola as enviarem já com o raciocinio desabrochado e com certas noções da vida e da natureza que as rodeia.
Nos hospitaes adiquiririam aquella prática de tratar os pequeninos doentes, que tão custosamente obtêm as mães quando a alma lhes sangra pelo soffrimento dos seus filhitos.
Nas escolas-oficinas, nas escolas práticas de cosinha, de costura e de governo de casa, em toda a parte onde se trabalhasse pela criança, a mulher solteira poderia formar o seu caracter, conhecer e fortalecer as suas aptidões, fazer a si mesmo a educação que a tornasse[Pg 95] util a todos e lhe desse para o futuro a certeza de poder contar comsigo para provêr á propria subsistencia.
A menina solteira no nosso paiz tem uma vida sem responsabilidades sociaes e a maior parte das vezes sem utilidade nenhuma.
Anda na escola ou no collegio—as que não vão para os internatos—até a saia lhe descer do joelho e roçar no cano da bóta. Aos primeiros signaes da puberdade, os pais atarantam-se, num pánico de grandes perigos a recear, e a pequena recolhe a casa.
Depois, se a fortuna o comporta, vem o professor particular ensinar o que póde a quem não estuda nem deseja saber, desde a pintura sem desenho até á musica sem rudimentos. As que não pódem ter professores ficam em casa com o pouco que aprenderam, a esperar que os annos, na sua fugitiva carreira, lhes tragam o noivo correspondente.
Vestem com elegancia, mas não sabem fazer os seus vestidos; sabem pôr sobre os seus cabellos frisados o mais disforme e complicado chapéo, mas não o sabem enfeitar por suas proprias[Pg 96] mãos; não costuram nem bordam a roupa da casa; não talham as suas camisas; não cosinham ou sabem dirigir o jantar da familia; não tomam a si o encargo de criar e educar os irmãosinhos mais novos. As mães poupam-nas o mais possivel. É o seu bom tempo—dizem. Deixá-las, lá virá época em que tudo aprendem á sua custa!...
Pobres dellas! Não viram, no seu exemplo, quantas amarguras representa essa aprendizagem á propria custa, desde o mau humor do marido que vê tudo feito por mãos inexperientes até ao desrespeito das criadas por quem não as sabe mandar nem ensinar.
A rapariga portuguêsa não é um sêr util e respeitavel, de que os rapazes sejam fraternaes companheiros, lendo os mesmos livros, interessando-se pelos mesmos assumptos, conversando naturalmente em qualquer ocasião e com qualquer pessôa que se encontrem.
Não, ella é uma criatura no papel passivo de pretendente, esperando vagamente o numero da loteria—que lhe dê o premio.
Depois, conforme este seja, grande ou pequeno,[Pg 97] isto é, marido rico ou pobre, terá então que adaptar a trouxe-mouxe as suas qualidades assimiladoras e resignar-se ao trabalho ou pavonear-se soberbamente no luxo e na inactividade.
Para tudo está preparada, não estando habilitada para coisa alguma.
A rapariga portuguêsa é, em resumo, uma criatura encantadora, que veste com garridice, que passeia nas horas de musica, que vai ás praias, aos theatros e ás reuniões, que ás vezes lê os folhetins dos jornaes e tem ataques de nervos, de quem os rapazes desdenham e troçam—mas que, por fim, virão a ser as suas mulheres.
Quantas não têm o desejo de se tornar uteis, de ganhar para os seus alfinetes, de terem uma ocupação que as enobreça aos seus proprios olhos e as habilite a serem mais tarde livres pelo seu trabalho?!
Mas, entorpecidas pela educação, deprimidas pelos estreitos habitos da vida portuguêsa, resignam-se a não serem mais do que as outras—umas eternas aspirantes ao casamento.
Inteligente e dedicada como é, em geral, a[Pg 98] mulher portuguêsa, que grande e bella obra social não faria, quem a pudesse interessar pelas duas questões capitaes de que depende o resurgimento da nossa patria e o futuro da nossa raça:—o trabalho livre e remunerado para a mulher, a educação, fisica e intelectual, da mísera criança portuguêsa.
A MULHER DE HA TRINTA ANNOS E A MULHER DE HÔJE
Se perguntarmos aos que ora entram com desplante na vida, julgando que nada devem ao passado, que o presente é obra sua, e o futuro lhes pertence, o que era a ilustração da mulher portuguêsa de ha trinta annos, não haverá ahi rapaz ou rapariga de mediana educação que não solte uma gargalhada escarninha, ou que, ao menos, não franza a bôca num tregeitar de troça.
É que essa época de romantismo agudo avulta a nossos olhos a turba desgrenhada das jovens que recitavam ao piano, com os olhos no infinito; que dormiam de colete para adelgaçarem[Pg 102] a cinta, defumavam o rosto para obterem a palidez interessante que a moda reclamava ás heroinas tisicas, que sonhavam com o menestrel choroso que por noites luarentas as viria buscar para um eterno duo de amôr, na cabana ideal onde se vivia... do ar.
Essas eram as exageradas de todas as escolas, as desvairadas de todos os tempos. Mas ao lado dellas, as sãs, as ajuisadas, que liam os mesmos livros e conheciam as mesmas poesias, não se deixavam levar em excessos de romantismos piegas, mas amavam os seus poetas e comprehendiam a literatura do seu tempo.
Não ha por ahi senhora da geração de nossas mães, rudimentarmente educada que fosse, que não tenha chorado com os romances de Camillo, que não tenha discutido e amado Julio Diniz, que não conheça Garrett e Herculano, que se não lembre com saudade da Lua de Londres, que não tenha recitado Soares de Passos, Castilho, Palmeirim e Thomaz Ribeiro, que não tenha cantado essas poesias, que entraram no ouvido de todos em modilhas e cantatas, compostas por musicos ignorados.
Isto numa época em que a mulher não tinha, como a de hôje, facilidade em se instruir, em que a instrução por essas provincias fóra era um caso esporadico, em que os liceus lhe não eram franqueados e nas escolas superiores se falava do exemplo de Publia Hortensia de Castro, que cursou a Universidade vestida de homem, como dum caso fabuloso, porventura menos provavel do que a sabedoria de Minerva, a deusa mitologica da sciencia.
O que significa que a mulher joven ha trinta ou quarenta annos, sem ter a alta cultura duma grande dama da côrte brilhante de D. Manuel, era, sem dúvida, muito superior á de hôje, que não conhece os seus escriptores nem comprehende os seus poetas.
Se bem que a Arte, embora na sua fórma mais intelectual,—a literatura—não possa dar á mulher o grau de conhecimentos, a soma enorme de noções exatas da sciencia que são necessarias para constituir hôje a educação de qualquer criatura regularmente culta, é bem certo que eleva as almas e constitue um dos mais nobres ideais da existencia humana.
«A mulher desconhece os escriptores do seu tempo e deixou de se preocupar pela literatura, porque não temos romancistas que a interessem e os poetas deixaram de lhe falar ao coração...—costuma dizer-se para desculpar uma falta que todos reconhecem e da qual ninguem se confessa culpado.
Seguramente que a maior, se não a unica responsavel, é a mulher que assiste, sem comprehender, ao avançar victorioso da civilisação, que hade expulsar os ignorantes como párias inuteis numa sociedade que se encaminha para a luz.
Poetas e prosadores deixaram, é certo, a azinhaga florida do romantismo para seguirem pela estrada arejada de um novo ideal estético, para uma fórma mais verdadeira e humana. Mas porque os não seguem as mulheres? Porque se quedam numa indiferença que as distanceia do seu tempo, que as torna tão alheias a tudo quanto interessa o homem do seu paiz, da sua sociedade, do seu proprio lar?
Não lêr porque não ha quem escreva a seu gosto no nosso paiz é... apenas uma desculpa.[Pg 105] Temos hôje, como sempre tivémos, quem escreva bem. Todos os annos, a par da grande alluvião de livros sem valôr que ficam nos depositos das casas editoras para serem vendidos ao peso do papel, ou dados como brinde a quem compra outros livros, publicam-se os bastantes para saciar a curiosidade vulgar em quem tem o habito da leitura.
O que falta não são os escriptores nem as suas obras.
Falta o público que dê no seu aplauso ou no seu desagrado o incitamento de que precisa todo o artista para fazer obra em que pônha toda a alma, toda a energia do seu espirito, na inspiração de progredir e vencer a concorrencia, que então se dá material e áspera, mas compensadora para os triunfantes.
Quem lê no nosso paiz? Uma minoria de intelectuaes, que preferem a literatura estrangeira, e que a maior parte das vezes não compram sequer os livros portuguêses, que poderão ler de emprestimo ou oferecidos.
Lê o povo bastante, mas o povo das cidades, e principalmente os operarios, os livros dos[Pg 106] propagandistas, as brochuras que os chamam á consciencia da sua grande miseria; ou lê os romances sensacionaes, ultimamente, e por felicidade, substituidos pelos grandes romances historicos ás cadernetas, ilustrados, que têm a enorme vantagem—quando não tenham outra—de ser portuguêses e não habituar o povo a dizer nomes disparatados e ridiculos que lhe servem nas traduções.
Não lê no nosso paiz, a grande maioria dos homens, porque não encontram para isso tempo que lhes sobre dos seus afazeres ou da vida dispersada por cafés e clubs, na conversa de conhecidos e amigos encontrados sempre nas horas de sobejo.
Não lêem as mulheres, o que é muito peor. Porque é em toda a parte o grande publico feminino quem lê os poetas e os romancistas, quem assigna os magasines e revistas, quem conhece as mais interessantes brochuras de viagens, quem discute os seus autores, quem faz, emfim, uma reputação literaria.
Entre nós, a não ser nos centros intelectuais de que as mulheres só raramente fazem[Pg 107] parte, não se fala em literatura, não se conhecem os escriptores e não ha—o que é significativo—o menor desejo de os conhecer.
Para muitas senhoras que lêem e gostam de lêr é um facto desconsolador o pensarem que serão ridicularisadas e que os ignorantes as alcunharão de sabichonas e doutoras, se por acaso entram em conversa que transponha os limites literarios dos folhetins dos jornaes ou da secção das modas.
Mas será isto motivo bastante para se desinteressarem tão completamente pela literatura do seu paiz?
Fugindo do ridiculo com que fôram tão cruelmente perseguidas as romanticas de ha vinte annos, as mulheres deixaram de lêr com receio de que as chamassem literatas—o epiteto mais desagradavel que podia ser dito a uma senhora que era vista com um livro na mão.
Pararam, indecisas, isto é retrogradaram, porque em civilisação não ha paragens que não sejam retrocessos.
E foi este o motivo porque se deu o afastamento[Pg 108] cada vez mais pronunciado da mulher portuguêsa pela arte e pelos artistas do seu paiz e do seu tempo. É desolador este simptoma porque nos mostra como é feita sem elevação moral, nem intellectual, a educação das mulheres que hão de ser as educadoras das futuras gerações. Numas, as que se dizem educadas, os seus conhecimentos são apenas um mostruario vistoso de habilidades e conhecimentos superficiaes, que não iludem ninguem. Outras, conservam-se na mais boçal ignorancia, na mais completa indiferença pelas coisas do espirito.
Mas dando de barato que, por uma estranha repugnancia de espirito, os escriptores de hôje não agradem ás mulheres, porque despresam tudo quanto de grande e bello tinha a do tempo de nossas mães?
Por acaso deixaram os livros de Camillo de ser os mais humanos, os mais portuguêses, de quantos tem escripto e sentido um grande talento português? Por acaso já secaram, como fonte despresada em campo maninho, os lindos olhos das mulheres do nosso paiz, que já não[Pg 109] se arrasam de lagrimas na partida de Simão Botelho para o desterro e na morte da linda Thereza e da tragica e simples Marianna?!
Tão perdido vai o seu gosto artistico, que já os seus labios se não abrem jocundos sobre as paginas de eterna graça, que o incomparavel escriptor espalhou por toda a sua grande obra?!
Tão adversas a preocupações de espirito, que se não familiarisem com todo esse mundo amoravel e risonho que nos deixou o romancista que deveria ser, por excellencia, o preferido das mulheres, Julio Diniz?!
Tão esquecida que já não leia toda essa pleiade brilhantissima de poetas e prosadores que foi a de Garrett e Herculano, até João de Deus, Anthero, Crespo, Eça, e tantos outros que a morte levou; sem falar nos que, por graça de Deus, ainda vivem e trabalham nesta Patria que devia ser o nosso orgulho e é o tormento de quem a ama e a vê tão outra do que devia ser?
Não, a falta não é dos escriptores, a falta é só da mulher que não está educada bastantemente (apesar de certos criticos acharem que o está já demais!...) para discernir e escolher o[Pg 110] bom caminho que o mais vulgar senso commum lhe indica: uma educação séria e fundamentada, começando nas coisas práticas e uteis da vida, acabando na literatura e na arte em geral, que é por assim dizer a alma falante d'um povo.
É urgente que se convençam de que a mulher ignorante é o mais triste e aborrecido verbo de encher que a sociedade agasalha. Se é bonita, elegante, e veste bem, começa por ser um prazer para os olhos e acaba por se tornar um desprazer maior para o espirito, quando responde com o mutismo da ignorancia convicta, ou com a tagarelice da ignorancia atrevida, a uma simples conversa em que pessôas cultas jogam com ideias e conhecimentos como as crianças com as irisadas bolas de sabão que tanto as alegram.
Isto olhando-a pelo lado social, que na vida familiar os efeitos da ignorancia feminina são ainda de mais tristes e deleterias consequencias.
AS POBRES MÃES
Porventura evocará este titulo míseras mulheres desgrenhadas, arrepanhando-se de dôr, ante a morte que lhes arranca dos braços os filhos estremecidos...
Ou a visão dolorosa das que os vêm partir, na força da vida, frementes de esperanças e ambições, chamados pela lei para a guerra odiosa...
Ou, ainda, pobres mulheres vagabundas, arrastando os seus farrapos pelas ruas e caminhos, mendigando baixinho, numa vergonha ou num pavôr, para os sêres informes que levam nos braços e pendurados ás saias, culturas[Pg 114] para a dôr e para a doença, crimes e loucuras em fermentação...
E, entanto, não são essas as que merecem a epigrafe que encima estas palavras.
É mais dôce o seu viver, mais calma a sua existencia...
É ao recolhimento da vida burguêsa que iremos buscar essas pobres mães, que a sociedade moderna, no impulso avassalador e tiranico de necessidades e exigencias novas, vai fazendo martires pelo sentimento e pelo coração.
São essas mulheres naturalmente inteligentes, mas fundamentalmente ignorantes, que sofrem pelo afastamento progressivo dos filhos do seu amôr e do seu encanto, a par e passo que os vêm crescer em inteligencia e saber.
É á classe média, a mais numerosa e nacionalisada, a mais apegada a preconceitos e tradições, que vamos buscar o nosso exemplo, porque:—o povo operario, caminhando revoltósa e tumultuariamente para o futuro; o dos campos, muito perto ainda do primitivismo animal; a alta burguesia e os restos desmantelados das velhas aristocracias, despaízadas pela[Pg 115] educação e pela existencia só de luxo e egoismo—não podem fornecer os elementos comprovativos para a nossa these.
Um dos muitos axiomas fabricados para satisfação da nossa vaidade, e que transmitimos gostosos pelo prazer de nos iludirmos e pela preguiça em nos emendarmos, é a conhecida frase—que faz comover sentimentalmente os mais áridos corações—a mulher portuguêsa é uma bôa mãe.
Ora se olharmos a maternidade apenas como a funcção animal de conceber, ter o filho, amamentá-lo e cuidá-lo materialmente, nos primeiros três ou quatro mêses da sua existencia, a mulher portuguêsa é, realmente, uma bôa mãe.
Tudo a predispõe para isso. A bondade natural da nossa raça, essa bondade passiva feita da indolencia atavica de sangue oriental que nos anda nas veias; a belleza efemera, quasi toda feita da frescura dos poucos annos e da delicadeza das linhas que a maternidade ainda não engrossou; o esmagamento duma longa série de gerações em que viveu no recolhimento freiratico da antiga vida portuguêsa,[Pg 116] e ainda hôje sem os cuidados rudes de procurar a subsistencia, encargo exclusivo do homem...
Tudo predispõe a mulher, na doçura amolecedôra do nosso clima, para ser uma cuidadosa mãe: cheia de mimos para os seus pequenos; temendo vê-los chorar, como quem teme uma trovoada; muito ciosa das suas prerogativas, quando se trata do enxoval de bébé, da moda dos vestidos, dos chapéos e das bótas; sacrificando-se, em caso de doenças; tendo, emfim, todos os carinhos e todos os merecimentos duma bôa aia.
Mais tarde, procurará dar ás filhas uma educação primorosa, segundo o seu ponto de vista, não se poupando ainda a sacrificios para que toquem no seu piano, saibam prendas de mãos, e um bocadinho de francês para não se envergonharem numa sala...
Emquanto aos rapazes, cedo entregues aos professores que os levam a exame, ficam—graças a Deus—livres de toda a responsabilidade de educadora.
Para com as filhas é mais longa a sua missão,[Pg 117] que não é desagradavel a espiritos que ficaram ignorantes das mais singelas regras de alta moral.
Quando as raparigas chegam á idade de procurar marido, ahi dos dezeseis para os dezoito, começa para a mulher o desempenho do papel, annos atrás a cargo da sua propria mãe, quando a acompanhou a todos os divertimentos, aguentou calôres e frios nos passeios da móda, cabeceou pelas reuniões dançantes, fez sacrificios para lhe comprar vestidos vistosos, despojou-se dos seus adornos para enfeitar as filhas, porque—e esta frase é bem caracteristicamente portuguêsa e lança toda a luz no módo de ser e nas aspirações da nossa pobre mulher—já agradou a quem tinha de agradar.
Agora é a vez da filha ir para a amostra, até encontrar senhor. Sujeitam-se a tudo: trabalham, quando não têm criadas, nos mesteres mais humildes, para que as filhas desempenhem o seu papel de princesinhas de contos á espera do principe encantado que as fará soberanas de deslumbrantes reinos imaginarios...
A rapariga, assim preparada, casa emfim,[Pg 118] realisa a sua ambição, está finalmente arrumada—como é vulgarissimo dizer-se quando uma noiva passa, sorridente e confiada, dos mimos da casa paterna para os braços de um homem que na maior parte das vezes é quasi um desconhecido.
Pobres dellas!... O que julgam o fim é apenas o principio—da sua árdua missão de mãe de familia.
Deixou de ser uma criatura sem deveres nem responsabilidades, a quem tudo se perdôa e desculpa, para ser a pedra basilar desse sagrado templo que se chama o lar.
Vai sêr a mãe! Vai pertencer-lhe, só a ella, por longos e dolorosos mêses, viver da sua vida, alimentar-se com o seu sangue, sentir pelos seus nervos, um pequenino ser informe que é o seu filho, que será para o futuro um homem ou uma mulher, que poderão ser uns criminosos ou uns santos, doentes ou sãos, devido, em muito, aos cuidados, preocupações e higiene moral e material da mãe.
Nascido para a vida, é ainda o objecto dos seus cuidados e amôr. Treme pela sua fragil[Pg 119] existencia, alimenta-o com o seu leite, acalenta-o no seu regaço,—continúa a viver da sua existencia, póde assim dizer-se.
A mãe sente-se satisfeita com esses cuidados que dispensa aos pequeninos seres, que lhe enchem de ternura e de encanto o coração; e, cuida, justamente, que ninguem será capaz de os tratar e amar como ella...
Mas esta mulher tão cuidadosa e carinhosa não é, não pode ser, uma bôa mãe! Só o instincto a guia, e o homem de hôje é por tal fórma o producto de costumes e civilisações sobrepostas, que deixou ha muito de ser o animal de instinctos, segundo a natureza, para ser um producto de arte e de trabalho e de paciente cultura.
Educar uma criança de hôje, não é manda-la para a escola para que saiba lêr e escrever; é muito mais do que isso!
Ainda antes de nascer, já a criança deverá ser respeitada e amada, cohibindo-se a mãe de muita coisa que a póde prejudicar, cuidando do seu proprio somno, da sua alimentação, e da sua higiene, para que a delicada planta humana[Pg 120] desabroche vigorosa e possa resistir e desenvolver-se propiciamente.
Conhecem, por acaso, a maior parte das mães, a responsabilidade duma gravidez?
Sabe a mulher que casou com a educação que descrevemos, que do conhecimento e da prática de simples noções de hygiene póde evitar aos seus filhos terriveis males, quasi todo o estendal das doenças infantis, que levam para a terra centenares de corpinhos inermes: desde a enterite, que faz das mais lindas creanças pequenos cadaveres ambulantes, até á atrepsía que, sob as côres rosadas da saude, disforma o esqueleto, dobrando as pernas em arco, dando ás criancitas o andar grotesco de marrequinhos fóra da agua?
A propria tisica, a escrofulose, a anemia, como as inúmeras nevróses que desvairam a raça humana, são quasi sempre evitaveis se uma vida infantil regular e higienica tonificar o organismo e o preparar com a resistencia precisa para o triumfo dos principios vitaes.
Partindo do cuidado, quasi só material, dos primeiros dois ou três annos, a missão da[Pg 121] mãe redobra a cada passo de dificuldades e requer toda a inteligencia e a tenacidade duma grande obra.
É então que todos os desvelos serão poucos para vigiar a consciencia que vai despertando, e que é necessario começar cedo a ser educada e dirigida para o bem.
Não faltará quem se ria ouvindo falar em educação duma criança de três ou quatro annos; e, no entanto, nada mais sério e nada mais util do que saber aproveitar a franquêsa dessa idade, que ainda não sabe mentir, para conhecer na criança o homem ou a mulher que será no futuro. É a ocasião de poder aproveitar todas as qualidades de um caracter e até os seus defeitos, e convertê-los em virtudes, sem torcer a vontade nem o temperamento individual.
E a mãe, a pobre mãe, que é a mulher da qual descrevemos o casamento, começa então a sentir que o seu filho se lhe escapa dos braços, arredando-se-lhe do coração, alheando-se-lhe do espirito.
Dahi em diante, a criança, pela vida e pela alegria da qual ella sacrificaria gostosamente a[Pg 122] sua propria vida, dá cada dia um passo que a tornará uma estranha para aquella que lhe devia ser a mais certa e mais respeitada guia.
É quando, cheia de curiosidade, começa a abrir os olhos do espirito, que se não fartam de luz, e pergunta tudo quanto existe, tudo quanto lhe fere a atenção, sempre desperta e voluvel.
As coisas mais simples, como as coisas mais complexas, tudo procura saber e tudo é preciso que se lhe explique duma maneira comprehensivel. É o momento unico de lhe dar noções que nunca mais esquecem e que pela fórma estejam ao alcance dos seus poucos annos e rudimentar inteligencia, mas pela substancia resumem os conhecimentos e verdades que lhe serão uteis pela existencia fóra.
Se a mãe não responde, a criança desinteressa-se de coisas sérias e torna-se futil, ou vae fazer as suas perguntas ao pai, quasi sempre mais culto, e que por esse motivo passará a ser considerado superior á mãe ignorante. Se a mãe, não querendo passar aos olhos da criança por inferior, diz uma coisa ao acaso,[Pg 123] que não é precisamente a verdade, o mal é ainda peor porque não tardará que a criança saiba, por estranhos, o contrario do que lhe disseram.
E não imaginem que ella esquecerá, não! Na primeira ocasião saberá mostrar a sua estranhesa.
Cresce: da escola para sujeição, onde a mãe a meteu por ser impossivel tê-la em casa desde os três annos, passa a frequentar as aulas públicas. Tem os seus compendios, que lhe falam de coisas de que não tinha a menor noção; cada passo é uma dificuldade, cada palavra um barranco, cada materia uma novidade, que o professor, entre tantos discipulos a reclamar-lhe a atenção, não tem tempo de aclarar-lhe o sentido. De lagrimas nos olhos, o livro na mão, a criança irá procurar aquella que mais estima, e que mais tem tido chegada ao coração desde que existe, para que lhe explique o que não comprehende. E a pobre mãe não saberá auxilia-la, terá de confessar a sua impotencia, a sua ignorancia, diante do filho que se desespera!
Quantas vezes, indo encontrá-lo a cabecear sobre o livro que não comprehende, a mãe não teria desejo de tirar-lh'o das mãos e, numa clara leitura e uma inteligente explicação, fazê-lo aprehender o sentido que lhe foge?!... mas... a pobre mãe não o poderá fazer, porque não sabe tambem! E quantas vezes a sua revolta de ignorante não se torna uma defesa para a criança mandriona, que repetirá o que lhe ouve:—Para que serve saber isto ou aquillo? Sem estudar tambem se come e bebe!...
Se a criança é estudiosa e inteligente, em vez de pensar com leviandade sobre o assumpto, com a aprovação da mãe, concentrará todo o seu espirito no estudo e irá perguntar aos estranhos o que em casa não poude saber.
A pobre mãe será, aos olhos de seu proprio filho, uma ignorante, uma inferior.
De dia para dia esta convicção se irá radicando no ânimo da criança, á medida que fôr adquirindo conhecimentos, desenvolvendo a inteligencia.
O trabalho que se faz no seu espirito é lento,[Pg 125] mas é seguro. Homens e mulheres feitos, não deixarão de amar as mães—quem o duvída?—Mas com esse amôr protector que se tem a uma bôa e dedicada ama que nos acalentou e amimalhou na infancia, o amôr deprimente que se tem pelos inferiores; não o sagrado afecto do filho, que o é, triplicemente, pelo sangue, pela amamentação e pela inteligencia desabrochada ao calôr do ensinamento materno.
O convencionalismo, a mentira social, encobre com falsos sentimentos verdades que julga crimes, mas que a natureza, na sua rudesa primitiva, não considera tais. Assim, quando a uma criatura em evidencia, pela sua nova posição social, se descobre uma quasi vergonha que as faz esconder a inferioridade dos pais, todos se indignam e lh'o lançam em cara como sangrento insulto.
Parece-nos um crime contra a natureza, mas na realidade é um sentimento bem humano e desculpavel nessas criaturas roídas de ambições, na ânsia de fruir gosos inéditos para os nados e criados na pobresa.
Quanta superioridade de ânimo lhes seria[Pg 126] precisa para fugir ao mesquinho ponto de vista duma sociedade, que, se por um lado exproba esses sentimentos como um crime, por outro lado ri impiedosa dos ridiculos familiares de que o individuo não é culpado. Quanta vaidade, quanto orgulho amachucado, curtirão esses que querem aparentar grandesa e se vêem acorrentados á ironia dos seus inimigos por uma longa série de criaturas inferiores que irremediavelmente os prendem á mediocridade!... É das mais tragicas e ao mesmo tempo das mais comicas situações que a civilisação democratica dos nossos dias trouxe á babugem das suas ondas, de envolta com os parvenus, tão invejados por uns como despresados por outros...
Podemos considerar uma inferioridade de espirito esse sentimento de vergonha pelos seus? Certamente.
Mas não é nobre e alto do coração quem o quer ser. Nós todos, com os nossos assomos de independencia, não somos mais do que o producto do meio em que vivemos e nos criámos, os productos duma bem ou mal orientada educação, um conjuncto de convenções e mentiras[Pg 127] numa sociedade construida sobre aparencias e falsidades.
Não condemnemos pois o filho que no seu intimo despresa intelectualmente a mãe, que no entanto estima e até julga respeitar.
A mulher tem bastante intuição, mesmo quando é ignorante, para comprehender o sentimento que inspira aos filhos. Embora se resigne dôcemente, no seu apático papel de tutelada, essa convicção deve-lhe ser amargurosa.
Para seu bem, e, mais ainda, para bem da sociedade que não póde já dispensar-lhe o concurso, preciso se torna que a mulher sáia desta situação que a inferiorisa, e a inutilisa como factor importante da civilisação.
Comprehendendo a vida pelo estudo da grande mestra Natureza, é preciso que a mulher se convença de que se não é bôa mãe só porque se deu vida a uma criança, que no seu seio se gerou e completou e com o proprio leite se nutriu, rodeada de mimos e cuidados durante a infancia.
É preciso que a essa maternidade puramente material se alie a nobre maternidade do espirito[Pg 128] e da educação—unica que lhe dará a garantia de possuir o respeito e o afecto confiado dos filhos, que sempre encontrarão nella avisado conselho.
Procurando nos animais o exemplo que nos oriente, vemos que todos elles desconhecem a mãe (porque o pai lhe é quasi sempre um estranho) desde que a criança se tornou forte e dispensou o ensinamento e a guia que nos primeiros passos lhe eram indispensaveis.
O mesmo succede ao homem, que se vai distanciando intelectualmente da mãe desde que deixa de lhe ser conselho e auxilio dos tenros annos.
Todo o falado amôr poetico pela mãe, é apenas o producto duma convenção sentimental adquirido pelo homem á medida que se foi civilisando.
Talvez até uma simples questão de moda trazida pelo romantismo, como os nefelibatas e simbolistas nos déram ultimamente nos seus lirismos as velhas criadas e as boas amas...
Durante o naturalismo forte da Renascença, a mãe é completamente esquecida pelos poetas[Pg 129] e prosadores. Nas proprias telas a mãe glorificada pelo pincel dos mestres é a Virgem, a mãe fóra da humanidade!
Como reação ao culto da mulher amante, soberba da sua belleza e da sua força, veio o culto, bem mais postiço, da mulher, só porque o acaso a fez mãe.
A mulher póde e deve obstar, pelo esforço da sua energica vontade, á grande amargura que a espera quando a alminha radiosa do seu filho vai fugindo ao convivio do seu pobre espirito inculto para se lhe tornar quasi um estranho.
A mulher, na classe a que me tenho referido nestas paginas, pode educar-se a si mesma, que não lhe faltam meios para o fazer.
Se o não fizer abdica dos seus direitos, exactamente quando mais alegrias compensadoras lhe trariam.
Agora que o homem começa a olhá-la como sua igual e companheira, toda a responsabilidade lhe cabe no despreso intimo, embora inconfessado, que a sua ignorancia lhe merece.
A MISERIA DO POVO
É incontestavel que um certo movimento altruista se propaga pelo paiz—secundando, ainda que frouxamente, o que nos outros se faz—em favôr dos pobres, principalmente da mulher e da criança.
Uma grande revolução se está preparando, e, como todas as grandes revoluções que têm transformado as sociedades, começa por revolucionar almas, formando um núcleo de espiritos que pelo bem dos outros se sacrificam sem esperar pagas nem incentivos de grosseiros interesses.
O mundo antigo, cheio de preconceitos e de[Pg 134] injustiças, sente-se derruir, sem bases seguras onde se apoiar—esfacela-se lentamente até uma derrocada ingloria e completa.
A pouco e pouco, aqui e ali, algumas bôas obras de solidariedade humana têm surgido da iniciativa particular, sem que os governos tenham sequer suspeitado da sua existencia.
E bom é que assim seja, porque só a iniciativa particular, persistente, honesta nos seus processos, sem charlatanismos oficiaes nem interesses politicos a desprestigiá-la, póde fazer mais em poucos mezes do que cincoenta annos dos embaraçantes processos de todos os governos.
É della que tudo ha a esperar, é da acção especial dos governados que confiâmos, pois que dos governantes pouco ou nada póde vir neste sentido, nem é justo, verdade seja, que delles se espere tudo, como se um povo não fosse mais do que ingenuo e eterno bébé sugando a mamadeira que lhe apresenta a criadora.
Tudo esperar do poder central é mostrar que nada podemos individualmente, ou que estamos satisfeitos com o pouco que nos concedem.
Ora a verdade é que ninguem está satisfeito, porque nunca se viu situação mais desoladora, vida mais atropelada e miseravel.
É o nosso paiz aquelle em que mais caro se come, se veste, se viaja, e se tem morada; e aquelle em que menos se ganha, salvo pequenas excepções, que é facil apontar. De dia para dia os generos de primeira necessidade duplicam e triplicam de custo.
Não ha nada, desde o pão até á luz, que se não compre por alto preço; nada que não custe ao pobre incomportaveis amarguras e suores.
É por isso que não ha paiz nenhum em que a tisica, a anemia e a escrofulose tenham mais lauto banquete.
Fez-se, é certo, uma liga contra a tuberculose, patrocinada pelos governos, auxiliada por contribuições obrigatorias na capital, reclamada pelas mil tubas sonoras do jornalismo palaciano.
Não houve penna de escriptor, consagrado pelas gazetas, que se não puzesse ao serviço da bôa causa; não houve paladino que não quizesse descer á liça a romper lanças pelo triumfo[Pg 136] da ideia que, partindo modesta e util de baixo, serviu depois muito interesse, deu aso a muita turiferação.
E no fim de tanto afan, tanto barulho, tanto elogio, o que ganhou de positivo e imediato o povo português, na sua grande massa?!
—Come porventura mais barato?
—Tem casas higienicas, onde se abrigue por módicos preços?
—Tem hospitais para todos os seus doentes?
—Asilos para todos os seus velhos?
—Sanatorios para todos os seus escrofulosos e tisicos?
—Escolas para todos os seus filhos?
Nada disso tem, nada disso lhe deram ainda, apesar de tanto que se tem apregoado os beneficios duma liga, que póde ser simpatica como esmola particular e arbitraria duma ou mais pessoas, fazendo pouco porque mesquinhos são os seus recursos, mas que se não deve querer fazer passar por medida de salvação publica...
Todos reconhecem ser pouco o que se tem[Pg 137] feito, tão pouco que se torna inutil, para debelar um mal que vem da ruina dum povo e duma sociedade sem orientação; dum mal que está no sangue e no espirito e que ameaça assoberbar tudo e todos.
São incontaveis os escrofulosos, tisicos, anémicos e depauperados na classe pobre. As mulheres definham e morrem como flôres criadas em terra magra, sem ar nem luz; as crianças arqueiam os pobres arcaboiços, onde mal se desenvolvem pulmões predispostos á receptividade do microbio hostil; os homens avelhentam-se e enlividecem, numa aparente senilidade aos vinte ou trinta annos. E tudo porquê?!
Porque a vida é terrivelmente cara em Portugal, e a maior parte da gente não come o que necessita, vive em verdadeiras possilgas, não é preservada devidamente do contagio das molestias que a rodeia, não é iniciada nas mais rudimentares regras de higiene, não é educada de modo a preferir a alimentação e o conforto das casas ao luxo do trajar e demais exteriorisações vistosas.
O caminho a seguir por quem quizesse e[Pg 138] pudesse remediar tanto mal, não se limitaria a fundar sanatorios onde se gastam muitos contos de reis e se abrigam, por empenhos, umas desenas de crianças—umas predispostas apenas.
Para essas, mesmo, o bem não é grande e, principalmente, não é duradoiro. Melhoradas pela higiene, pela alimentação e pelos simples remedios reconstituintes, voltam desse conforto e abundancia para a antiga e triste miseria das suas casas, tendo por destino a fatal renovação da doença, logo que deixe de ser combatida, e será agravada com o desespero de se vêrem privadas do bem a que já se haviam gostosamente e metodicamente habituado.
O primeiro passo a dar, para melhorar esta situação angustiosa, seria:—fazer baratear os generos alimenticios de primeira necessidade; estabelecer e auxiliar cooperativas; reduzir os impostos de consumo, que incidem principalmente sobre o pobre que compra a retalho, de modo a que todos pudessem comer quanto é necessario para alimentar uma vida saudavel.
Seria iniciar o sistema de cooperativas edificadoras, tão usado lá fóra; auxiliar grandes companhias que se propozessem dar casas higienicas e espaçosas por módico preço, aos pobres que não podem continuar a viver como hôje vivem em antros infectos e caros.
É mais do que tudo urgente acabar com a exploração dos senhorios que exigem por casas pessimas, loucas exorbitancias extorquidas asperamente á economia da familia pobre.
Ter o seu lar, a sua casa, onde cada prego representa um esforço de vontade e uma consolação de posse; a casa para onde entram os noivos com a alma florida de esperanças, onde nascem os filhos e se podem abrigar os velhos pais doentes; a casa onde põe todo o seu amôr o operario laborioso, que nas horas vagas cultiva no jardim os cravos e as rosas singelas, planta as hortaliças e levanta a parreira amiga que lhe dá a sombra e o vinho; a casa que a mulher limpa e adorna com esmero, porque é a sua, a companheira e amiga de todas as horas; a casa familiar, que deixa de ser uma coisa inanimada e indiferente para se tornar[Pg 140] no grande sonho abençoado dos que vão para longe, e dos que ficam abrigados á sua dôce sombra; é para o trabalhador português uma ambição tão desmedida, que poucos a chegam a realisar.
É desta indiferença do povo que não vive comsigo nem se sabe recolher ao interior da sua habitação, ao seu lar, tornado o seu pequeno e querido universo, que não se identifica com as suas coisas e não lhes toma amôr, é deste viver disperso de povo meridional, que vive do ar e do sol, e num dia de passeata alegre pelos campos encontra compensação para todas as suas miserias; que o senhorio tem abusado elevando disfarçadamente, cada semestre um pouco, as rendas—que são hôje um verdadeiro crime social.
Se fossem precisos exemplos para afirmar uma coisa que toda a gente sabe, Setubal seria, para tudo quanto dizemos, um dos mais flagrantes.
Dotada com um luxuoso sanatorio, nem por isso a doença e a miseria a poupam mais.
A grande miseria da população (de vinte e[Pg 141] três mil habitantes) é composta por operarios, dum e doutro sexo, que trabalham nas fabricas de conservas de peixe, de pescadores, e de gente de medianos recursos.
Com a afluencia de trabalhadores de fóra, as moradias têm subido a tal preço que uma só familia não tem recursos para as pagar, acumulando-se duas e três em antigos predios insalubres, dentro de ruas estreitas e nauseabundas, onde mal entram o ar e o sol—os grandes purificadores. Ha casas, se tal nome merecem, onde se não póde andar de cabeça erguida, sob pena de a partir no tecto, e onde a escuridão é quasi absoluta. Casinhotos terreos, ahi pelos suburbios, em que as divisorias são feitas com cortinas de chita, e pelos quais um mísero cavador paga por mês, dois mil réis, isto ganhando—quando ganha—quatrocentos réis diarios.
Ha miseraveis velhinhas pedindo pelas portas para pagarem dez tostões mensais pelo abrigo duma barraca forrada de folha de flandres ferrugenta, despresada pelo fabrico de conservas.
Não ha muitos invernos que numa barraca alugada pelo mesmo preço exorbitante a uma familia de pescadores, choveu tanto, em noite de temporal, que o marido e a mulher tiveram de abrigar-se sob um chapéo de chuva, metendo os filhos debaixo da cama para não ficarem completamente encharcados.
Chega a dar vontade de rir, mas do riso que é de lagrimas e de amarguradas censuras tecido; o mesmo riso que se nos esboça numa lástima vendo uma criança deslocar-se em acrobatices de circo.
Quantas gerações de miseria e servidão produziram a indiferença resignada com que se sofre uma existencia de tais alegrias entrétecida?!
Depois, se numa destas habitações se dá um caso de doença contagiosa, vem a policia, a pretexto de desinfeção, rouba aos pobres a sua unica cobertura, queima-lhe a unica enxerga, despedaça-lhe a pouca loiça, borrifando paredes, sobrados e moveis com sublimado corrosivo!...
Urgente seria organisar a fiscalisação sanitaria,[Pg 143] de modo que a desinfeção fosse uma coisa séria e prática e não um vexame ou um ridiculo como é,—méra providencia policial quando se tóca a rebate numa ameaça de epidemia.
O que faz então o pobre, victima destas providencias policiaes? Para não ficar mais desnudado do que dantes, arrecada, esconde tudo quanto serviu aos doentes, não sabendo—na sua extrema ignorancia e desoladora miseria—que arrecada sôfregamente a morte, que não pára nem descança de trabalhar nesse fertil campo.
Não seria prático, simples, justo, e até quasi nada dispendioso, que nos proprios hospitaes se montassem estufas de desinfeção para as roupas de todos os doentes e de todos os que morrem de molestias contagiosas; e que a policia se encarregaria de fazer conduzir ali, para essas roupas serem reentregues quando já não constituissem um perigo para os seus possuidores?!
E se ainda os males fossem só estes! Mas a juntar a tantas desgraças que podemos chamar materiaes, ha outras e outras que se prendem[Pg 144] de perto com as obrigações moraes dos dirigentes e dos educadores.
Ha, por exemplo, quem fiscalise as condições em que se realisa o trabalho das mulheres e dos menores? A lei que o regularisa é letra morta, e uns e outros trabalham nas peores condições higienicas e em todos os tempos e horas, inferiorisando-se fisicamente, deformando e afeando cada vez mais a nossa raça, que foi bella e fórte.
A mulher não tem quem a eduque e oriente, quem a ensine a respeitar-se e a respeitar em si mesma o futuro dos filhos; e ou não trabalha nada, porque o homem a sustenta e veste, ou se sujeita a tudo, desempenha os mais penosos serviços, quer livre quer em vesperas de ser mãe.
Filhos nascidos, quem pensou em lhes abrir as créches, as escolas-infantis ou maternaes, os asilos-oficinas?... Quem pensou em juntar essas mulheres, irmãs na desgraça, para lhes ensinar como, agremiadas, se poderiam socorrer e fugir á extrema miseria, á doença sem conforto, á fóme dos dias sem-trabalho?
Quem fez sentir aos operarios, a muitos que ganham bastante, mais do que qualquer empregado publico, que a sua grande força estaria na modestia do viver, no cuidado que puzessem em criar higienicamente e em educar os seus filhos?
Quem lhes faz sentir, sem azedume, o ridiculo do luxo que ostentam, nas mulheres e nos filhos, imitando as burguêsas que dizem despresar? Quem lhes incutiu, com as preocupações mais altas do espirito, o horror a essas festas em que a saúde e o dinheiro por igual sofrem um forte abalo?
Como quasi todos os portuguêses, não pensam quanto melhor seria possuirem a casa onde habitam e nasceram os filhos, que os viu sorrir e crescer, que lhes conhece as lagrimas e as alegrias. Quanto seria preferivel, á taverna que os envenena e fére toda a sua geração, o theatro que educa e diverte, criando uma atmosfera mais pura para o espirito. Quanto mais proveitoso lhes seria fundar e frequentar bibliothecas, serem emfim os iguais ou superiores aos que hôje imitam, não pelo trajar que é vaidade de[Pg 146] pouca monta, mas pela educação e pela consciencia dos seus direitos e deveres!?
Cigarras imprevidentes e tagarelas, nos dias quentes de bôa féria, quem entre nós os póde criticar?
Defeito de educação, defeito endemico na nossa terra, que vem descendo do alto, num turbilhão de vaidades insatisfeitas, numa aspiração desenfreada de ser mais do que efectivamente se póde ser, pelas exteriorisações da vida faustosa, com vestidos ricos, numa inveja que faz imitar sempre os que julgam acima, na escala social...
Mais do que uma liga contra a tuberculose, tal como se tem manifestado, seria proveitosa á nossa raça devastada pela doença, uma liga contra a fóme e contra a ignorancia que tudo obscurece e preverte.
A IGNORANCIA DO POVO
Não ha ninguem que não tenha ouvido, pensado, ou dito centenas de vezes—que o maior mal do nosso paiz é a ignorancia, que o analfabetismo é a causa mais flagrante da nossa decadencia moral.
É realmente a verdade, a triste verdade que nos envergonha e inferiorisa aos nossos proprios olhos.
Mas são sómente os governos os grandes responsaveis d'este atraso vexatorio do nosso paiz?
Não corresponde o desleixo em que os governantes têm deixado cahir a instrução publica,[Pg 150] á criminosa indiferença individual dos governados por essa instrução geral, que é o orgulho dos paizes cultos?!
Não são os governos que fazem os povos, mas os povos que fazem os governos; e estes, forçosamente, hão de promulgar e cumprir as leis que a consciencia colectiva e fórte duma sociedade reclama, porque correspondem a uma necessidade ou a uma aspiração nitida da alma popular.
Assim o prova o pouco mais de interesse que a instrução do povo vae despertando entre nós, mercê das reclamações e lamentações que de ha poucos annos a esta parte se vem ouvindo, numa propaganda lenta, mas fructuosa, de alguns espiritos dedicados.
O governo deve auxiliar a iniciativa individual, deve, por assim dizer, sancioná-la e impulsioná-la; mas ser elle sómente o encarregado de nos dar todos os progressos e todos os melhoramentos, é inadmissivel para espiritos que aspiram a ser livres e desejam uma patria livre.
Nos paizes cultos, sob os governos mais inteligentes[Pg 151] e progressivos, o que vêmos? A iniciativa particular realisar tudo ou quasi tudo, e os governos adoptarem os melhoramentos, auxiliarem-nos, serem como que o vigia dos actos individuaes, não o tutôr, a Providencia, que nós pretendemos que seja, por preguiça de pensar e trabalhar.
Depois duma senhora fundar em Paris a Maternidade, a instituição que mais eleva o espirito altruista do nosso tempo, é que a municipalidade resolveu imitá-la, criando por seu turno outra casa similar.
Foi depois de miss Nightingale educar e apresentar as suas enfermeiras modelos, livres de todo o espirito de sectarismo e instruidas segundo todas as regras da higiene moderna, que o governo inglês as enviou á Crimeia, onde déram as suas primeiras e brilhantissimas provas, e as adoptou nos seus magnificos hospitaes, onde são exemplo para todo o mundo.
Por toda a parte se fundam institutos, se realisam obras de solidariedade, protectoras e pedagogicas, que os governos sancionam depois, que ajudam a manter e a espalhar, se[Pg 152] o resultado corresponde aos sacrificios exigidos.
Decretar no papel sem que a prática mostre que a inovação está de harmonia com o caracter etnico do povo, corresponde a uma necessidade colectiva ou foi precedida duma propaganda inteligente e conscienciosa, dá o triste resultado que produzem no nosso paiz as reformas, em geral, e a da instrução em particular.
Senão, vejâmos. Como todos sabemos, estão criadas escolas e decretada a instrução obrigatoria ha tempo bastante para que a actual geração fosse filha, e até neta, de gente sabendo lêr.
E o que sucede?
O numero de analfabetos é enorme, e os que sabem alguma coisa é tão pouco, e tão mal aprendido, que mais se póde dizer que igualmente nada sabem.
Isto porque o professor é, em geral, uma pessoa que arranja esse oficio como podia arranjar outro qualquer, sem vocação, sem comprehensão do que seja o ensino e da responsabilidade com que vai arcar, tomando sobre si o[Pg 153] encargo de iniciar pequenos cerebros obscuros no luminoso cultivo intelectual.
É muito grave e delicado o oficio, e não sei de quem o possa tomar de ânimo leve, só com mira nos magros proventos.
O verdadeiro professor é o sacerdote das ideias, que levantam e comovem hôje a humanidade.
Por elle, a criança deveria ter do estudo a ideia prática e util que é a base de toda a educação moderna, mórmente se é dada a pobres, sem tempo para perderem em inutilidades e bonitos. Por elle, a criança deverá receber uma noção simples, mas geral, de tantissimas descobertas com que dia a dia se augmentam os conhecimentos humanos, e saberem a maneira de utilisarem pràticamente o que aprenderam.
Mas não sucede assim. Os professores, miseravelmente remunerados como são, sem coragem nem iniciativa para luctar, alguns educados por processos archaicos, sem uma feição prática e utilitaria no seu método; como hão-de ensinar o que não lhes foi ensinado e não[Pg 154] podem aprender por si, pela carestia da vida, e até pela falta de pequenas bibliotécas de vulgarisação e ensino? Por isso elles se não interessam senão por um ou outro dos seus discipulos mais inteligentes, que irá a exame e lhe dará honra e lucro, se a familia é abastada.
Os outros, a turba-multa, quando o trabalho os reclama para fóra da escola, mal sabem soletrar, escrevem a custo os seus pobres nomes obscuros, e não chegam a comprehender que vantagem lhes pode advir d'esse favôr da sociedade.
E estes são ainda os que vão á escola, que a grande maioria, principalmente nos campos, nem sequer se incomoda a frequentá-la.
É verdade que ha leis que obrigam os pais a mandar os filhos á escola; mas que monta se essa mesma lei exige dos pequenos estudantes o uso de sapatos, e os pais, não tendo para comer, dispensam muito bem essa exigencia da civilisação?
Fazem-se leis obrigando os pais a mandar os filhos para as escolas; mas que importa isso se para aprenderem precisam de comprar livros,[Pg 155] que são carissimos, e elles não têm que lhes sóbre para pão?
Fazem-se leis obrigando os pais a mandar os filhos á escola; mas como poderão estar as crianças umas poucas de horas sem comer, visto que os pais lhes não podem dar merenda e cá por fóra sempre vão apanhando dez reisitos em troca de pequenos serviços, rebuscando, farejando, pedindo como cães vadios, mas comendo afinal?!
Fazem-se leis obrigando os pais a mandar os filhos á escola; mas de que serve isso se a escola é de dia como a oficina e a fabrica, e os pobres não podem dispensar o trabalho das crianças, já ganhando o seu pequeno salario, já ficando em casa com os irmãositos, emquanto as mães vão moirejar por fóra?!
Segue-se pois que a criança do povo está condemnada a uma eterna penitenciaria de ignorancia, se antes da escola não houver a créche, não houver o hospital para parturientes, e, antes do hospital, não houver a maternidade, que é a casa onde a mulher pobre passa com descanço salutar os ultimos mêses da gravidez;[Pg 156] se, ao lado da escola, não houver a oficina escolar, o asilo modelo donde a criança, rapaz ou rapariga, sáia preparada para entrar desassombradamente na vida, sabendo ganhar a sua subsistencia pelo oficio que escolheu. Da escola, assim acompanhada, deverá a criança sahir sabendo lêr, escrever e contar, sabendo sobretudo trabalhar metodicamente e com nobre orgulho da sua profissão.
Ora é isto o que os governos, só por si, não pódem fazer se os não auxiliar a bôa vontade e iniciativa particular, já fazendo propaganda entre o povo, já distribuindo livros gratuitamente, fundando escolas e bibliotécas, dando premios ás crianças aplicadas, contribuindo para tornar a casa de estudo artistica e agradavel, ensinando mesmo os professores e fornecendo-lhes maneira de se educarem nobilitando o ensino, por assim dizer.
É da iniciativa particular que devem partir as bôas ideias exequiveis, que o governo será obrigado a auxiliar e adoptar, quando a opinião pública as impônha.
É isto o que é preciso fazer e é isto o que esperâmos[Pg 157] vêr realisado em breve no nosso paiz. Porque, ao lado de muitos que usam a caridade mirabolante como orchidea de fantasticas fórmas para espanto das gentes rastejantes, ha lucidos espiritos que fazem o bem pelo bem, como um dever, como um simples acto de justiça.
Porque dever, porque justiça, é pensar nos que têm fóme, nós que nunca lhe sentimos os tormentos; é pensar nos que são ignorantes porque não têm maneira de se educar, nós que nascemos num meio em que nos instruimos sem querer; é pensar nos que sofrem vendo os filhos fenecer e morrer por falta de alimentação e higiene, nós que podemos criar os nossos em melhores condições.
É pensar em todos os que sofrem, sem razão para sofrer,—só porque o acaso os faz nascer num pobre albergue em vez de casa rica ou remediada—mas não para lhes dar a esmola que deprime e desmoralisa, que habitúa o espirito aos favôres do acaso, e que é injusta porque obedece ao arbitrio individual, mas para dar sem distinção nem favôr, a todos, porque todos[Pg 158] o merecem, a educação que enobrece, a luz que vivifica, o alimento, o ar, a agua, a casa, a saúde e a alegria emfim, a que todo o ser humano tem direito.
Não é o luxo, não é o superfluo, que é forçoso dar, é apenas o necessario, apenas o que é justo.
E se todos, principalmente as mulheres, puserem nesta campanha a energia do seu querer, a nobrêsa da sua dedicação, temos o direito de esperar uma hora breve de mais justiça e de mais alacridade para este miseravel povo português, amortecido pela ignorancia e pelo sofrimento.
MULHERES DESNATURADAS, MÃES DESNATURADAS
É vulgar encontrar-se na leitura diaria dos jornaes titulos assim alarmantes, sob os quais os reporters juntam á pressa meia dusia de adjectivos ferozes, na narração detalhada de qualquer crime, ou simples tentativa, de infanticidio.
Não ha muito ainda que dois jornaes dos que se dizem mais livres encimavam umas vulgares noticias do genero com os titulos que reproduzimos.
Numa, era a criada de servir que voltava da terra com o filho recem-nascido dentro duma canastra e que o atirára pela janela do vagon[Pg 162] em que viajava, se um empregado não evitasse o medonho crime.
A outra era um simples caso de engeitamento, por miseria, tambem por parte duma criada de servir.
Ora quando jornaes avançados, que se dizem desprendidos da rotina e do preconceito, usam para tais casos de tão violentos epítetos, o que não dirão os outros, os arbitros triumfantes do convencionalismo burguês, os fartos interpretes duma sociedade hipocrita, que nas prégas do seu manto de pudicicia abriga crimes mais revoltantes do que os cometidos por esses monstros moraes descriptos com tanto asco!?
Mães desnaturadas, essas miseraveis, decerto! Mas com quanta desculpa a atenuar-lhes a brutalidade do delicto!
E a justiça a que aspirâmos, a justiça nobre e alta que é o objectivo supremo do nosso ideal de nova sociedade melhorada e feliz—quanto é licito ao homem sê-lo, sem cuidados de sobre-posse nem exigencias loucas—a justiça que não se cobre com leis, nem venda os olhos para não discernir, não póde castigar todos os casos[Pg 163] pela mesma rigorosa interpretação dos codigos, não deve julgar sem atender ás determinantes e, sobretudo, ao gráu de responsabilidade do delinquente.
Poderemos, acaso, esperar do ignaro e rude trabalhador—que de sol a sol tira dos musculos o esforço que produz o pão do seu alimento e o dos filhos, e á noite, extenuado e brutificado, adormece pesadamente, até que novo sol lhe traga novas canceiras, e alegrias tambem, mas rudes e vulgares como a sua alma deseducada—poderemos, repito, exigir a esse a mesma visão clara, a mesma responsabilidade moral que deve existir no homem culto que no recesso da sua alma pesa e mede os seus actos, conhecendo leis, conhecendo direitos e deveres?!
Poderemos chamar a essas mulheres mães desnaturadas, porque abandonam um filho, que já fôra abandonado pelo pai? Um filho que não seria mais do que um tropeço para a sua vida de trabalho; que hôje lhes custaria a sustentar com a escassa soldada de criadas de servir e ámanhã lhes custaria mais, infinitamente mais, a vestir, a alimentar e a educar?!...
—Queria matá-lo, sinistramente, arremessando-o á linha a toda a velocidade do comboio, por uma noite escura e tragica, como quem alija demasiado pêso na lucta de um naufragio, como quem num esforço se alevanta e sacode dos hombros um fardo com que não póde...
E não era esta exactamente a verdade? Quem ensinou a essas mulheres de vinte annos, abandonadas á propria sorte, pontapeadas pela sociedade, enganadas pelos homens, servindo quem as despresa e maldiz, só toleradas porque são uteis—bestas de carga para criarem e servirem os filhos alheios—quem lhes ensinou a ser mães?
Quem lhes ensinou sequer a ser mulheres, na acepção nobre e alta da palavra, e não tão sómente a femea brutalisada e despresada pelo homem, quando o saciamento matou o desejo carnal?
Quem lhes disse que o fructo que de seus efémeros amôres lhes ficou nas entranhas é um ente crédor a todo o seu respeito—já não digo ao seu afecto, que se não póde obrigar—de[Pg 165] que são apenas as depositarias e sobre o qual não têm direito de vida ou de morte, embora da sua propria vida se alimente?!
Quem lho terá ensinado?
A lei, mandando-as depois do crime feito para um presidio ou para uma penitenciaria? Não, porque a lei não ensina os ignorantes, vinga nos culpados os sentimentos conservadores da sociedade que a fabricou.
A lei, cahindo rígida e inexoravel sobre a cabeça de um condemnado, que lhe não conhece o alcance, não converte um criminoso, cria um hipocrita ou um revoltado.
Quem ensinou essas desgraçadas que hôje choram no segredo do aljube,—não de remorso, que não podem sentir, mas de pavôr—que era um crime menor aos olhos da sociedade, que só cura de aparencias, em vez de abandonar ou matar um filho nascido, tê-lo desfeito misteriosamente, quando ainda mergulhado na noite da sua vida uterina, mas com tanto direito á luz e á existencia consciente como depois de nascido?!
É de presumir que tenham tentado primeiro[Pg 166] esse crime como tantas que se vêem a braços com uma situação tão absurda e condemnada, quanto é vulgar e desculpavel.
Alguem lhes incutiu na consciencia essas simples noções de sã moral?
Certamente ninguem em tal pensou.
E se o que ellas praticaram, ou tentaram praticar, é um crime abominavel, o outro não o é menos. A diferença está em que um é conhecido, impõe-se pela brutalidade do facto; o outro é ignorado, não se prova facilmente e é praticado a sangue frio por muitas mulheres que se dizem honestas e para as quais a sociedade não ajunta pedras com que as lapíde, nem escancara aljubes onde as sepulte.
—São peores do que as féras—dizem os moralistas que se não pejarão, talvez, de deixar outras mulheres na mesma situação embaraçosa—porque todas as femeas têm o instincto da maternidade e todas, em geral, se sacrificam pelos filhos.
Opinião já feita e que não representa mais do que uma vulgar figura de rétorica, que a sciencia desmente a cada passo.
O instincto não é igual em todos os seres, pois os mais infimos na escala zoologica como os mais superiores individualisam-se no seu modo de sentir.
Se ha caracteristicos proprios a uma certa raça, entre essa mesmo salientam-se individuos cujas qualidades e defeitos são uma negação de todas as regras.
É certo que o instincto da maternidade é um caracteristico de todas as femeas, e, no emtanto, ha muitas, entre os animaes, que matam e até comem os filhos.
Ha mulheres que fazem pelos filhos os mais inacreditaveis sacrificios, tudo lhes dando, tudo achando pouco para elles; como o pelicano, arrancam de si proprias as pennas com que lhes afôfam a existencia. São as instinctivamente mães aquellas que se deixariam matar antes do que vêr maltratar um filho. A javarda ama tanto as suas crias, que persegue até á morte o caçador atrevido que lhe rouba um bacorinho da ninhada; e, no emtanto, algumas ha que os comem, quando a próvida natureza lhes deu mais do que podem aleitar.
Estas tambem obedecem ao seu instincto, forçando a lei que nos dá, naturalmente, a seleção da especie.
E o que é o homem sem educação mais do que um animal de instinctos baixos, dotado de faculdades imitadoras para simular os gestos e a voz dos outros homens?!
A superioridade do ser humano não consiste em andar com a espinha direita e em poder erguer a cabeça para a luz, não! A sua superioridade está em comprehender a justiça e ter a consciencia do bem, coisas que sómente a educação póde incutir no espirito dos que não têm comsigo a bondade instinctiva dos doceis.
Condemnar sem defêsa nem atenuantes a mulher desprovída de recursos, exposta ao escarneo e ignominia da sociedade, quando abandona ou mata um filho, é impiedoso.
Se fosse uma criatura heroica poderia reparar o que se convencionou chamar falta, tirando do seu trabalho, miseravelmente pago, a sustentação do filho. Mas não é heroi quem o quer ser, e o egoismo individual é por vezes tão imperioso, que a criatura se ergue num desespero[Pg 169] bruto de féra que quer viver, despedaçando tudo quanto lhe embaraça os movimentos e lhe pêa a satisfação das suas necessidades materiaes.
Sentimentos, afectos, inteligencia, tudo se obscurece e oblitéra perante as exigencias materiais da vida, que a sociedade, á força de querer melhorar, transformou em lucta sangrenta em que sucumbe a maior parte.
—É preciso castigar—dizem ainda os moralistas, na velha teoria inquisitorial e barbara—é preciso dar o exemplo, atemorisar...
Mas, para quê, perguntâmos?!... Se o acto criminoso depende da tára fisiologica que dispõe determinada criatura á loucura do crime, como tornar um doente responsavel pelo seu mal?
Se o delicto fôr determinado ocasionalmente, pelas condições especiais da existencia, o mal tem remedio, e deve remediar-se, acabando com os factôres que concorrem na sociedade para que tantas desgraçadas sofram o que essas pobres estão sofrendo agora.
Conheci uma criatura que, estando a servir, lançou um filho recemnascido numa cloaca,[Pg 170] como quem, enojado, deita fóra um trapo imundo. O que a não impedia de que fosse uma pobre criatura humilde e inofensiva, e de ser para os outros filhos, senão uma bôa mãe no sentido completo da palavra—o que a ignorancia e a pouca inteligencia lhe não permitiam—pelo menos amoravel e dedicada, sacrificando-se para os alimentar e vestir.
O que determinou essa mulher a cometer tão repugnante crime? A circunstancia ocasional de estar bem numa casa donde não queria sahir e da qual seria fatalmente expulsa, conhecido que fosse o seu estado.
O instincto maternal existe, certamente, mas a miseria umas vezes, outras a educação, o egoismo e as exigencias brutais da vida, têm-no obliterado em grande parte das almas femininas. Como se explicaria por outro módo o horror ao filho, que existe, que é flagrante, em quasi todas as mulheres casadas?!
A alegria com que muitas proclamam não terem filhos que lhes dificultem e atropelem a existencia, estarem assim socegadas nos seus lares sem crianças, é uma bem clara próva. A[Pg 171] indiferença com que a mulher pobre vê ir para o céo o filho que a sua incuria, quasi sempre, mata, é bem conhecida dos medicos para precisar ser mais frisada.
E isto não é um mal dos nossos dias nem da nossa sociedade, é hôje como hontem, como será sempre.
Á proporção que o individuo se civilisa, isto é: tem a noção mais clara do bem-estar que lhe póde advir não se sobrecarregando com responsabilidades, que nem sempre tem a certeza de cumprir, começa o horror ao casamento e consequentemente aos filhos que o embaraçam.
Isto que nos parece um facto peculiar dos nossos dias, e tanto sobresalta a França, já se deu na Grecia, já se deu em Roma, com maior intensidade ainda, não obstante todas as leis e costumes que compeliam o homem a constituir familia e a dar filhos á republica.
Apesar de tudo, o horror ao casamento manifestava-se, principalmente nas mulheres, que fugiam, pelo celibato, aos encargos da maternidade e ao captiveiro do lar.
Depois, se chamarmos a essas mulheres, que a ignorancia e a miseria desculpam, mães desnaturadas, que palavras achariamos no dicionario para as ricas e ociosas, que ao nascerem os seus filhos os atiram para os braços duma ama, que depois os entregam aos cuidados problematicos das criadas de acaso, e mais tarde os afastam do lar e do conchêgo da familia, como espúrios, para a solidão moral do collegio; não para que estudem e se habituem cedo ao trabalho, mas para que as não incomodem com suas traquinices e turbulencias, nem as envelheçam aos olhos dos estranhos?!
Essas não os matam, porque a carnicería do acto repugnaria aos seus nervos susceptiveis e seria tão repulsivo, para os seus finos dedos scintilantes de joias, como matar uma galinha ou estripar um coelho, coisas no emtanto que as suas cosinheiras fazem com a maior indiferença. Alem disso, não lhes faz mingua o dinheiro para os alimentar e vestir, e mais tarde—passada a idade do garridismo pessoal—é um gosto continuar a figurar por elles e com elles.
Pobres filhos, os destas mães!...
Para as outras reclamariamos, em vez de cadeias, oficinas e casas honestas que as recolhessem com piedade, e as ensinassem com desvelo a amar os filhos que a sociedade tem todo o interesse em recolher e educar para a alegria de viver e de ser util, porque na terra não ha muito quem o seja e menos quem o saiba ser.
E esses pequeninos seres, que tanto pesam hôje ás pobres mães sem marido que lhes ajude a criar e educar, não arrastariam pela vida fóra a vergonha de não ter nome de pai, antes fariam recahir sobre o covarde que fugiu á responsabilidade dos seus actos todo o despreso das almas honestas.
Então, a sociedade, melhor orientada, não terá tanto despreso pela mulher iludida e atraiçoada no seu amôr, que a miseria e ignorancia tanta vez desculpa, como pela calculista maliciosa que procura o casamento como emprego, como posição, que a livre de situações equivocas, legalisando-lhe todos os desvarios.
A PROPOSITO DUMA GRÉVE
Não obstante a quasi geral indiferença da mulher do nosso paiz pelas questões sociaes e de intelectualidade, tenho ainda confiança na alma feminina, tenho ainda esperança de que em breve, envergonhadas de tantos annos gastos em futilidades, voltarão a ser as dignas descendentes dessas mulheres portuguêsas, que fôram, entre as mais damas das côrtes brilhantes da Renascença, das mais cultas e espirituosas, aliando ás graças de espiritos educados a nobrêsa e a energia de verdadeiras patriotas.
Escrevo hôje para denunciar, aos seus corações de mulheres e de mães, uma dôr que não roça pela epopeia, mas que na sua humildade é talvez mais aguda, que na rasteira obscuridade em que se gerou e cresce é talvez mais amarga para as almas criadas, como as nossas, para a alegria e para o amôr.
É adentro das nossas fronteiras, como quem diz em nossas casas, neste lindo paiz que nos viu nascer, debaixo da caricia dulcida deste sol que nos agasalha e alegra, que essa miseria subsiste:—mulheres e crianças que se extenuam trabalhando, e não ganham, com o seu trabalho, o quanto lhe baste para matarem a fome.
Sabemos nós todas, as mulheres:—que não pertencemos á galeria das privilegiadas, que dispensam, por abundancia de meios, conhecer e discutir o orçamento das suas casas—quanto se gasta em nossos lares modestos, comendo sem intemperança, vestindo sem luxo.
Pensemos, pois, o que seja trabalhar uma semana inteira e chegado o sabado encontrar entre os dedos, que o trabalho violento deformou,[Pg 179] meia duzia de vintens que mal chegam para um dia de fome.
É costume dizer-se para acalmar sensibilidades em sobresalto, que os pobres, habituados a comer mal, não fazem com isso sacrificio.
Certamente que uma mulher rude dos campos, de pequenina acostumada ao seu caldo de couves e ao feijão, com pão grosseiro por conducto, um bocado de porco pelas festas do anno e galinha quando ha doença, passará admiravelmente sem fois-gras, ragouts, mayonaise, vol-au-vent e toda a algaravía saborosa e complicada da comida francêsa, indispensavel a paladares aguçados por estimulantes, a estomagos gastos e que jámais se encheram com verdadeira fome.
Concordo em que uma dessas solidas camponezas felizes, que do amânho das suas terras tira o pão caseiro que seus rijos braços fabricaram numa nuvem de poeira e por suas mãos foi na pá atirado ao forno aquecido; que do leite das suas cabras tira o queijo salgado, que é um mimo para os seus paladares deseducados; que das suas oliveiras tira a azeitona,[Pg 180] que sabe curtir para a fartura do anno; concordo em que esta mulher se riria desrespeitosamente se á sua merenda chamassem lanche e em vez destas simples iguarias comidas á mão, lhe apresentassem um prato de porcelana fina com brioches e um bule de perfumoso chá.
Talvez deitasse o liquido fóra cuidando que devia comer as folhas, e levasse os bolos para o folar das crianças.
Mas o que é cérto é que bem poucos têm essa abundancia, e que a maioria, principalmente aquellas que a industria apanhou na sua febril engrenagem e na oscilação das suas altas e baixas de trabalho; não têm esse bocado de pão grosseiro, nem esse saboroso queijo salgado...
Não comer manjares poderá ser justo, mas passar sem comer é intoleravel.
Ninguem se habitúa á desgraça e á dôr; ha no organismo humano uma revolta ináta ao sofrimento, que nos faz chorar e estrebuchar a cada nóva vergastada do destino.
Existem criaturas resignadas e passivas, seres embrutecidos pela miseria ou fracos por[Pg 181] temperamento e nos quais a revolta não explúe; mas condensada em lagrimas ella hade surgir um dia, quando os famintos, os miseraveis, os despresados de todos os tempos, vierem reclamar o seu quinhão de felicidade e de fartura.
Ninguem se habitúa á dôr, ninguem!, dígo-vo-lo eu, que tenho olhado com mais curiosa piedade para os que em baixo sofrem e maldizem a vida, do que tenho invejado e admirado os que em cima cantam a sua gloria e triunfo.
Pois bem, para debelar ou minorar o mal de que sofremos todos, os filhos duma sociedade que vive num perpetuo desequilibrio de elementos economicos e moraes, a missão da mulher, irmanada ao homem, libertada pela inteligencia, pelo trabalho e pela educação, é bem clara! O dever impõe-se-lhe de maneira indiscutivel e manda-a entrar resolutamente em acção.
Passaram, de todo, os tempos cavalheirescos. Presentemente ninguem se lembraria de nos exigir que arrancassemos das panoplias as espadas dos antepassados para armarmos os[Pg 182] nossos filhos e mandá-los vencer qualquer sóba indisciplinado e bravío...
O perigo não será menor nas luctas que hôje sustentam os nossos soldados; a porção de coragem necessaria para tais campanhas, nos longinquos sertões ultramarinos, será a mesma ou mais talvez; mas a guerra deixou de ter para nós o mesmo sentido moral porque deixou de ter o imprevisto de duelo, em que era factor importante o valôr e a força individual, para ser uma carnificina de que são executores certos os que melhores e mais numerosas armas apresentarem, os que disposerem de mais conhecimentos e de mais dinheiro, tal como no comercio.
Quando as nações se degladiam hôje, escusâmos de esperar milagres e prodigios dos homens; os mais fracos serão fatalmente esmagados, embora com elles esteja a simpathia das almas enthusiastas, como aconteceu á desgraçada Polonia, á França enfraquecida pelo Imperio, á Grecia atolada na ultima decadencia, e ao Transvaal apesar do epopaico heroismo dos seus filhos. Embora como a Hespanha espere[Pg 183] muito do orgulho e valentia dos seus soldados; como a China confie na incontavel multidão dos seus habitantes, ou como a Russia se iluda com a força ficticia do seu colossal territorio, povoado de analfabetos e de revoltados.
Tudo mudou com o tempo—ideias, costumes, maneiras de vêr e de proceder. O que aos nossos olhos parece hôje rasoavel e justo, seria aos olhos de nossos avós o mais absurdo dos atentados ao senso comum, o mais completo despreso pelas leis e convenções sociaes.
E, como tudo mais, a missão da mulher mudou tambem. Já não é de passividades e resignações como dantes! Da espectadora indiferente passou a ser figurante; entrou definitivamente na lucta—no trabalho de preparar a alegria e o socego do dia de ámanhã.
Não admira que assim seja porque, quando os campos de batalha são a propria sociedade em que vivemos e as armas são as ideias, a mulher tem o direito, mais, tem o dever de entrar na lide, e, ao lado do oprimido, do fraco, pugnar pela felicidade ou pela menor desgraça dos que sofrem.
No caso especialissimo que me impulsiona agora, ainda mais justa é a nossa intervenção, por isso que são mulheres as que sofrem e reclamam uma migalha para a sua fome.
No direito de solidariedade que nos assiste temos o dever de pensar em que ha centenas de familias sem trabalho e que para essa terra socegada e pitoresca nas abas da Estrella se mandam soldados quando se pede pão, se responde com ameaças quando se desespera com fome.
Sem lume, sem fato, sem dinheiro, como se anuncia prenhe de desesperos e luctas para esses miseraveis que não pedem esmola e sim maior paga ao seu trabalho, o inverno que se aproxima cantando a tragedia das suas dôres, nas ventanias que destelham casebres e arrancam arvores, nas chuvas que se despenham em torrentes engrossando os rios que regorgitam em cheias devastadoras, levando as sementeiras e trazendo a agonia nas dobras da sua mortalha de neve...
Não nos importa saber se é exequivel a pretensão desses operarios que usam do seu direito da gréve para discutir com os patrões como[Pg 185] combatentes legais, sofrendo heroicamente dias e semanas de fome, para obter um pequeno augmento, que já lhes parece fortunoso.
Não nos importa tambem saber se é atendivel a defesa dos fabricantes de panos baratos, que dizem pagar miseravelmente aos operarios porque miseraveis são os seus ganhos.
Não discutimos nem julgâmos—que não nos compete fazê-lo—mas ainda menos duvidar da convicção e da justiça dum povo que se resigna a luctar tendo por armas a fome e o proprio sacrificio, unicas que lhes deixamos nas mãos.
O que simplesmente nos interessa é a questão feminina, que este incidente põe a descoberto. Foi pelo pequeno salario da operaria que a gréve se originou, é para obter uns miseros reais para ellas que todos os proletarios de Gouveia sustentam uma lucta heroica, porque é heroismo, e até loucura, entrar numa gréve sem bolsas de trabalho, sem caixas de reserva, sem meio algum de lucta e de resistencia.
Não terão razão, essas pobres criaturas ás quais se exige umas poucas de horas de trabalho, e ás quais se dá em troca sessenta reis por[Pg 186] dia?!... Talvez, mas pensemos em que são como nós mulheres, que pertencem, como nós, a um sexo que os homens chamam fraco e ao qual cercearam todos os meios de ganhar a vida—desde a falta de trabalho até á miseria da paga—excepto um que as inferiorisa e torna despresiveis aos seus proprios olhos!...
É pois dever nosso, daquellas a quem a educação deu um criterio mais elevado, pensar nessa multidão de desgraçadas que a miseria e a ignorancia predispõem para o crime e que, não tendo familia nem homem que as sustente legalmente, por força hão-de procurar no erro o que o trabalho e a honestidade lhes não garante.
Emquanto individuos da nossa especie se rebaixarem tanto, inferiorisâmo-nos tambem reflexivamente, porque a mulher não será completamente liberta emquanto houver desgraçadas que se prostituam por miseria.
Outras, as que têm marido, e serão por certo a maior parte dessas operarias, precisam de auxiliar a familia com o seu trabalho, porque é pequeno o ganho do homem para as necessidades da familia.
Pensemos nesta desgraça a remediar e se houver alguma dentre nós que encolha os hombros com indiferença, por superior e de diferenciação de sangue que se julgue; se houver coração de mãe, que se não confranja pensando em suas filhas; espirito tão privilegiadamente temperado que ouse escarnecer de tamanha desgraça; essas que me não leiam nem atendam, porque não é a ellas que me dirijo, mas tão sómente áquelas cujo espirito e cujo coração as superiorisa e faz elementos civilisadores na sociedade.
É urgente que essas entrem na lucta gigantesca contra a fome, a miseria e a ignorancia das suas irmãs, mas não na lucta de guerrilhas e surprêsas que por ahi vamos vendo, ora obedecendo á bondade individual de uns, ora ao capricho da móda, ora ao desejo de ter o seu nome reclamado.
O que primeiro ha a fazer é a junção de todas as vontades e de todos os esforços para um fim unico e comum.
É urgente, sobre tudo, reclamar uma ou mais créches para cada terra onde a mulher[Pg 188] tenha que trabalhar fóra de casa, deixando os filhos pela rua, ou fechados e sujeitos a mil eventualidades, entregues a quem dessa maneira explora a miseria das mães.
Créches que não sejam filhas da caridade, nem entregues a ignorantes, sujeitas a vaidades e caprichos, ás altas e baixas do fluctuante coração humano, mas créches ordenadas por lei, obrigatorias a todas as terras industriaes, sujeitas a inspecção rigorosa, com rendimento tirado da propria industria que emprega a mulher. Em França ha uma lei que obriga todas as industrias que empregam mais de vinte mulheres a ter uma créche para as suas operarias entregarem os filhos durante as horas de trabalho; em Portugal nada temos que se compare com isso; os governos não fizeram ainda as leis e os governados não lhes comprehenderiam o alcance.
Depois da créche, que é a mais necessaria das instituições numa população operaria, deve seguir-se a escola maternal, onde a criancita, que já não é admitida na primeira, se conserva até aos seis annos, em que entrará para a escola[Pg 189] gratuita, com livros de graça, oficinas e professores que saibam ensinar pobres seres que nas familias não têm quem os norteie no caminho do estudo e do dever.
A criança apanhada nesta verdadeira engrenagem social, deixará de ser o vadio, o atrevido garoto que povôa as ruas das cidades operarias, para se tornar uma pequena criatura que se prepara com serenidade para a travessia dolorosa da existencia, com as suas lagrimas e as suas alegrias compensadoras.
Que a mulher possa contar com a maternidade, a casa onde passe descançada o ultimo e custoso periodo da gravidez, para dali seguir para o hospital onde a esperam os cuidados prescriptos pela higiene e o conforto que em casa lhe não seria facil obter.
Emfim, ha tudo a fazer neste sentido, desde a escola de criadas e dônas de casa, até á caixa economica, obrigatorias para as mulheres, que assim teriam, em caso de gréve, doença, ou falta de trabalho, com que resistir algum tempo á fome.
Ha pessôas que imaginam tudo resolver[Pg 190] pelo estardalhaço festivo da chamada caridade, e o que é certo é que a caridade é muitas vezes uma exploração e quasi sempre um meio impotente para defrontar a desgraça, sempre maior do que a generosidade individual.
Seja pois o esforço colectivo, cumprido como um dever, a base da nossa lucta contra a miseria, e alguma coisa bôa e profícua, estou certa, se conseguirá.
Ás mulheres compete conjurar o perigo que ameaça a sociedade de hôje, remediando quanto possivel as suas injustiças. Á mulher culta e sciente da sua nobre missão cabe o primeiro logar na empresa de cuidar um pouco no futuro do paiz e na melhoría social, acumulando para o porvir a maior soma de alegrias na maior soma de deveres cumpridos.
E o nosso dever é—parece-me bem—ouvir as queixas de todos os infelizes, principalmente das mulheres e das crianças, que são ainda hoje as maiores victimas da sociedade.
...Instruir a mulher, dar-lhe ao nosso lado o seu verdadeiro logar de igual e de companheira, porque só a mulher libertada póde libertar o homem.
Émile Zola.
Como companheira do homem e educadora dos seus filhos, a mulher é o factor mais importante para a reorganisação completa da sociedade.
Ora a mulher, entre nós, como toda a criatura sem educação, é retrógrada e timorata, influindo com os seus pavôres e ideias velhas no espirito das gerações, que assim se tornam, sem dar por isso, cobardes para as rasgadas[Pg 194] iniciativas do futuro, prêsas ao passado pelo sentimento do mêdo que lhes incutiram, com o leite, as crendices maternas.
É o sentimento que nos fere em toda a nossa geração, neste culto fetichista que não temos, mas fingimos, pelo passado, e que, em vez de nos ser lição, se torna em obsessão. Não se respeita um monumento que se não comprehende; não se póde vangloriar a alma por actos que já não entende; mas nos ultimos tempos começou a ser móda falar do passado, das nossas glorias, dos nossos feitos; e esta gente, que não vê vantagem nenhuma positiva para as suas necessidades de hôje nesses feitos heroicos dos nossos antepassados, acha cómodo pendurar ao peito a venera honrosa de povo historico e apresentar-se com ella no grande concerto das nações...
Os nossos rapazes de agora nascem velhos, ponderados e graves como conselheiros de estado. Não é preciso reprimi-los em seus ardôres e alegrias de rubra mocidade; elles reprimem os velhos e comentam com acerto, quando lhes contam as revoltas e independencias dos[Pg 195] moços de outróra—que hôje os tempos são outros...
E é a mulher, permitam-me que tenha esta triste vaidade, a culpada deste estado deprimente do espirito juvenil, mas a culpada inconsciente, porque a maior culpa recái sobre o homem que assim a tem querido para sua esposa e para mãe dos seus filhos.
É um grande principio educativo procurar no passado ensinamentos e estimulos para o futuro, mas é tristemente depressivo para o espirito esta obsessão do que fômos, martelando na alma das crianças como dobre a finados...
—Isto não é o que fazem os povos mais adiantados e mais cultos; não é o que convem á sociedade de hôje; mas é o que faziam os nossos avós, o que acreditavam os nossos antepassados...
E nestas crenças nos amortalhâmos, e nellas morreremos, se não sacudirmos esta letargía da alma, se não higienisarmos moralmente a educação da mãe, que hade educar a criança.
A mulher da nossa raça é naturalmente bôa e inteligente, mas em geral é profundamente[Pg 196] ignorante e duma convicta preguiça para entrar na lucta pela vida, motivo porque se tem deixado ficar na rectaguarda de todas as dos mais povos de civilisação similar.
Ha quem afirme, e tenha isso como consolação, que a hespanhola é muito mais futil e vaidosa, muito mais ignorante e inutil. Não temos dados para estabelecer o confronto, mas o que é certo é que nada nos devem consolar tais opiniões. Se são verdadeiras, pesa-nos que haja um paiz na Europa no qual a mulher, ainda mais do que no nosso, se esqueça de que deve ser a companheira e auxiliar do homem, sua igual e sua amiga. Se são mentiras, não nos lisonjeia o engano.
O homem português, por bondade, por indiferença, e tambem por esta sublime inconsciencia, que fez de nós um povo de conquistadores sem vantagens práticas nas suas conquistas, não incita a mulher a trabalhar, nem procura no seu labôr o auxilio que lhe seria licito esperar, quando as necessidades crescem, dia a dia, assustadôramente, encarecendo a vida sem proporcional augmento nos ganhos.
Tambem a não hostilisa francamente, é verdade... embora pela educação, e talvez por hereditariedade, seja ferozmente arreigado a velhos preconceitos, muito desconfiado e temendo o ridiculo das inovações; nunca a mulher do nosso paiz, que quiz estudar e trabalhar, encontrou no homem séria oposição.
Desconhecemos as luctas violentas que lá fóra tornaram a questão feminista uma verdadeira guerra, com adeptos apaixonados em ambos os campos, e até com sacrificios e com mártires.
A nossa mulher, essencialmente passiva, sem ambições que vão alem da satisfação que as pequenas vaidades do luxo trazem, não aspira senão ao casamento, para elle se cria e engalana, nelle põe a unica esperança do seu futuro.
Não é o casamento, segundo a natureza, pela necessidade fisica de amar e ser amada; não é o casamento superior de dois espiritos que se comprehendem e juntos podem viver felizes, fisica e intelectualmente ligados; não é mesmo o casamento comercial—chamemos-lhe[Pg 198] assim—em que duas fortunas ou dois nomes se ligam pelo interesse monetario, formando para o futuro uma só firma... O casamento português é, na maioria dos casos, pura e simplesmente uma arrumação para a mulher, o amparo, como que o asílo, para a pobre invalida, incapaz de ganhar pelo trabalho a subsistencia e o conforto.
Dado que se não realise o almejado casamento, embora para isso se tenham procurado todos os meios, ei-la uma criatura sem posição, infeliz, arrastando uma existencia miseravel, se tem de trabalhar para viver, com as aptidões quasi nulas com que a educação a preparou.
Se não sabe trabalhar, ou tem familia que se envergonha desse trabalho, torna-se um fardo pesado e aborrecido, cheia de resentimentos e amargurosas censuras á vida, invejosa da felicidade alheia, um elemento de discordia na sociedade.
Ainda algumas vezes é victima de todos os egoismos, tornando-se a criada dos proprios seus, curtindo despresos e vexames de toda a ordem, de grandes e pequenos.
Só quando rica, o quadro se torna risonho; mas não é dos raros felizes que se trata quando se fala em generalidades. Alêm disso, as raparigas com dote raro ficam para tias, porque o assédio é de tal maneira apertado que o triumfo heroico do casamento não se faz esperar.
Falando pois na mulher sem fortuna, repetimos:—a sua educação não a torna superior pela inteligencia cultivada, nem apta a ser independente pelo proprio trabalho. Alêm da educação, é a preguiça que a conserva—mais do que as leis e a vontade dos homens—na mais completa dependencia.
Quantas vezes os pais, que querem dar uma educação prática ás filhas, não têm que desistir do seu proposito, vendo nellas só pendôr para festas, namoricos e futilidades, apoiadas pela mãe que conserva da missão do seu sexo as ideias mais amesquinhadoras da dignidade feminil?...
Só por excepção se dará o caso duma mulher do nosso paiz querer estudar e ter, para o fazer, de luctar com grandes oposições.
Nem o codigo o permitiria, porque as nossas[Pg 200] leis, apesar de más e discutiveis, como todas as leis, são melhores do que as de outros paizes mais cultos, como teremos ocasião de o mostrar e provar.
Tratando a questão, sobre todas urgente, do trabalho da mulher, não nos referimos, é claro, á mulher do povo. Essa é no nosso paiz, como em todos, laboriosa e util; nem que quizesse poderia deixar de o ser, porque a familia reclama o auxilio do seu braço e os cuidados da sua atenção. No povo trabalha sempre, e muito, e só excepcionalmente é ociosa, porque a necessidade e a lucta pela vida são poderosos incentivos para azorragarem os pobres. É só no povo que encontrâmos, entrando como valôr dotal, as aptidões de trabalho da noiva.
Quando um homem da classe média pensa no casamento, ou, mesmo que não tenha pensado, se resolve a fazê-lo porque lhe agradou um rostosinho pálido que assomára a uma janella, ou pegou o namôro encetado por brincadeira, não tem como o homem do povo a frase consoladora que vale por um dote:—é uma mulher de trabalho.
No nosso paiz, como em todos os outros, a mulher do povo trabalha sem reparar se os serviços são ou não proprios do seu sexo, mas deixando que os outros olhem... para darem menor salario.
Não é pois a essa que precisâmos recomendar o trabalho como fonte de todas as alegrias e licita liberdade! Estudaremos, sim, em outra ocasião, as condições desgraçadas em que é feito, mas não neste capitulo dedicado á classe média, onde a educação é menos util e menos prática, e onde, pelo contrario, deveria ser mais cuidada e bem dirigida para um fim de segurança futura.
Já o temos dito varias vezes, mas não é demais, repeti-lo,—que é nos outros paizes a mulher da burguezia aquella que mais e melhor procura educar-se.
Isto porque a civilisação, tornando a vida cada vez mais cara e mais exigente, já fez lá o que não tardará a fazer entre nós. A mulher inhabil e pobre não casa.
Por egoismo e maldade do homem?!
Não nos atrevemos a condemná-lo.
O seu egoismo é filho da necessidade, que faz pensar com horror nos encargos duma familia nas circumstancias em que a sociedade coloca hôje o individuo.
Não espere a mulher portuguêsa que sejam os homens que a empurrem para o futuro e para a independencia pelo trabalho, porque isso será a confissão tacita da sua incapacidade e preguiça.
Antes que chegue a hora em que o homem—até hôje bastante sentimental e imprevidente para o triste dia de ámanhã de todos os casamentos pobres—ache que as alegrias dum noivado não valem os encargos, cada vez mais pesados, de um lar, e procure no celibato a emancipação, é que a mulher se deve precaver, preparando-se para esse proximo dia em que só terá de contar comsigo.
Isto que ainda nos parece uma monstruosidade e que repugna ao nosso sentimentalismo, é já um facto na sociedade francêsa, onde a rapariga sem dote tem noventa e nove probabilidades, contra uma, de ficar solteira.
Dahi a situação angustiosa dos pais, que[Pg 203] vêem crescer a familia e pensam com amargura nos filhos a colocar e nas filhas a quem é preciso arranjar dote.
Não obstando a este mal com uma séria e util educação, que ponha a mulher ao abrigo da miseria e da dependencia, não tardará que cheguemos ao caminho por onde a França vai para a despopulação, para a inferioridade egoista do numero.
Se a mulher latina não seguir o caminho largo que lhe indicam, com o exemplo, as fortes raças do norte, ai da familia e das nações a que pertence!
As que primeiro se decidirem a entrar na lucta sofrerão por certo muita contrariedade e verão cahir sobre os seus pobres hombros, mal vesados á responsabilidade forte do trabalho e da liberdade, todo o peso dos preconceitos e das costumeiras, toda a malquerença invejosa e malévola dos rotineiros, numa sociedade ignorante, que só cultiva com amôr a má lingua tradicional.
Mas o numero faz a força e o habito fará o resto. Quando a mulher, que procure numa[Pg 204] profissão honrosa o seu sustento e a sua independencia, não fôr uma excepção, mas uma legião, facilmente poderá aguentar o embate dum passado que se desmorona, vendo brilhar um futuro que mal se esboça ainda num sorriso longinquo.
II
O casamento perante a lei e o casamento como de facto é perante a sociedade, são duas coisas por tal fórma contradictorias, que não se dirá á primeira vista que um corresponde ao outro, ou que um e outro não são mais do que o mesmo contracto bi-lateral constituido para a formação da familia legal.
Perante a lei, a mulher casada deixa de ser uma criatura livre, deixa de ser a senhora do seu destino e das suas ações, porque:—tem que prestar obediencia ao marido (art. 1185.o do Cod. Civ.)
—Deixa de ser a administradora dos seus bens, porque:—qualquer que seja a fórma porque se realise o contracto matrimonial, a administração pertence ao marido e só na falta ou impedimento delle a mulher tomará o seu logar, (art. 1189.o do Cod. Civ.)
—Á mulher é negado o direito de alienar ou adquirir quaisquer bens, tanto moveis, como imoveis, emquanto que o marido póde adquirir quaisquer, sem auctorisação da esposa, e alienar os mobiliarios, (art.os 1191.o e 1193.o do Cod. Civ.) Á mulher é totalmente prohibido fazer dividas, sem auctorisação do marido, emquanto que o homem póde, segundo o art. 1114.o do Cod. Civ. §§ 1.o e 2.o, contrahir, só por si, dividas pelas quais respondem os bens do casal, no todo ou em parte.
—A mulher não póde ser a educadora dos filhos, pois que os filhos pertencem ao pai, que os rege, protege e administra, constituindo assim o poder paternal, segundo o art.o 137.o do Cod. Civ.
Embora o art.o 138.o proclame que a mãe comparticipa do poder paternal, e deverá ser[Pg 209] ouvida em tudo que respeita os interesses dos filhos, tal não póde suceder, porque o pai é o unico representante do poder paternal, e contra elle a opinião e a vontade materna nada valem.
—Póde o pai requerer a prisão do filho desobediente e interná-lo em uma casa de correcção, que, embora a mãe queira sustêr esse acto da vontade paterna, a sua opinião não tem força, a sua voz não será escutada, nem a sua vontade terá valôr, por mais injusta ou violenta que lhe pareça a medida.
—Tratando-se do casamento do menor, é perfeitamente inutil a licença materna, porque em caso de dissentimento entre os pais, prevalece a opinião do homem, bastando o seu consentimento para se realisar o matrimonio, como preceitúa o art.o 1061.o do Cod. Civ. E nunca o consentimento materno, só por si, póde prevalecer, por mais vantagens que a mulher encontre no casamento do filho menor.
—Viuvo, o homem administra e usufrúe os bens dos filhos menores, podendo contrahir segundas nupcias sem que lhe seja tirada a administração e o usufructo.
—Viuva, a mulher terá que dar contas da sua administração ao conselheiro que o defunto tenha deixado nomeado, se elle ainda depois da morte tiver reservado o poder de dirigir a esposa, sob pena de lhe ser tirada a administração (art.o 161.o).
Caso venha a contrahir segundas nupcias, a mulher perde imediatamente a administração e o usufructo da fortuna dos filhos menores, (art.o 162.o), o que seria justo se o homem no mesmo caso não continuasse a gosar os privilegios que lhe negam a ella.
O filho pode ser emancipado antes da idade legal pelo simples consentimento paterno; pelo consentimento da mãe só quando, viuva, tenha assumido o poder paternal (art.o 304 § 2.o)
Até para a tutela dos menores se prefere quasi sempre a linha paterna (art. 200.o § 5.o)
Portanto, legalmente, a mãe representa nada ou quasi nada na vida dos filhos, que, segundo o velho direito romano, pertencem á absoluta autoridade do pater-familiæ.
Quantos abusos e injustiças pode acarretar sobre as pobres criaturas humanas, que a lei[Pg 211] ainda não considera emancipadas, um poder assim discricionario, é facil imaginar.
A lei é feita sobre a base de que todo o homem é justo, ama os filhos e só para o seu bem deseja concorrer; mas a vida dá-nos muitos e muitos exemplos do contrario e a lei podia temperar tão grande absurdo dando á mãe igual poder sobre o filho, que pertence aos dois, com o juiz ou o conselho de familia para decidir em caso de grande dissimilhança de opinião.
A mulher casada não póde negociar, exercer uma industria ou uma profissão, inclusivamente escrever para público e publicar os seus livros, sem auctorisação do marido. É o art.o 1187.o do Cod. Civ. que o manda.
—Tem obrigação de acompanhar o marido para onde o capricho deste entender que a deve levar, a dentro das fronteiras do reino. É o que reza o art.o 1186.o do Cod. Civ.
—Não póde abandonar o marido, embora sofra todas as tiranias dum genio diferente do[Pg 212] seu, duma educação que seja o contrario da sua, dum caracter imcompativel com o seu proprio caracter,—salvo em casos muito especiaes previstos pela lei, e que, por bem conhecidos, o homem sabe evitar.
Caso fuja do lar conjugal, por lhe ser impossivel a existencia em comum, o marido póde mandá-la prender como a qualquer malfeitor e obrigá-la a retomar imediatamente, no seu lar odiado, o papel de mulher, sem que ao espirito revoltado, nem ao seu orgulho ferido, se dê o tempo de amortecer a violencia da dôr ou o impeto da revolta.
Só poderá gritar a sua indignação e pedir um pouco de liberdade, se o marido lhe dér, com público escandalo, as poucas coisas previstas pelo Codigo civil:—adulterio no domicilio conjugal ou com escandalo publico, desamparo completo, cevicias, ofensas graves, (art.o 1204.o)
—O homem que cometeu o adulterio, embora nas condições indicadas, tem a ridicula pena de três mêses a três annos de multa, conforme [Pg 213]o art.o 404.o do Cod. Penal. Sobre a mulher cái toda a ira, todo o selvagem ciume do legislador, que defende nos maridos o direito do macho que não tolera o despreso da femea, chegando á ferocidade de tirar á mulher adúltera os proprios bens della, que serão entregues ao marido, arbitrando-lhe uma triste mesada que será o que o capricho do conselho de familia e o juiz quizerem ou entenderem. É doutrina do § unico do art.o 1210.o e outros do Cod. Civ.
Vemos portanto que, segundo a lei, a mulher, casando, perde todos os seus direitos e alforrias—póde considerar-se, legalmente, a tutelada do homem.
Mas se passarmos do dominio abstrato da lei para o campo da realidade, o contraste é completo.
Ao contrario do que se poderia supôr, sob a pressão de taes disposições legaes, a mulher em Portugal, como em quasi todos os paizes latinos, casa para ser livre! A sua liberdade não é legal, não é responsavel, mas é um facto filho da tolerancia masculina e, mais, dos costumes que se fôram adoçando e civilisando, sem[Pg 214] embargo das leis continuarem persistindo na sua rigidez... de cadaveres.
A mulher solteira, a rapariga portuguêsa, como todas as suas collegas latinas, é mal preparada, mal educada para entrar na lucta da vida quotidiana.
Não anda só, não trabalha, não estuda, não sabe pensar por si, não vive independente e altiva, como qualquer rapariga inglêsa ou americana no seu quarto de estudante, lendo e estudando, cuidando da sua roupa e arrumando-a pelas suas proprias mãos, nas largas gavetas dos singelos moveis inglêses, com essas mãos que já fizeram a cama, passaram o panno humedecido no chão encerado, limparam o pó da mesa de trabalho onde colocaram uma jarra com flôres; essas mãos habeis e lestas que dahi a pouco prepararão no gabinete de fisica uma experiencia meticulosa e que á tarde saberão guiar com firmêsa a bicicleta ou segurar as redeas dum cavallo, bater com serenidade os remos do barquinho de recreio em qualquer lago dos arredores ou jogar qualquer jogo de fôrça e destrêsa.
A rapariga portuguêsa não tem opiniões, para não ser pedante; não lê, para não ser doutora e não ver fugir espavoridos os noivos, que por acaso a procurassem.
Não frequenta um passeio, não visita uma exposição, não assiste a um espectaculo ou a uma conferencia sem que a siga a familia toda, numa desconfiança de policias secretas.
Não lhe é permitido conversar com um homem sem levantar no espirito de quem a vê a suspeita dum interesse amoroso...
A rapariga que chega aos vinte annos, asfixiada sob esta amoravel tutela, que nem por ser amoravel e carinhosa deixa de ser opressiva, encontra no casamento uma relativa liberdade.
Liberdade que, as mais das vezes, é uma temeridade conceder á pobre criatura que durante tantos annos foi conservada e guardada, com o unico fito de ser entregue ao homem materialmente pura.
Guardar uma criatura é tirar-lhe a responsabilidade moral.
A criança habituada a ter uma pessoa que[Pg 216] olhe por ella e lhe evite as temeridades e loucuras, se um dia a mandam brincar, entregue a si propria, pergunta sobresaltada:—quem me guarda?
A mulher solteira, que desde criança foi habituada a trabalhar, a andar só, a estudar e amar a santa natureza e a conhecer as mentiras sociais, sem se deixar deslumbrar pelas suas grandêsas nem desanimar pelas suas miserias, que fala naturalmente com os rapases, seus colegas no estudo e no trabalho; não pensará tanto em namorados como as nossas pobres flôres de estufa, que nada mais têm que as preocupe. Chegada a hora de casar aceitará com naturalidade uma mudança de vida que lhe exige fisiologicamente a natureza, mas que a vem sobrecarregar com responsabilidades e deveres muito mais sérios e graves.
A mulher no nosso paiz, embora a lei seja dura para ella, como vimos, encontra no casamento uma relativa alforria á sua vida de crisálida. Os guardas, que a não desamparavam um instante, desapareceram e ella sente-se livre alfim! É senhora de si e dos seus caprichos,[Pg 217] que toma como manifestações da sua vontade. A casa pertence-lhe, pode dispô-la ao seu gosto, não tem ninguem que a contrarie—nem o marido, nesse primeiro tempo de casada. Na rua pode andar só, sem que ninguem repare. E que reparasse, o marido autorisa-a tacitamente a fazê-lo, porque homem nenhum iria hôje dar á sua propria esposa um diploma de incapacidade, fazendo-a guardar.
E a mulher, hontem ainda vigiada como uma criança, sente um certo orgulho em poder dizer comsigo:—sáio se quizer sahir!
E sai, as mais das vezes para nada—porque é ainda rara a mulher portuguêsa que sai por exigencias de trabalho profissional—para mostrar a si mesma que é livre.
Diz a lei que a esposa deve obediencia ao marido, mas que importa, se ella faz, geralmente, mais a propria vontade do que a delle?
Que importa que a administração pertença ao marido, se não é raro que seja a mulher com assentimento delle, é claro, quem administra e guarda o dinheiro do casal?
Que importa que legalmente não possa comprar[Pg 218] nem vender bens moveis nem imoveis, se é raro o esposo que vá interferir nas compras que a mulher faça, principalmente de bens moveis?
Embora não possa contrahir dividas sem licença do marido, não ha negociante que lha exija para fiar a sua fazenda, certo que só em caso extremo o homem deixará de pagar as dividas contrahidas pela espôsa.
Embora não lhe assista o direito de se ingerir na educação dos filhos, a sua influencia sobre elles é bem mais decisiva do que a dos pais; e qual seria hôje o marido brutal que se atreveria a arrostar com a reprovação geral, arrancando violentamente um filho á tutela educativa da mãe?!
Embora não possa negociar, ter uma profissão ou industria, ou escrever para público, qual o homem que arcaria com a gargalhada geral que a sua tirania ridicula despertasse?!
Embora tenha obrigação de acompanhar o marido, para onde elle a quizer levar, dentro do reino, quantos exemplos vemos do contrario[Pg 219] sujeitando-se mais vezes o homem á vontade e ao gosto da mulher?!...
Qual o marido, tirano de comedia, que obrigasse a mulher, que o não quer aturar, a voltar violentamente para o lar conjugal?
O proprio caso de adulterio em que o orgulho masculino mais sofre e menos póde atender os conselhos de bondade e perdão, nem mesmo esse já se desenlaça, senão muito raramente, entre gente civilisada, na carnificina e no rubro da tragedia antiga.
A dôr concentra-se na alma, e a tragedia,—que a ha sempre onde se despedaçam violentamente laços de sangue e de coração—fica silenciosa e respeitavel, na sua grande simplicidade. A mulher não é assassinada, mas o homem não é como dantes ridicularisado por uma falta de que só ella é a responsavel e a victima.
Por estas ligeiras observações parece-me ter mostrado bastantemente quanto é verdadeira a teoria já expendida aqui:—de que os costumes precedem as leis, que se modificam, mais dia menos dia, segundo a vontade e os habitos da sociedade que as reclama.
Não seria pois mais logico e mais sério educar desde já a mulher solteira para a sua alta responsabilidade de esposa e de mãe, modificando as leis que governam a familia, como se transformaram os costumes, tornando o casamento a união legal e respeitavel de duas criaturas que se juntam por sua livre vontade para constituirem a familia, tomando sobre si iguais encargos com iguais direitos?
Pois não é preferivel tirar á criatura que soube insinuar-se e apoderar-se da egualdade de facto, a irresponsabilidade que lhe garante a lei, dando-lhe os deveres e as vantagens?
Tanto mais que o maior perigo está ainda—em que a lei só cai, com todo o seu peso, sobre a mulher de caracter probo que não sabe dobrar-se nem mentir, conquistando com blandicias e hipocrisias, apoiada na fraquêsa masculina, o que legalmente lhe é defêso.
III
Dissemos atrás—que não são as leis portuguêsas das mais intolerantes e agravantes da situação da mulher adentro da sociedade e da familia. Demonstraremos esta opinião, em ligeiras observações que nos fôrem ocorrendo—que não em estudo comparativo dos codigos estrangeiros, por nos falecer competencia para tanto.
É certo que encontrâmos no codigo português graves desigualdades e injustiças para com a mulher, não como é de facto, pela educação e pela tradição, no nosso paiz, mas como deveria ser.
Não obstante, a mulher, tal como se conserva em terras portuguêsas, não tem direito a reclamar maiores garantias legais, porque até agora nem sequer se tem utilisado das regalias e igualdades que o proprio codigo lhe confere, e são ainda hôje, em paizes mais adiantados do que o nosso, outros tantos reductos a conquistar.
Vemos na França, por exemplo, a mulher perder o seu nome com o casamento; deixar—pelo simples motivo de se ligar a um homem legalmente—de sêr a pessoa tal, com o nome da familia em que nasceu e a que pertence pelo sangue e pela educação (e á qual não poderá nunca deixar em absoluto de pertencer, por defeitos e qualidades de que é inconsciente herdeira) para se tornar em madame... do nome do marido.
Isso mesmo deixará de ser se, viuva, tornar a casar; ou, divorciada, mudar, como quem muda um vestido usado, de nome e de marido conjunctamente.
A tradição conservou na livre e intelectual França esse costume, fixou-o mesmo como lei, e, afinal, onde essa lei tinha menos razão de[Pg 225] ser era precisamente nesse paiz, onde o divorcio já está promulgado e usado largamente. Havemos de concordar que é em extremo absurda a coexistencia desses dois usos.
Para a mulher francêsa é tão natural este costume, que só raramente a faz indignar; é que as maiores servidões, se a ellas nos afazêmos pela educação e pelo habito, tal nos não parecem, senão por um esforço de raciocinio que nem sempre chegâmos a formular.
Nada mais ridiculo, na verdade, do que essa lei, resto, ao que se me afigura, do velho direito romano, que fazia da mulher a pertença do homem. Fosse o pai, absoluto senhor cujas decisões se aceitavam sem protesto; ou o marido, que recebia a esposa como um festivo presente, um objecto, ou uma femea que se compra; fosse o irmão, o proprio filho ou cunhado.... todos, sucessivamente, tinham direitos e poderes sobre a criatura humana, só porque o acaso de um utero, a fatalidade germinativa, a fizéra mulher.
Nas antigas civilisações a mulher era sempre a escrava que o homem comprava ou roubava,[Pg 226] consoante o regimen de guerra ou de paz em que vivia. Quantas coisas fazemos e usâmos, que, sem o presentir, recordam apenas cerimonias e distinctivos da nossa servidão, desde as joias com que nos adornâmos: pulseiras, aneis, colares, brincos, cintos e outros enfeites, que apenas são o resto das cadeias que prendiam a escrava ao senhor, fisica e moralmente, até ás usanças e cerimonias do casamento; tudo nos mostra que a tradição tem trazido, através dos seculos, os restos barbaros das civilisações ídas, apesar mesmo das leis que se reformaram e modernisaram, seguindo as novas orientações sociaes.
Quem nos dirá, ao vêr lindos braceletes constelados de pedrarias enroscando-se cariciosamente no braço duma mulher formosa, que essas joias representam as algêmas e pulseiras das antigas escravas, vincando-lhes os pulsos como um traço de fogo a lembrar-lhes a sua miserrima dependencia?
Quem nos dirá, vendo fortunas condensadas em solitarios, suspensos como gotas de agua irisantes do lobulo da orelha feminina, que o[Pg 227] brinco era ainda o signal da servidão, como o era a argola no nariz e no beiço, cahidas em desuso, assim como as algêmas dos artelhos, por mero capricho da moda, tão inconsciente neste abandono como na conservação dos primeiros!?
Assim, tambem, o que no casamento moderno e civilisado nos parece apenas fórmulas de cortezia, não é mais do que o éco quasi extincto dos tempos em que a mulher era a propriedade, vendida, dada, ou raptada, que passava por esses meios, todos brutais, do poder absoluto do pai para o não menos absoluto poder do marido.
O que significa o pedido do casamento, o que é hôje legalmente esse costume? Nada mais do que uma deferencia das filhas e dos noivos.
Perante a lei, a mulher maior de vinte e um annos não deve ser pedida a ninguem, visto que se pertence sómente a si propria.
O que significa essa tresloucada fuga, depois da solemnidade consorcial, para hoteis e casas estranhas,—que os jornaes anunciam pomposamente como a ultima palavra do bom tom—senão[Pg 228] o rapto da mulher primitiva, senão o abandono da familia e da tribu em que nasceu pela nova familia, nova tribu, nova patria, que tudo seria para o futuro a que o marido lhe désse? Já na Grecia e em Roma este costume pertencia á tradição, e a noiva não transpunha pelo seu pé o limiar da porta da nova casa e sim era levada nos braços do marido, como significando bem claramente a posse do esposo sobre a mulher, recordando-lhe que fôra dada, vendida ou trocada por algumas cabeças de gado, como ainda hôje sucede em tribus selvagens da Africa.
Tudo nos mostra a tradição, revivendo através das idades e das gerações, numa teimosia de força inconsciente, a que só o estudo aturado e o raciocinio fórte podem pôr um dique.
Longe me levou, afinal, a observação sobre a lei e uma usança, que nem sequer são do nosso paiz como do nosso codigo.
Em Portugal, a verdade é que nem a tradição nem as leis nos impõem tal costume. Uma mostra-nos as familias usarem indistinctamente o nome dos pais ou das mães, mais tarde aliando-os numa simpatica e logica união.
Dizem-nos as outras como a ausencia da lei sálica faz transmitir reinos, titulos e morgadíos pela linha feminina, na falta da masculina, sem desdouro para ninguem.
A mulher portuguêsa, quando casada, não perdeu nunca o seu nome, ou, melhor dizendo, o seu apelido de familia. Só o perdia quando vinha do anonimato do povo ou da inferioridade da classe média para a grandêsa da fidalguia brazonada.
Quando muito, ajunta hôje, por galanteria, ao seu nome individual o nome do esposo.
Nos ultimos tempos é que a móda, na sua fatuidade, tem querido trazer para a nossa terra o ridiculo costume da França, Belgica e outros paizes—exactamente quando por lá já se trabalha para o modificar.
É o defeito de quem imita, sem discernir, o que é bom e o que é máu...
Mas continuemos abordando alguns exemplos que nos fôr sugerindo o folhear do codigo, muito por alto, sem a responsabilidade do profissional.
A mulher solteira é quasi livre, equiparada[Pg 230] ao homem perante o codigo. Mas nesse quasi, que imenso abismo ainda a transpôr!
Depois dos vinte e um annos póde livremente ganhar a sua vida exercendo a profissão para que se julga habilitada. É um individuo autónomo. Poderá ser professora, medica, proprietaria, industrial e comerciante.
Será senhora absoluta do que é seu como da sua vontade; pagará rendas de casa e contribuições para o estado; será util, será um factor importante na sociedade; mas, como os doidos, os menores, os surdos, os cegos, não poderá ser testemunha em actos públicos e solénes da vida do homem, como não é aceite o seu testemunho em qualquer acto civil, não é aceite a sua fiança para qualquer transação comercial.
Não poderá ser tutôra dum menor, por melhor educadora e mais habil administradora que seja—a não ser de filhos e netos, e, desses mesmos, com restrições e cautelas vexatorias para a sua dignidade individual—mas, para cúmulo de disparate, póde ser tutôr dos seus sobrinhos o marido, quando o tenha!
A lei não a exclúe de nenhum trabalho; apenas o costume, a tradição e o homem (sempre temeroso da concorrencia das criaturas que diz desprezar e achar inferiores) fazem reparo, a cada nova conquista da tenacidade feminina...
A mulher póde estudar as leis do seu paiz. Poderá—visto que a lei é igual para todos e não faz distinção de pessôas e de sexos, salvo nos casos especialmente declarados no art. 7.o do Cod. Civil—frequentar o curso de direito e tirar a carta de bacharel. Mas essa mesma mulher não poderá estar em juizo como testemunha civel, não poderá apresentar-se com procuração ou mandato, nem requerer justiça, salvo nas proprias questões, nas dos ascendentes ou descendentes e nas do marido, em caso de impedimento deste.
As mulheres são equiparadas pelos codigos aos menores não emancipados—ambos menores perante a lei!
Ora a mulher, que não tem artigo especial na lei que lhe prohiba ser proprietaria, industrial, artista, medica, erudita, comerciante, professora,[Pg 232] isto é, que póde ser tudo quanto representa inteligencia, precisão, vontade e estudo; que póde frequentar os cursos superiores onde se instrúe o homem do seu paiz, que em qualquer ramo do saber humano póde ser alguem da estatura intelectual e moral duma Clémence Royer ou duma Luiza Michel; a mulher não tem a faculdade de se ingerir nos negocios publicos! Não é eleitora nem elegivel; não póde averiguar—porque não tem esse direito legal—como é gasto o dinheiro que paga como contribuinte, para onde vai o fructo do seu trabalho.
Poderá fazer pender a balança eleitoral—mesmo que as eleições fossem o resultado arithmetico das listas verdadeiramente entradas na urna—influindo nos seus caseiros, operarios, e quaisquer dependentes; mas não poderá dar o seu voto, que seria, certamente, mais responsavel e consciencioso do que o dos analfabetos que lhe cultivam as terras e a servem.
Não poderá intervir, senão ilegalmente, pela intriga e pela mentira, nos negocios de que depende o seu socego e fortuna, o destino da[Pg 233] Patria; que lhe pertence tanto como aos homens que a governam.
A lei, apesar do artigo 7.o do Cod. Civil que diz ser igual para todos, é bem desigual e vexatoria para a mulher, quando mesmo solteira, senhora dos seus bens, árbitra da sua vida moral como material.
Não posso terminar sem me deter em dois artigos do codigo civil que merecem a nossa atenção mais demorada e tem o seu logar aqui, visto referirem-se ainda á mulher solteira.
—«É prohibida a investigação da paternidade illegitima—diz o artigo 130.o—salvo em casos que entram francamente nos crimes punidos pelo codigo penal».
—«É permittida a investigação da maternidade»—diz a seguir o artigo 131.o
E fica-se a gente a pensar:—que sociedade, que justiça, que lei é esta, que tira aos homens todos os deveres e toda a responsabilidade, em actos de que, se não é o maior culpado, é, pelo menos, tão culpado como a mulher.
O que póde ser um filho ilegitimo na vida de um homem? Um encargo monetario, quando[Pg 234] muito. Nenhuma deshonra o fará córar por esse fructo da sua leviandade. Nenhuma criatura, por mais honesta e puritana, deixará de lhe estender a mão e recebê-lo em sua casa como amigo. O proprio filho, dizendo o nome do pai, não sentirá nunca o frio mortal do desprêso que persegue, quasi sempre, o que só póde dizer o nome da sua pobre mãe.
Solteiro, esse homem não terá dificuldade em ser aceite como esposo por qualquer senhora honesta, que, por sua vez, se não deshonrará em se tornar a mãe do filho que é o filho do seu esposo.
Pois o homem, nestas condições sociais, fugiu, pelas leis que fabricou, ao incomodo da investigação da sua paternidade ilegitima, ao passo que lançou para a mãe toda a responsabilidade do seu crime!
Para a mulher que deixa de ser honesta para a sociedade, mostrando um filho que não teve do casamento; para a mulher que só por excepção póde agenciar com o trabalho o quanto baste ao seu sustento; para a mulher que nenhum homem aceitará para esposa, sabida que[Pg 235] seja a sua falta; para sobre a mulher toda a responsabilidade, direi mais, toda a durêsa da lei, permitindo ao filho a investigação da maternidade, ao passo que lhe nega a da paternidade!
Quantas lagrimas misteriosas e quantos desesperos e angustias não representam esses pobres seres, vindos como um castigo, numa familia honesta, que a todo o transe quer encobrir o que é a suprema vergonha duma mulher solteira?!
Existencias de dolorosissimo sacrificio, desvendadas para o escarneo e o despreso do mundo, é tudo quanto representa essa disposição legal—só para a mulher!
Se a sociedade não condemnasse com o seu despreso a rapariga que se lhe apresenta com um filho que não tem no registo o nome do pai; se a sociedade garantisse á mulher—por igual trabalho, igual salario—e lhe abrisse largamente novos horisontes de estudo e profissões remuneradoras, que a tornassem monetariamente livre, então o codigo poderia, sem grande injustiça, livrar o homem da responsabilidade a que o filho infeliz e miseravel o vai chamar. Sim,[Pg 236] porque só quem é muito desgraçado encontrará satisfação em procurar as criaturas que o trouxeram para a vida e se escondem covardemente atrás do misterio.
O egoismo masculino revelou-se ferozmente nessas duas linhas, que são a maior das cobardias para com a mulher, sua cumplice, e para com o filho, sua victima.
Se a mulher pudesse apresentar com honra os filhos que são sómente seus, porque o pai os não quer legitimar, por certo que não haveria muitas que fugissem a essa responsabilidade, porque a mulher, como todas as fêmeas, tem, em geral, o amôr pelos filhos pequeninos muito mais vehemente do que o homem. É o amôr animal e inconsciente, que só a civilisação, com as suas exigencias avassaladoras, tem atrofiado.
O amôr do pai, pelo contrario, é o sentimento adquirido com a civilisação e que a mesma sociedade tem todo o interesse em proteger e desenvolver para salvação sua.
«Voltariamos ao matriarcado dos tempos primitivos, se a mulher pudesse honradamente[Pg 237] apresentar os filhos sem pai; seria a dissolução da familia e da sociedade...»
Sim, seria tudo isso, mas não seria, ainda assim, nada que se comparasse á violencia da injustiça legal dos artigos 130.o e 131.o do cod. civil.[Pg 238]
IV
...é valorisar a mulher tirando-a do triangulo fatal: casamento, ociosidade ou prostituição.
Agostinho de Campos.
O homem português, como todo o dos povos latinos, despresa no fundo a mulher, apesar de ser o que mais a tem cantado poeticamente e turificado pelo amôr.
Talvez mesmo por isso... A mulher só lhe apraz como objecto de prazer ou escrava dos seus desejos, e para a conservar assim, nessa dependencia que lhe quer fazer convencer que é soberania, sujeita-se a tudo, até aguentar-se com todo o trabalho para que ella não crie habitos[Pg 242] de independencia, vendo-se apta para ganhar a sua vida, sentindo-se senhora das suas economias.
A mulher casada, como está constituida a familia no nosso paiz e como em geral o homem a deseja—vive em casa do marido. Come o que o marido lhe dá. Veste aquillo que elle paga com o seu trabalho. É mãe de filhos de que elle, só, paga todas as despêsas. É o thezoureiro do dinheiro delle, e não poucas vezes ouve criticar com asperêsa os seus actos de governante!
A mulher casada, sem fortuna propria, é bem pouco senhora na casa que chama sua e pelo cantinho da qual aspirou tantos annos, isto se não tem a habilidade de se fazer admirada como um modelo de bom senso e economia, o que não é raro, como já dissemos.
Mas sendo a mulher casada apenas uma parte da grande familia feminina, porque não fazer com que essas que não têm marido que as sustente, nem filhos a educar, nem casa onde se abriguem e governem, trabalhem e se tornem independentes?
Em França—diz uma das suas ultimas estatisticas—existem 2.622:170 mulheres celibatarias maiores de 21 annos.
Não sabemos as que ha no nosso paiz, por mingua de estatisticas comprovativas, mas sirva-nos esse numero de termo de comparação.
Aqui temos, pois, mais de dois milhões de criaturas que não têm marido que as sustente e que precisarão de trabalhar para poderem subsistir.
Tirando desse numero a imensa legião das pobres que no vicio sordido procuram o sustento ou o luxo, ainda ficaremos com uma bôa percentagem de mulheres honestas que precisam de trabalhar para viver.
Nos ultimos tempos nota-se, principalmente na capital, uma certa afluencia de mulheres na procura do trabalho; mas é preciso que essa concorrencia se não torne em exploração.
Ha pouco quem seja logico nos seus principios e quem sacrifique os seus mesquinhos interesses pelo bem dos outros, por isso é necessario pôrmo-nos em guarda e não concorrermos com a nossa miseria para a miseria geral.
Começa a mulher entre nós—o ultimo paiz da Europa que tal faz!—a ser utilisada no comercio, para que tem já provadas e apreciaveis aptidões, mas não deve consentir que a utilisem por exploração, para lhe pagarem inferiormente um trabalho igual ao dos homens.
Por igual trabalho, igual paga—tal deve ser o principio fundamental do labôr feminino.
Se o homem português fôsse mais bem orientado, em vez de hostilizar a mulher que trabalha, e de a expulsar das suas associações,—ou não lhe permitindo o voto, nem as aceitando como elegiveis para os cargos das sociedades—tornar-se-ia o seu aliado e em concorrencia leal cada um apresentaria as suas próvas e seria provido nos logares conforme as suas aptidões,—e não conforme a paga.
É repugnante a lucta de egoismos, e, quando se exerce com a ferocidade do esfomeado que defende o seu alimento, dá-nos a sugestão desoladora de que a criatura humana no fundo da sua alma, apesar de tantos seculos de civilisação,[Pg 245] é bem semelhante ao troglodita que defendia a presa ensanguentada a unhas e dentes contra o seu irmão ou a sua companheira, devorando o adversario se ficava vencedor.
A mulher tem direito a viver como o homem, e, mais, tem o direito a trabalhar e a ser respeitada no seu trabalho, só devendo temer a concorrencia leal.
Que fóros especiaes tem o homem português para exigir que a mulher, professora, não concorra ás cadeiras primarias de rapases ou ás cadeiras mixtas, se ella tiver competencia para o fazer, quando em tantos outros paizes são ellas que se encarregam de quasi toda a educação primaria?
Que direito lhe assiste em não consentir que a mulher telegrafista passe aos cargos superiores, se ella—excepcionalmente ou não—fôr um empregado mais consciencioso e inteligente do que os seus colegas, e tiver os mesmos annos de serviço?
Que direito tem o homem em manifestar repugnancia em ser dirigido por uma mulher se ella tiver mais aptidões do que os dirigidos?[Pg 246] Em ser ensinado por ella se mostrar em suas provas e cursos e concursos publicos que podia proficientemente desempenhar-se da sua missão?
É abominavel de egoismo o argumento do homem que diz:—nós já somos muitos e se a mulher entra definitivamente na lucta pelo trabalho, mais sofreremos nós. Mas então para o homem não sofrer é preciso que a mulher sofra a fome e a nudez?
Repito—não me refiro já á mulher casada, que tem o homem que a sustenta; refiro-me á solteira, que tem direito á vida e ao trabalho para a sustentar com nobrêsa.
O caixeiro sobresalta-se porque a mulher começa—só agora em Portugal!—a ser caixeira. E não é isso justo?!
Não é esse trabalho sedentario o mais proprio para o sexo que dizem fraco? Mal lhes fica até o reparo, porque ha muita profissão que elles poderiam exercer sem se sujeitar a um trabalho que, por muito feminil, deve ser deprimente para a dignidade masculina.
Quantas vezes não ouvimos dizer:—que tal[Pg 247] ou tal oficio não serve para a mulher, porque é pesado para a sua força, demasiado violento para a sua fraquêsa organica?...
E, no entanto, percorrendo as provincias do norte ao sul de Portugal, visitando as oficinas e as fabricas, não vemos que a seleção se dê pela força mas sim pelo salario.
Vimos no Porto, não ha muitos mêses, as mulheres carregarem com pesadissimos materiais numa fabrica de ceramica, emquanto ao lado, numa oficina alegre e arejada, alguns homens, muito comodamente sentados, ganhavam o seu jornal pincelando pratos no trabalho leve e material da estampilha, que sem duvida caberia melhor ás mãos delicadas da mulher. E á discreta manifestação da nossa invencivel estranhêsa, percebemos que alguns murmuravam, num entre-dentes invejoso:—era o que faltava, mais essa concorrencia!...
Logo, o homem não afasta a mulher da lucta e do trabalho para a poupar a fadigas com que não possa, visto que a deixa carregar fardos, esfregar casas, trabalhar a qualquer hora da noite em que chegam os barcos de pesca,[Pg 248] nas fabricas de conserva de peixe, quer de verão quer de inverno, molhada em salmoiras, com as mãos geladas, de pé, horas e horas consecutivas; que a deixa mondar, ceifar, fazer muitos outros serviços do campo, qualquer que seja o tempo, de ardente calôr ou de frigido inverno... A mulher desempenha, em muitas terras das nossas provincias do norte, o serviço de estafeta, percorrendo a pé muitas leguas, carregada com pêsos que o homem, certamente, não aguentaria sobre a cabeça.
A mulher, como criada, anda um dia inteiro de pé no fatigante serviço de casa, deitando-se tarde e levantando-se cedo.
Aguenta uma criança nos braços durante horas consecutivas.
Passa dias com um ferro de engomar e de brunir; cose á máquina horas sem conta...
E muitos outros serviços pesados, que seria longo enumerar.
O homem vê isso e não se sobresalta nem indigna, porque são trabalhos que elle não quer para si, por mal remunerados.
Se, por acaso, qualquer destes serviços[Pg 249] viesse a ser bem pago, não ha duvida que acorreriam logo a pugnar pela fraquêsa da mulher.
Na lucta pela vida o homem é impiedoso para a mulher, que não é a sua. A operaria raro tem no operario um colega e um amigo; tem apenas um homem que a desmoralisa e que a despresa se os trabalhos são diferentes, que a odeia, se é o mesmo, valendo-se de tudo, até das leis protecionistas, como os tipografos francêses—que apelaram para a lei que prohibe o trabalho da mulher feito de noite, para as expulsar das tipografias em que se compõem os jornaes matutinos.
Quando se aventam estas e outras opiniões e estranhêsas, é de uso o homem responder:—mas se a mulher vem concorrer comnosco nas profissões em que hôje nos ocupâmos, o que faremos nós?
O que farão?!... O que fazem os inglêses, muito mais numerosos do que nós e que percorrem o mundo inteiro para ganhar a sua vida; o que fazem os suissos, levantando a sua pequena patria a toda a altura duma grande nação; o que fazem os americanos, os alemães, os suecos[Pg 250] e tantos outros, em paizes onde a mulher é equiparada ao homem pelo trabalho.
A riquêsa dum paiz não é espontanea, adquire-se com o trabalho, e o português, que não tem, como o francês, repugnancia pela emigração, tem nas nossas colonias campo vasto para a sua actividade e engenho, alem do muito que ainda tem a fazer na metropole, e sem receio de concorrencias.
Além de alguns insignificantes erros tipograficos que no sentido da leitura facilmente se corrigem, nóta-se a pagina 95:—cimo da bóta, por cano da bóta.
Mesma pagina:—lhes traga, por lhes tragam.
Pagina 106:—campo que lhes sobre, por tempo que lhes sobre.
Mesma pagina:—Vida desgarrada, por vida dispersada.
Pagina 114:—caminhando revoltoso e tumultuosamente por, revoltósa e tumultuariamente.
Mesma pagina:—pensar, por passar.
Pagina 125:—delicadas amas, por dedicada ama.
Pagina 142:—entretecida, por entrétecida?!
Pagina 144:—recorrer, por socorrer.
Pagina 145:—puzeram, por puzessem.
Pagina 149:—E realmente, por É realmente.
Pagina 167:—E certo, por É certo.
Pagina 209:—usufruirá, por usufrúe.
Pagina 218:—lhas, por lha exija.
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[1] Á carta que me dirigiu o Sr. Gomes Pereira, na Revista Amarella, criticando o artigo precedente.
[2] Maio de 1903.
[3] 1904.
[4] Em Gouveia, no inverno de 1903.
Erros tipográficos óbvios foram corrigidos; quaisquer outros erros ou inconsistências foram mantidos como no original.
Foram removidas aspas angulares desnecessárias (utilizadas seguindo um travessão: "—«") e não fechadas que eram utilizadas inconsistentemente.
Os erros indicados nas Erratas foram corrigidos, exceto o sexto e oitavo (o primeiro por não ser encontrado na página indicada e o último por não ser claro o que deve ser corrigido).
O Índice foi movido do final para o início do livro de forma a facilitar a sua utilização.
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