Obras de ANNA DE CASTRO OSORIO
INFELIZES (historias vividas)—Livro de contos.
PARA AS CRIANÇAS (bibliotheca infantil)—Publicação mensal illustrada:
Contos tradicionaes portuguezes—7 volumes.
Contos originaes, educativos—2 volumes, (Alma Infantil e As boas crianças).
HOMENAGEM A GARRETT (de collaboração com Paulino de Oliveira)—Opusculo commemorativo do centenario garretteano, edição de luxo.
A BEM DA PATRIA (folhetos de propaganda, distribuição gratuita):
I As mães devem amamentar seus filhos.
UMA MISSÃO DO PADRE GRAINHA, por Alberto Osorio de Vasconcellos—Edição em livro, feita e apreciada por Anna de Castro Osorio e Paulino de Oliveira.
AMBIÇÕES (romance de costumes).
A PUBLICAR
A VICTIMA (romance em continuação do Ambições).
HOJE E AMANHÃ (revista mensal illustrada, litteraria, scientifica e educativa, sob a direcção de Anna de Castro Osorio)—A sahir em fevereiro d’este anno.
OS ANIMAES (10.º volume da publicação: Para as crianças)—contos originaes, já em publicação.
ANNA DE CASTRO OSORIO
AMBIÇÕES
ROMANCE
1903
LIVRARIA EDITORA
Guimarães, Libanio & C.IA
108, Rua de S. Roque, 110
LISBOA
É na botica d’uma villa de provincia, velho burgo acastellado, orgulhoso dos seus foraes e brazões como da nobreza que em tempos d’alli sahiu e se espalhou pelo reino, deixando fortes raizes na terra, que ainda exporta fidalgos como podia exportar qualquer mercadoria.
Despoetizada pela moda que tudo confunde e baralha e pela turba de veraneadores que a procuram para refazerem os pulmões e os nervos, a que os invernos de Lisboa esgotam a energia, é ainda assim das mais typicas e formosas da provincia.
Afóra dos muros, os campos estendem-se verdes—do verde escuro dos pinheiros, do verde cinzento das oliveiras, do verde brilhante dos castanheiros... de longe em longe, manchas risonhas de pomares, salpicadas de casaes brancos, com recortes de velhos campanarios, fachadas ennegrecidas dos antigos solares, e as ermidas caiadas nos cimos dos montes cobrindo com um leve e translucido véo de mysticismo pagão a hilariante festa da natureza.
Nada mais proprio, em verdade, para uma villegiatura alegre, do que esse recanto de provincia,—valle ameno entre montanhas, com o rio cachoando ao fundo, deslisando mais adeante entre salgueiraes, como assustado da sua propria fúria.
Ha alli de tudo para deleite dos ociosos que no verão passeiam pelas provincias os tedios e as toilettes da moda.
Para os pic-nics, a sombra de velhas arvores em quintas senhoreaes; o rio, com as madrugadas de pescarias alegres; e lá para setembro a caça a rôdos pelos matagaes da serra; e para cúmulo as estradas bem conservadas pelo interesse que a gente da villa mostra em dar boa conta de si perante a civilisação dos pur-sangs e dos cocheiros inglezes.
Mas estamos no inverno, n’uma fria tarde de fins de janeiro. Ora o que se hade fazer no inverno n’uma terra de provincia, quando a neve cobre o cimo das serras e o vento corta as carnes como vergastadas? Procura-se então um bocado de sociedade para encurtar as noites sempre grandes para os preguiçosos e os paroleiros.
Vae-se para a botica, pois para onde se hade ir?...
Aquillo é o club, o centro onde tudo se reúne e as novidades se sabem e commentam, primeiro que em parte alguma.
Toda a gente tem entrado n’uma pharmacia e conhece mais ou menos o cheiro especial dos remedios, o feitio classico dos boiões das pomadas, os frascos bojudos com tampas de vidro e letreiros em grossas lettras sábias, os passaros[3] empalhados entre o aquario com peixesinhos vermelhos e a balança na sua maquineta de mogno polido.
Em coisa alguma sahia dos antigos moldes consagrados a propriedade do sr. Domingos José da Silva, chamada a botica velha, para se distinguir da nova: envernizada de fresco, com mobilia de casquinha folheada em mogno, fabricado n’uma marcenaria do Porto.
Comtudo, a velha pharmacia rotineira e modesta não perdêra os freguezes antigos, como se não cançava de o apregoar o seu feliz dôno, que não soffria sem verdes olhares d’inveja o luxo sybarita do competidor.
Por largos annos fôra o unico pharmaceutico n’umas poucas de leguas em redor e gabava-se que não havia quem lhe levasse a palma na confecção d’umas certas pastilhas contra os vermes. Essa e a dos cães damnados eram muito suas e a ninguem as daria senão no ultimo arranco.
Mas um dia—questões de politica, infamias, invejas!...—eis que lhe surge pela prôa a nova pharmacia, com proprietario rapaz a modos litterato e suas vistas altas de quem tem um curso e faz os rótulos em latim.
Ia tendo uma apoplexia o sr. Domingos! A cada innovação que o seu rival trazia ás velhas costumeiras de botica provinciana, elle desabafava em murros no mostrador e furioso sorver de rapé.
Andou atrapalhado uns tempos. O filho aconselhava que mandasse dar uma pintadella ás portas, comprasse estantes e livros encadernados,[4] e lá emquanto aos letreiros mandava-se ao mano, que estudava no seminario, que os escrevesse.
—Que não!—berrava o velho em vermelhas guinadas d’orgulho—que assim tinha vivido sempre e assim queria morrer; que levasse o diabo os modernismos!
N’estes sentimentos era appoiado pela mana Joaquina, resmungando sempre encatharroada contra as novidades e contra o rheumatismo que mal lhe deixava arrastar as pernas trôpegas.
Mas o caso é que a botica nova não lhe tirou freguezia, apezar dos fumos de sabichão do pharmaceutico, porque a boa gente da provincia gosta sempre de andar pelo seguro:—ná, diziam elles, temo-nos governado com o sô Domingos, e com as suas drogas nos iremos medicando; nada de venenos, que são os remedios novos!
E batiam familiarmente nas costas do velhote, que esfregava as mãos triumphante.
Passára-lhe já a maior furia, mas o rancor ficára latente e resmungão, como cachorro mal acostumado ao canil. Pessoa que, por acaso, ou propositadamente, entrasse na nova—como dizia com ironico despreso—era certo incorrer para sempre no desagrado geral da familia.
Mas, isto era ao accender dos candieiros de petroleo,—não chegou ainda a civilisação do gaz a todos os cantos de Portugal—por um fim de dia de frigido janeiro.
Lá fóra a escuridão fazia-se rapidamente, com um tremôr d’estrellas que annunciavam muita geada por essa noite fóra.
O sr. Domingos José da Silva, matriculado[5] pharmaceutico no largo da Fonte, (como de si proprio dizia com grossa voz fanhosa e expedimentos de perdigotos por demais explicativos para quem lhe ficava em frente) estava nos seus momentos felizes.
Era á hora a que os parceiros do solo e da má lingua começavam a chegar, e toda a sua grossa pessoa rejubilava festiva.
Não que elle fosse positivamente um mau homem, que não era! Mas aquelle fraco por saber o que se passava na terra, fazia-o esperar pela noite como pelo melhor bocadinho da sua estupida vida, partilhada entre as tizanas, as descomposturas aos freguezes pobres, e o desvanecimento pela esperteza propria e a da familia.
Não era raro ouvir-lhe contar os adeantamentos e habilidades da sua prole, n’estes e n’outros discursos por igual demonstrativos.
—«O meu filho Antoino, cabalidade, cabalidade!... Deu os riscos p’ró chafariz novo. Ainda os pintava melhor, a cambra é que não quiz gastar dinheiro. Mas deixem-me ser vérador que o caso é oitro...»
Tinha ferrado no bestunto esse ideal supremo de labrego, que ao acaso de muito pontapé da sorte conseguira largar o cabo da enxada pela mão do almofariz.
Passeava, pois, o sr. Domingos José da Silva ao longo e largo da pharmacia, para melhor aquecer os pés mettidos em tamancos forrados; esfregava as mãos vermelhas e enfrieiradas vestidas de mitenes d’algodão verde salsa; tossia para o cache-nez enrolado ao pescoço, e esperava os[6] parceiros emquanto o filho Antoino accendia as luzes e preparava as cartas para a partida.
N’uma das voltas do passeio, que o poz em frente da porta, deu de cara com a Engracia da Luz, a velha criada, quasi da familia, de casa dos Mellos.
Estacando deante d’aquella visita inesperada, onde farejou um principio d’intriga para o serão do padre cura e mais freguezes, perguntou solicito:
—«Que é lá isso, nhora Engracia? Está alguem doente lá por casa?! Parece que a vejo assim a modos assarapantada!...
—«Ai! deixe-me aqui sô Domingos. Eu vinha em busca do sr. dr. Ramalho. Disse o Zé Leandro que vira chegar umas malas grandes no carro da estação, que talvez fosse o senhor doutor... E vae eu vim em cata d’elle, porque a minha menina está muito mal, muito mal!...—puxando a ponta do avental, n’um arremesso á desgraça, limpou as lagrimas que lhe corriam em fio.
—«Olha que lanzudo aquelle! Essas malas que diz são do caixeiro das amostras, que até está em casa do Brito. O bruto não sabe cabriram as cambras e o dr. Ramalho é deputado? Que eu tamem, não sei o que alli anda!... Elle não pára cá em chegando o inverno...—piscava os olhos ao filho com ar de finura laponia, o que escancarava n’um regosijo a bocca do rapazola. Mas, reparando no ar desinteressado da Engracia que se voltava já para a porta, tornou:
—«Olhe cá, então o dr. Viegas, o doutor novo,[7] não está lá sempre mettido em casa, não é até o noivo da Pillarsinha?
—«Pois é, é!... E não sei que lhe diga, sô Domingos, mas aquelle casamento foi a nossa desgraça. Nem elle se faz, que a minha menina morre!...
—«Elle que é medico hade curá-la, e com remedios da nova a sua menina irá a melhor, verá!...
Ria n’um pigarro escarninho, que arrepiava.
—«Olhe, sô Domingos, eu não sei d’essas coisas. Os senhores é que lá entendem d’essas guerras! Só cá me consolava o coração que o sr. dr. Ramalho visse agora a minha menina. Está finadinha de todo. Aquillo é uma fraqueza de peito, uma canceira que nem parece a mesma! Decoadinha como a senhora da Solidade! Valha-me o Senhor dos Afflictos da egreja, que só a elle a gente se póde apegar!...
—«E os paes!?...
—«Ora, os paes?!... A mãe chora dia e noite e o pae anda assim como maluco, nem toma tento no que se lhe diz.
—«Mas porque não mandaram vir o dr. Ramalho?
—«Todos os dias fallâmos n’isso, mas a menina não quer, diz que está melhor e se o mandam vir é porque a acham muito mal. Até disse que se escondia, que lhe não fallava. Não se hade contrafazer uma doentinha. O dr. Vilhegas tambem diz que não é preciso!... Ai, não estar cá o Joãosinho!...
—«E a prima, a Candidita, o que faz?
—«Está uma boa delambida, essa!... Aquillo[8] nem parece prima da minha menina, uma soberbona, uma tola... Emfim... vou me que tenho pressa. Adeus, sô Domingos, recados á sora Joaquina.
—«Obrigada. Até outra vez, nhora Engracia!
Deixou-a partir sem mais conversa, por lobrigar o gabão do padre cura que atravessava o largo.
—«Boa noite, meus senhores,—entrou dizendo e deitando para baixo a golla de pelles, o padre, novo ainda, espadaúdo, cacete nas unhas, cigarro nos beiços, e grossas botas tamancos.
—«Então como vae isso, mestre Domingos, rijo e fero, hein? Isto por cá está hoje muito só. Estes senhores teem medo do frio, que está de rachar. Não temos parceiros para o sólo, aposto!—escarrava para o chão, raspando com o pé.
—«Ainda não é tarde, ainda não é tarde. O Neves não tarda por hi.
—«Aquella que sahiu não era a Engracia dos Mellos?
—«Era, vinha em busca do dr. Ramalho; imaginava que tinha vindo, porque, plos modos a Pillarsita está a espichar.
—«Ora adeus! A você o que o faz fallar é a inveja.
—«Inveja, eu?! Agora de que havia eu de ter inveja? Pois qu’é o Antoino de Mello mais camim? A mulher sim, não digo nada, agora elle!... Olha a grande jaração!
—«Não é lá d’isso que você tem inveja, sô Domingos; deixe-se de cantigas! O que a você o rala é a pequena ser tratada pelo Vilhegas que os levou para a nova.
—«Quê?!...—rouco de furia contida, recomeçava o Domingos o passeio n’uns impetos de fera, vendo o padre torcer-se ás gargalhadas.
Era o pratinho do cura metter ferro ao pharmaceutico; e este, sabendo isso, não queria responder para não dizerem que dava o cavaco.
O padre cura era o unico a quem elle desculpava umas certas graçolas e o unico que acceitava na sociedade depois de o saber frequentador da nova. Um pouco por medo, porque o padre tinha genio de varrer uma feira e não raro se fallava de romarias em que o seu cacete se cruzára com o dos mais pimpões, e um pouco, tambem, por curiosidade de saber o que se passava no campo inimigo.
Ainda o padre se torcia com riso quando entraram o Braga uzurario e o recebedor, que, só de o verem rir, começaram tambem a rir, comprehendendo logo do que se tratava pela cara apopletica do boticario.
O recebedor—muito vermelho, quasi cego, atarracado e obeso—interveio, conciliador!
Lá está o Domingos a dar a casca; deixe lá, homem, não faça caso. Ó sr. padre Mathias, deixe-o lá!
—«Eu pego-lhe?! Só lhe digo as verdades, e vae elle põe-se que nem uma barata.
—«Podéra não! Vem cá dizer que tenho inveja da nova...
—«Pois não tem, não!...—recomeçava o riso que endoidecia o outro.
—«Ó padre!...—avançava irado.
—«Deixe lá, deixe lá, aquillo é graça—amansou[10] o Braga, lambendo-se por novidades... Vamos a saber a que veio a historia?
—«Conta lá homem, desembucha.
—«É a pequena do Mello que está doente—explicou o cura, levantando-se para ir contar as cartas em cima do mostrador—e cá o mestre Domingos diz que são venenos da nova...
—«Ó sr. padre Mathias! O senhor põe-me doido, olhe que me póde metter em trabalhos. Eu disse lá semelhante coisa, crédo, que home este, como as inventa!...
—«Ora, se o não disse pensou.
—«Não pensei, não senhor!
—«Então hade pensar.
—«Ora isto, isto! Mas que mal fiz eu a Deus, para aturar este home!
—«Pois sim, diga-lhe d’essas. Venham os senhores jogar uma partida emquanto elle desabafa.
—Mas conte sempre—acudiu o Braga, muito curioso.
—«Não é mais nada. A pequena está doente: nem ella melhorou em termos desde a pneumonia, pleurosia ou lá o que foi...
—«Aquillo foi doença do diabo, foi—commentou o recebedor.
—«E depois?—apressou o uzurario.
—«Depois, o medico é o Vilhegas que vae á nova. E o Domingos desespera-se porque não está o Ramalho, que é cá da velha. Vae pelo antigo regimen...
—«Não, o Ramalho não tem preferencias, e lá bom medico é elle.
—«Ó recebedor, você está sempre a defender[11] todos, sem que ninguem lhe pague o sermão. Não digo que seja mau, mas muito adiantado não está, não se póde comparar com um rapaz sahido da escola, conhecedor de todos os processos mais modernos.
—«Não sei. Eu cá só me quero com elle. O Vilhegas será muito bom, não contesto, mas cheira-me a intrujão.
—«Pois não é, fique sabendo que é um talento!
—«Será!...
—«Mas o que tem a pequena?—perguntou o Braga, que não estava ainda satisfeito.
—«Não sabem ao certo. Dizem que é nervoso. O nervoso agora serve para tudo. Ella é fraquita. O João é que fica um bom partido, para mais de quinhentos contos!...
—«Hum! Não lhe hãode durar muito, acostumado a viver no estrangeiro...
—«Deixe lá, amigo Braga, um estudante lá fóra não gasta mais do que gasta por cá; e sempre trazem outro lustro—contradictou o cura todo de ideias avançadas e amigo do progresso.
—«Ha o perigo de se não darem cá depois, como succedeu ao Pedro d’Athayde da casa da Fradosa. Veio lá de Paris com taes ideias que não podia tolerar a familia—ponderou o recebedor.
—«Não, esse caso foi outro. Sei-o eu melhor do que ninguem, porque fui amigo do Pedro desde a escola do padre Zé. Era um bom rapaz! Generoso, franco, não podia ver uma desgraça que não a alliviasse com dinheiro, conselhos e[12] favores, tudo! Era uma joia. Mataram-n’o os beatos que se metteram lá em casa e que elle não podia supportar. Com as suas ideias livres, a sua consciencia clara, era um escandalo na casa que se tornou um asylo de quantas irmãsinhas, frades e freiras, apparecem por ahi. O rapaz dizia, e dizia bem, que não se importava que rezassem e jejuassem sempre que lhes appetecesse, mas que o não quizessem converter a elle, que o deixassem em paz ir para o inferno ou para o céo á sua vontade. Houve questões horrorosas entre elle e o pae, que é o verdadeiro beato da casa. Por fim descoroçoou e partiu outra vez para França. Lá morreu, ou se matou. Viram-se livre d’elle e agora resam-lhe por alma. Eu sou padre, mas não gosto de beaterios. Tambem tenho tanta vocação para isto como para fiar na roca.
—«Ora, deixe se de contos, homem! Aquillo são tolices do Mello que perdeu o juizo com o dinheiro do Brazil. Metteu-se a fidalgo, casou com a prima da viscondessa, já quer os filhos educados como principes.
—«E soberbo!...—começou o Domingos, já serenado, visto que a critica principiava—não ha quem lhe chegue! E quer fazer lordes de toda a familia. Ao Vilhegas, lá porque era primo em decimo grau, emprestou-lhe o dinheiro p’rós estudios. Já se viu assim uma coisa?!
—«Quem os conheceu!...—grunhiu o Braga entre uma baforada de cigarro e um solo resmungado a mezza voce.
—«Deixem lá, que elle é bom homem—terminou o cura, com a ultima carta que lhe sahiu[13] das mãos. Só o que elle tem feito á sobrinha, que a tem em casa como filha!
—«Hum! Uma boa prenda a tal menina, segundo diz a Engracia—informou o Domingos.
—«Bonita a valer. Se a vissem no verão passado, nos annos da viscondessa!
—«Então eu não estava lá? É muito bonitinha, é!
—«Bonitinha! Onde tem você visto melhor, seu Braga?! É uma bella mulher!
—«Ó cura, você parece que se lhe não dava de casar com ella.
—«Se não fosse este diabo da batina, não lhes digo nada. Ainda que mulheres d’aquellas não são boas para pobres.
—«E parece que não tem namorado—lembrou o recebedor, sempre comezinho nos commentarios.
—«Pois quem ha por ahi capaz de a tentar?! Você imagina que ella é parva, que se não conhece? Ó Braga, você é que podia casar com ella. Levava uma mulher que muitos lhe invejariam.
—«Eu?!... Na minha idade, uma rapariga bonita, que hade querer luxos... Você vê-me algum t na testa?!
—«Não sei; ella é de fazer perder a cabeça... e você é rico... Sabe o que é ser rico? É ter tudo quanto se deseja. Se eu fosse rico como você, deixava crescer a corôa e ia até Roma para que me livrassem das ordens; depois casava com a pequena, olá se casava!...—estendia as pernas e cantarolava, esperando as cartas que o recebedor muito myope a custo despegava das mãos.
—«Hum! Ella hade pentear se para o primo.
—«O João, sim! Quer lá agora a Candida sem vintem e sem educação!...—acudiu o recebedor—Que isso lá, verdade, verdade, eu não quero nenhuma; sou casado, não ha que desconfiar, mas a Pillar é outra fazenda. É muito fina, muito boa, não se compara...
—«Pois sim, mas a Candida é uma mulher a valer! Depois, a Pillar está noiva do Vilhegas, não ha que pensar n’ella.
—«Casar?... Se não morrer primeiro, intrometteu-se o boticario.
—«Lá torna você, homem; olhe que já é mania!
—«Nan sei! Elle lá está de dentro, vê as duas; talvez se arrependesse e...
—«Calle-se ahi, homem de Deus, não diga barbarismos. Lá vem o Neves.
O Neves, ainda rapaz, entrou tossindo a sua asthma, magrizella, sem emprego certo, mas cheio sempre d’affazeres, muito prestavel e comprimentador para os grandes, risonho no seu ar de pobre diabo.
—«Vivam, meus senhores!
—«Adeus, Neves, então o que ha lá por fóra?
—«Não sei nada—respondeu sacudido, como se as phrases lhe sahissem aos pedaços, aos arrancos, da bocca embrulhada.
—«Dizem que a Pillarsita está doente. É verdade?—interrogou o cura.
—«Verdade, é; mas o meu primo disse-me hoje—não perdia occasião de referir-se ao parentesco que o engrandecia, com a grandeza do Vilhegas—que não era coisa para as afflicções[15] dos paes. Noivo é elle e não vê motivo para tanta apoquentação.
—«Talvez não veja bem... disse entre dentes o pharmaceutico.
—«Que é lá isso, ó sô Domingos? Você parece que me traz quesilha desde que veio o meu primo. Olhe que eu não tenho nada com as suas zangas...
—«Quem diz isso? É que hãode ver muita coisa!... Eu cá sei!...
—«Sabe o quê? Diga aos amigos, desembuche.
—«Nada, nada!...
—«Está doido—rematou o cura, ainda preoccupado com a belleza da Candida.
Era verdade. A Pillarsita havia uns tempos—depois d’uma pleurezia que a tivera entre a vida e a morte—puzera-se n’um esmorecimento de flôr que se estiola.
Não se queixava, que a doença não lhe pedia remedios nem desejos de melhorar—só os que ainda teem esperança de felicidade se apegam á vida e querem convencer-se de que o queixar-se lhes traz allivio.
A pequena, dantes tão alegre, d’uma vivacidade gárrula d’avesinha amorosa, entristecêra subitamente, e, taciturna, aborrecida, ninguem diria que era a mesma. De bondosa e tolerante que era, tornára-se impertinente e irritavel, como se os nervos lhe andassem desorientados sob a pressão d’um grande mal.
Essa mesma susceptibilidade morbida, que transformára a rapariga d’outr’ora, alegre, boa e egual, n’uma nevrotica, minada de desejos e caprichos que logo se convertiam em saciamentos de vontade doente, dava-lhe por vezes tambem dias de tanta meiguice e passividade que o[18] seu espirito não parecia ter mais energia do que o d’uma criança recemnascida.
O noivo, o Emygdio Vilhegas, tinha para desculpar estes caprichos e phases, discursos e theorias sobre as doenças nervosas, que deixavam os paes, senão satisfeitos, ao menos mais socegados sobre a gravidade do estranho mal.
Elle e a prima da Pillar, a Candida, que fôra a sua companheira e amiga intima desde a infancia, não podiam comprehender a quasi aversão com que a enferma os olhava e por vezes até repellia.
No principio da doença, quando a pleurezia se apresentára dupla e d’uma violencia mortal, elles arvoraram-se em enfermeiros solícitos e era impossivel exigir aos seus affectos maior vigilancia e cuidados. Mas desde que a febre cedêra e a doente começára a reconhecê-los, affastára-os systhematicamente, com uma friesa de maneiras que mais se evidenciava pelo contraste com a mãe, a quem desejava sempre ao pé do leito, sem uma hora de repouso que não fosse substituida pela velha Engracia.
—«Porquê?!...» os dois, no vão d’uma janella, n’um fugitivo momento de solidão, olhavam-se apavorados e trocavam rapidamente essa pergunta.
—«Porquê?!—dizia o Emygdio—terá acaso desconfiado alguma coisa?
—«Parece!...
—«E se diz aos paes?!
—«Que importa? Não o devem saber mais dia menos dia?...—murmurou a Candida, fitando os seus olhos carregados de duvidas nos[19] olhos que o Emygdio desviava intencionalmente, ao mesmo tempo que respondia:—«Ah, mas por emquanto não... Bem vês!... Devemos-lhes tanto!... É urgente saber, custe o que custar, o que ella sabe de nós.
A conversa, cheia de reticencias e sub-entendidos, foi interrompida pelo arrastar de passos trôpegos no soalho do corredor. Era a Engracia que entrava para levar um caldo á doente, que no quarto ao lado se ia finando. Olhou os dois com severa desconfiança, emquanto o medico n’uma voz de perfeito socego fingia dar as ultimas recommendações á inferma:
—«Logo que venha o remedio da pharmacia dê-lho d’hora a hora, até que eu volte.
A Candida affastou-se silenciosamente, emquanto o rapaz a ficava olhando embevecido. Era na verdade linda, mulher de fascinar e não d’encantar, talvez, de uma belleza cheia, fria, e esculptural, que se impunha.
Branca como um lirio e tão branca que o seu busto triumphal mais parecia talhado no marmore de que se fizeram as maravilhas da estatuaria grega. Cabeça alta e pequena levemente inclinada para traz, como que vergando ao peso dos fartos cabellos d’um castanho que á luz toma reflexos d’oiro; a bocca delgada, sempre aberta n’um sorriso frouxo de contemplação propria; e nos olhos negros, velados d’uma placidez funda d’abysmo, nada se poderia lêr do que lhe ia na alma. Muito alta e direita, nobremente lançadas todas as linhas do seu corpo—era uma verdadeira maravilha da carne.
Nada parecida com a Pillar, que fôra sempre[20] d’uma graciosidade fina de intellectual; alta apenas para ser elegante; magra, sem o aspecto quebradiço dos doentes; d’uma pallidez moreno-perola: era em tudo o contraste da prima.
Criadas juntas, mas desemelhantes, tanto physica como moralmente, tinham-se feito mulheres e seguiam os seus gostos e inclinações, que os paes da Pillar não contrariavam na filha, que adoravam, e menos ainda na sobrinha orphã e pobre, que a bondade d’elles agasalhára e criára como egual aos seus.
Antonio de Mello, o pae da Pillar, fôra uma criança ainda para o Brazil, chamado por um tio que, como elle, partira havia muitos annos, deixando com lagrimas d’amarga saudade os amigos e companheiros de jogos e romarias, o seu rebanho, a terra amada, que era a sua patria.
Voltára annos depois—quando a morte do tio lhe déra liberdade para liquidar a fortuna—um pouco abatido pela nostalgia, mas ainda vigoroso de corpo e são d’alma, como fôra. Um bom coração de rapaz que adormecêra na trabalheira mercantil, acordando já quando os outros, os que passam a mocidade em folgança, se sentem sem energia para amar sã e nobremente.
Como viera bastante rico e tinha uma finura natural, de temperamento delicado, na maneira de apresentar-se, conseguiu captar as boas graças d’um velho fidalgo da terra, que tinha ao tempo uma filha para casar. Tinha a filha, o velho original, e uma pequena mas solida fortuna ajuizadamente administrada, e uma e outra,[21] as paixões dos ultimos annos, elle queria entregar em mãos de homem capaz de asestimar.
—«Emquanto a fidalguia—dizia a quem fallava na humildade do nascimento do Antonio de Mello—era coisa de que nunca lográra comer...
Era bonita a joven Josephina, bonita e sadia de corpo e d’alma, como quem fôra criada nas serras e com a natureza aprendêra a bondade natural e humana dos fortes.
Mal que a viu alegre e moça, como arbustosinho agreste que em seu tempo proprio se reveste de perfumadas flores, sem complicações de tracto, nem agasalhos de estufa, amou a Antonio de Mello apaixonadamente. Doía-lhe no entanto recebê-la acompanhada d’um valioso dote, elle que a amava com a simplicidade primitiva d’uma alma e d’um corpo que se dão em troca de outro corpo e de outra alma por egual amante.
O homem que sahira do povo mais humilde, que arrastára uma vida trabalhosa luctando pela fortuna, encontrava ainda, no seu coração de trinta e oito annos, um crepitar de paixão e um desinteresse verdadeiramente juvenis.
Confessára-lho; e tão simples, tão honestamente, que a rapariga o ficára amando toda a vida.
Foram felizes como o podem ser dois espiritos que se ligam sem se absorver, que se estimam e comprehendem, desculpando-se mutuamente.
Com a felicidade inesperada do coração, Antonio de Mello tornára-se alegre, quasi criança;[22] era a phantasia alada que doira a existencia e que um bom casal não pode dispensar, sob pena de cahir na realidade banal que mata o amôr.
Josephina, a boa e resignada alma, com a sua maneira serena e pacificante de encarar a vida, trazia áquella felicidade um não sei quê de intimamente religioso, que infundia respeito ainda aos mais familiares.
D’essa união tão completa nasceram dois filhos. Primeiro, o João, que fôra sempre uma bella e forte criança de boas côres e moderada phantasia, como a mãe. Alegre, prompto a defender os mais fracos, o seu espirito não se perdia nas nebulosidades dos sonhos, que atormentam as crianças precocemente, doentiamente emotivas.
Oito annos depois, quando o pequeno já bocejava sobre os livros das primeiras letras, nasceu a Pillar, de uma finura, de uma graça de estatueta. O irmãosito adorava-a e ria perdidamente, quando a via nos braços da mãe procurando o seio como um animalsinho voraz, e de farta deixá-lo depois e adormecer como um anjo. Mal entrava em casa, lá ia elle, pé ante pé, se a criança estava a dormir no bercinho, afogada em rendas e cambraias, contemplá-la com um affecto que mais parecia d’uma pequena mamã. E já quando maiorsinha, João servia-lhe de protector e amigo, de promotor de todos os festejos e brincadeiras que distrahissem a irmã. E assim, ella criou-se sob o affecto carinhoso dos que a rodeavam, como avesita fragil que um nada pode matar.
Talvez mesmo por isso, desde pequenina que os nervos lhe vibravam intensamente todas as[23] alegrias e tristezas da alma. Intelligente e com uma grande vivacidade, a imaginação, como a do pae, viajava sempre pelos caprichosos trilhos do ideal. Não sendo positivamente bella, as suas feições eram tão finamente desenhadas, que o perfil esbatido em sombra sob a cabelleira revolta fazia-lhe uma verdadeira cabeça de modelo. Depois, quando fallava e ria, os olhos castanhos irradiavam um tal fulgor de intelligencia que, incondicionalmente, a diziam bonita.
Um dia, quando ella era ainda muito criança, o pae levára-a, e ao João, a uma quinta arredada onde deixava viver um irmão, que viera encontrar na miseria, apezar do muito que do Brazil lhe mandára. Um mandrião, um vicioso, que para alli ia morrendo aos encontrões da mulher e dos filhos que o não estimavam. Só o irmão não se esquecia do desgraçado, visitando-o amiúdadamente e dando-lhe tudo que elle necessitava.
Quando n’essa tarde chegaram á quinta encontraram a familia em gritaria confusa, porque o homem, n’um phrenesi de bebedo, cahira do patamar da escada de pedra e o sangue sahia-lhe ás golphadas pela bocca.
Assim morreu, sem dar mais accordo de si, apezar de todos os remedios ordenados pelo medico, que o irmão mandára buscar immediatamente.
A Pillar sentiu uma impressão tão forte, que os seus frageis nervos de precoce e feminil sentir conservaram eternamente a lembrança de aquella espantosa scena. Chorou muito, abraçada á primita, a Candida, que era a mais nova[24] dos filhos do morto, mas apezar d’isso tres annos mais velha do que ella.
D’uma friesa quasi hostil, a pequena torcia na bocca a ponta do bibe de riscado, contemplando, com admiração inconsciente de pequena selvagem, o vestido bordado, d’alvura deslumbrante, que a Pillar trazia com a indifferença do habito.
Não querendo prolongar o espectaculo doloroso, que o acaso dera ás crianças, Antonio de Mello quiz mandá-las na carruagem, emquanto elle ficava até ao fim, mas a filha, muito enthusiasta e affectiva, é que já não quiz partir sem levar a prima.
E foi desde essa hora amargurada que as duas ficaram inseparaveis—mais do que duas amigas, irmãs.
Os sobrinhos, empregados; a cunhada e uma filha mais velha partiram para a terra, deixando-lhe naturalmente, sem quasi o agradecer, o cuidado da pequena Candida, que era um estorvo para todos, sendo na verdade «formosa de mais para pobre», como dizia a mãe.
Ficaram juntas, dormindo no mesmo quarto, tendo os mesmos professores e criados, os mesmos brinquedos e alegrias.
Diziam-nas as melhores amigas, apezar da profunda desemelhança dos caracteres; mas se da parte da Pillar havia sinceridade no affecto, o mesmo não succedia á Candida, que invejava a prima por tudo em que lhe era inferior.
A vaidade enchera-lhe a alma d’ambições e ruins invejas e a belleza physica não correspondia ao desenvolvimento das faculdades intellectuaes.
D’uma passividade infermiça para tudo quanto não fosse o seu prazer, desde criança que o tempo que a prima levava a lêr e a estudar o passava ella a contemplar-se ao espelho, a ataviar-se, ou a entregar-se a pensamentos de que ninguem podéra nunca conhecer o fito.
Orgulhosa, d’uma susceptibilidade irritante, filha d’esse mesmo orgulho que a dilacerava, supportava mal a posição que a sorte lhe destinára.
Se os primos e os tios a tratavam com a confiança que dá a amizade, ella lia nas suas maneiras sómente o dó. Soffria porque os criados, que adoravam os filhos dos patrões, tinham sorrisos e ápartes de despreso pelos seus modos de rainha de emprestimo; soffria porque a Pillar tinha a graça e o espirito, que traz a intelligencia cultivada; mas soffria principalmente e desesperadoramente pela falta de fortuna que a punha n’aquella dependencia.
E calava-se, comprimindo sob a frialdade do sorriso um fundo de entranhadas cobiças. Incapaz de procurar a independencia pelo trabalho, incapaz mesmo de considerá-lo uma coisa possivel para naturezas excepcionaes como a si mesma se considerava, ia continuando a receber tudo d’aquelles que no seu intimo odiava, por isso mesmo que tudo lhes devia.
Não tendo sido nunca uma criança ingenua, porque o convivio d’uma familia em que o pae era bebedo e a mãe e os irmãos mal educados lhe tinha feito muito cedo conhecer da vida tudo quanto ella tem de inferior e baixo; foi muito precoce no desejo de agradar e no convencimento de[26] que só um marido rico lhe daria a superioridade que ambicionava sobre todas, a do luxo e dos faceis triumphos que o dinheiro traz a uma mulher bella.
Por isso, ainda de vestidos curtos e tranças cahidas, começára a olhar para o João, já então um rapaz que entrava na vida com todo o enthusiasmo dos vinte annos.
Mas elle, ou porque realmente não gostasse da prima, ou porque a achasse criança, ou talvez por ter a cabeça cheia d’outros sonhos, o que é certo é que a tratava com mais indiferença do que affecto.
A Candida soffria com isso, tanto mais que os rapazes ricos não abundavam por alli e aos pobres não queria dar nem sequer a sombra d’uma esperança; consentia-lhes apenas que a admirassem, de longe...
A Pillar, é que parecia querer fazer-lhe esquecer, á força de bondades e delicadezas, a desegualdade das suas fortunas. Enchia a prima de presentes, queria-a sempre egualmente bem vestida, e muitas vezes puzera de parte joias de valor para não maguar a amiga. E dizia-lhe ingenuamente, não vendo que irritava uma ferida que o despeito fizera:—que seria o seu maior prazer vê-la casada com o irmão.
—«Porque razão não gostam vocês um do outro? Seria tão bom sermos irmãs a valer!...
—«Não é preciso, querida! Pois não somos nós irmãs pela amizade?...—respondia-lhe a Candida sorridente e beijando-a.
Como Antonio de Mello era muito bom para a familia, os parentes, ainda os mais arredados,[27] vinham sollicitar-lhe os maiores e mais abusivos favores. Foi assim que o pequeno Emygdio, companheiro de João em instrucção primaria, se valêra d’um affastado parentesco para pedir o seu auxilio e continuar a estudar.
Conhecendo-lhe sagacidade e uma grande e tenaz vontade de subir, sympathisou com o rapaz e mandou-o para o collegio onde o filho fazia os preparatorios na mais alegre despreoccupações.
Quando vinham a férias, João apresentava o companheiro como modelo dos estudantes, não lhe regateando elogios, apesar de lhe não seguir o exemplo.
Macambuzio como um aldeão espantado, humilde, mal vestido, não despertava senão despreso á Candida. Emquanto a prima o tratava com a affabilidade que merece o companheiro e amigo d’um irmão, ella olhava-o desdenhosa, com o despreso com que tratava os inferiores em posição, vingando-se n’elles da sua propria inferioridade.
Mas o Emygdio não ligava importancia a tal coisa; tinha, como ella, um só desejo, um unico horizonte se abria á sua pesada imaginativa de ambicioso vulgar—subir, ser alguem. Para isso estudava, que não para saber. Agarrara-se aos livros com a persistencia estreita e contumaz d’um homem que por aquelle caminho intentou trepar para o futuro de gosos e de vaidades satisfeitas de que a pobresa e a humildade de posição o tinham affastado até ahi. Com os olhos fitos na futura grandeza pouco se lhe dava com as humilhações da hora presente.
Assim, que lhe importava o despreso da Candida, tão rica como elle? O que o tentava, o que o fazia rojar-se no pó para um dia se poder erguer triumphante, era o dote da Pillar.
Teimosamente, com a paciencia d’um colleccionador, sem descançar nem se desviar do seu fim, começára, desde os primeiros annos de intimidade com João, um cerco muito habil á meiga criatura que lhe levaria a posição e a fortuna almejadas.
Ella que primeiro o estimára como a um bom rapaz, companheiro do irmão e a quem este fazia os mais rasgados elogios, que o admirára depois pela fama de talento que a applicação persistente ás aulas lhe trouxe, n’um paiz em que os rapazes geralmente pouca energia de vontade dispensam ao estudo, começára por fim a enlear-se na rede invisivel que elle lhe tecêra e ia armando, com a sua calculada timidez de caracter probo, mal encobrindo um irresistivel affecto, que a ingenua acreditou muito puro.
Amou-o então, sinceramente, cegamente, com tudo quanto na sua alma havia de enthusiastico e nobre.
Era tão feliz na embriaguez d’aquelle primeiro amôr, que desabrochava n’um esbanjamento de força e perfume como na primavera as flores nascem e crescem espontaneamente, que não soube occultar de ninguem o absorvente anseio em que toda a sua pessoa se prendia.
Os paes, sabedores do desejo da filha, annuiram logo ao casamento—para quando o Vilhegas acabasse a formatura em medicina e ella completasse os vinte e um annos.
Porque não? Se a filha o amava tanto, e elle parecia tão bom, tão sincero, tão intelligente; porque razão se opporiam?
—Ser pobre não era motivo para recusas, pois que a pequena tinha, graças a Deus, o bastante para os dois...—dizia o pae satisfeito por ver na escolha da filha uma sinceridade e desinteresse que toda lhe transmittira com o seu sangue salubre de generoso plebeu.
De maneira que a Pillar passára do desejo á realidade, n’um deslumbramento de sonho, que a tornava a mais ditosa das mulheres.
A alegria radiosa d’um grande amôr que se julga correspondido e não tem preoccupação que lhe empane o fulgor, fazia d’ella a noiva mais adoravel que um homem de espirito e de coração poderia desejar. O Emygdio mostrava-se d’uma correcção e d’um enthusiasmo, que talvez fossem sinceros, no seu papel de noivo feliz e enamorado.
Porque, se era verdade que intimamente não sentia a paixão que aparentava, tambem lhe não era indifferente a rapariga, que alem de rica e bem educada tinha a intelligencia e a graça que conveem á mulher d’um grande politico, que ambicionava vir a ser.
Não sentia por ella impetos de paixão, como ainda os não sentira por outra qualquer. A ambição de subir, aspiração exclusivista e absorvente, parecia ter-lhe embotado toda a affectividade do seu ser.
«Porquê?—perguntára o Emygdio. Porque razão os despresava a Pillar, ella que os tinha amado tão ardentemente, que fundira a amizade pela prima e o amôr pelo noivo em tão intima communhão, que não sabia bem como destrinçar qual occupava maior e melhor logar em sua alma?!...
Presentia que os seus sonhos de grandeza desabavam, que toda a sua ambição de subir baqueava ante aquelle estupido amôr que o enlouquecêra. Amar a Candida—que loucura!... Como fôra que isso se lhe mettêra em cabeça? Como se deixára vencer pelo capricho d’uma rapariga leviana, enlear ingenuamente n’uma intriga perigosa, quando se julgava superior a bagatellas de sentimento?!...
—«Oh que estupido—que estupido e que fraco!—dizia a meia voz, levando os punhos á fronte na ansia de arrancar do cerebro aquella ideia mortificante.
Dava-se uma situação d’estas quando já se via formado, quando apenas esperava que a noiva[32] completasse os vinte e um annos para encetar a vida de prazeres que de criança vinha ambicionando com tão feroz egoismo! Quando o triumpho lhe estava assegurado é que esbarrára n’esse escolho imprevisto—a paixão por uma rapariga pobre.
Que ironia da sorte! E não poder fugir ao imperio que a belleza material da Candida exercia despoticamente sobre o seu organismo, mortificava-o, por deprimente para o seu orgulho de forte. Elle, que unicamente amára o seu sonho de grandeza, vergára todo inteiro ao primeiro olhar em que essa soberba mulher o envolvêra.
Soffria no cachoar de paixões, em que se sentia tão outro; escravo d’um sentimento imprevisto, quem fôra sempre tão senhor dos seus desejos, quem soubera guiar os seus mais insignificantes actos com a pericia e sangue frio d’um habil sportman guiando os cavallos de fina raça por entre o turbilhão da multidão que se acotovella. Parecia-lhe uma illusão da sua cabeça enfebrecida; nem comprehendia como isso lhe viera só agora, tendo conhecido a Candida desde pequena.
Não comprehendia, mas o problema era de facil solução. Criados juntos, era verdade, mas affastados moralmente como se os separassem milhares de leguas, tinham-se visto sem se vêr, empolgados um e outro pelos seus aureos devaneios.
Quando o João partira para a Belgica, n’um subito desejo de sérios estudos, sem ter manifestado á prima a mais leve sombra sequer de amoroso interesse, teve ella uma decepção fundissima.[33] O seu orgulho de mulher bonita fê-la sentir, como um insulto, a indifferença d’um homem que tinha desejado conquistar. Julgou-se victima de injustificavel perseguição do destino e o seu fundo invejoso de egoista azedou se mais ainda.
Despresára o Emygdio, achára o vulgar e desageitado; quando a prima lhe confessára o seu amôr, tivera mesmo um mordente risinho de troça, mas agora que o via com uma posição bastante para a tirar da dependencia que a torturava, embora para viver modestamente, começára a notar que não era de todo feio aquelle solido rapaz de hombros largos, cabeça loira e rosto imberbe e rosado, agora, desde que ganhava dinheiro, sempre enfiado em collarinhos da ultima moda e gravatas espectaculosas. Convenceu-se de que o casamento da Pillar seria mais uma injustiça revoltante. Era um medico, afinal! Não teria sido melhor ter pensado antes n’elle do que no João?...
Desde que esta ideia se lhe fixára na cabeça, foi d’uma provocante e tenaz amabilidade, dando-se um ar quasi ingenuo de fraternal carinho, a que o rapaz não soube resistir. Conhecia pouco a vida para se poder esquivar ao dominio d’uma formosa mulher que ia ao seu encontro, o requestava quasi.
Conquistado, julgou-se conquistador—o que o envaideceu e lhe fez perder o sangue frio.
—«Talvez fosse ella quem lh’o dissesse—pensava o rapaz passeando inquieto pelo quarto onde se encontrára com a Candida.
Mas não fôra. Não estimava por certo a prima,[34] odiava a mais do que a estimava, mas tinha habilidade bastante para não comprometter o presente sem ter a certeza do futuro. Ora a certeza de que o Emygdio se resolvesse a desmanchar o auspicioso casamento que tinha contractado, para a tomar como esposa, não a tinha; porque, se em conversas de amôr o achava de uma eloquencia de que até o julgára incapaz, logo que se tratasse de interesses e de futuro encontrava-o d’uma frialdade e d’um mutismo muito para desconfiar. Se não era d’uma intelligencia excepcional, era bastante fina para comprehender até onde chegava o dominio exercido sobre os seus adoradores—o que de resto não é prova de talento, antes de preoccupação mesquinha de quem se occupa sómente com a sua pessoa e funda as mais caras esperanças no agrado dos outros.
Não fôra pois ella, mas um simples acaso que tudo revelára á Pillar.
Uma noite já fria do ultimo outomno, acordára altas horas, muito contra o costume dos seus bons somnos de saudavel e feliz. Voltara-se na cama, aconchegando a roupa, enterrando mais a cabeça na almofada macia, mas uma pallida claridade que vinha do quarto de vestir sobresaltou-a pelo inesperado. Abriu muito os olhos para se convencer de que não sonhava, sentou-se na cama e chamou a prima. Como lhe não respondesse, chamou mais alto, n’uma voz entrecortada de sobresalto, e só ouviu o bater do proprio coração de encontro ás paredes do peito.
Não sabendo como explicar somno tão pesado[35] em quem de ordinario pouco dormia, saltou ao chão e foi á cama acordá-la. A cama estava vazia.
Não poderia explicar o que pensou, porque ha momentos em que o instincto, de ordinario emudecido pelas conveniencias, pela educação e pelo sentimento, se insurge, apodera-se de todo o nosso ser animal, impelle-nos com a força bruta da natureza que se vinga, para a frente, para a verdade, para o abysmo muitas vezes...
Correu ao quarto de vestir e viu que a claridade que tanto a intrigára era a do luar que entrava a jorros por essa mesma porta de vidros a que o Emygdio ora se encostava, e era sahida para o jardim.
Um ligeiro sussurrar de vozes veio morrer ao seu ouvido sobreexcitado.
Estaria a Candida no jardim? E com quem?
Perguntava a si mesma, sem poder adivinhar a resposta... Talvez que n’esse rapido instante de incerteza ella presentisse o derruir de todos os sonhos de ventura, architectados com tão amoroso enthusiasmo, talvez...
Abriu a porta de vidros mal encostada, com a cautella, o susto de quem pratica o primeiro crime, e, de subito, encostou-se á hombreira para não cahir, e alli ficou por instantes, trémula, tiritante, como assombrada.
Viu-os de costas, affastarem-se enlaçados; ouviu a voz, que sempre aos seus ouvidos tinha chegado como symbolo do amôr e da verdade, murmurar blandicias aos ouvidos de outra mulher; toda a vida se lhe concentrou nos olhos e nos ouvidos, que n’esse esforço de vontade adquiriram uma acuidade suprema.
Conhecia-os bem; a imagem d’elle, principalmente, estava gravada tão funda na sua retina de apaixonada, que o reconheceria logo, ainda mesmo que o som das suas vozes não lhe viesse bater no ouvido como enxadadas de coveiro que lhe estivesse abrindo a cova sob os olhos apavorados.
A decepção foi d’uma surpresa tão triturante, tão esmagadora, que para alli se ficou como empedrada, encostando-se á parede branca de cal, como ella immovel e livida. Envolta em luar, a cabeça descahida, a bocca entreaberta n’um estorcer de angustioso espasmo, apenas vestida pela camisa fluctuante que só lhe descobria os pés nús, as mãos finas e a cabeça que a surpresa desvairava—era a verdadeira encarnação do desespero.
Voltavam; já as vozes se aproximavam, n’um murmurio que se confundia com o tremor das folhas emurchecidas que se desprendiam das arvores que o outomno amarellecêra e com o cahir da agua nos tanques.
A Pillar estremeceu; voltar para traz, esconder-se, fugir, foi o pensamento que a assaltou, logo seguido de outro, de muitos outros, d’um tumultuar de desejos desencontrados, que a deixavam indecisa, esbogalhando os olhos para a mancha empastada das arvores onde os dois se escondiam.
A noite muito clara, n’uma cheia de luar, estava fria, d’essa algidez penetrante que dá a proximidade das montanhas coroadas de neve.
Um estremecimento prolongado e doloroso lhe sacudiu o corpo. O sangue batia-lhe na cabeça[37] e punha-lhe nos ouvidos uma zoeira de atordoamento, cascalhavam os dentes uns contra os outros, todo o seu fragil organismo se debatia n’uma crise de nervos assustadora.
Teve medo de morrer alli, e sob o esforço, pela pressão violenta da propria dôr, conseguiu entrar e fechar a porta como a encontrára, e depois, aos solavancos, desequilibrando-se, esbarrando nos moveis, chegou á cama onde se metteu mais por habito do que pelo claro juizo do que fazia.
Quando a Candida recolheu já não estava em estado de a sentir; e ella, nada ouvindo de anormal, julgou que mais uma vez a aventura passaria despercebida.
De manhã a febre era intensa e o delirio hallucinado. O dr. Ramalho e o Vilhegas, chamados a pressa, olharam se preoccupados, n’uma clara demonstração de desânimo. Ambos os pulmões estavam atacados e a pleuresia manifestava-se com a violencia d’aquellas de que só um prodigio póde salvar a doente.
Salvaram-na com effeito, á força de cuidados e desvelos; como que a arrancaram á morte, n’uma lucta braço a braço travada.
O Vilhegas foi o mais cuidadoso enfermeiro, não se deitando, não comendo senão de pé ao canto d’uma meza, alli mesmo no quarto de vestir.
A Candida, presentindo que a doença era mortal, teve um momento de orgulhoso triumpho, mas calára-se, fingindo esquecer o Emygdio, affectando um enorme interesse pela doente. Não queria escutar os tios que a mandavam[38] repousar e despresava os conselhos que a velha Engracia lhe dava, n’um modo arreliento de desconfiança.
—«Não, minha tia, não me obrigue a desobedecer-lhe—porque eu não deixo a Pillar, dizia, abraçando a pobre mãe lavada em lagrimas de reconhecimento.
Não a deixava de facto, nem de dia nem de noite, como expiando a morte bemfeitora que lhe arredaria aquelle unico estorvo ao seu sonho supremo.
Mas a morte foi vencida d’esta vez.
Quando o dr. Ramalho e o Vilhegas participaram aos paes que o grande perigo passára, elles não souberam senão chorar, tão verdade é ser o grande contentamento quasi doloroso pela intensidade do sentir.
Começou a melhorar devagarinho, n’um ateamento de vida que vem aos poucos, preenchendo as lacunas da memoria; mas á proporção que a luz se fazia no cerebro abalado da doente, um desespero sem nome se lhe ia pintando no rosto. Os olhos tinham uma expressão de desvairamento quando se fixavam na prima e no Emygdio pelos quaes manifestára uma subita aversão, que parecia desolá-los. Só os consentia no quarto, quando de todo não encontrava pretexto para os affastar. A Candida, principalmente, causava-lhe uma irritação profunda, que roçava pela repugnancia.
Os nervos, n’aquelle organismo depauperado pela doença, tornaram-se senhores absolutos e d’uma susceptibilidade que lhe chamava lagrimas aos olhos a cada momento.
Infantil por vezes, muito tolerante para os paes e para a velha Engracia que a acompanhava sempre como pessoa da familia, que quasi já o era pela quantidade d’annos que servia a casa, deixava que a boa velha a entretivesse como em criança a contar historias, visto que o dr. Ramalho a prohibira de todo o trabalho intellectual—nada que a emocionasse!...
—«Conta lá, Engracia—dizia a sorrir vagamente, os olhos esquecidos a fixar qualquer coisa—conta aquella historia d’uma princeza que morreu d’amôr...
—«Ora, ora! Sempre a mesma não tem graça, menina! Agora hade ser a do «Bernal Francez».
—«Pois sim, a que tu quizeres...—No fim do rimance, que a velha entoava com modalidades de voz apropriadas:
Ella sorria ainda, com o mesmo vago sorriso e o mesmo olhar fixo, enternecidos de tantissima tristeza...
O dr. Ramalho—homem de trinta e oito annos, mais insinuante do que bello—fôra para alli logo ao sahir da Universidade, era a Pillar ainda uma criancita a quem beijava e contava contos. Vira-a crescer com o desvanecimento d’um pae ou irmão mais velho, não a considerando mulher senão quando ella lhe confessou, n’um impeto de franqueza, o seu enthusiastico amôr pelo Emygdio. Um d’estes amôres romanticos de rapariga, que sente um prazer morbido de sacrificada em offerecer ao homem, julgado infeliz, todas as alegrias e felicidades da terra. O dr. Ramalho tentára então tratá-la com ceremoniosas excellencias, o que a fazia rir perdidamente, terminando por lh’o prohibir.
É que a intimidade acarreta mais vezes affeições assim ternas e simples do que traz o amôr—paixão.
N’esta altura abriram-se as camaras e o dr. Ramalho, que era deputado, teve que sahir para Lisboa.
Á despedida animára os paes, dizendo lhes que, a pleuresia aguda estando vencida, ella ficava livre de perigo e bem entregue aos cuidados do collega; mas se sobreviesse qualquer imprevista recahida o chamassem logo. E terminava em confidencia—«o abalo physico foi tão forte e a fraqueza é tanta que ha muito a recear um desequilibrio nervoso, que temperamentos como o d’ella teem sempre mais ou menos latentes. Que era urgente uma radical mudança em toda a sua vida... Que apressassem o casamento. A realisação d’esse ardente desejo do seu coração havia de a curar.
Os paes concordaram de boa vontade em apressar o casamento; tudo quanto a filha desejasse elles fariam para a melhorar. Mas a doente sorrindo desdenhosa á proposta e olhando o Emygdio que a fitava ansiado e a Candida que se fingia desinteressada da conversa, respondeu que não tinha pressa, que havia muito tempo... queria que o João assistisse, queria melhorar de todo...
Desde esse dia é que o Vilhegas se mortificava a procurar o motivo d’aquella mudança da noiva, que lhe roubava assim a fortuna ambicionada quando elle já estava de mãos estendidas para a agarrar.
Redobrou de cuidados e de medicamentos, mas a Pillar, em vez de melhorar, de dia para dia se mostrava mais enfraquecida, mais desanimada e perto da morte. Quando os paes, cheios de dôr, fallavam em mandar vir o dr. Ramalho, ella oppunha-se, chorava, dizia que estava melhor, e que se elles o queriam chamar é[43] porque a julgavam muito mal, em estado desesperado...
Sabia-se condemnada, e comprazia-se em ver o Vilhegas soffrer sósinho, na impossibilidade de a curar; e elle, vaidoso, preferia tambem ser o unico a tratá-la para assim ganhar o terreno que sentia esboroar-se-lhe sob os pés. Queria illudir-se, não vendo que a noiva tinha na face, quasi cadaverica, um sorriso torturado de quem tudo comprehendia; e morria vingada porque a sua morte era o castigo d’elle. Á Candida sabia bem que o não deixava; conhecia-o agora ambicioso e vulgar tal qual era, incapaz de se sacrificar por uma mulher ou por um interesse que não fosse exclusivamente seu.
Morria, a pobre, mais por ter visto morrer o seu ideal do que pela doença que lhe consumia o corpo.
Não lhes dizia nada, sentindo um mortal prazer em vê-los estorcer-se na incerteza e no pavor. Crueldade verdadeiramente humana e bem desculpavel a quem soffrera esse despedaçar de illusões em que corpo e alma se lhe caem esphacelados.
Tinha dias d’uma passividade dolorosa em que era impossivel, mesmo á propria mãe, arrancar-lhe uma palavra ou um gemido; outros em que fallava e ria, mas de tal maneira confrangida e amarga, que antes a preferiam nos dias de maior tristeza.
Tudo n’ella se transformára ou modificára. O proprio affecto pela mãe, que era d’antes mais respeitoso do que carinhoso, tornára-se n’um grande amôr apaixonado de quem se refugia,[44] mortalmente ferido, no logar em que a acolhida é mais amoravel e certa. Queria-a ao seu lado, sem fazer nada, toda embebida a olhá-la, enchia-a de caricias, e atormentava a com as palavras de mais desconsolador desânimo.
—«Oh mãesinha,—dizia lhe um dia—se não fosse o João, pedia-te, e ao papá tambem, para morrerem commigo. Querias?!...
—«Oh meu anjo, mas tu não hasde morrer. Para que pensas n’essas tolices? Não vês o que diz o Vilhegas? A tua doença tem muito de nervoso, hade passar, verás!...
—«Pois é, eu sei... mas dize: gostarias de morrer commigo?
—«Oh se gostava! Que maior felicidade pode haver para uma pobre mãe?!... Não deixar n’este mundo egoista e mau os filhos do seu coração, não os vêr partir levando-lhes a alma?!...
—«Pensas como eu, somos bem irmãs no sentir! Se tivesse filhos... Oh! se tivesse um filho!...—os olhos enchiam-se-lhe de lagrimas, com uma grande magua de virgem que sente que todo o seu ser se revolta vendo-se privada injustamente da mais alta, nobre e bella das alegrias femininas, o orgulho de ser mãe.—Olha, se eu tivesse um filho havia de amá-lo assim.
Ficava-se horas esquecidas deitada sobre os joelhos da mãe, não podendo sentir nem o barulho d’um relogio sem gritar que lhe espetavam alfinetes no cerebro. De dia para dia peorava e a irritabilidade nervosa augmentava a ponto de a pôr a cada instante em crises de soluços e lagrimas que lhe avermelhavam a bocca com o sangue que os pulmões não comportavam já.
Emygdio, desanimado scientificamente, queria conservar a todo o custo uma illudidora esperança; d’essa esperança sem base que está no intimo de todos os seres humanos, inferiores ou superiores, eternas crianças que somos, só fortes á custa de raciocinio e vontade consciente e educada.
Mas n’essa manhã desconsoladora de inverno, vira-a tão desmudada e cadaverica, que desanimára de todo. A correr se dirigira ao telegrapho para chamar o dr. Ramalho e para alli voltára logo e alli se conservava na espectativa do grande desastre.
Os paes encaravam-se espavoridos, sem manifestação de sentimento, porque a dôr quando assim forte é como anesthesico para o espirito que se concentra no ultimo reducto da esperança, no impossivel, no milagre...
A noite cahia com a lentidão pastosa das tardes de chuva, que se afogam em lama silenciosamente. Os criados, em bicos de pés, accendiam as luzes indispensaveis para o serviço, trocando phrases a meia voz em que a palavra morte se repetia já como um dobre de sinos, e soluços abafados se suffocavam. Por toda a casa pesava o mesmo silencio funebre que se presentia cheio de gritos prestes a explodir...
O Emygdio, junto da janella, olhava inconsciente a sombra rapida que crescia no jardim, as arvores encharcadas pingando no chão já empoçado, as hastes despidas de folhagem enlaçando n’uma alliança macabra aquellas que o inverno não pode desnudar nas suas furias loucas. Como era differente o aspecto do jardim,[46] n’essa amorosa noite de outomno, a ultima em que estivera com a Candida, aquella em que a Pillar adoecêra!...
Do quarto da doente vinha um murmurio de vozes, que se differençavam. Todas as vezes que a da Pillar, um pouco rouca, já estortorosa, se ouvia, elle enterrava as unhas nas palmas das mãos, n’um desespero de vencido.
Ella soluçava n’esse momento, deitando os braços ao pescoço da mãe como se quizesse agarrar-se ainda á vida que lhe fugia:
—«Soffro, soffro muito!... Vão chamar o papá! Quero ver o João... Tenho medo, mãe, tenho medo!...
—«Medo de quê, filhinha? Estou eu aqui, não vês?...—respondia-lhe estrangulando os soluços a triste mãe.
—«Não sei!... Tenho medo de tudo!... Queria morrer sem ver chegar a morte!...
—«Não hasde morrer, meu anjo! Deus terá piedade de nós!...
Hallucinada, reerguendo-se da cama, respondeu arquejante:
—«Não lh’o peças, ouviste? Podia attender-te, e eu não quero viver, não quero!...
Vendo a angustia da mãe cahiu em si, e rouquejou um soluço de perdão.
—«A Candida?—inquiriu n’um cicio, d’ahi a momentos.
—«Está lá dentro. Tráta-la tão mal, que a pobre menina não se cança de chorar.
—«É da doença,... Trato mal todos, a ti tambem.
—«Não digas isso.
—«Trato, bem sei... Mas tudo vae mudar em breve... Serei tão bôa... Vae chamá-la, que venha, que pode vir... Não lhe farei mal...—Tão amarga ironia resumbravam estas palavras que mais pareciam o riso funebre d’uma caveira.
A Candida entrou sob a gelida impressão de quem entra como réo avergado á culpa, n’um tribunal em que a consciencia é juiz inilludivel e implacavel.
Presentia que o momento solemne das explicações chegára inappelavelmente e não podia avaliar o resultado final d’aquella entrevista que a podia atirar para a miseria mais desoladora, a dos incapazes para o trabalho.
A doente entreabriu os olhos, acenou á mãe e á Engracia para sahirem, e ficou só com a prima. Fixou-a em silencio, com os grandes olhos pasmados dos moribundos, vendo-a estorcer-se n’um supplicio sem ousar avançar nem recuar, querendo fugir á suggestão d’aquelle olhar que a condemnava mais do que a sentença d’um juiz.
—«Vem...—murmurou por fim a inferma.
Deu dois passos cambaleando e foi cahir de joelhos junto do leito onde a Pillar arquejava, levantando-se n’um esforço supremo de vontade, fincando o cotovello direito nas almofadas.
Vendo-a tão proxima de si, teve um instinctivo movimento de repulsa, mas, vencendo-se logo, poude agarrar-lhe o pulso com tudo quanto lhe restava de vida:
—«Mataste-me, lembra-te d’isto... Sei tudo!... Vi tudo!
N’um arranco tragico, gaguejava palavras entrecortadas, que nada diziam, nada do que ella queria talvez dizer. N’um esforço prodigioso de energia, empurrou a prima, sentou-se na cama, e estendeu os braços no vacuo; logo a seguir retezou-se toda, cahindo sobre a ruma d’almofadas que lhe tinham feito supportavel a cama.
O aspecto da pobresita era terrificante, olhos escancarados como se procurassem a luz que lhes fugia, a camisa desabotoada descobrindo as claviculas descarnadas, a bocca augmentada pela emaciação contrahida n’um rictus doloroso, e a pelle a que a luz da lamparina dava um tom azulado enrugada como velho pergaminho. Os braços descahiram-lhe ao longo do corpo e as pequenas mãos transparentes arrepanhavam a roupa...
A Candida levantou os olhos que baixára para fugir á obcessão d’aquelle olhar condemnatorio, e a impressão de horror foi tal que d’um salto se pôz á porta, clamando pelo Emygdio, que vira no quarto proximo.
—«Perdidos, perdidos—murmurou n’uma voz que o terror fazia trémula e soluçante como se um frio intenso a sacudisse.—Diz que a matámos, sabe tudo... vae dizer aos paes!...
O rapaz recuou tambem aterrorisado, até á porta, poz-se a considerar o pequeno volume que o corpo, que fôra uma tão harmonica conjugação de linhas graceis, reduzido á miseria d’um esqueleto sem fórma, fazia sob a cobertura.
Rodeada de luxo e mimos, cheia de esperança e de alegria, intelligente, boa, educada; um pequeno[49] nada bastára para a matar—uma traição tão grosseira e vil, que n’esse instante duvidava até que a tivessem praticado...
Matára-a, bem certo que a matára, com o seu procedimento d’uma maldade e estupidez revoltante e com a covardia de não querer ver o mal quando talvez fosse ainda tempo de o remediar...
Tudo quanto na sua alma havia ainda de honesto estremecia de pavor e remorso; depois todos os seus sonhos de grandeza se evolavam n’uma debandada de desânimo: Tanto sacrificio pela Candida... se valia a pena! Olhou a, pareceu-lhe como nunca formosa, d’uma imponente formosura dramatica de Magdalena de Rubens, mas como nunca tambem a ideia de não a esposar se apresentou nitida no seu cerebro.
Foi ella quem primeiro readquiriu todo o seu sangue frio, abeirou-se da cama para tocar na mão que a prima conservava fóra do leito, na esperança talvez de a sentir enregelada pela morte, incapaz de se levantar para a apontar como traidora.
A moribunda, como se áquelle contacto fosse chamada á vida, abriu os olhos desmedidamente, que eram já como janellas rasgadas para o mysterio; conheceu os dois rostos lividos de medo que a fitavam, e sorriu, com um despreso tão fundo, tão vincado nas pregas d’essa ultima mascara de vida, que mais parecia petrificada.
Os dois recuaram espavoridos, apertando-se um contra o outro, procurando-se para se protegerem mutuamente d’esses olhos de moribunda que os fitavam, que os perseguiam como se quizessem levar para a terra a imagem dos assassinos,[50] bem juntos no mesmo crime, bem apavorados e martyrisados por essa suprema vingança da morte.
Então, ao mesmo tempo que o corpo se lhe dobrava para traz e o queixo descahia já sem vida, soltou um gemido tão estortoroso, tão rouco e tão espantosamente exprobatorio, que a Candida fugiu a gritar, com a cabeça perdida, pondo em toda a casa o desespero que o respeito pela moribunda tinha contido até ahi.
O Emygdio foi cahir de joelhos junto da morta, e tentava fechar esses olhos que o endoideciam.
Mas as palpebras oppunham aos seus dedos trémulos uma resistencia fria de coisa morta. Carregava com força, brutalmente, com risco de estoirar as pupilas, mas quando levantava os dedos elles lá estavam envidraçados, n’um espanto tragico e vasio.
Era uma preoccupação independente da sua vontade, uma infantilidade quasi, parecia-lhe que se ficasse assim de olhos abertos toda a gente n’elles poderia ler o seu crime. Não ouvira tantas vezes contar, quando criança, que assim se vingavam as victimas dos seus algozes?!... E que extraordinaria vingança aquella! Conservar eternamente nas pupilas sem vida a imagem de quem lh’a tirára!...
Não era o medico, o homem de sciencia que alli estava, hesitante, enraivecido, todo em lagrimas; era um criminoso vulgar cheio de sustos e preconceitos.
O sol fôra inclemente em todo esse dia de julho.
Anoitecia, e, apezar d’isso, nem a mais leve viração se levantára consoladora a arrepiar, n’um trémulo de caricia, a folhagem das arvores, que tinham o banal aspecto de plantas de folha pintada a que o tempo e a poeira debotára a côr.
Na paysagem de serras e fraguedos, que o homem conseguiu cultivar e esplanar em sucalcos successivos, os restolhos punham manchas de oiro no verde sombrio de agreste vegetação; e o céo, d’um azul que o proprio calôr velára, tornára-se vermelho sanguineo, agora, que o sol desfallecia no poente.
Os jornaleiros recolhiam silenciosos aos casebres, sem riso ou cantiga que alliviasse penas, mortificados pela trabalheira rude das ceifas e malhas sob a rudeza d’um sol impiedoso. Nem as raparigas na fonte gargalhavam, como de costume, emquanto a agua, correndo muito lenta e diminuida, lhes enchia os cantaros de barro.
Só muito ao longe, pelas quebradas da serra,[52] resoavam os chocalhos dos rebanhos indo para o pasto e a flauta do pastor a guiá-los até á madrugada,—que depois a calma aperta e os pobres animaes, de agoniados, nem podem comer. Mais longe ainda, o chiar rangente dos carros de bois, como um longo gemido angustioso... Dir-se-hia que todas as coisas soffriam do calor asphyxiante e cahiam n’uma invencivel preguiça de viver.
É pequeno o verão nas montanhas—alguns dias de julho e agosto, quando muito os primeiros de setembro—mas esses são pezados, infernalmente longos e ardentes, sem nenhuma compensação e consolo de leve aragem pelas tardinhas. Em casa abafa-se, não ha sombra que resista á subida do thermometro quando o mercurio chega á linha do Senegal, n’um escarneo a paizes temperados. Na rua, noite alta mesmo, não se sente nenhum allivio; da terra sóbe uma baforada quente de fornalha, que afflige.
Abafa-se... mas é moda ir-se em julho para lá, não obstante ser infinitamente mais agradavel um canto de praia—onde o mar põe levezas de ar salino e um frescôr de permanente banho de espumas, as gaivotas veem á babugem da agua gritar as sonoras alegrias das coisas simples e humanas, e os olhos navegam longe, com a amplidão suggestiva das azas e das velas.
E passam na cidade,—n’aquelle afadigamento de distracções e afazeres, que chegam a ser monotonos á força de repetidos—os que obedecem á moda por preguiça intellectual de pensar e querer, os dias criadores de primavera—quando os caminhos lá das serras se alcatifam de musgos[53] velludosos, as arvores se cobrem de flôres e verduras tenras, e as nascentes correm mais abundantes e limpidas da rocha viva; quando as andorinhas se acasalam e toda a natureza canta o grande hymno magnifico da vida é que a montanha se torna acolhedora e falla ás almas, como uma bôa e amorosa mãe.
Mas... não está decretado pelo habito dos que dão a nota de elegancia em todos os actos da vida ainda os mais intimos e graves, e por isso a villa estava radiante com os seus hospedes de verão.
João de Mello atravessou melancholico e vagaroso o largo da Fonte e dirigiu-se á botica velha, onde o sr. Domingos José da Silva se debatia contra o calor e distillava suor em mangas de camisa, como se tivesse sobre as costas pezada armadura medieva. Soprava em bochechas de affrontado, limpava a cara ao tabaqueiro de ramagens, escancarava os braços como a arejálos, e cahia esfalfado n’uma cadeira para se levantar incontinente como se tivesse por assento um brazeiro inquisitorial em vez de innocente palhinha.
—«Oh meu querido sr. João de Mello—berrou descompassado, mal viu assomar á porta a figura melancholica do rapaz—quanto folgo, quanto folgo de o ver! Cuidámos que não queria nada cô a gente.
Abraçou-o expansivo e correu dentro a chamar o filho para accender as luzes. Estava radiante com a visita do feliz herdeiro de quinhentos contos, a melhor casa da comarca em dinheirinho de contado e bôas terras livres, sem fallar[54] nos fóros que se recebiam sem conto pelo S. Miguel de cada anno. Era bôa, talvez mais extensa em propriedades, a casa do Visconde, mas a politica como as demandas e o jogo onde entram fazem largo rombo... Estas e outras considerações expunha elle á mana Joaquina, sentados á fresca, sob a parreira do quintal.
—«Muito bôas noites, sr. Domingos; eu venho...—tentou dizer o João.
—«Espere, espere que já o attendo. Deixe-me cá chamar a mana qu’ella está morta por o ver! Inda honte tinhamos fallado, ora a graça! Ó Jêquina!...—gritou para cima, para o primeiro andar, e voltou logo a reprehender o filho porque a torcida mal cortada enegrecia a manga do candieiro de latão.
—«Nós cá sabiamos que chegou na segunda feira. Não se pode fazer moeda falsa, tudo se cá sabe...—Estrondosa gargalhada completava a phrase. E depois, sem interrupção—disseram que ninguem lhe punha a vista em cima, qu’anda assim como amalucado, macambuzio... Então que vem a ser, soidades, soidades, hein?!...
—«Olha o sr. Joãosinho, o meu Janequinho!—entrou dizendo e arrastando a sua perna trôpega a sr.ᵃ Joaquina Ritta—uma sua criada, para os servir e louvar a Deus Nosso Senhor, continuava ella a dizer para se apresentar.
—«Vê lá que home ahi tens, a fazer a gente velha!—dizia emphatico o boticario.
—«Pois está um homezarrão, está! Quem o conheceu e quem o vê! Faz uma pessôa velha, nem já se lembra da gente, nem das tardes que passava a cavallar no quintal com os rapazes?![55] Sempre era um diabrete! Mais traquinas inda não vi! A mana é que não, sempre foi um peringalhinho que não prestava para nada. O que ella queria era sentar-se ao pé de mim a costurar ou a ler aquelle meu livro da Felor de Maria, do Renhónhó e da Cúrúja. Não se lembra, ás vezes ao serão ao pé da brazeira? Um botãosinho d’aquelles tinha uma pausa na leitura caté a gente chorava com as fallas do principe Rodolpho.
Os Mysterios de Paris, com suas gravuras baratas, e a cartilha do Mestre Ignacio eram toda a bibliotheca da sr.ᵃ Joaquina Ritta. A muita leitura de romances e casos sentimentaes, parece que embota o coração, pois a bôa mulher possuia sómente aquella enredada historia que relia amiudadas vezes com a alma confrangida e os olhos distillando amargo pranto pela desgraçada Flor de Maria. Alli havia conhecimentos e tirava maximas para todos os casos da vida.
Já disse, não sei quem, que um só livro bem meditado é thezoiro inexgotavel.
—«Lembro me de tudo, lembro-me!... E com saudades, sr.ᵃ Joaquina, que só eu sei!... e os olhos de João velaram se de lagrimas.
—«Não falles n’essas coisas—reprehendeu o Domingos. Isto de mulheres estão sempre a dar co’a lingua nos dentes.
—«Tens razão, tens, mano. É que sempre foi uma disgracia!... Nem me vai d’aqui, até se me dá um nó na greganta quando penso n’aquella menina!... Mas tem razão, não fallêmos em coisas tristes. Ora diga-me, menino João, a mãesinha como vae, bôa, sim?
—«Vae indo, bôa não.
—«Dês que la fui dar pesames que não a tornei a vêr. Nem tornou a sahir, aquillo teve um sentimento! Tamem, não houve na terra grande nem pequeno que não chorasse.
—«Lá tornas á mesma! As mulheres sempre são!...
—«É verdade, tem razão, esta minha cabeça! Olhe cá, menino, então gosta de lá estar pr’os estrangeiros?
—«Muito. São melhores terras do que as nossas, e a gente é mais bem educada. Olhe que não ha por lá muito quem não saiba ler nem escrever, como cá.
—«O quê? Mesmo os travalhadores de enxada e as criadas de servir?
—«Mesmo esses. As criadas então, não ha nenhuma que não leia e escreva menos mal.
—«Ai, não sei que me lembra. Criadas tão doutoras como as amas... Não hadem prestar, não ha nada como as nossas terrinhas e cá a nossa gente.
—«Calla-te ahi! Aquillo nem é para acomparar! As mulheres não percebem nada cá no mundo. Em as tirando do canto da casa já nada lhes presta—sentenciou o boticario.
João, no meio d’aquelle turbilhão de palavras que lhe cahiam em cima como graniso, conseguiu dizer:
—«Isto hoje não é visita.
—«Ai não?! Ainda o diz, olha que ingrato!
—«Não era hoje, mas hade ser breve, sr.ᵃ Joaquina. Heide ir lá cima para o quintal e conversaremos como d’antes.
—«Ah! Cuidei que nos esquecia...
—«Não, eu vinha aqui á pharmacia para o sr. Domingos me fazer duas hostias de antipyrina?
—«Anti, anti, quê?!...—abria a bocca e os olhos de espanto, o boticario.
—«Antipyrina. Não tem cá? É remedio para a dôr de cabeça; não tem, não conhece?—volveu João impacientado.
—«Talvez tenha, talvez. Mas é que esses remedios estrambolicos, quem os arranja é o sr. dr. Ramalho. Como elle é que os receita!... Eu cá não me criei com esses venenos.
—«São venenos, são, mas a gente já se não sabe curar com outra coisa e então é melhor o sr. Domingos arranjar um praticante.
—«Tem razão, já pensámos n’isso, por isso é que o meu Dóminguinhos anda nos estudios.
—«Ai, é tão esperto!—acudiu a sr.ᵃ Joaquina—fez inzâme oitro dia.
—«Ficou bem?—perguntou João por delicadeza, sem nenhum interesse.
O velho respondeu logo:
—«Olhe que não sei, menino João. Elle mandou-me dizer que sim, mas cá o mê Antoino disse me logo «mê pae não infinte em estudantes, olhe que são todos, com perdão de Vossa Senhoria, uns tratantes!» E vae eu escrevi ao meu cômrrespondente e disse-lhe assim: «eu, Domingos José da Silva, phramaceutico matriculado no largo da Fonte, quero saber se meu filho Domingos José da Silva Juniór fez os inzâmes que disse e se ficou approvado ou reprovado.» E o cômrrespondente mandou dizer «que o estudo[58] que fôra bô mas que a respeito de inzâmes se lhe tapou a falla nas góllas que não disse nem uma nem duas.
João olhou-o estupefacto, apezar de ha muito conhecer as bernardices do boticario, não sabendo verdadeiramente se lhe devia dar os parabens se os sentimentos, perdido de riso como estava. Livrou-o de maior maçada e do compromettimento d’uma resposta, o dr. Ramalho que entrou na occasião.
—«Inda bem que chegou o senhor doutor,—disse o Domingos esfregando as mãos e empurrando a irmã para dentro, sem a deixar despedir, ao que ella oppunha séria resistencia.
—«Está alguem doente lá em casa?—perguntou o Ramalho, cuidadoso.
—«Não!... Ou sim... doentes estamos todos.
—«E bem doentes... incuravelmente doentes, meu pobre amigo.
—Apertaram-se as mãos affectuosamente, e o medico continuou:
—«Mas essa doença não se cura com remedio de botica. O que vinhas buscar?
—«Umas hostias de antipyrina. Este calor endoidece-me.
—«Ah sim... O Domingos não sabia dar-te esses remedios novos.
Sorrindo tirou as luvas, que poz com o chapéo e a bengala sobre uma cadeira, e foi elle mesmo escolher, pezar e metter nas capsulas o medicamento desejado, que entregou ao João.
—«Vaes já para casa?
—«Vou, não me interessa nada andar cá por fóra; detesto tudo isto, aborrece-me.
—«Acompanho-te; hontem não pude lá ir porque tive uma visita longe, amanhã vem tua prima, naturalmente tambem de lá vão á estação, e é provavel que não tenha tempo de ir até lá antes da noite...
Despediram se do Domingos e sahiram conversando.
—«Ainda bem que vae! Acho a minha mãe tão mudada, tão triste!...
—«Não admira. A dôr de teu pae foi mais violenta; quando cheguei tinha tua irmã acabado de expirar, vi-o perdido, convenci me que endoidecia. Depois resignou se um pouco... Tua mãe não! Não perdeu aquella serenidade mortificada, que não ha meio de consolar, só sendo tu que o possas fazer.
—«Pobre mãe! Eu consolá-la não poderei, sabe? Quando penso que a minha irmã, a Pillar, aquelle encanto de graça e intelligencia é já a esta hora um punhado de ossos ou, peor, uma horrivel podridão que nos causaria nauseas a nós mesmos que a adorámos em vida e que a não podemos esquecer em morta!... É horrivel, é para endoidecer, doutor!
—«Ó João, vê lá, sê rasoavel. Um desespero d’esses não é para uma intelligencia culta como a tua, para uma razão clara.
—«Não ha intelligencia para o soffrimento, meu amigo! Eu sei que ella já não existe, que da sua pessôa que tanto nos encantou já nada vive senão a lembrança na nossa alma; mas vejo-a em toda a parte tal qual me dizem que ella viveu nos ultimos tempos; oiço-lhe a voz arquejante, que chamou por mim; segue-me,[60] vive commigo, porque a tenho dentro do coração... Consolar minha mãe, como o poderei fazer, se ella é mais feliz do que eu porque espera uma outra vida melhor em que tornará a ver a filha querida... e eu, e nós?... De que temos a certeza? De que o corpo é materia e a materia se transforma... E que mais? E a parte superior do nosso ser, aquillo que nos faz amar e querer, que nós amâmos nos outros porque é a parte mais essencial do nosso ser... onde está? Em que se torna? Tanto saber para se chegar á triste convicção de que a sciencia que não traz comsigo uma porção de indifferença a couraçar a alma, é um martyrio superior á intelligencia humana. Felizes os ignorantes e os ingenuos...
—«Oh! Estás n’uma excitação doentia. Não te levo assim para casa. Entremos aqui no meu escriptorio e vamos conversar um pouco com mais tranquilidade.
João deixou-se conduzir passivamente, sentou-se junto á meza, emquanto o doutor accendia a luz e se ia sentar do outro lado, no logar onde costumava trabalhar.
—«Mas o que eu não posso comprehender—disse o João bruscamente d’ahi a momentos—é o motivo porque me não chamaram logo que ella adoeceu. Foi uma barbaridade, foi até um crime. Pois será justo que lhe recebessem o ultimo suspiro, precisamente aquelles que foram, talvez, a causa da sua morte?!...
—«Ó meu amigo, pelo amor de Deus!...
—«Não me diga que não—e levantou-se agitado, n’um passear febril,—houve qualquer[61] coisa de anormal, isso houve, tenho a certeza.
—«Parece impossivel! Então tu, João, um rapaz intelligente e culto, estás fallando pela bocca da Engracia?!...
—«E o doutor jura-me pela sua honra de que está convencido que a pobre velha desvaira?—dizia apertando-lhe o braço com força.—Diga, jura, jura?... Diga, tire-me d’esta duvida, que é medonha.
—«Tem sangue frio, homem, não sejas criança!...
—«Ah, não jura?!... A duvida tambem lhe entrou no espirito, confesse.
—«Anda cá, João, vamos fallar com socego, como homens. Primeiro, factos: o que sabes, o que desconfias?
—«Que a Pillar morreu victima d’um crime ou, pelo menos, de desgosto... que quasi o fosse.
—«Mas que crime, que desgosto?
—«Não sei! E isso é que eu saberia se aqui estivesse. Lembra-se bem de todas as particularidades com que se apresentou a pleuresia, que foi o principio da doença? O doutor esteve lá a passar a noite, achou-a como sempre alegre e bem disposta. Vão deitar-se, e de manhã estava cheia de febre, com um delirio terrivel... A causa?
—«As doenças nem sempre se apresentam da mesma fórma; podia bem ser que ella estivesse já atacada, sem nenhuma manifestação externa.
—«Pode ser... Tudo pode ser n’essa infame sciencia que não nos dá nunca uma certeza senão a da morte.
—«Não ha mais horrorosa profissão, você tem razão—respondeu sorrindo com bonhomia o medico.
—«Pois sim, mas supponhâmos por um instante que estava bôa como parecia, até aos seus olhos perspicazes de profissional. O que temos? Uma pessôa que se deita sã e accorda com uma pleuresia dupla. Estou fallando com serenidade, bem vê. É crivel que a apanhasse mettida na cama?
—«Não é natural que chegasse á janella, que apanhasse uma corrente de ar, que se descobrisse!?...
—«É possivel que a Candida dormindo no mesmo quarto não sentisse nada?
—«Gente nova, sem cuidados, tem o somno pezado.
—«Não é isso que ella diz. E depois, o que me diz você a essa pulseira da Candida que a Engracia encontrou no caramanchão na manhã seguinte? Já não quero dar ouvidos á opinião da velha, que diz tê-la visto córar como lacre quando lh’a entregou.
—«Ora, coisas da Engracia; nada mais natural do que a rapariga tê-la perdido de tarde...
—«Pode ser... Pois se eu tivesse a certeza! Mas o que o doutor não sabe, é que o Manuel lavrador, que sahiu de noite para amanhecer na matta do rio onde ia buscar lenha, disse ter visto saltar a grade do jardim um homem com um varino. Sabe que o Emygdio trouxe um de Coimbra e usa-o muitas vezes, principalmente á noite. E se fosse ratoneiro, sabe que a Favorita não é para brincadeiras...
—«Tudo isso são supposições...
—«E o odio que manifestou nos ultimos tempos ao Emygdio e á Candida, a minha irmãsinha que os amava tanto?!...
—«Ora! As doenças trazem por vezes taes desequilibrios, uns pensamentos tão desvairados...
—«Sim... e tambem uma lucidez mais aguda... a minha irmã estaria louca? Não o creio, nem o doutor tambem. Alli houve qualquer coisa de anormal, e não a conhecer é o que me tortura.
—«Eu nem digo que creio nem que descreio. Não sei nada.
—«Mas heide eu sabê-lo. Os acontecimentos seguem sempre uma logica fatal, que não illudem por muito tempo um espirito investigador. Diga-me como as coisas se passaram tal qual as viu e observou que eu preciso juntar ás minhas as suas informações. Recusa fazê-lo?
—«Não, pelo contrario, julgo que é até o meu dever, visto que no teu espirito se levanta uma duvida. Fá-lo-ia com um indifferente, quanto mais comtigo que estimo como irmão; tratando-se sobre tudo da morte da Pillar, que é uma saudade vivissima para o meu coração.
O medico concentrou-se um instante e depois começou pausadamente, como quem faz um relatorio, sob os olhares ansiosos do rapaz.
—«Quando cheguei de Lisboa, chamado por um telegramma do Emygdio, fui directamente a tua casa. A Candida sahiu do quarto aos gritos, apavorada, como louca. Eu nem reparei que teu pae desvairado se debatia nos braços dos criados[64] que lhe não deixavam despedaçar a cabeça pelas paredes, e que tua mãe cahira como fulminada com os sentidos perdidos. Não vi nada! Corri ao quarto na vaga e disparatada esperança de a salvar ainda...
—«E a desditosa criança estava já morta?!...
—«Ouve. A Pillar fallecêra n’esse instante; ainda não estava completamente fria. O Vilhegas, junto d’ella, parecia idiotisado pelo soffrimento...
—«Ou pelo remorso?!...
—«Não sei; já te disse que não avento opiniões, conto-te o que vi. Tentava fechar-lhe os olhos, n’uma preoccupação de doido, que me impressionou bastante...
—«D’ahi para deante já eu sei, nem tão poucas vezes m’o tem contado a pobre Engracia. Foi ella quem vestiu a morta; nem quiz ninguem para a ajudar, que a sua menina só a ella a queria...
O João escondeu a cabeça nos braços cruzados sobre a meza, n’um soluçar de angustia.
—«Então que tolice é essa, João?!...—ralhou amigavelmente o Ramalho.
—«Tem razão, isto não é proprio d’um homem... Continúe, mas deixe-me antes agradecer-lhe os cuidados e carinhos que n’essa occasião dispensou aos meus pobres paes.
—«Não falles n’isso, deixa-me continuar. Quando vi que não havia alli nada a fazer, corri para junto dos que mais soffriam. Nunca vi uma dôr egual, e tenho assistido a bastantes!... Cheguei a pensar em mandar-te chamar, mas, perdôa se pensei mal, vi-os tão sentidos com o desgosto[65] que julguei perigoso todo e qualquer abalo. Ver repentinamente o filho que ficava quando a outra lhe fugia para sempre, era exacerbar a dôr. A Natureza tem em si mesma o unico calmante para as grandes maguas, o tempo. A vida, meu caro, tem-me ensinado estas coisas. Quando o soffrimento é sincero, a propria distracção o irrita e faz maior.
—«Ah, mas o que eu soffri sósinho quando o soube! O que eu curti só, longe dos meus, sem um amigo que bastante o fosse para soffrer commigo!... Sem uma pessôa que ao menos me lamentasse na linguagem que o meu coração melhor podia entender n’uma situação d’aquellas, a minha! Ah meu amigo, que eu não sei como não enlouqueci!...
—«Pois sim, lá soffrias o mesmo, ou talvez mais, mas não tinhas a brutalidade d’estas scenas mortuarias que forçam a dôr até á revolta. Elles cá ir-se-hiam habituando... que a resignação é habito, filho.
—«Sim, convenço-me que fez bem, mas o que me tresvaría é a desconfiança de que elles a matassem!
—«Mas com que fim? Não era o interesse do Emygdio casar com tua irmã?
—«Seria o d’elle, mas não era o da Candida.
—«Hum!...—rosnou o doutor estendendo os beiços incredulo.—Convences-te de que tua prima quizesse o Vilhegas emquanto te visse solteiro?
—«O que podia ella esperar de mim, que nunca a cortejei?
—«As mulheres, quando são bellas e ambiciosas[66] como a Candida, não se prendem com essas frioleiras...
—«Não sei, digo eu agora. O que sei é que a Engracia os surprehendeu por mais d’uma vez conversando em voz baixa pelos cantos.
—«Lá voltas com os ditos da Engracia...
—«A Pillar aborreceu-os a ambos. Elle parece evitar-me, acanhado... A Candida ficou despeitada, parece, pela minha sahida para a Belgica sem lhe declarar amôr... Isto, meu amigo, são factos. Lá em casa não se pode fallar em tal, que para meus paes a Candida é um anjo. Eu é que desconfio muito d’aquella bondade sonsa. Desde pequena que me persegue, e, confesso, nunca mulher nenhuma me repugnou tanto como ella, sendo aliás bonita.
—«Formosissima, dize, que não lhe fazes favor.
—«Não acho, não a tolero. Ha n’aquella passividade, que quer fazer passar por bondade, uma tão grande vaidade e não sei o quê de falso que me irritou e affastou sempre.
Levantou-se inquieto e começou a passear pelo escriptorio, murmurando palavras, como se estivesse só. De repente estacou em frente do medico:
—«Só queria saber a verdade! Mas como?! Ah, que se elles se namoram, se casam!... Mato-os como cães damnados, percebe?
—«Ora deixa-te d’isso, casam lá!...
—«Juro-lhe que os matava por minhas mãos. É a unica prova que aguardo. Até já pensei em namorar a Candida para descobrir alguma coisa, mas quando lhe fallo... estou como a Engracia,[67] parece que vejo a sombra da Pillar a prohibir-mo!... Se ella era tão pura, como poderia querer uma mentira?!...
—«Não te sabia espiritista...
—«Não sou, não era! Que eu já nem sei o que sou! Não posso com a ideia de que minha irmã não é mais do que uma pouca de materia que se transforma estupidamente, immundamente, na terra!...
Na botica velha, apezar do excessivo calor, iam-se já reunindo os frequentadores do costume.
Mas não entravam, porque o pequeno recinto a que os remedios davam um cheiro enjoante era pouco convidativo, por uma noite assim quente, para tantos pulmões que reclamavam ar.
Cada um que chegava ia dentro buscar cadeira, e, formando circulo, sentava-se fóra da porta, abanando-se com o chapéo n’um desabafo de asphixiados.
Apezar d’isso, a palestra corria animada porque eram muitos os assumptos a discutir, e não ha temperatura, por mais alta que seja, que possa fazer morrer o microbio da má lingua.
O Padre Mathias, de quinzena curta, escanhoado de fresco, e, por excepção, de collarinhos engommados e gravata limpa, dizia para o Braga:
—«Você quer vir d’ahi jogar uma partida a casa do Maximiano?
—«Eu não, homem; elle não faz nada do que se lhe pede... Veja lá se arranjou pôr em praça[70] a casa do Barnabé, uma coisa que era mesmo uma justiça!
—«Pois compre-a você ao Bernabé, que elle vendê-lha.
—«Pois sim, mas que dinheirama elle não pedirá?!
—«Você quer ter as coisas e não as quer pagar, é bôa!... Eu cá, se fosse rico, é que me ralava bem com taes miserias—em querendo uma coisa, comprava-a.
—«Se fosse rico, se fosse rico!... É com o que lhe dão. O que tenho custou muito a ganhar ao meu pae e a mim tambem, não é para agora o esbaratar sem mais nem menos.
—«Não está mau ganho aquelle,—commentou o Neves ao ouvido do Domingos—se não fosse o roubo da casa do Olival queria ver o que elles tinham!...
—«E o juro a cem por cento?...—respondeu o outro na mesma—quem lhe sabe da caronica!...
—«Oh homem, não diga tal—continuava o cura. Se o Maximiano lhe não fizer ir a casa á praça, por expropriação, ninguem lho faz.
—«O Visconde está agora de cima e com elle me entenderei.
—«Você verá se o Visconde assigna essa trapalhada! Hade tratá lo com muito bons modos, mas não lho faz, tenha a certeza.
—«Veremos!
—«Pois veremos.
—«Amanhã vou esperar o Visconde e se calhar fallo-lhe logo.
—«Vae feliz. O Visconde tem escrupulos de[71] mais para politico; se o Maximiano possuisse o dinheiro d’elle, com a cabeça que tem! Ainda o havemos de ver, quem sabe?!... Talvez presidente da republica!
—«Pois elle está agora republicano?!
—«Não, por emquanto não, mas se ella viesse!... E você não quer vir a casa do Maximiano, oh Neves?—terminou, desviando a conversa que lhe não agradava com o teimoso do Braga.
—«Vou lá um bocadito.
—«Então vamos, que são horas. Vendo o relogio de ferro oxidado—já nove! Irra, estas noites de verão são uns nicos!
—«Eu tambem vou—disse o recebedor.
—«E eu tambem—acudiu o Móttasinho escrevente do pae tabellião, imberbe, voz aflautada e ares importantes de janota provinciano.—Estou com curiosidade de ver como vem este anno a Hortensia—e puxou uma fumaça do cigarro, que ainda o engasgava.
—«Talvez imagine que ella fica apaixonada—casquinou ironico o escrivão de fazenda, secco e triste como um arenque fumado, apertando o estomago que a dyspepsia assaltava.
—«Bem podia ser, sem ser milagre!...
—«Aquella não é para o seu dente, Móttasinho—veio dizer do lado o cura, batendo lhe no hombro familiarmente.
—«Não sei porque não, tem se visto coisas mais impossiveis; lá pela riqueza, tambem ella não tem muita—respondeu enrubecido como timido menino o pobre do Móttasinho.
—«Rica não é, lá isso é verdade; mas a protecção[72] do pae vale bem a fortuna aqui do sr. Braga. E olhe que é uma rapariga educada na alta—só falla em francez!
—«Pois eu ainda conheci a avó a nem saber fallar portuguez.
Uma gargalhada geral abafou o dito que o velho dr. Pinto atirou lá do seu grupo. O advogado, de barbas brancas e ondeantes, apezar de não ser ainda um velho, com os seus olhos negros e inquietos de pouco fiel e desconfiado, gosava todas as regalias de commentador ironico da vida provinciana.
—«A pequena não tem nada com a ignorancia da avó—respingou azedo o Padre Mathias.
—«Oh homem, não se escandalise, que isto é graça, não é fallar em desabono da sua gente—e sublinhava com uma gargalhada que lhe fazia tremer a barba sobre o peito, como n’um soluço.
—«Fallem, fallem, que ainda os heide ver lá todos cahidos... Quando se convencerem que os homens ricos como o Visconde, que não faz da politica modo de vida, não são capazes de fazer um favor a um amigo!...
—«Sim, o Maximiano para fazer favores á custa do estado é um barra! Mas ainda tem tanto parente pobre que primeiro que chegue aos estranhos ainda levará tempo—tornou, rindo sempre, o advogado.
—«Oh Neves, para onde vae você?—desviou o cura, na sua febre de movimento, vendo passar o professor.
—«Vou fallar ao meu primo.
Effectivamente dirigiu-se para o Vilhegas, que[73] passava de largo, affectando não ver a gente da velha.
O cura foi ter com elle, aproveitando o ensejo de deixar airosamente a roda.
—«Então para onde vae, doutor?
—«Um bocado até á botica nova conversar com o Telles.
—«Está lá um calor de todos os diabos; porque não vem antes a casa do Maximiano? Olhe que se passa lá bem.
—«Não tenho quasi nenhumas relações com elle.
—«Não faz mal; vae commigo, é o bastante.
—«Outro dia qualquer.
—«Porque não hade ser hoje? Venha d’ahi.
—«Hoje não, nem estou vestido...
—«Deixe-se d’isso. Aquillo não tem as ceremonias da Viscondessa. Está-se á vontade. Venha d’ahi, ande!...—Vendo-o irresoluto, lá o foi arrastando até casa do conselheiro, seguido pelo Neves, o recebedor, o Móttasinho e mais uns poucos.
—«Olha o Padre Cura a arrebanhar as rezes para o sacrificio—casquinou para o grupo o dr. Pinto.
—«Aquillo sempre é um typo!...—resmungou o Braga.
Em casa do Maximiano as portas e janellas abriam-se de par em par illuminando a rua da villa, pouco abundante de candieiros municipaes. As vozes que vinham de lá, o vulto do conselheiro que por momentos se debruçou na varanda atirando fóra a ponta do charuto meio acceso, a aproximação emfim d’essa gente que[74] mal conhecia, fizeram recuar o Emygdio, que, no fundo, era um acanhado. Mas o reverendo é que o não largou senão dentro da sala, pondo-o mesmo em frente do Maximiano.
—«Sr. Conselheiro, este senhor não queria cá vir por não estar vestido convenientemente, e não o conhecer e não sei que mais...
—«E o Padre Cura deu-lhe ordem de prisão?! Fez muitissimo bem.
—«Oh, sr. Conselheiro, eu tinha o maior gosto em vir, mas, na verdade, para uma primeira visita, não venho em toilette competente.
—«Oh, meu caro, nada de ceremonias. Esteja como em sua casa. Gosta de jogar?
—«Não sei. Quasi não conheço as cartas.
—«Então vamos a uma partida de bilhar, que o bilhar é como o vinho: aquece no inverno e refresca no verão.
E, conversando animadamente, seguiram á sala de bilhar, d’onde vinham vozes alegres de gente moça.
A filha do conselheiro, acompanhada por uma velha bonne e meia duzia de rapazes e raparigas, que a ouviam enlevados, fazia traquinada com as bolas, ria alto, rodava sobre os calcanhares, puxava o cinto bem abaixo para salientar a incrivel cintura, e papagueava em francez com a mademoiselle, voltando-se logo a vêr o effeito, para a roda embasbacada dos admiradores.
Quando o pae lhe apresentou o Vilhegas, curvou a cabecinha frisada em pôpa e murmurou com a ponta dos beiços um cumprimento inintelligivel. Depois, simulando indifferença, foi para a janella arrastando os companheiros. De[75] ahi a pouco a sua voz esganiçada sobresahia a todas as outras, e as rendas brancas que enfeitavam o vestido muito justo de piquet azul pallido andavam n’um rodopio.
—«Quem é aquelle rapaz?—perguntou á Aurora Costa, uma vesga e morena, que abria em bico a blusa verde-couve.
—«Aquelle? É o doutor novo, o medico que estava para casar com a Pillar de Mello.
—«A pequena que morreu tysica?!... Ah, bem sei!... Agora a quem faz elle a côrte?
—«Agora?! Então ainda o outro dia lhe morreu a noiva...
—«E por isso não hade namorar mais? Ora adeus! Bem se vê que és da provincia. Quantos flirts tens tu?
—«Não sei o que é...
—«Flirt é como agora se chama ao namôro, que é uma palavra muito baixa.
—«Eu?!... Nenhum.
—«Nenhum?! Isso é uma vergonha, positivamente.
—«Costumas ter mais do que um?
—«Sempre és muito parva! Este inverno cheguei a ter vinte e cinco ao mesmo tempo—mas a gente chama-lhe flirtar. É plus distingué, e sabe ao mesmo.
—«E se te chamam namoradeira?
—«Ça m’est égal...—cantarolou, voltando-se a meio para o Móttasinho, que se curvava ceremonioso:
—«Oh mr. Móttá, comment vous portez-vous?
—«Ganhou. Agora, visto que não gosta de outro jogo—disse o Maximiano muito amavel[76] para o Vilhegas, ao mesmo tempo que punha o taco sobre o bilhar—aqui o deixo entre a gente nova. Esteja á sua vontade, meu caro. Gosto que venham a minha casa, mas não posso ver ninguem contrafeito. Eu vou até lá dentro molhar a minha sôpa—terminou em ar de graça.
Quando já ia a cruzar a porta, encontrou o juiz que se encostava gottoso a uma forte bengala de bambú, atarracado, grosseiro, de barba sal e pimenta, e dois olhinhos de porco incertos e máus. Trauteando sempre, brutal com os inferiores, mettendo-se a gracioso com as senhoras, a quem dizia insolencias por amabilidades, queria dar-se uns ares de honrada isempção que muito faziam rir o dr. Pinto.
—«Olá! Então hoje por aqui?—cumprimentou expansivo o conselheiro.
—«Venho vê-lo.
—«Ámanhã não pode decerto, seu maganão!... Já sei que vem o visconde.
—«Não é por isso, é que ha dois dias que o não via...
—«Então não vae á estação?
—«Naturalmente não posso deixar d’ir. A viscondessa é d’uma amabilidade extrema para minha mulher; mal parece não ir, pelo menos eu, esperá-la.
—«Sim, a viscondessa é muito amavel e o visconde tem tanta influencia no ministerio da justiça!...
—«Eu não mendigo empenhos, senhor Conselheiro. Lá em cima conhecem bem a integridade do meu caracter e sabem que eu não me vendo por...
—«Quem falla em tal, meu caro! Isto era brincadeira. Tambem eu sou amigo do visconde, apesar de adversario politico; lá por Lisboa não se levam as coisas a sério como cá na Parvonia. Muito a sério, ninguem conhece tão bem como eu a sua honestidade e desinteresse, por isso desejaria vê-lo collocar na vaga que se vae dar com a aposentação do Dr. Saavedra.
—«Sério?! Elle aposenta-se?
—«Mandaram me hoje dizer.
—«Que logarzão!... Em Lisboa, e fazendo quanto quizer!...
Pulso livre, claro—e a meia voz lá foram conversando até á sala d’entrada, onde, em volta d’uma grande meza, se reuniam os jogadores de polis banque. Aos lados, em mezitas pequenas, estavam os caturras do voltarete, do whist, do boston ou do sólo.
Mal o conselheiro appareceu, quasi todos os logares do polis se lhe offereceram amavelmente; logo elle, unctuoso, sempre risonho, com maciezas de voz e de phrase muito estudadas:
—Oh, meus amigos, por quem são! Eu fico bem de pé, não se encommodem... mas, ante o protesto geral, foi sentar-se á direita do banqueiro, o Motta tabellião, um bilioso de cabello e bigode pintado e lunetas brilhantes á força de as limpar nas circumstancias graves. Sómente a face se lhe distendia em riso de satisfação quando, como agora, as notas, as moedas de prata e as marcas d’osso que substituiam o cobre, se lhe amontoavam diante dos olhos avaros.
Vendo o Maximiano acceitar o logar da direita,[78] estremeceu. Era uma honra, na verdade, mas tambem um perigo, porque ninguem como elle, acostumado ao grande jogo de Lisboa e Cascaes, para abafar uma banca logo á primeira. O baralho tremeu-lhe entre os dedos ao dar cartas ao visinho.
Mas o conselheiro não jogou e um sorrisinho de alivio veio desfranzir-lhe os beiços e mostrar os dentes apodrecidos. Já fallava, já ria dos pontos que iam perdendo pequenas paradas, e pagava sem regatear ás senhoras.
—«Jógo!—disse do outro lado da meza a mulher do Maximiano, que estendia sobre o panno verde as mãos cheias d’anneis de brilhantes.
—«O sr. conselheiro não jóga no jogo da sr.ᵃ D. Maria Adelaide? perguntou o Motta, cortez.
—«Eu tópo—insistiu ella seccamente—tire carta.
O banqueiro mordeu os beiços despeitado e começou a puxar as cartas, vagaroso, muito molle, como se lhe estivessem colladas aos dedos.
—«Perdi, quanto é?—disse atirando o seu jogo á meza e olhando com simulada indifferença para as mãos lampejantes que se entretinha a revirar para mostrar o brilho dos anneis.
—«São vinte e cinco mil réis, fóra estes miudos que não vale a pena contar.
O tabellião fazia de generoso, não cabendo na pelle de regosijo.
—«Conte tudo—ordenou orgulhosamente, para mostrar á pelintrice provinciana como se joga no grande mundo.
A não ser o conselheiro, que conversava com a maior naturalidade para as outras mezas, todos os que estavam a meza do polis e os que de pé jogavam de fóra ou, meros mirones, simplesmente viam e commentavam, tinham seguido ansiosamente a partida arrojada da conselheira.—O Motta estava com uma sorte! Já não faltava senão dar mais uma vez; se passasse d’essa já não se desforravam com elle. Asneira tinha elle feito em retirar metade da banca logo no principio.
Pensavam todos o mesmo, invejosos, seguindo em silencio o movimento do baralho.
—«Falta a ultima, amigo Motta, e ahi é que a porca torce o rabo—disse o padre Mathias, de pé, com os tentos apertados na mão de mistura com cédulas já de ganho.
Quando o Maximiano tornou a receber cartas olhou-as indifferente, pô las em cima da meza diante de si e continuou meio voltado a conversar com o juiz.
O Motta, esperançado de que elle não jogasse, deu confiadamente o resto das cartas.
—«Oh, doutor—disse o conselheiro para o juiz, que, a cantarolar um estribilho muito da sua cabeça desafinada, ia já a voltar para outro lado—você não joga?
—«Não senhor! O jogo é uma ladroeira.
—«Parece-lhe?
—«Pois pudéra! Então parece-lhe bem que alli aquelle senhor ganhasse vinte e cinco mil reis a sua esposa d’um instante para o outro?
—«O dinheiro fez-se para girar, meu caro.[80] Quer que todos façam tulha de libras como o senhor?
—«Eu, sim!? Sou um pobretana.
—«Todos os honestos dizem o mesmo. Devia jogar para enriquecer. Eu gosto do jogo porque é a imagem da vida. Os pacatos, os que seguem sómente o caminho trilhado por outras pessoas mais experientes, esses não arruinam os banqueiros nem perdem as casas, quando muito perdem... a linha. Os que são capazes de arrojar uma fortuna sobre uma carta, são tambem capazes de tudo arriscar para chegar onde a ambição lhes pôz os olhos...
—«Jóga, senhor Conselheiro?—perguntou, officioso, o tabellião.
—«Tópo.
E a carta voltada fez-lhe passar para a mão todo o dinheiro que estava sendo a cubiça dos outros.
O Motta, a pretexto de cansaço, levantou-se a tomar ar. Estava desesperado.
Com o seu eterno sorriso de bonhomia, começava o Maximiano a contar o dinheiro para pôr na banca, quando a filha entrou pelo braço do Vilhegas, dizendo com a sua vózinha aguda atirada com petulancia:
—«Oh papá, não imagina como o sr. Vilhegas e eu nos entendemos bem! Sabe historias deliciosas e lindos versos para a guitarra.—Chegando ao pé da meza e mudando de tom:—O papá é que faz banca? Hade ser vacca, sim?—E para o Emygdio, torcendo-se risonha: aposto que tambem não sabe o que é fazer uma vacca?
—«Ah, isso sei por experiencia... de perder. Muitas vezes em Coimbra me pediram dinheiro para ellas.
—«E não ganhou nunca?
—«Creio que não, porque nunca mo deram.—Respondeu já senhor de si, vaidoso por se ver recebido com tanta expansão pela filha do grande politico, cujo lendario talento era ainda ponto de fé, até para os adversarios.
—«Parece incrivel que não saiba jogo algum. Je ne crois pas!
—«É tão completa a minha ignorancia que até me parece que serei incapaz de vir a aprender.
—«Nem o bluff?
—«Esse menos do que nenhum, nem mesmo sei o que é.
—«C’est incroyable! É um jogo d’enganos; só pelas cartas serem differentes já tem graça. Pode ganhar-se sem ter jogo nenhum, é questão de finura. Olhe, o papá ganha sempre e com jogos ordinarissimos. Engana toda a gente.
—«Realmente sou um grande ignorante. Preciso aprender algum d’esses jogos, já não digo todos...
—«Deveras? Então eu ensino-o...
—«Pois desde já prometto ser o mais submisso dos discipulos.
—«A sério?
—«Muito a sério.
—«Oh, mas é delicioso!... Aprenderá comigo todos os jogos, sim!?...
—«Todos que V. Ex.ᵃ souber.
—«Mas se eu sei todos! Vamos já hoje começar a lição?
—«Com todo o gosto.
—«Mas... por qual? Oh papá, o que heide ensinar primeiro?
—«O burro, que é o que tu sabes melhor.
Toda a sala riu da graça do conselheiro.
—«Bom, lá está o Papá a fazer troça... Imagina que eu não sei jogo nenhum porque não tenho a prática que o Papá tem?!... Ora espere, venha cá,—e correu ao fundo onde estava uma pequena meza de pé de gallo.—Oh sr. Motta, dê me cá esses castiçaes.—O Móttasinho, que ia a entrar, correu a executar a ordem.—Accenda-os, faça favor. Merci. Agora os marcadores, as cartas do bézigue, bom! Sente-se aqui, sr. Vilhegas, vou ensinar-lhe um jogo engraçadissimo, por ser só de duas pessoas—um verdadeiro tête à tête.
—«Um encanto, principalmente quando uma d’ellas é V. Ex.ᵃ.
—«Comme vous êtes aimable, merci bien.
—«Não digo mais de que V. Ex.ᵃ merece.
—Sabe uma coisa? Eu gosto mais que me tratem por Mademoiselle Hortense. É assim que todos me tratam e eu estou tão habituada a fallar francez desde o collegio, que ás vezes dou ordens aos criados e só quando os vejo olhar para mim com caras de parvos, é que percebo que elles não comprehenderam porque fallei francez. É quasi a minha lingua...
—«Pois se Mademoiselle deseja, fallaremos tambem em francez.
—«Pois falla?
—«Alguma coisa.
—«Oh, mas o que me espanta é que sendo[83] um homem tão educado e intelligente possa viver n’uma terra da provincia como esta. Viver toda a vida n’uma aldeia, oh que horror!—e deitava a cabeça para traz n’um gesto verdadeiramente de horrorizada.
—«Vamos ao nosso jogo?—desviou a conversa o Emygdio, vendo que todos o observavam e que no dia seguinte os proprios partidarios invejosos espalhariam pela terra o acolhimento que elle tivera em casa do chefe da opposição.
—«C’est vrai. J’avais oublié! Ma pauvre tête! Repare bem, pega-se na primeira dama e no primeiro rei que nos veem á mão e faz-se um casamento.
—«O que se chama aqui um casamento?
—«É apresentar os dois juntos, é uma especie de casamento civil...
—«Que é lá isso, que é lá isso, perguntou da roda do polis o padre cura.—Já fallam em casamento, sem me ouvirem em confissão?!...—e riu da graçola, a que o Móttasinho achou muito chiste.
—«Não são d’esses casamentos—respondeu com imperturbavel serenidade mademoiselle Hortense—são casamentos sem padres. Duram apenas o tempo da partida e dispensam bençãos papaes. Casamentos nouveau style. É um jogo delicioso, não acha mr. Vilhegas?
—«Divino, minha senhora!...
Primeiro do que ninguem tinha o dr. José Ramalho chegado á estação para esperar os viscondes, que vinham no ultimo comboio.
Mal se começavam a reunir os empregados, bocejantes, e os guardas tinham apenas accendido os candieiros de petroleo, com as torcidas em bicos fumarentos, que mal alumiavam a sala de espera.
—«Uma bôa estafa este comboio das onze da noite!
—«E hoje então que a Viscondessa hade trazer pr’a-hi um rôr de bagagens!
—«Ficam p’rá manhã.
—«Isso ficam ellas!... O chefe, antão... Se fosse cô oitros, não digo menos, mas cô estes é todo politicas...—Conversavam dois carregadores, encostados á hombreira da porta, na espera ociosa e enfastiada que precede a hora da tabella, cortada a espaços pelo resoar da campainha electrica que nos sobresalta alegremente como voz amiga que já nos falla dos que esperâmos, dizendo-nos a sua aproximação.
O doutor estava, contra o costume, n’uma disposição de espirito arrelienta, nervoso, maldisposto, com vontade de implicar e dizer mal.
Aproveitando a liberdade que o seu logar de medico da companhia lhe dava, levantou o balcão e pela casa das bagagens atravessou para a gare, que estava ainda em profunda treva.
—«Então o que é isto!? Hoje não accendem as luzes?—perguntou mal humorado aos homens que o tinham seguido.
—«Ainda não deu a partida, senhor doutor.
—«Ora adeus! Accendam isso que são horas—commandou energico, emquanto os outros, vencidos, iam de má vontade buscar um caixote para chegar aos candieiros.
Começou de passear para acalmar os nervos, e de momento a momento parava, olhava o mostrador de duas faces do relogio da estação, puxava da algibeira o seu remontoir, e confrontava-os, achando sempre que ambos deviam estar atrazados.
Chegava a Viscondessa, causa unica e involuntaria d’aquella agitação... Para que negá-lo? Era um sonho de muitos annos, a porção incorporea e ingenua do seu sentir, o ideal que lhe tornava supportavel a vida trabalhosa, solteira de affectos. Julgavam-no egoista, solteirão incorrigivel, todo avesso a phantasias amorosas, e afinal... Desde muito novo que esbarrára n’aquelle sonhar impossiveis que lhe fechára olhos e coração a qualquer outro sentimento.
Nunca sentira necessidade de confessar-lhe, nem a si proprio, mesmo, quanto havia de profundo amôr no interesse que ella lhe inspirava.
Para quê, afinal? Era tão feliz na doçura tépida e confiante d’aquella amizade fraternal, que nem mesmo queria averiguar o que de vulgar e humano ella continha.
Para que perturbar esse enlevo com a materialisação d’um sonho, que na realidade não passaria d’uma vulgar intriga?
Depois, a Viscondessa era d’uma honestidade tão simples e consciente, e com tanta graça e tanta nobreza sustentada, que nem a sombra de uma suspeita impura ousaria roçar-lhe pela alma. E era ainda por isso que mais a estimava, que a adorava, quasi—porque era adoração o que sentia ao vê-la tão serena e tão bôa, tão intellectual e distincta! Tinha vontade de ajoelhar, silencioso, resignado, e até feliz na passividade do extasi.
Elle, que era um tanto rude na franqueza do dizer, achava, para as suas intimas conversas de bons amigos, phrases d’uma tão carinhosa ternura como só as sabe ter um coração de mãe.
Tão pouco humano, tão desinteressado era aquelle affecto, que não sentia pelo Visconde a mais leve repulsão. Se não eram amigos, como era natural que o não fossem, sendo tão fundamentalmente dispares, era-lhe todavia dedicado bastante para o auxiliar politicamente, e para lhe ser até agradavel a sua intima convivencia. Invejava-lhe um pouco, talvez,—criancices de amoroso—a delicadeza do seu perfil aristocratico, a maneira requintada de vestir, a simplicidade suprema com que punha o alfinete de perola na gravata de setim preto, collocava uma[88] flôr na botoeira, guiava um carro ou fallava sobre arte.
Amá-lo-ia a Viscondessa por essas miudas preoccupações que tornam certos homens tão queridos á maioria das mulheres?
Mas o Visconde não era sómente isso, e decerto a mulher, cujo espirito adquirira com a convivencia vibratilidades d’artista, amava muito esse homem, dilletante na politica como na arte, colleccionador por moda, um pouco litterato e um pouco sportsman; sempre distincto, invejado e imitado.
Casados por paixão, era evidente que se amariam como no principio. E era tão natural—pensava por vezes o doutor—primos chegados, a mesma educação e tradição de familia, fortunas eguaes, não tendo uma recordação que pelos dois não fosse partilhada, deviam amar-se e ser felizes como pareciam, como toda a gente queria, apezar da delicada reserva com que se abordavam.
Pensava incoherentemente todas essas coisas, percorrendo em largas passadas regulares o restricto espaço da plataforma onde chegava a luz. Toda a tensão de nervos se lhe conhecia no mordiscar febril do charuto e no franzir da testa a cada momento.
Assim se conservava ainda, quando a gare foi invadida pelas pessôas importantes da terra, que vinham, como elle, esperar os viscondes. O Braga, azafamado, empurrando todos, grosseirão e bruto, n’uma grande preoccupação de ser sempre o primeiro. O Neves, o Domingos, as meninas Souzas e as Costas, com vestidos d’um[89] exagero que pretendiam ser a moda, olhando-se invejosas por cada fita ou flor a mais que qualquer d’ellas pozesse.
Até as sr.ᵃˢ Rebellos, com chapéos de repolhudas flores vermelhas atados ás velhas caras rugosas, que o pó d’arroz tentava amaciar; o juiz, arrastando a perna gottosa encostado ao chapéo de chuva e á bengala, tencionando já pedir desculpa pela falta da mulher, motivada por doença, diria, mas em verdade porque não quizera alugar carro, e assim, a meias com o delegado, o dr. Pinto e o escrivão sahia-lhe mais barato. Não, que era preciso fazer economias, desde que os emolumentos do crime se iam pela agua abaixo e era uma raridade um bom inventario...
Depois, ainda, os partidarios certos do visconde e aquelles que não sabiam ainda para onde se virar.
O doutor, que estava sempre disposto a aturar aquella gente com a inestancavel paciencia de medico e de politico, não poude n’essa noite vê-los sem que o espirito se lhe confrangesse n’uma repulsão instinctiva, que o fez affastar para a sombra, propositadamente, com vontade de criticar, de ter alguem com quem podesse fallar, alguem de muita confiança que o desculpasse sem tentar comprehender aquelle estado de espirito, que torna os homens, mais do que as mulheres, intractaveis em questões de amôr.
Quando por fim o João appareceu, foi-lhe ao encontro, de mão estendida, sem se importar com os outros.
—«Já cá estava, e eu fui por sua casa para o trazer no carro—disse-lhe logo o João.
—«Obrigado pela lembrança; não tinha que fazer, vim a pé por ahi abaixo. Se soubesse que tinha tão bôa companhia, esperava, decerto. Mas o agradecimento é o mesmo.
—«Não tem nada a agradecer, o favor era para mim. A mamã pediu-me para acompanhar a Candida e como o tête-à-tête me não é agradavel ia procurar o meu amigo para o trazer comnosco.
—«E vieram juntos? Desculpa a curiosidade.
—«Vim a governar, e ella dentro. Espere... Venha cá,—levados naturalmente por egual desejo de solidão, tinham-se refugiado na sombra, e d’ahi vira o João chegar o Vilhegas junto da Candida, que se endireitava soberba, em plena luz—repare com que intimidade elles se fallam!... E ainda o doutor diz que não ha nada! Dava tudo por os ouvir!...—Agitadissimo apertava o braço do medico, como se quizesse com a poderosa tensão do seu espirito aprehender as palavras que os outros a distancia trocavam.
A Candida, ainda de preto,—que teimava em usar porque descobrira que lhe adelgaçava o busto cheio, e lhe fazia sobresahir o brancomate da pelle e o castanho loiro dos cabellos,—estava formosissima.
Alta, silenciosa e grave entre a multidão remexida das pequenas provincianas, com um grande chapéo de rendas e plumas todo preto a completar a toilette muito leve e custosamente simples, e com o seu glorioso ar de desdem,[91] ella era na verdade a soberba materia que avassalla as almas.
O Emygdio curvou-se rendido.
—«Onde esteve hontem?—murmurou incisiva, irritante, tratando-o propositadamente por senhor.
—«Hontem, hontem...
—«Não se canse a procurar mentiras. Sei que foi a casa do Maximiano. Fallou com M.ᵉˡˡᵉ Hortense?...—frisou, ironica.
—«Quem t’o disse?
—«Que te importa? Sei que foste; se lá voltas acabarei com tudo.
—«Mas isso é um desproposito; fui lá, é verdade, mas só vi o Conselheiro, juro-te!—tentava convencer, afflicto, temendo que n’um d’esses ataques de ciumes ella o compromettesse escandalosa e irremediavelmente.
Perdê-la, quasi o não incommodava já. Era formosa na verdade, mas d’uma exigencia tão absorvente que ha muito o desgostára, a elle que não era um artista que pozesse na belleza a aspiração suprema da sua idiosyncrasia.
Desde a morte da Pillar que tentava fugir-lhe, mas, sem um pretexto que o desculpasse, agarrara-se agora áquelle da vinda do João e á necessidade de por isso espaçar as visitas para fugir um pouco áquella pressão esmagadora.
A sua intelligencia inferiorisada pela ambição obscurecia-se por completo n’um pavor de tortura, quando assim a via imperiosa e enygmatica, fascinando-o apezar de tudo.
—«O que dizes?—perguntou com ironia, olhando-o d’alto.
—«Decerto não irei sempre, mas...
—«Ah!... Oh sr. Braga—chamou ella o velho, que a contemplava embasbacado havia momentos, coisa que lhe não escapára—quer acompanhar-me até junto de meu primo?
—«Oh, minha senhora!—gaguejou o ricaço, offerecendo presuroso o braço onde ella mal tocou com a ponta dos dedos enluvados.
Com a sua grossa mão vermelhuça puxou-lhe o braço para cima e não soube senão dizer com uma ternura bruta:
—«Que felicidade, que felicidade!...
—«O quê, sr. Braga, acha felicidade que eu lhe peça um favor?
—«Se acho! Dava contos de réis para que fosse toda a vida assim!—córado até ao extremo violaceo da apoplexia, esforçava-se por dizer alguma coisa que podesse agradar áquella mulher, que havia uns tempos, desde que o Padre Mathias na botica velha dissera aquellas coisas, lhe andava a pôr doida a cabeça; que d’antes só as cifras enchiam.
—«Tanto dinheiro por uma coisa tão insignificante e tão natural!... Não valia a pena, sr. Braga!—respondeu meiga, com uma voz quebrada que acabou de atordoar o homem.
—«Lá isso valia, até tudo o que tenho! E olhe que é p’ra mais de duzentos contos—regougou o animal.
—«E vive aqui!...
Um apito prolongado do comboio ao longe terminou as conversas, na mesma curiosidade de todos que aguardavam os Viscondes, trazidos por desencontrados desejos e interesses.
—«Como viria vestida a Viscondessa?—perguntavam as mulheres.
—«Como os receberia o Visconde—a si mesmos perguntavam os homens que na politica punham a sua ambição.
A machina avançava, cuspindo brazas, offegante, deixando fugir a força com o vapor que se lhe ennovelava em cabelleira. As lanternas vermelha e amarella furavam a noite como dois olhos de monstro phantastico que avançava esbaforido, chocando-se em traquinada de molas e correntes.
Na plataforma todos se agitavam, adiantando-se, querendo ser vistos primeiro. O chefe empertigou-se com a bandeirinha verde na mão, obrigando com o seu gesto imperioso a retirar os mais atrevidos. Atraz da machina seguiram os wagons carregados de saccos fedorentos de guano para as terras, depois as bagagens, a terceira classe com soldados e maltezes que vinham das ceifas do Alemtejo, estremunhados, espreguiçando-se ás janellas... E o comboio, que mal se arrastava já sob a pressão dos travões, parou por fim n’um choque que se prolongou até ás ultimas carruagens.
O wagon-leito ficou um pouco acima e todos correram açodados a cumprimentar o Visconde, que se apeou logo, esbelto ainda, mesmo bonito homem apezar dos cabellos que iam branqueando na aproximação dos quarenta. Mal puzera pé em terra e logo os vigorosos braços do Domingos o apertavam n’uma expansão perdoavel a um partidario tão intransigente.
O Visconde deixava-se abraçar por todos,[94] tendo uma palavra para cada um, sorrisonho e amavel, apezar d’uma vaga sombra de cansaço, sustentando com distincção o difficil papel de politico acclamado pelo seu burgo.
Logo a seguir appareceu a Viscondessa, á portinhola, vestida de azul escuro, gravata de seda branca, chapéo que uma simples fita enfeitava, sorrindo bondosa, recebendo com egual deferencia todos os cumprimentos. Só quando o dr. Ramalho e o João conseguiram aproximar-se é que a sua physionomia muito movel se abriu n’um lampejo de sincero contentamento.
Acceitando as mãos que ambos lhe offereceram saltou para o chão, dizendo n’um sorriso de intimidade que raro prodigalisava:
—«Já me tardavam!... Como tem passado, doutor?... Como está tua mãe, João?
—«Como a prima pode imaginar!...
—«Sim, faço ideia! Se ámanhã a mamã não estiver muito fatigada irei abraçar a minha pobre Josephina.
—«Como é bôa e como lho agradeço—murmurou o João commovido.
—«A sr.ᵃ D. Genoveva fez bem a jornada?—interrogou o medico cuidadoso.
—«É muito longa, deixa-a fatigada por uns dias, mas apezar d’isso não está mal. Para se não incommodar com cumprimentos, pedi-lhe que ficasse na carruagem com a D. Luzia até nós retirarmos.
—«Foi bem pensado. É preciso a maior cautella com aquelles nervos—respondeu o dr. Ramalho.
—«Nervos?!... Emfim, pode ser!... Mas[95] venham cá; vem cá, João, que te quero apresentar uma pessôa que muito estimo.
—«E que eu não conheço?—«Nem eu tambem?—inquiriram os dois a um tempo.
—«O doutor conhece, tu é que não—e voltando-se chamou para dentro da carruagem—«oh Bella!»
—«Estava a procurar a minha malinha na confusão das vossas malas, malinhas, embrulhos, cabazes... Sei lá o que para ahi vem!—veio dizendo, ao mesmo tempo que saltava da carruagem, uma delicada figura de mulher, vestida de flanella branca riscada de azul, chapéo remador de palha branca, collarinho e gravata, e no bolso do casaco o lenço de linho fito, n’um geito um tanto masculino.
—«Oh meu caro doutor, como está, como tem passado desde o inverno?!...—dirigiu-se ao medico, n’uma grande expansão de amizade, a que elle correspondia affectuoso.
—«Minha filha—sorriu a Viscondessa—guarda para logo os teus comprimentos ao doutor, que já é conhecido velho, agora deixa-me apresentar-te o meu primo João de Mello.
—«Escusas de dizer mais, conheço-o perfeitamente—respondeu séria, estendendo-lhe a mão, para um shake-hands, á ingleza, e dizendo com uma naturalidade encantadora.—A Maria Helena descreveu-mo de tal maneira que o reconheceria em qualquer parte.
—«Se tu o conheces—acudiu a Viscondessa, rindo—não te conhece elle, que não teve quem, tão bem como eu, te descrevesse. É preciso[96] apresentar-te:—Isabella Burns, a minha maior e melhor amiga.
—«Certainly—terminou rindo Isabella.
—«Podemos partir—veio dizer o Visconde.
—«Quando quizeres.
—«Entrega a relação das bagagens ao Bernardo. Como o comboio não passa hoje d’aqui, não haverá confusão.
—«Pois sim.—Abrindo a carteira de coiro da Russia onde brilhava o oiro do monogramma e a corôa, tirou um papel que entregou ao administrador, curvado para receber as ordens e comprimentar Sua Ex.ᵃ:—Veio o coupé para minha mãe?
—«Sim, sr.ᵃ Viscondessa.
—«Tenha cautella, Bernardo, olhe se os cavallos estão folgados que vão muito depressa...
—«V. Ex.ᵃ pode confiar em mim.
—«Bem sei, tenho toda a confiança no seu juizo, mas por isso mesmo não quero que entregue esta obrigação a ninguem.
—«V. Ex.ᵃ pode ir descançada.
—«Bem, bem—e voltou ainda á carruagem, a fazer as mesmas recommendações.
—«Quem é aquella senhora que o Visconde cumprimentou?—perguntava Izabella, acceitando o braço de João.
—«É minha prima.
—«Apresenta-ma?
—«Da melhor vontade, mas... perdôa-me a indiscrição d’uma pergunta? Para que deseja essa apresentação?
—«Ora para quê!? Porque é muito bonita e quero admirá-la de perto. Ri-se?
—«Não rio; é que acho um pouco estranho esse desejo.
—«Estranho em quê? Eu admiro a belleza, e onde quer que a encontro gosto de a contemplar.
—«É que, em geral, as senhoras não costumam fallar com essa justiça da belleza das outras.
—«Que me importa o que as outras fazem, se eu não sou como ellas?!...
—«Tem cautella, João, olha que a Bella faz da vida um paradoxo e a maior parte das vezes não pensa exactamente o que diz—disse a Viscondessa, que vinha logo atraz pelo braço do doutor.
—«Agora é sómente o que penso, sem exaggero nenhum. Desejar vêr de perto uma mulher bonita, parece-me que não é nada extraordinario. Vá, venha apresentar-nos.
Como se tornava impossivel alcançar o Visconde e a Candida, apertados e embaraçados por toda aquella gente que queria sahir a um tempo, chamou alto o Visconde, que se voltou logo e esperou com o seu amavel sorriso de homem galante. E foi alli, entre o gargalhar de toda aquella gente que se sentia feliz da sua propria importancia, que o João apresentou a Candida, um pouco contrafeita sob o claro olhar perscrutador de Izabella.
—«A sr.ᵃ D. Candida quer dar-nos a honra de ir na tua carruagem—disse o Visconde á mulher.
—«Com o maior prazer.
—«A sua carruagem é fechada, Visconde?—Bella interrogou.
—«É esta victoria, que trouxeram fechada, não sei para quê.
—«Que pena, com uma noite d’estas!—sahindo para fóra, continuou—mas de quem é então aquelle phaeton tão bonitinho?
—«É meu, e se me atrevesse punha-o á disposição de V. Ex.ᵃ—respondeu João.
—«Mas porque se não hade atrever?! Ah!...—E, como fallando comsigo,—que sensaboria!
—«O que dizias?—perguntou a Viscondessa.
—«Nada!... Olha lá, parecerá mal ir no carro de teu primo—disse a meia voz, n’uma resposta que era uma pergunta.
—«Sósinha, não... Mas pode ir mais alguem, parece me que são poucos os carros para tanta gente.
—«Pode ir o doutor...
—«O doutor, não—emendou o João apressado—como V. Ex.ᵃ prefere o meu carro, vae o dr. Ramalho com os primos e eu vou convidar as sr.ᵃˢ Rebellos e o Domingos que vieram a pé.
—«As manas Rebellos e o boticario, não é? Já conheço tudo por tradição; chame-os depressa, olhe que fogem,—apressou Izabella, batendo as palmas satisfeitissima, empurrando-o quasi para o lado onde o Domingos e as cunhadas já estavam fazendo as suas despedidas ao Visconde.
Pouco depois, todos acamados como foi possivel, puzeram-se as carruagens em marcha com a gravidade ceremoniosa d’um casamento pomposo.
A tarde alongava-se n’um crepusculo aguarellado em leves tintas doiradas, com longes de porcelana japoneza e recortes miudinhos nos primeiros planos.
No terraço, illuminado pela luz do poente sem agonias, as rosas-chá abriam-se aromaticas e dôces.
A viscondessa, reclinada n’uma cadeira da Ilha com baldaquinos bordados, fitava os olhos na Vesper,—que era um ponto mais brilhante no oiro em que o sol se fundia—n’um alheamento, n’um abandono de si mesma, que a puzera triste, d’essa inexplicavel tristeza que infiltram na alma as tardes assim bellas e silenciosas.
O vestido leve de seda escura, com enfeites de renda preta, contrastava fortemente com a pallidez marfinea do rosto. O cabello castanho simplesmente penteado descobria-lhe a fronte alta de intelligencia e juizo claro. A bocca, d’um córte rasgado, trazia-a franzida n’um sorriso de paciente melancolia, que ás vezes se azedava n’um leve sarcasmo de quem muito conhece,[100] e de muito a conhecer se irrita, com as mentiras da sociedade. Alta e elegante, o seu corpo tinha ficado delgado, de mulher que nunca tivera filhos, apezar dos trinta e cinco annos que ia contando. Mas o que sobre tudo agradava n’ella era a maneira senhoril, nobre e consciente e ao mesmo tempo desafectada de andar, de sorrir, de fallar para todos e em qualquer assumpto com as palavras precisas, sem um gesto a mais nem uma pausa de menos, como se toda a sua pessoa tivesse sido harmonicamente feita n’um mundo superior de materia differente da dos outros.
O creado, que chegára á porta, perguntava pela terceira ou quarta vez—se sua ex.ᵃ poderia receber o sr. dr. João Ramalho.
—«Mande entrar para aqui—respondeu como que acordando.
Emquanto o creado ia transmittir a ordem, ella endireitava-se na cadeira para receber o doutor, a quem estendeu a mão branca de dedos afusados, e disse alegremente, n’um afugentar de maus pensamentos que a alliviava:
—«Ainda bem que veiu, doutor, principiava a entristecer, com esta luz, este céo, esta solidão...
—«Como era só principio, ainda venho a tempo de evitar maior tristeza—respondeu a sorrir, ao mesmo tempo que se sentava na cadeira defronte. Se é que a minha companhia póde distrahir alguem!...
—«Aquelles que sinceramente nos estimam, são sempre a companhia que mais nos deve distrahir. Não é verdade?
—«Assim deve ser.
—«E quantas vezes não é!...
—«Não admira, o que não deve ser é o que mais acontece cá por este mundo.
—«É verdade...
—«O Visconde?
—«Deve ter sahido a cavallo, como costuma, antes de jantar. Talvez esteja na bibliotheca, ou tenha visitas... Não lho posso dizer ao certo. Só nos reunimos ao jantar, e para isso é ainda cedo—concluiu, olhando para o cinto onde, preso a uma agrafe d’oiro esmaltado, trazia um pequenino relogio de crystal.
—«Em Lisboa sei que é esse o costume, pelos muitos affazeres do Visconde, mas julguei que aqui lhe pertencesse mais, n’esta liberdade de férias no campo.
—«Não, para nós é já um habito. Depois, aqui tem a politica que o absorve e distrahe: ouvir um influente, attender a outro, escrever cartas e fazer combinações... Toda essa embrulhada, a que sou perfeitamente estranha.
—«Não se interessa então nada pela politica?—respondendo ao signal de negativa que ella fez com a cabeça, continuou—Imaginei que sim. Tenho-a tido sempre como um poderoso elemento na influencia partidaria do Visconde.
—«Porquê?
—«Porque a vejo sempre amavel para os influentes, conhecendo-lhes os fracos e os interesses...
—«Sómente para fazer a vontade ao Duarte, que é a unica coisa que me pede com interesse. Mas é contra minha vontade que elle se mette[102] n’esta vergonha da politica. Os de cá, os pequenos, como os de lá, os grandes, é tudo afinal a mesma coisa. Egoistas, ambiciosos, interesseiros, não ha um unico que queira vêr a miseria em que a patria agonisa e se sacrifique para a salvar. E se algum apparecesse, os outros affastá-lo-iam como um perigo para as suas bolsas que o thezoiro enche... Debaixo a cima, a lucta furiosa d’ambições para chegar ao poder; depois... ninguem se salva... O que me desgosta é vêr o Duarte viver com elles, ter os mesmos ideaes estreitos, acceitar os mesmos compromissos para identicos fins. Elle, que é pessoalmente honesto, politicamente iguala-se ao Maximiano Carneiro—porque é igualar-se tê-lo como adversario.
—«Não diga tal, Viscondessa! Pois não a consola que seu marido seja apontado entre os partidos da rotação como um dos raros honestos?
—«Sim, nada do que nós temos nos veiu com a politica, mas isso, meu amigo, é a honradez vulgar do creado de servir que não tira o dinheiro ao patrão mas vê sem protestos os outros encherem as algibeiras.
—«Não crê que em volta do nome honrado do visconde se forme um partido novo a que se juntem as almas ainda impollutas dos moços, cheios de coragem para luctar, resignação para a miseria, e esperança no futuro?
—«Não creio n’esse dôce sonho côr de rosa. Em primeiro logar porque os novos já não são como ha vinte annos os depositarios dos enthusiasmos e das grandes ideias altruistas. Tem-se educado a mocidade para politicos e empregados[103] publicos. Os independentes são uma pequena minoria, que os proprios companheiros alcunham de doidos... Os homens práticos n’este paiz são os que aos vinte annos só teem confiança... nos empenhos.
—«Como está descrente! O Visconde ainda fará alguma coisa, verá...
—«Não creio, o Duarte transige com os meios, e para salvar isto seria preciso não haver transigencias de qualidade alguma. Seria preciso cortar fundo e a direito, sem olhar absolutamente a conveniencias pessoaes.
—«Quer então um novo Pombal?!...—perguntou o medico, rindo.
—«Sem as barbaridades que deslustraram a sua bella obra de resurgimento patrio. Viesse elle!...
—«É então por esse ideal... sebastianico, que lhe não interessa a politica contemporanea?!
—«Decerto! A não ser que o doutor me explique o que o paiz ganha e o que póde advir de grande e compensador para a collectividade portugueza, com a entrada do sr. Domingos da botica para a vereação da camara municipal, ou com a realisação do empenho do Braga, em fazer expropriar a casa do Bernabé, porque affronta o seu chalet mirabolante de burguez endinheirado e estupido. Sim, o meu bom amigo, que é tambem politico, poderá explicar-me essas vantagens...
—«Eu sou um politico... d’agua morna. Auxilio o Visconde por amizade, e acceitei, como sabe, ser deputado por um circulo qualquer[104] para que elle tenha mais um voto na camara... Nunca me encommodei com os meus constituintes, que teem tido o bom senso de não pensarem tambem no seu representante.
—«Quer isso dizer que o doutor, que em toda a sua vida particular não tem uma mancha a enodoar lhe o nome, acha que é natural ser representante d’um povo porque o governo lhe disse que o fosse?! Acceita isso, e acha até muito natural que se faça, o que n’um paiz civicamente bem educado se não faria; e porquê? Porque é politica. Triste palavra que tanta coisa má faz desculpar! Os senhores não creem nos homens que seguem; não teem partido porque não teem convicções!...
—«Mas isso é quasi uma descompostura...—disse de bom humor o medico.
—«Talvez, mas justa, confesse. Um de meus avós recusou representar uma das nossas colonias nas famosas côrtes da regencia de Izabel Maria, porque era impossivel, materialmente impossivel por falta de tempo, apresentar-se eleito pelos seus constituintes com legalidade, visto que as viagens duravam seis mezes e as côrtes constituiram-se em dois... Então, um homem cheio de filhos e responsabilidades, não se importou de desobedecer a uma ordem que ia de encontro á sua consciencia, e agora? Os mais honestos teem a philosophia do doutor. Os homens teem uma consciencia mais lata...
—«E as mulheres fariam outra coisa, minha senhora feminista?
—«Oh, as mulheres não são melhores, porque nem mesmo querem dar-se ao trabalho de pensar.[105] Se ellas pozessem no bem da patria e da familia a energia que dispendem em futilidades, alguma coisa poderiam fazer...
—«Se todas fossem como a Viscondessa decerto que o melhor que teriamos a fazer era ser governados...
—«Não perca os seus madrigaes commigo, meu caro.
—«Mas é sinceramente que digo isto, tenha a certeza.
—«Pois então digo-lhe que está enganado. Quanto mais banal e frivola é a mulher, mais influencia tem no espirito do homem, até ás vezes os mais intelligentes. Na nossa sociedade, que se apregôa a ultima palavra da civilisação, raramente a mulher é a companheira do homem. Elle quer ser senhor; ella, como todo o escravo, corrompe-o. Ora esse papel é baixo e uma alma superior de mulher nunca se sujeita a elle, prefere a sombra da sua modestia...
—«Mas, se a Viscondessa me permitte uma observação...
—«Diga.
—«Parece-me que V. Ex.ᵃ não poderá queixar-se nunca porque é, felizmente, uma excepção a essa regra; o seu lucidissimo espirito deve exercer no do visconde uma salutar influencia.
—«Está enganado; meu marido, como a maior parte dos homens, dispensa o espirito... caseiro.
—«É d’uma ironia pungente—respondeu o doutor, admirado do que ouvia, tão differente do que imaginára. Depois d’um instante de silencio, em que as suas almas se comprehenderam[106] talvez, melhor do que em annos de convivencia, elle perguntou:
—«Ha quanto tempo casaram?
—«O que lhe diz o thermometro?
—«Que o mercurio ainda não gelou...
—«Nem gelará, descance!—respondeu sorrindo e encostando o cotovello a uma pequena meza de jardim.—Temos uma temperatura de estufa, elegante, cuidadosa e sabiamente entretida. Estamos livres das grandes temperaturas tropicaes como dos resfriamentos polares.
—«Permitta-me que duvide um pouco d’essa theoria de velhos egoistas em gente tão moça?!
—«Moços?! Não é tanto assim, sabe que idade tenho?
—«Cálculo trinta... creio que não se importa que o diga.
—«Engana se, tenho trinta e cinco.
—«Somos quasi da mesma idade, eu tenho trinta e oito.
—«Tem graça que só hoje fizessemos esta descoberta.
—«Quando eu vim para aqui era a Viscondessa quasi uma criança.
—«E o doutor outra, pois que somos quasi da mesma idade.
—«Eu sempre fui mais velho que os meus annos. Isto foi ha treze...
—«Tinha eu vinte e dois; estava casada havia cinco...
—«Estão casados ha vinte?!...
—«É muito, não acha, para um homem gostar d’uma mulher?
—«Pelo contrario, parece-me pouco quando[107] ella é... o que deve ser. Casaram muito novos.
—«Eramos primos e noivos desde crianças...
Calaram-se ambos, como admirados de dizerem tanto; é que a tarde, cahindo pacificante e bella, trouxera-lhes aos labios phrases de confidencia que o tumultuar do mundo lhes não deixára nunca sahir do recesso mais intimo dos seus corações.
—«Como sou distrahido... ainda não perguntei pela senhora D. Genoveva!?—disse o doutor d’ahi a minutos, para dizer alguma coisa.
—«Hoje está muito rasoavelmente; estes quinze dias de socego têm-lhe feito bem.
—«O socego é para ella a melhor medicina. E a sua amiga?
—«Bella? Foi passear á quinta. Gosta de andar muito e não se cança. Tem aquella boa educação ingleza que faz homens e mulheres sadios, resolutos, fortes, coisas que eu tanto admiro...
—«E no emtanto a Viscondessa nada tem de ingleza...
—«Nem de inglezada. Admiro a Inglaterra como educadora, mas detesto-a como nação alliada. É mesmo por eu ser uma incorrigivel meridional, cheia de mollezas e desânimos, que admiro e aprecio os que fazem da vida uma coisa simples, alegre e boa. Compare o meu espirito cheio d’amargas duvidas e incertezas crueis com a saudavel e boa razão de Bella!... E ainda o doutor não conhece bem o fundo de probidade e inteireza do seu caracter. Alli onde a vê, é a cabecinha de mais juizo que[108] eu conheço; sem falsas ingenuidades nem descaramentos de demi vierge, tem uma clara noção da vida e acceita a tal qual é, sem covardias nem tristezas.
—«Parece ser sinceramente sua amiga...
—«Se é! Tenho a certeza d’isso. Creio n’ella como em mim mesma. É a minha unica amiga intima, a unica com quem fallo sem reservas, com uma franqueza que não poderia ter com outra que vivesse n’um meio differente. A prima Josephina, por exemplo, é minha amiga, eu tambem a estimo immenso, mas, comprehende, é um espirito completamente alheio ao meu. Tendo vivido sempre n’este meio restricto da provincia, toda absorvida no santo egoismo de esposa feliz e de mãe, não é, nem podia ser, a grande amiga intellectual que é Bella.
—«E agora, com a morte de Pillar, a pobre senhora está n’uma tal depressão moral, que nem sei o que lhe possa interessar!...
—«Com toda a razão; ter uma filha como aquella e vê-la morrer, deve ser para endoidecer! Só pensar n’isso me arrepia!—nervosamente levou a mão á fronte arredando algum cabello mais teimoso.—Sabe o que me disse a Engracia?...
—«Deu-lhe attenção? Olhe que está quasi maluca desde a morte da Pillar.
—«Será tudo imaginação d’ella? O João tambem vagamente me fallou em quaesquer desconfianças...
—«Sim, esse tambem desconfia coisas pavorosamente romanticas; parece que o consola mais a ideia de que a pobre criança não morreu[109] d’uma simples doença para que estava predisposta... Ha n’isso uma especie de vaidade, creia. Na minha vida de medico é frequente deparar com estes exemplares: pessoas que querem ter doenças extraordinarias, que dizem soffrer e sentir coisas espantosas, que querem por força que se lhes diga um nome scientifico para baptizarem a mais ligeira dôr de cabeça, e que ficam radiantes quando se lhes diz que é um caso desconhecido ou raro... Poucas são as pessoas que não sentem como que uma certa vaidade dolorosa, mas que é consoladora ao mesmo tempo, em constatar que alguem da sua amizade morreu de uma doença com um terrivel nome na medicina.
—«Pois sim, será, mas o doutor não desconfia de nada?!...
—«Eu nada desconfiei e nada vi que authorisasse tal supposição.
—«O Vilhegas parece-me um ambicioso sem escrupulos, talvez mau...
—«Não, mais ambicioso do que outra coisa. Agora é todo M.ᵉˡˡᵉ Maximiano, dizem.
—«Mas essa não é rica, o pae deve tres vezes mais do que tem. Apezar do estadão que apresenta, creio que está mettido em tanta negociata que impossivel será sahir-se de todas.
—«Homens como elle nunca vão ao fundo, boiam sempre nas aguas turvas como se fôssem o seu elemento. Elle fará subir o genro, puxando o a si...
—«Pelas orelhas, bem póde...
—«Tenho notado que os Maximianos este anno veem cá muito menos.
—«Visitaram-me durante os primeiros oito dias, como é da etiqueta... São abominaveis! Agora heide ir visita-los antes dos meus annos, para depois se convidarem para o baile. Não imagina o que me irrita esta maneira de vêr do Duarte! Ora se são adversarios, se não se podem tolerar, para que será conservar esta apparencia de relações?!
—«Porque assim mais facilmente se vigiam...
—«Mentiras sobre mentiras para esse ignobil fim?
—«Quer dizer que é um usurpador dos direitos de suzerania do Maximiano cá no burgo?!...—disse o doutor a rir.
—«Deixemos esse assumpto, que me irrita os nervos. O que me diz da Candida?
—«É muito formosa e um tanto incomprehensivel.
—«Eu não sympathiso muito com ella... Estou em crêr no que diz o João...
—«Fallavam em mim?—perguntou este, que tinha entrado sem se fazer annunciar, com toda a liberdade de parente proximo que era dos viscondes, pela mãe.
—«Ora não tinhamos nada mais interessante em que fallar...—respondeu a prima gracejando para não ter que explicar-se mais claramente.
—«Pois é uma ingratidão que tenho a registar, tanto maior quanto é certo ter passado a tarde a ouvir o seu elogio.
—«Estiveste lá em cima com minha mãe?
—«Nem só a tia Genoveva a elogia, minha senhora.
—«Então, quem mais?
—«Adivinhe.
—«A não ser a mamã, só em tua casa ou Bella; mas essa foi para a quinta, e decerto não a procuraste lá por palpite.
—«Pois foi ella mesma quem encontrei, não á beira de poetica fonte desfolhando rosas como Ophelia, mas em plena serra, em caminho da Senhora do Monte.
—«Deveras?! Aquillo é que são pernas!
—«E combinámos voltar no dia da romaria.
—«Juntaram-se os andarilhos; temos desafio como n’aquelle conto da princeza que ia á fonte buscar uma bilha d’agua emquanto os admiradores não tinham tempo de chegar a meio caminho...—observou com paternal bonhomia o doutor.
—«O que mais admira é andarem por este calor na serra e apparecer-me este n’uma frescura de toilette branca de verdadeiro anglo-maniaco...
Elle córou como uma menina sob o sorriso dos dois, que olhavam o seu irreprehensivel fato de flanella branca, a flôr na botoeira, os sapatos de salto raso e a gravata preta, ultimo signal de lucto.
—«Mas, prima, lá em cima não estava calor—respondeu apressado.
—«Ó filho, não me digas isso, que mudo para lá a casa...
—«Sério, prima, na mina estava até fresco...
—«Tens a certeza de teres reparado bem se estava frio ou calor?...—E ria como poucas vezes, assim despreoccupada e feliz.
—«Estava fresquissimo, minha querida—entrou dizendo Bella, vestida de seda crua, já preparada para o jantar.—Adeus doutor, como está? não se resolve a vir um dia dar a volta ao mundo?—Apertava a mão ao medico com amistosa franqueza e continuava para a amiga:—Acredita, Maria Helena, estava tão deliciosamente fresco que encontrei lá as mais bellas avencas que tenho visto.
—«Que exagero! E diz isto uma creatura que tem uma estufa com os mais lindos exemplares que existem em Portugal!...
—«Que barbaridade, queridinha!—e inclinava-se por traz da cadeira a beijar a viscondessa com ternura.—Pois ha nada que iguale o que a natureza nos dá espontaneamente, sem artificios nem cuidados?
—«Preferes então a rosa dos vallados á Marechal Niel?
—«Talvez que sim, vê tu que a rosa vulgar tem mais e melhor perfume do que aquella que a civilisação apenas poude alindar...
—«Sempre o paradoxo!
—«Olha; e apresentava-lhe um pequeno ramo feito de botões de rosas singelas rodeados de avenca muito fresca—queres dizer que é feio este ramo que te trouxe?
—«Este é lindissimo, principalmente pela intenção.
Beijou-a n’um agradecimento commovido.
A noite tinha vindo, entretanto, mas tão claramente illuminada pela lua cheia que mais parecia o continuar d’esse crepusculo doce de verão que as roseiras perfumavam...
O criado que annunciára o doutor veio dizer, n’uma reverencia,—que a sr.ᵃ D. Candida e o tio estavam com o senhor Visconde na casa de jantar, esperando-os.
—«Porque não mandaste entrar para aqui?
—«Como o jantar vae ser servido, o sr. Visconde deu ordem para vir prevenir v. ex.ᵃ
—«Vamos!—disse ella, voltando-se para os tres, que promptamente se levantaram.
Na espaçosa sala de jantar, aberta sobre um terraço sobranceiro ao jardim, as luzes estavam acezas e dispostas de maneira a illuminar a casa sem lhe tirar de todo o encanto um pouco sombrio das antigas habitações, de tecto apainelado e pintado a fresco e de paredes revestidas de azulejos até meia altura.
Sobre o linho alvissimo da toalha, os crystaes lavrados e as porcelanas marcadas, harmonisavam-se com os fructos e as flores espalhadas um pouco por toda a parte, em pequeninas jarras, em cestos, em ramos, ao lado de cada conviva, n’uma prodigalidade que a riqueza do jardim authorisava. Nos aparadores de rica talha Renascença, a baixella de prata, que um artista cinzelara e de Italia fôra trazida para aquelle palacio por um avô dos viscondes, dava um forte destaque de luz junto ao severo mobiliario.
Na parede do fundo, entre as duas portas da bibliotheca, que pesados reposteiros com o brazão d’armas vedavam, um quadro a oleo tomava toda a altura. Era simples a scena e palpitante de vida: um cavalleiro, imberbe ainda, segurava pelo freio um cavallo que se empinava soberbo, espumando, o pello luzidio de suor.
O ar energico e sereno do retratado era de tal maneira humano, que ninguem duvidaria que o pintor tirara do original essa figura, decidida a tudo, antes do que a abdicar. O calção branco e a casaca encarnada do cavalleiro, moço fidalgo e rico homem, destacava-se sangrentamente no fundo plumbeo da tela. Em pé, diante do quadro, o Visconde e a Candida conversavam, emquanto Antonio de Mello, filado pelo Braga, agora seu companheiro insacudivel por causa da sobrinha, e do visconde por causa da casa do Bernabé, estava no vão d’uma janella ouvindo pela millesima vez a pretensão do homensinho.
—«Quando em pequena aqui vinha—dizia entretanto a Candida—nada me interessava como este quadro.
—«Porquê? Não é, apezar de bem feito, uma obra prima que merecesse a attenção de V. Ex.ᵃ
—«Não é isso, que eu pouco conheço de pintura para o apreciar como artista, era a historia do cavalleiro que me fazia scismar!
—«É uma historia romanesca, na verdade, uma lenda d’amôr que não admira que tivesse fallado á imaginação d’uma formosa criança como V. Ex.ᵃ era.
—«Não é certo que foi amado por uma rainha aquelle cavalleiro?
—«É certo! Amado por uma rainha que desprezou para casar com a menina que amava desde a infancia.
—«E por isso foi desterrado para este palacio, não é verdade? O que lhe era elle, sr. Visconde?
—«Meu decimo quinto avô e tambem da Maria Helena e da Josephina, porque descendemos todos do mesmo ramo.
—«Como o sr. Visconde deve ter orgulho em ser neto d’um homem que foi amado por uma rainha!
—«O que vale uma rainha impudíca ao pé do meigo e ideal typo de Griselia, a honesta pastora que torna ditoso o seu senhor á força de resignação e amôr?!...—respondeu a voz clara e insinuante de Bella, que vinha pelo braço de João e estava atraz d’elles.
—«Estou d’accordo—retorquio o visconde, emquanto as duas se cumprimentavam com expansão desusada por parte da Candida e polida frieza em Izabella.—É sempre rainha a mulher que amâmos. Mais do que rainha, porque a pômos alta como as estrellas. E rainhas são todas que dominam pela formosura e pelo espirito como V. Ex.ᵃˢ, minhas senhoras—disse para as duas, mas voltando se intencionalmente para a Candida.
—«Eu, por mim, sou uma rainha sem throno—respondeu ella com sorriso d’amargo desdem.
—«Oh não diga tal, minha senhora: V. Ex.ᵃ possue o triplice throno da belleza, da juventude e da bondade.
—«Por isso procura o do oiro para ficar com quatro pés... muito mais segura—murmurou a viscondessa para o Ramalho, apontando o Braga, n’um tom sacudido, pouco natural na sua costumada frieza.
—«É cruel, viscondessa.
—«Não ouve e nem que ouvisse percebia...
—«Ou fingia não perceber?...
—«Qualquer das coisas me é bem indifferente.
Chegando ao grupo cumprimentou a Candida que se desfazia em amabilidades e desculpas por a não ter logo visto.
—«Não admira, estavamos no terraço...
Voltando se logo, cumprimentou o Antonio de Mello com affabilidade e o Braga com um ligeiro inclinar de cabeça.
—«A sr.ᵃ viscondessa está servida—disse o mordomo de pé, ao cimo da meza.
—«Preveniram minha mãe?
—«A sr.ᵃ D. Genoveva mandou dizer que não esperassem, que descia já.
Effectivamente appareceu logo á porta a mãe da viscondessa pelo braço da dama de companhia. Alta como a filha, apezar de já se dobrar ao peso dos annos, a sua cabeça, como a d’ella, tinha uma dôce expressão que a fazia venerada por todos. A mais do que a filha tinha, não obstante a sua velhice adoentada, um aberto sorriso de quem fruia os ultimos annos d’uma velhice sem desejos nem sobresaltos, n’uma atmosphera confortavel de respeito e grandeza.
A filha correu para ella e carinhosamente a fez sentar no primeiro logar, onde todos depois lhe foram fazer os seus cumprimentos.
—«Aos seus logares!—clamou o visconde estranhamente animado.
Silenciosos, os criados começaram a servir o jantar.
—«Visto isso, as festas encadeiam-se agora brilhantemente!? N’este diabo de terra é sempre assim. Passa a gente um inverno inteiro sem uma distracção que nos traga ao espirito refulgencias de luz, e depois vem as festas todas juntas, mal a elegancia da capital arriba a estas paragens...—dizia arrebicado, puxando os punhos engommados e estendendo o pé pequeno, calçado em botas de chagrin côr de tijolo, o Telles da botica nova.
D’um moreno terroso, magrinho, as orelhas a fugirem-lhe para a nuca, a pelle borbulhenta e quasi sem barba, fallando muito e depressa n’uma verbosidade saltante de nevrotico que se orgulhava de ser, assim como poeta incomprehendido, devorado pela Arte,—com A grande—e conquistador irresistivel.
—«É verdade, hoje e amanhã temos a romaria da Senhora do Monte, depois o pic-nic na Matta, e no fim, a coroar a série, o baile da viscondessa. Já tiveste convite?—respondeu o Vilhegas cavalgando uma cadeira, o chapéo[118] molle deitado para a nuca e embrulhando um cigarro entre os dedos com minuciosa attenção.
—«Os Viscondes convidam me sempre, mas ainda não sei se os meus nervos me deixarão tolerar esse ruido.
Passava a mão pelos cabellos, encostando-se, nostalgico e sentimental, á secretária onde costumava escrever.
—«Homem, essa constante preoccupação é que te adoenta! Tens nervos como toda a gente; tens saude por sete, deixa te de manias.
—«Se eu não sentisse os terriveis symptomas que sinto!? O que quer dizer então este desespero de tudo e de todos, este odio ao banal que me torturiza e me distanceia da multidão, esta febre de movimento logo seguida das crises de passividade mais completa e absoluta?! Sou um neurasthenico, tenho a certeza.
—«Tanto pensas em sê-lo que te hasde tornar, isso é corrente. Mas eu não te largo, porque sem ti não vou ás festas.
—«Obrigadissimo por esse desejo, mas se eu não poder ir não vás tambem.
—«Isso é que é impossivel. A Hortensia vae e eu não quero faltar.
—«Não sei o que tu fazes com essa coisa! Casar com a Pillar, comprehendia-se, era a fortuna, era um futuro sem sobresaltos que preparavas; approvei a ideia desde que em Coimbra me contaste os teus sonhos de ambição.
—«Lembras te d’esse tempo, oh Telles?—perguntou o outro, a sério.
—«Se me lembro! Quando tu entraste pela porta dentro e me disseste que te matarias se[119] te não emprestasse o dinheiro para a matricula!...
—«Era verdade. No ultimo anno, era a minha vida inteira que perdia! Quando penso!...
—«E afinal nunca se descobriu quem te roubou o dinheiro, pois não?
—«Nunca! O que diria o Antonio de Mello e meu pae e todos!?... Que eu tinha jogado, naturalmente. Ficava desacreditado! Salvaste-me a vida, crê.
—«Ora que ideia! Fiz o que tu ou outro qualquer faria no meu logar.
—«Fizeste o que poucos seriam capazes de fazer: pôr a tua casa, a tua bolsa, tudo quanto tinhas á minha disposição...
—«E tu não me pagas com amizade?!
—«E sincera que ella é: a unica grande amizade que tenho. A prova está em que não guardo um segredo para ti, não tenho pensamento que te não confie.
—«Ahi está o que desejo: como não tenho grandes ambições com as tuas me contento. E a proposito—que tolice é essa agora da Hortensia?
—«Então que queres? A Pillar era uma escada d’oiro para subir, esta é uma escada de corda, mas tambem por ella se trepa... Questão de tempo e de vontade. Metteu-se o diabo com aquelle negocio e foi um desastre!... Este é de mais trabalho, mas n’um paiz como o nosso tem tambem maiores vantagens.
—«Isso está muito bem, mas o que dirá a Candida? Não tencionas casar com ella?
—«Com ella, eu?!... Se a prima lhe tivesse deixado a fortuna, não digo que não.
—«Vê lá em que te mettes! Olha que essas mentiras e enganos não pódem dar bom resultado. Suppõe que a Candida falla...
—«O que hade ella dizer que a não comprometta mais do que a mim? Deixa, que ella não é tola e tem um medo ao João que a não deixa abrir bico. Além d’isso creio bem que desistiu da minha pessoa em favor da fortuna do Braga.
—«Pobre Braga! Paga na velhice todos os crimes da sua vida de avarento. Ella não tem escrupulos... Como tu cahiste na asneira de a namorar!...
—«Tu, que és o unico senhor d’este segredo, a perguntar-me isso! A culpada foi só ella.
—«Sim, eu sou o unico a quem o disseste, mas quem o diria á Pillar?
—«Não posso comprehender. Na minha vida dão-se coisas que eram para fazer succumbir outro de menos coragem.
—«Seria a propria Candida?
—«Cheguei a pensar isso, mas pelo susto da ultima hora convenci-me de que não foi. A Engracia é que talvez desconfiasse... Não sei! Acautellava-me tanto...
—«Foi um desastre. A Pillar gostava de ti a valer.
—«Isso!...
—«Era o menos para ti, homem pratico, mas era alguma coisa.
—«Já passou o tempo do teu amôr e uma cabana... Não se compra nada com essa moeda.
—«Mas quando se allia a fortuna ao amôr é a felicidade na terra.
—«Homem, já parece estylo de noticiarista!
—«Faze troça, faze... Mas, emfim, com essa vá, comprehendia que sacrificasses a tua liberdade, agora com a Hortensia que não tem vintem!...
—«Vocês, os poetas, não sabem nada da vida. Pois uma protecção como a do Maximiano Carneiro não vale uma grossa fortuna? Deixa me casar com ella e tu verás como me hasde ver deputado, chefe de repartição, director de companhias, ministro, sei lá!... Tudo.
—«Tu? mas como?
—«Pois o Maximiano, que tem empregado a familia inteira, que tem criado logares para simples parentes da mulher, para amigos, para influentes do bairro, pode-se dizer; o Maximiano, que custa ao país com a sua parentella e afilhados mais de um conto de réis por dia, não ha de pôr toda a sua influencia e esperteza em campo para fazer subir o marido da filha?...
—«Talvez tenhas razão.
—«Já se vê que tenho.
—«Bom, isso é que eu desejo. Mas tu gostas da pequena?
—«O bastante para me divorciar sem desgosto, se me fôr preciso.
—«Tem graça! És impagavel!...—E ambos desataram a rir, n’um gosto franco de rapazes que se divertem com futilidades.
—«Agora outra coisa,—disse d’ahi a momentos, quando já acalmado o riso, o Telles:—o que me dizes áquella inglezita que veio com a Viscondessa, será rica?
—«Creio que não. A Hortensia disse me que é filha d’um trampolineiro que, depois de ter roubado meia Lisboa, fugiu para o Brazil. Ella[122] foi educada com um tio riquissimo e inglêsmente excentrico. Parece que lhe não deixa nada porque ella até veio para aqui por estarem mal.
—«Essa é que é interessante e bonita, d’uma graciosidade de bibelot, um verdadeiro encanto physica e intellectualmente. Vou fazer-lhe a côrte, tu que dizes? Tenho bastante para me conceder a extravagancia de casar por paixão.
—«E passares a vida a dedilhar a lyra. É bonito, mas pouco substancial. O que me parece é que o João te toma o passo...
—«Ora! Entre mim e o João não pode haver hesitações para uma mulher intelligente como ella é.
—«Pois se queres começar o cerco vamos até á romaria.
—«E eu que os acompanho, disse da porta o Padre Mathias que entrava precisamente na occasião.
—«Olá, caro bispo, por aqui?! Com todo o gosto o levamos na nossa amavel companhia—respondeu expansivamente o medico, querendo já tornar-se popular á moda do Maximiano.—Sabe se o conselheiro já foi?
—«Venho agora de lá, tinham o carro á porta.
—«Sempre vieram os taes hospedes?
—«A baroneza d’Amieira, veio. E muita gente tambem para casa do Visconde. Este anno vae ser animadissima de concorrencia selecta a nossa romaria.
—«Pois vamos nós tambem até lá. Anda d’ahi, oh Telles, chama o rapaz e entrega-lhe a chave.
Dadas as ordens de patrão e recommendado tudo ao rapaz que servia ao pharmaceutico, dirigiram-se os tres para o largo á procura de carro que os levasse até lá cima, á capella da Senhora do Monte, que se destacava cheia de luzes no fundo escuro do céo.
Era desusado o bulicio em toda a terra e estradas da redondeza pois a romaria annual da Senhora do Monte tinha fama de ser a melhor da provincia. Com a civilisação que trouxera as diligencias e os comboios a preços reduzidos, perdêra talvez um pouco d’aquelle caracteristico verdadeiramente popular que a tornára das mais falladas e rendosas; começava a accentuar-se na villa o elemento burguez com suas mirabolancias de gostos e desdens pelo povo, que por lhe estar perto na origem cuidam affastar deixando de o comprehender.
Pelas estradas era ainda povo e bem portugues e regional o que cantava e dançava em ranchos, ao som da viola e dos ferrinhos.
Os carros de bois com suas pipas enramalhetadas, passavam para se irem collocar no sitio onde seriam esvasiadas pelos amadores da bôa pinga até que o carroceiro e vendeiro as levantasse n’uma exclamação de triumpho; e outra viria, e outra depois, fazendo—quantas vezes!—com que o vinho espumoso se tornasse em sangue rubro n’alguma d’essas richas de romarias e feiras em que ninguem tem razão, nem culpa... senão as pipas enramalhetadas que sobre os carros de bois são esvasiadas copo a copo.
Os pequenos negociantes da limonada, com as mesas á cabeça, mais as mulheres dos bolos[124] e do pão corriam açodados para apanhar o melhor sitio da venda; e por toda a terra se sentia esse fremito de enthusiasmo que trazem as festas que estão bem dentro da alma e dos costumes d’uma população.
No largo da Fonte não havia quem se entendesse á procura de carros; a villa em peso ia para o fogo, e achavam de somenos importancia percorrer aquelles tres kilometros a pé, por entre o povoléo; mas o padre Mathias tinha conhecimentos e influencias e depressa arranjou uma carriola que levou os tres pela estrada nova em seguimento do char-à-bancs onde os Maximianos se tinha resolvido a acamar, como sardinhas em canastra, não tendo maneira de arranjar mais carros.
Como tinham combinado, João e Bella apearam-se na bifurcação dos caminhos e deixaram que a Viscondessa e a Candida, o dr. Ramalho e o Visconde, continuassem em carruagens pela estrada nova, com os mais hospedes, vindos propositadamente para assistir ás festas, e seguiram elles pelo caminho velho.
Subiram depois as escadas de pedra que se espreguiçam serra acima em largos degraus orlados de sobreiros seculares e capellinhas brancas em cada patamar.
Todo o campo estava cheio de gente, e desde a villa que um vozear surdo, como de mar batendo ao longe na penedia da costa, chegava aos ouvidos.
Grupos alegres estendiam-se pelo chão, chalaceando para espantar o somno, á espera do[125] fogo d’artificio, outros dormiam já, no costume das noites começadas logo ao pôr do sol.
Os pobre aleijados e esfarrapados, começavam aqui e alli a escancarar as suas miserias, supplicando em vozes ladainhentas cinco reisinhos para tamanha desgraça... De tempos a tempos, para entreter o povinho, um foguete de lagrimas enchia o céo d’estrellas multicôres e abria todas as boccas n’um prolongado oh! admirativo.
Bella ia subindo ao lado de João, divertindo-se em observar esse «vivo muzeu ethnographico,» como ella dizia.
Achava graça a tudo, e parava a cada passo para ouvir uma cantiga ou vêr um rancho de raparigas a dançar. Desde o primeiro degrau, que começára a dar dinheiro a todos os mendigos, a comprar bonecos de pão e bugigangas sem importancia, só pelo prazer de comprar, de ter muita coisa que lhe recordasse mais tarde aquelle espectaculo novo para os seus olhos de quasi extrangeira.
Por mais que João lhe dissesse que era muito lá em cima, no alto do monte, no terreiro da capella, que a verdadeira feira se juntava, ella não queria crer que fosse mais pittoresco.
A noite puzera-se escura e quente, com relampagos de calor para as bandas da Serra.
Á maneira que iam subindo, a multidão dos romeiros ia augmentando, apertando-se n’uma gritaria, n’um desmancho e rudesa que quasi a allucinava, a ella que nunca estivera tanto em contacto com o povo.
Insensivelmente tomou o braço que João desde[126] o principio lhe offerecêra e ella recusára na independencia orgulhosa de rapariga habituada a andar só.
Caminhavam difficilmente, empurrando a multidão que se entrechocava subindo e descendo pelo pequeno espaço deixado no meio das escadas pelas vendedeiras e mendigos.
Raparigas com lenços cahidos, os chales atados á cinta, as chinellas de côr com biqueira de verniz preto, riam alto, saracoteavam-se e fallavam mais desembaraçadas e vivas do que os homens que as seguiam. Esses, com chapeus braguezes enfeitados com imagens da santa, bonecas de pão e flores de papel, desciam deitando o tronco para traz e firmando-se bem nos sapatos de salto de prateleira e no varapau, cambaleantes, como se o habito de andar dobrados sobre a enxada lhes tirasse o de andar verticalmente.
Por entre a multidão festiva, amortalhadas de branco, pobres raparigas que a morte tinha poupado, iam depôr aos pés do altar onde morava a esperança da sua crença, com as tranças dos cabellos as ultimas lagrimas do seu piedoso reconhecimento. Penitentes, homens e mulheres, novos e velhos, com velas na mão, amparados por amigos e parentes seguidos pelos olhares respeitosos de todos, subiam de joelhos ou de costas os trezentos e tantos degraus de pedra, cumprindo promessas, quem sabe de quantas lagrimas feitas!...
—«Oh João, como é possivel que isto se faça e se consinta!?—dizia Isabella nervosa, apertando-lhe o braço quasi phrenetica.
—«Pois não se havia de consentir a consolação d’uma tão grande fé?
—«Fé?! Não diga isso. É ignorancia, fanatismo, loucura a d’estes desgraçados que nenhuma luz de razão illumina. É maldade da parte das leis e dos seus encarregados, deixar ao povo, que não tem liberdade para coisa alguma, liberdade para este horror... Subâmos depressa; ainda falta muito? O caminho parece-me hoje mais comprido...
—«É porque está aborrecida e cançada do barulho. Sentêmo-nos um bocadinho, quer?
—«Pois sentêmo-nos, mas alli mais no escuro, onde houver menos passagem, que sinto a cabeça esvaída.
Sentaram-se fóra da escada, sobre umas pedras, na sombra d’uma capella.
Ao lado d’elles e por toda a parte empurravam-se—fallavam, riam, apregoavam ou dormiam centenas de pessoas que assim se julgavam felizes, emquanto Isabella se sentia triste,—d’uma pungitiva tristeza que mais a encommodava por lhe vir assim, tão contra sua vontade e espectativa.
—«Estou arrependido de a ter acompanhado n’esta estravagancia, porque é uma verdadeira estravagancia, que devia prever a encommodaria deveras.
—«Porque? Estravagancia e desusada em mim, é isto. Pois que tenho eu de mais ou de menos para não sentir como elles, para não me divertir da mesma maneira, para me encommodar até o contacto d’esta bôa gente, que é portuguesa como eu, nascida sob o mesmo céo?!...
—«Miss Bella é um pouco mais inglesa....
—«Oh, mas muito pouco, quasi só pela amizade que dedico a meu tio. Mas sou toda portuguesa pela alma. Que differença ha pois entre nós?
—«A educação, minha senhora.
—«Que despresivel coisa ella é, para assim nos distanciar dos nossos irmãos!
—«Pelo contrario, que supremo ideal, que divina conquista do espirito sobre a materia... O que me differenceia a mim filho d’um homem nascido no povo, d’esses que por ahi se estendem sobre as urzes a dormir pezados somnos d’inconsciencia? Se meu pae continuasse a guardar ovelhas até homem e depois se agarrasse ao cabo da enxada, como os irmãos e parentes que por ahi ficaram, o que seria eu mais do que elles?!
—«Tem razão, comprehendo que deve ter razão; mas que quer? Eu esperava outra coisa, alegrias novas para o meu espirito na aproximação do povo, que só conhecia dos livros. Cheguei a sentir a sensação de que sonhava, de que me esmagava um pezadello. Agora estou melhor, podemos continuar.
—«Quando quizer.
Apezar de toda a sua boa vontade, Isabella não podia vencer o mal estar que lhe causava sempre o contacto com a multidão, e que sentira como nunca n’essa noite de festa; e foi, silenciosos, quasi tristes, que continuaram a subir por entre os vendedores e vendedoras que os disputavam uns aos outros, mostrando-lhes, uma a canastra de pão alvo, descobrindo outra a toalha[129] de largo crochet para que vissem os loiros bolinhos d’ovos, ou mettendo-lhes á cara as bonecas de centeio cobertas de assucar, ou puxando-os para que escolhessem um cravo com verso ou uma imagem da Senhora, que era reproduzida infinitamente com o mesmo immovel sorriso d’imagem, a saia e o manto em balão e o menino nos braços... Foi quasi uma batalha vencida quando conseguiram chegar ao primeiro terreiro onde as barracas se enfileiravam como um acampamento: as do peixe frito á direita, com o vinho ao lado, e atraz as melancias em monte, as de quinquilharias sempre cheias de compradores, as mezas com os bolos e limonadas, os ourives estatelando sobre empoeirados cartões forrados de velludilho preto os cordões, as arrecadas e os anneis, ambição suprema das raparigas casadeiras.
Os assobios e os gritos guinchavam e estridulavam de todos os lados, punham uma nota de inconcebivel desafinação por sobre aquelle vozear ensurdecedor, onde mal se distinguiam as cantigas e os toques.
Bella parou, n’um assombro. Nunca os seus limpidos olhos azues tinham visto coisa que se assemelhasse á loucura d’esse remecher de gente que berrava e folgava de mil maneiras, sob a luz desegual e fumarenta dos candeeiros de petroleo sem vidro, n’uma alacridade verdadeiramente animal. Kermesse barulhenta e nocturna, que assumia por vezes, pela sua intensidade e desmanchamento, as proporções d’uma allucinação de sabbat.
Fechava os olhos e continuava a ver as boccas[130] escancaradas que riam alvarmente e fallavam uma lingua que parecia desconhecida; tapava os ouvidos e a memoria reproduzia-lhe a mesma musica descompassada dos assobios e pequenos instrumentos rudimentares que enchiam o arraial, os pregões da agua fresca, a offerta persistente dos vendedores...
João arrastava-a, n’um atordoamento de inconsciencia, pela rua dos ourives, menos concorrida, e por onde lhes seria mais facil chegar junto da Viscondessa, que os esperava no terreiro da igreja em coreto reservado, expressamente feito para a occasião. Quando alli se viram, um suspiro d’alívio lhes alevantou o peito n’um tomar fôlego de quem atravessou a nado, e com perigo de vida, um rio caudaloso.
A Viscondessa fazia as honras do coreto com a mesma simples e nobre lhaneza—sem uma falsa amabilidade de burgueza que quer agradar, nem distracções prenunciadoras de pouca consideração—com que recebia na sua casa, á Lapa, tudo que Lisboa considera elegante e distincto.
Escutava, como se isso lhe fosse d’um grande interesse, o bisbilhotar das Sr.ᵃˢ Rebellos—muito importantes, com suas luvas d’algodão cinzento e vestidos côr de mel bordados a seda—que lhe desfiavam a historia de quantos lhes passavam ao alcance da vista.
Respondia ás perguntas impertinentes dos hospedes lisboetas, dispostos a troçar a provincia; conversava com o dr. Ramalho ou com o velho abbade, que ás romarias já não ia senão para estar de palanque, dizia.
A Candida, a um lado, escutava os galanteios cada vez mais insistentes do Visconde e animava com sorrisos as tolices do Braga, que passára ao estado de suggestionado permanente, tendo ainda monosylabos animadores para um dos elegantes da capital que punha o monoculo e fazia uma careta a cada phrase que julgava de effeito seguro.
Defronte, em coreto semelhante, os Maximianos recebiam tambem os seus intimos, teimando em disputar aos viscondes primasias de ostentação e popularidade á custa de dividas e de favores feitos com a politica.
O Vilhegas inclinava-se sobre o hombro da Hortensia, que se voltava n’um sorriso triumphante torcendo o esguio pescoço de chlorotica; fallavam com intimidade de noivos...
Mas o Telles, mal descobriu o vulto esvelto de Izabella, que conversava em pé com o dr. Ramalho e com João, apressou-se a ir comprimenta-los, perguntando com ar de superior:—se ella se não sentia mal entre a bruta multidão, que a elle lhe fazia tanger os nervos n’um desespero de quem se sente perdido entre animaes d’uma outra especie. E ainda havia quem dissesse que as almas eram eguaes; nem que a sua se parecesse com a d’aquelles selvagens!...
E Bella, que contava ao doutor a dolorosa impressão que sentia no meio d’uma alegre multidão que não correspondia a nenhum dos seus sentimentos e gostos, voltou-se para o pharmaceutico e respondeu n’um ligeiro tom de ironia, que o não magoava porque a tola vaidade a fazia receber como verdadeira:
—«Selvagens, não! Por não terem o talento e a cultura do sr. Telles, não os poderemos chamar assim!... É o povo, na sua inconsciencia e rudeza, dando-nos um espectaculo verdadeiro, humano, superior pelo colorido e espontaneidade ao que a multidão dos civilisados nos dá por vezes.
João sorria intimamente satisfeito por a ver tratar assim o Telles, que detestava, por o saber amigo intimo, quasi irmão do Vilhegas, connivente porventura no crime que imaginava, e pelos ares de artista neurasthenico e raro que elle affectava.
—«O quê—respondeu elle passando os dedos abertos pela cabelleira de romantico, n’um gesto familiar—pois V. Ex.ᵃ não acha brutal, não sente que os seus nervos se crispam, que o seu espirito delicado se confrange n’esta feira franca de vulgaridades?!...
—«Não, sr. Telles! Em primeiro logar porque os meus nervos são as pessoas mais pacatas e commodas d’este mundo; depois porque o meu espirito comesinho se compraz com as alegrias simples do povo. Repare como cantam e como é excepcionalmente movimentado este motivo.
Inclinaram-se todos sobre o paredão para melhor destinguirem um côro de vozes que entre as outras avultava, pela uniformidade e enthusiasmo com que acompanhavam a roda sapateada:
Repetiu Izabella cantarolando o que em baixo se cantava a plenos pulmões.
—«Quem poderá ter liberdade junto de V. Ex.ᵃ?!...—commentou amavelmente o Telles.
—«O quê, acha-me com cara de policia ou figados de carcereiro?...—respondeu a rir.
—«É o mais terrivel dos carcereiros porque nos algema com a etherial graça do seu espirito e nos prende para sempre só com a força d’um sorriso...
—«Por quem é, não desperdice a poesia, sr. Telles! Dizer coisas tão lindas, d’um perfume tão pronunciadamente ancien régime, em plena kermesse popular, e em prosa, confesse que é commetter um crime de lesa arte... Espero que me repetirá o mesmo em alexandrinos.—Voltando-se para o Ramalho:—sabe que estou com um desejo immenso de vêr ámanhã a romaria á luz do sol, com muita poeira e moscas, como dizem que são boas as toiradas, que para mim não passam d’um espectaculo monotono... Isto hade ser mais pittoresco, pois não, doutor?
—«Muito mais! Como não sou tambem um aficionado, acho mais caracter e movimento n’uma romaria ou n’uma feira.
—«Mas quer voltar pelas escadas?—inquiriu receoso o João.
—«Não,—assegurou, sorrindo do susto—podemos vir no seu phaeton, que por ser descoberto tem as mesmas vantagens sem os inconvenientes da travessia a pé.
—«Então amanhã tambem me abandonas?—perguntou-lhe quasi ao ouvido a Viscondessa.
—«É só amanhã, querida, para vêr bem este bello espectaculo que tanto interessa e diverte o meu espirito banal...—frisou n’um meio sorriso escarninho, olhando o Telles que amuára.
—«Então ajuda-me agora a levar a cruz...—murmurou a Viscondessa percorrendo com os olhos a roda dos convidados.
—«Ai filha, tenho tão pouca coragem e força para Cyrenéo de cruz tão pesada!...
Onze horas. O sol, a prumo, punha na terra incandescencias de dia tropical.
O largo sem arvores fazia ophtalmias com a sua areia granitica a escaldar, reverberando sob esse sol que pesava e se cingia ao corpo como as tunicas de fogo de que nos faliam os livros santos descrevendo os tormentos infernaes.
Apesar d’isso, a animação e concorrencia á romaria da Senhora do Monte não afrouxára desde a vespera. Pelo contrario, até o sol parecia ter subido ás cabeças, a pôr mais vivacidade e mais ardor nos risos e nas cantigas.
Desde a madrugada que os carros se desconjunctavam n’uma pressa de despique, levantando pela estrada, falha de brita, nuvens de poeira.
Os cocheiros, congestionados, nem tendo tempo de limpar o suor que lhes escorria pelas faces, atavam ao pescoço os lenços d’assoar e chamavam os freguezes n’uma pressa d’aviar, como se fosse empreitada carregar com toda aquella gente lá para cima, a tempo de assistirem á missa da festa e ouvirem o sermão do conego Almeida, o melhor prégador da provincia.[136] Cruzavam-se na estrada, paravam no meio do caminho para voltarem a cima com algum descorajoso que não tinha pernas para mais, ajustavam por todos os preços, gritavam para o povo que seguia a pé, obrigando-o a saltar para fóra do caminho, para o matto curto da serra, que parecia uma fornalha a arder.
O pequeno phaeton de João de Mello passava, elegantemente posto e guiado com firmeza, por entre toda aquella inferneira de carros, desde o envernizado char-à-bancs ás galopadas, trasbordando de gente até ao tejadilho, a velha victoria comprada em segunda mão, a caleche, o coupé, até ao classico carro toldado com vistosas colchas de ramagens, vindo das terras onde o macadam não chegava ainda e que só os bois podiam arrastar. Dentro, as senhoras levantavam os vestidos para os não enxovalhar ao pé das canastras da merenda e riam e gralhavam como quem na roda do anno tem poucas festas assim.
Bella, vestida de branco, com um largo chapéo egualmente branco, que lhe punha uma tenue sombra no rosto enrubecido, endireitava-se risonha e firme na almofada, segurando as redeas nas pequenas mãos muito habeis.
João, ao seu lado, concentrava toda a attenção na maneira de seguir por esse caminho eriçado de impedimentos, e pedia-lhe que tivesse cautella, que fosse devagar. Mas quê? ella sentia um prazer louco e uma certa vaidade em levar o cavallo a trote, furtando-o a todos os perigos, não deixando que nenhum outro carro lhe passasse á frente. As azas do seu fino narizito[137] batiam nervosamente, os dentes apertados, a testa franzida n’uma unica préga de poderosa attenção e vontade energica, tudo demonstrava n’ella a excitação da partida. Para traz tinham ficado ha muito as carruagens em que o visconde e os hospedes seguiam, com mais segurança e menos alegria.
Ranchadas de raparigas com as saias arregaçadas, a mostrarem os saiotes amarellos e vermelhos, descalças, para irem mais depressa, lenços vistosos cahidos para traz, blusas frescas as da villa, de casacos azul Prussia algumas, ou brancos e engommados as da aldeia,—sorriam e commentavam com sympathia a passagem d’esse carro novo, duma graça artistica, que assim ia guiado por uma criança vestida de branco como a mais linda fogaceira. Velhos e novos desviavam-se de motu-proprio e seguiam com louvores a mocidade e a formosura triumphantes.
Dir-se-hia que esta festa em plena natureza, resto de paganismo que ficou na ascetica religião christã, como remendo de purpura em fato de burel, commovia e expansibilisava a ingenua e rude alma popular, e resuscitava por momentos o nobre culto da belleza humana.
Á entrada da romaria tiveram que parar; a turba multa dos festeiros impedia os carros de seguirem adeante. Bella, entregando as redeas ao criado, saltou airosamente e n’uma confiança fraternal tomou o braço de João para atravessarem a multidão que ondeava como um revolto mar.
Logo ao apearem-se, uma mulhersinha que[138] alli estava desanimada, n’um sitio de pouca venda, junto á mina, pediu por esmola que lhe comprassem alguma coisa.
Sem esperar que João a ouvisse, atirou-lhe o dinheiro para o regaço e pegou na primeira coisa que viu, um buzio com assobio de chumbo que pretendia imitar o silvo do comboio. Achava engraçado mettê-lo disfarçadamente na bocca e fazê-lo resoar n’um apito prolongado, que se ia confundir com todos os outros que enchiam o arrayal.
Um bando de homens descia então, cantando e dançando pezadamente adeante de duas guitarras, um harmonium e um violão, que vagarosamente os seguiam.
Os dois pararam e afastaram-se para dar passagem ao toque e seus admiradores. Quando Bella ia levar o assobio á bocca, n’uma tentação infantil, um dos homens cantou, abrindo os braços n’um gesto largo que lhe attingiu a mão e lho fez voar não soube mais para onde:
Riu divertidissima com o desespero de João, que já queria ir bater no bruto.
—«Ora deixe lá—dizia.—Não vê que aquillo é um gesto lindo do amôr?
Olharam-se e, sem bem saber porquê, córaram violentamente, depois desviaram os olhos a um tempo, e sorrindo encetaram a gigantesca empreza de atravessar a multidão.
Estavam na maior balburdia da romaria. O[139] sol de setembro enchia de fogo toda aquella variegada e ruidosa confusão de côres e vozes, que, á força de disparatadas, chegavam a dar um conjuncto harmonico.
Izabella, n’uma alegria de excitação lembrou, logo que chegaram ás barracas, comprar alguma coisa que podesse trazer sempre a recordar aquelle bello espectaculo.
Mas, por mais que procurassem entre as bugigangas empoeiradas, não viam coisa que lhes désse uma idéa local.
Depois de muitas e muitas pesquizas, lembrou Bella a uma mulhersinha, que por força lhe queria vender alguma coisa:
—«Mas vocemecê não tem nada que dê felicidade, que livre de feitiços e maus olhados?
—«Isso tenho, mas é uma coisa tão somenos...
—«Deixe lá vêr, avie-se—acudiu João, um quasi nada impacientado com aquella demora sob o sol, na passagem contínua dos feirantes.
—«Eu mostro, mas os senhores não hão de querer...
A custo, como que envergonhada da pobreza da mercadoria, apresentou na tampa d’uma caixa uns anneis de ferro toscamente gravados com um X ao meio.
—«Deixe cá vêr, é isto mesmo, tem até muita graça!—E, descalçando a luva da mão direita, tirou os anneis preciosos, cujo brilho deixou a vendedora estarrecida, para enfiar o pobre e primitivo aro de ferro de que a mulhersinha affirmava as grandes virtudes para afugentar feiteiceiras e maus olhados...
—«Quer isto?—perguntou João sorrindo e escolhendo o mais pequeno d’entre os que lhe apresentavam.
—«Então, não tem caracter?
—«Tem!... É para trazer sempre, não é?—perguntou á mulhersinha, entregando um tostão para pagar o vintem do custo.
—«Decerto que é para trazer sempre—respondeu Bella sorrindo, emquanto se affastavam—se não fôsse isso não era talisman.
—«Quando olhar para esse infimo annel, tão deslocado entre os outros, pensará em mim, Bella?—sorriu melancholico.
—«Dúvida? Mesmo sem esta recordação eu pensaria em si. Então não somos já dois velhos amigos?
—«Eu sou... muito, muito seu amigo.
—«E, eu não?... Olhe que essa dúvida offende-me.
—«Se o fosse!...
—«O que aconteceria?
—«Nada, não é nada... Sempre quer ir á igreja?—perguntou n’outro tom.
—«Quero, mas é melhor esperarmos pela Maria Helena, não acha?
—«É melhor. Esperemos aqui.
Como estavam no meio do arrayal, ainda que um pouco desviados da passagem, viram a Hortensia, pelo braço do Vilhegas, esticada n’um vestido de seda, ás riscas, com boléro côr de cereja e um grande chapeu enflorado que lhe cobria a pequena cabeça de passaro tonto.
—«Não reparou que fingiu que nos não viu?
—«Talvez não visse.
—«Isso sim!... Ainda a não conhece pessoalmente?
—«Devo tê la conhecido em criança; mas, como sabe, ha uns poucos d’annos que n’esta epoca vou para fóra. Aborrece-me toda esta pretenção de terra de provincia a acapitalar-se.
—«Pois tem perdido bastante, porque ha interessantissimos exemplares d’esta sociedade que cae de podre. Esta m.ᵉˡˡᵉ Hortense Mouton, por exemplo, é deliciosa de tolice.
—«Mouton, quem é?
—«Pois não sabe que ella traduziu o appellido infamemente portuguez?
—«Ora póde lá ser! Diz isso por graça, não diz?
—«Não; é certo. Affiançou-me, pelo menos, uma das suas mais intimas amigas que tem cartas assignadas assim.
—«O que prova a eterna perfidia feminina...
—«Nem que os homens a não tivessem egual, ou peor! Olhe, não procuremos mais longe. Vê aquelles tres elegantes que seguem no coice do prestito maximiano, levando em triumpho a baroneza da Amieira?
—«Só conheço, e mal, o visconde de Alvora.
—«Esse é attaché na legação da Russia, onde nunca poz os pés, mas recebe uns mil reis diarios como official do ministerio dos estrangeiros, onde só vae nos princípios dos mezes para lhe darem o ordenado. O outro é o sr. D. Manuel Pereira de Vasconcellos, que se diz descendente do condestavel Nuno Alvares Pereira, não sei porque bullas, nem mesmo quero perguntar, para não ficar esmagada sob uma alluvião de nobiliarchias.[142] Esse é bacharel formado e espera collocações varias; não escolhe profissão. O terceiro é o sr. Jorge Cabrella, filho d’um rico negociante de cordas, mas que tem o defeito maximo de apertar os cordões á bolsa quando se trata das extravagancias do filho. É um bom homem, sem educação, mas que tem trabalhado muito e sabe o que lhe custa a vida. A mulher é que faz do filho o inutil que vê, querendo-o fazer fidalgo. Em geral são as mães que perdem os filhos, em Portugal, porque conservam o estupido preconceito da bastarda fidalguia que para ahi ficou depois da extincção dos vinculos e dos conventos—de que o trabalho é um desprezo. Sabe o que estes tres homens procuram? Uma mulher que lhes traga em dote a certeza de poderem continuar as suas vidas de ociosos. E lá vão atraz da viuva riquissima, que se fosse pobre ninguem receberia em sua casa...
—«Conhece pessoalmente a baroneza?
—«Conheço e até sympathiso com alguns traços do seu caracter, que, apezar de tudo, é energico e tem certa grandeza. Mas quem me tem fallado d’ella é meu tio, que é das suas relações desde o tempo em que deslumbrou Lisboa com o esplendor das suas carruagens e a extravagancia do seu procedimento. Dizem que muitas vezes se vestiu de homem para andar á vontade. Muitas pessoas se lembram ainda de a ter visto percorrer a cavallo as alamedas de Cintra, de charuto na bocca, acompanhada de rapazes, novos como ella, quando o velho marido se torcia nos ultimos ataques que a livraram da sua incommoda pessoa. Conta-se que[143] alguns assassinios se fizeram por sua causa... não sei! Do meu tempo não é mais do que aquillo, uma viuva rica que se diverte a arrastar uma cauda de pretendentes.
—«São-no aquelles?
—«Com certeza. Mas a baroneza faz-lhes partida, a todos. Não creio que venha a casar, ella que comprou a liberdade e a riqueza que hoje disfructa com os melhores annos d’uma mocidade torturada por um velho avarento e mau; mas, a casar, será com o administrador que lhe tem augmentado a fortuna. Entre todos o que mais merece, o pobre Bento da baroneza, como lhe chamam por lá.
—«Mas tudo isso não prova que aquelles tres rapazes vão alli com essa pretenção ignobil, porque nenhum decerto lhe tem amôr.
—«Mas teem-no ao dinheiro, e procuram-no onde o encontram.
—«Como se pode affirmar isso?
—«Perfeitamente. Na capital eram meus admiradores...
—«E não são aqui?
—«Achei um pó insecticida para os afugentar...
—«Não poderei saber a receita?
—«Talvez precise... tem o merito que eu tinha lá...—ria com muita vontade.
—«Então diga.
—«É segredo entre a Maria Helena e eu, mas ao João digo, vá lá.
—«Obrigado pela confiança, vamos então a saber.
—«Fiz constar que vinha para aqui de mal com meu tio... Percebe?
—«Não, confesso que não percebo.
—«Pois não sabe que meu tio representa uma das maiores fortunas que habitam Lisboa? Pois bem, meu tio criou-me como filha e não tem mais parente nenhum. Quem é, pois, a sua presumida herdeira?... Bom, agora supponha que estou mal com esse tio, eu, que não tenho fortuna propria...
—«Não diga isso! Rapazes a entrarem na vida são lá capazes d’um cynismo d’esses!
—«Creia que é a verdade mais verdadeira.
—«Pensando assim, como pode ter relações com elles?
—«Que ingenuidade a sua! Se fossemos a só fallar aos bons, aos honestos, em pouco tempo teriamos que nos esquecer da linguagem, por inutil... A comedia social diverte-me, porque me não prende nas suas mentiras e vaidades.
—«V. ex.ᵃ poderá fazer isso pela sua educação muito ingleza e pela independencia em que a colloca a fortuna de seu tio. No entanto, parece-me que ainda ha de soffrer com o contacto d’essa gente tão pouco digna. Cá por mim prefiro viver só.
—«Tambem eu preferiria, mas como estou na sociedade em que elles estão, divirto me a observá-los e ás vezes a fazer-lhes partidas. Pois não acha engraçado que elles me julguem de mal com meu tio, aquelle adorado tio William que nunca teve para mim senão palavras consoladoras e risos de approvação?!
—«É muito seu amigo, não é?
—«Muito! É toda a minha familia, e não havia mãe nem pae que fossem mais bondosos e[145] disvelados do que elle tem sido. Não ha ninguem melhor, mais delicado, mais instruido, mais consciencioso, mais artista!
—«Mas que enthusiasmo!
—«E tudo elle merece, creia. Depois me dirá.
—«Espera o aqui?
—«Recebi carta hontem e diz-me que não supporta a Inglaterra sem mim... que vem buscar-me ou estar commigo, como eu quizer. A minha vontade é a sua.
—«Como estão, miss Isabella Burns e o sr. João de Mello?—comprimentou por traz d’elles e com um risinho de mofa o Conselheiro, que o padre Mathias acolytava.
—«Nós perfeitamente bem, e o sr. Conselheiro parece tambem que não ha mal que lhe chegue—respondeu Bella, olhando o d’alto, com um ligeiro tom de impertinencia.
—«Então os Viscondes não vieram?
—«Estamos esperando que cheguem para irmos á igreja. Creio que o sermão não se dirá sem a comparencia de quem tanto dá para a festa.
—«Ora! A Senhora do Monte não precisa das esmolas dos ricos, tem bastante dos pobres—acudiu brutalmente o padre Mathias.
—«No entanto, a missa não principiou ainda, pois que vemos por aqui o sr. padre Mathias.
—«Já lá estão a cantarolar. A mim é que só na ultima extremidade me apanham para aquellas maçadas. Logo de madrugada disse o missóte a uma gentinha que me pagou bem e ainda logo me dão da merenda...
—«Bom negocio, hein?—sorriu o conselheiro para aquelle seu infatigavel agente.
—«É como diz.
—«Miss Bella não está aborrecida com esta algazarra?
—«Não, pelo contrario, diverte-me, porque é uma novidade para o meu espirito. Agora o Conselheiro aqui é que é para admirar.
—«Os negocios... Aborrecimentos e cuidados é que passeiam por aqui os meus cabellos brancos. Miss Bella tem melhores companhias...
João franziu o sobrolho e ia responder azedamente, mas a rapariga não o deixou, continuando com malicia:
—«E no entanto já me não acompanham titulares nem descendentes de figuras primaciaes como Nun’Alvares...
—«Quem tem essa ascendencia illustre?
—«Pois será possivel que desconheça esse avô ao seu hospede sr. D. Manuel Pereira?
—«Tambem não é grande honra descender d’um assassino e ladrão—intrometteu se a dizer, o padre, querendo sempre saber de tudo.
—«Não se trata de Diogo Alves, o assassino celebrado pelas figuras de cera. É do santo Condestabre, D. Nuno Alvares Pereira. Conhece?—respondeu João muito a sério.
—«Ná, esse não sei quem é.
Isabella, com o lenço na bocca, ria perdidamente, emquanto o conselheiro, imperturbavel, fazia as suas despedidas.
—«Que estupido!—dizia depois para João.
—«Não é! Ignorante, faccioso e maledicente sim, mas de bruto não tem nada.
—«O que a Maria Helena se demora! São[147] capazes de faltar ao sermão. Vamos vêr se os encontrâmos?
—«Vamos lá.
Tornaram a atravessar o arrayal. A um lado, sobre uns penhascos, toda uma familia de padre acampára comendo o farnel. João, que era conhecido, foi chamado pelo padre Miguel, que esbrugava uma perna de gallinha com os seus rijos dentes de velho sadio.—Que não acceitava, mas agradecia, respondeu João tirando o chapéo delicadamente.
—«Homem, não seja esquisito, nas romarias não se olha a etiquetas. A sr.ᵃ sua prima talvez goste do nosso vinhito branco...
Isabella pensou, pela primeira vez, que era na verdade temerario affrontar assim os preconceitos portugueses e provincianos principalmente, apresentando-se n’uma festa tão publica com um rapaz que lhe não era familia. Na sua altiva honestidade de rapariga educada para se guardar a si mesma e responsabilisar-se pelos proprios actos, não comprehendêra o que o seu procedimento podia ter de inconveniente aos olhos de toda essa gente, habituada a tudo fazerem menos desprezar as linguas do mundo... Fizeram-na córar mais do que o proprio sol, os olhares curiosos das mulheres que arranchavam com o padre Miguel e melhor a distinguiam da Candida, por quem o velhote a tomou. Lembrou-se do risinho do Maximiano ao encontrá-los, e essa lembrança feriu-a como um insulto. A garganta apertou-se-lhe n’uma crise de choro, vencida com esforço.
Quando a Viscondessa se apeou, correu para[148] ella n’um impeto de reconhecimento e disse-lhe, desopprimida d’um certo mal estar que lhe obscurecia a alma:
—«Como se demoraram tanto?!
—«Nós viemos cuidadosamente, porque a estrada esta má e a concorrencia é enorme. Vocês é que parecia que tinham azas; fizeram successo...
Beijaram-se; Bella tomou-lhe o braço e não mais a largou, como criança atemorizada que se acolhe á protecção materna e só alli encontra valor para resistir.
Na igreja a missa da festa ia effectivamente em meio, mas o sermão demorara-se porque o conego Almeida, pago pelos Viscondes e seu commensal, aguardava na sachristia que elles chegassem para subir ao pulpito e encher a igreja com a sonoridade da sua voz.
Curvou-se deante da Viscondessa com requintes de cortezia, a que ella correspondeu sorrisonha, apresentando-o aos seus hospedes e comprimentando-o antecipadamente pelo seu discurso, que devia ser bom, como sempre... Depois, com o seu pisar firme e gracioso ao mesmo tempo, atravessou a capella-mór, onde tinham logares reservados, baixando a cabeça aos Maximianos, que os defrontavam, como potencia a potencia.
O templo, bastante grande, doirado e pintado de fresco pelas ultimas eleições, estava cheio a não poder mais...
Isabella, que na vespera o tinha visto a meia luz servindo de dormitorio aos romeiros pacatos,[149] quasi o desconhecia na gloria do sol entrando pelas janellas com cortinados vermelhos, no triumpho das luzes, do incenso subindo em espiraes e dos ricos paramentos.
Desinteressada das lithurgias, deixava que os seus olhos e o seu espirito vagueassem pelo recinto sagrado sem que a isso a levasse uma consciente vontade, e sem mesmo pensar deixou-os perderem-se na contemplação dos ex-votos, que se alinhavam como um rosario de lagrimas na parede fronteira. Sorriu complacente aos laudatorios quadros em que a cama e o doente, na ausencia de toda a perspectiva, se alevantam no mesmo plano, em agradecimento á milagrosa santa que arrancára o infeliz condemnado da escuridão sepulchral... Tranças de cabello, roídas pela traça, junto das offertas de cera, amarellecidas umas pelo tempo, diaphanas ainda, como da ultima hora, outras, cabeças, pernas, braços, todo o corpo humano sujeito á dôr, baralhado e destruncado pelo acaso do soffrimento... Mortalhas amarfanhadas e destingidas, pequeninos caixões com bonecos representando a vida d’uma criança resgatada de prematura morte, caixões esguios para homens, outros brancos para virgens...
Tanta desgraça, tanta miseria a acolher-se á crença no milagre, como se a vida sem elle não fosse mais do que um desterro! Bella evocava as dôres que representavam essas offerendas, e a sua alma energica confrangia-se n’uma duvida, n’uma como ansiedade de quem presente que o temporal se aproxima e não tem a certeza de se achar bem couraçado para a resistencia.
Como um raio de sol a alegrar uma enfermaria, as fogaças lá estavam tambem com as suas offertas de milho ou pão de ló em açafates armados em alta roca com flôres e laços enastrados. Nem todas formosas, mas alegres e sadias na graça hesitante do sahir da infancia, com seus vestidos brancos e os peitos cobertos de oiro, ellas representavam tambem um reconhecimento e uma crença, mas a sua offerta significava abundancia e vida; a sua crença ingenua transformava-as em oblata inconsciente ao culto da alegria e da mocidade.
Por fim os seus olhares cahiram sobre os homens de sorriso unctuoso, que recebiam as esmolas, e pensou com amargura na ingenuidade que a hypocrisia explora sempre...
N’esse momento todos se levantaram e sentaram, tossindo, escarrando, installando-se com a maior commodidade compativel com o espaço, para ouvir o sermão.
Depois d’alguns momentos de recolhimento, o conego Almeida ergueu-se no pulpito; alto, moreno, a bocca n’um risco de amavel sorriso, a face azulada de muito escanhoada, o olhar firme, de quem tem a certeza de possuir o auditorio.
Isabella olhou-o e logo recahiu no inconsciente scismar que a levava não sabia para onde, que a tornava tão estranhamente indifferente ao que se passava.
—«O amôr—dizia o conego com a sua voz propositadamente espaçada, para que as palavras se seguissem umas ás outras, n’uma ordem de formatura—é a base da vida. É o principio e o fim de todas as coisas...
Bella ouvia phrases truncadas que lhe entravam na alma e mais a mergulhavam no mysterioso cogitar em que se embebêra.
O amôr!... Era a segunda vez que n’essa manhã o ouvia proclamar, por bem differentes vozes, e com intenções diversas. Sim, porque devia ser o amôr divino esse a que o orador se referia, mas era amôr, alguma coisa superior e forte que transforma a vida e das mais aridas almas faz brotar flores de poesia...
A Viscondessa julgou-a adormecida quando, no fim da festa, lhe tocou no braço e a viu estremecer n’um sobresalto de estremunhada.
—«Dormias? Estarás doente!?
—«Não... O espirito é que me parece que sonhava...
—«Então gostaste do conego?
—«Gostei, é eloquente.
Os Maximianos abeiraram-se, a comprimentar. Era para o dia seguinte o pic-nic projectado e era preciso pormenorizar os ultimos arranjos. A Viscondessa pedia que se não encommodassem; era mais um jantar dado na quinta, para evitar etiquetas, do que verdadeiramente pic-nic, em que todos são obrigados a fornecer iguarias.
Despediram-se depressa para irem até á porta, onde os homens esperavam já; mas ahi pararam estonteadas.
Toda a gente corria, gritando n’um terror pânico; as mulheres agarravam as canastras e fugiam, encolhendo-se, cobrindo-as com o corpo; outras seguravam os homens ou chamavam os filhos; crianças gritavam desesperadamente e todos gesticulavam e fallavam sem que fosse[152] possivel comprehender o que assim alarmava e varria o arrayal, havia pouco tão animado e alegre.
—«O que foi, o que foi?!—perguntaram as senhoras vendo o dr. Ramalho dirigir-se apressado para casa do sachristão.
—«Um homem morto, um homem morto—commentava-se de todos os lados.
—«Não se assustem—disse o Visconde—nós vamos acompanhá-las á carruagem e depois lá iremos ter a casa.
—«Oh Duarte, será melhor não sahirmos d’aqui—aventou a Viscondessa.
—«Não póde ser. Se o povo se lembrasse de invadir a igreja, o que seria de vós? O mais seguro é partirem já.
—«Oh sr. Visconde, não nos abandone, ai que horror! Eu morro de mêdo!... Só de vêr este barulho já estou mal—gemeu a Candida enfiada.
—«Não se afflija, minha senhora, isto não é nada, não ha perigo nenhum, vamos aqui por detraz da igreja, não chega cá, a balburdia!...
—«O melhor é tu dares o braço á sr.ᵃ D. Candida, Duarte. Bella e eu vamos com o João; como somos mais corajosas, basta um defensor para as duas... V. Ex.ᵃˢ sigam-nos de perto, ou se preferem vão adeante, como entenderem...—determinou a Viscondessa, voltando-se para os hospedes, não deixando de aflorar-lhe nos labios o mesmo sorriso de calma delicadesa.
A confusão e a berraria vinham do primeiro largo, de ao pé das pipas desramalhetadas do[153] vinho forte da região, e elles affastavam-se seguindo por detraz da igreja e descendo um bocado de serra até á estrada real, que se desenrolava em caprichosas curvas costeando o monte.
—«Gostava de vêr aquillo de perto—disse Isabella para a Viscondessa e João, ouvindo distinctamente o entrechocar-se dos varapaus e a grita descompassada—deve ser um simulacro de batalha.
—«Isso sim! Tudo aquillo é do vinho a rôdos... Não tem grandesa nem belleza. É raro o anno que não ha desgraças n’esta romaria.
—«Lembra-se de ha dois annos, prima? Ficou ferido o morgado Albuquerque. O que a Pillar se impressionou de o vêr lavado em sangue, cuidando que estava morto! Lembra se?
—«Lembro-me muito bem...
—«Quem serão este anno as victimas?!...
—«O que tens, Bella, estás doente?—perguntava a viscondessa carinhosamente, passando o braço pela cinta da amiga e levando-a para fóra da clareira onde os criados preparavam a meza para o jantar.
—«Porque perguntas isso?
—«Porque ha dias que te vejo entristecida, silenciosa, tão mudada que nem já me pareces a minha Bellasinha, a alegria de nós todos!
—«Todos!...—e suspirou fundamente.
—«Todos, sim; temos duvidas de menina romantica? Mas o que sentes?
—«Nem eu sei. Creio que estou na mesma; não sinto nada, não me doe nada.
—«Naturalmente foi o sol da Senhora do Monte que te fez mal...—disse-lhe ainda a viscondessa, sorrindo com uma pontinha de amigavel malicia.
—«Não me fez mal nenhum; e porque havia de fazer? Estou habituada a sahir com todo o tempo. Não tenho nada, sinto-me bôa... Pois tu não vês que estou na mesma?...—e olhava para a amiga, tentando convencê-la, appellando[156] para uma força que já não tinha, a da serenidade d’ânimo.
—«O que querem então dizer essas lagrimas a bailarem-te nos olhos?... Queridinha, não se tem impunemente vinte e dois annos!
—«Mas o que tenho eu? Oh, Mary, se sabes o que sinto, se desconfias alguma coisa, dize, por Deus te peço! Eu não sei o que é.
—«Deveras?... Á tua cabecinha tão ajuisada não veio nunca o pensamento de que ha em nós um coração, um doido, que se póde conservar adormecido, mas que em acordando faz sempre loucuras?!...
—«Mas que loucuras póde fazer o meu, que tão egualmente reparto entre ti e meu tio?
—«E mais ninguem merece a sua sympathia, minha senhora?!... Nem aquelle que alem vem com tão melancolica sombra?—perguntou-lhe ao ouvido e indicando João que se aproximava acompanhado pela Candida e seguido por mais pessoas que vinham ao pic-nic.
—«João? Sou muito amiga d’elle, sou, mas que tem isso de extraordinario? Não é teu primo, quasi filho pela amisade? Estimo-o por isso como a um irmão muito querido.
—«Sabes? É custoso acreditar n’essa amisade fraternal entre uma rapariga como tu e um rapaz como o João, educados n’um meio de intellectualidade que lhes fará difficil a escolha em Portugal, ambos livres e comprehendendo-se bem... Elle é muito bondoso; gostava que se entendessem definitivamente. Não te poderia vêr casada com qualquer homem, Bella. Seria uma profanação vêr-te nas garras d’esses abutres...[157] de dotes. E tambem não gostava de vêr o João ligado á maior parte das mulheres que conheço.
—«Eu não me casarei nunca!
—«É possivel, mas não é provavel, filha. Eu sei que não admittes o casamento como estado social, como unico emprego para a arrumação da mulher, mas és muito affectiva e muito expansiva para que as amisades de teu tio e a minha, por maiores que sejam, te possam encher a existencia.
—«Maria Helena—respondeu Bella sombriamente—tu sabes o segredo tristissimo da minha vida, comprehendes que não posso casar, que não posso, ou não devo, gostar d’elle, de ninguem que seja honesto. Não, não posso amar a sério!...
—«Oh, filha!...
—«Sou brutal, não achas? Mas concorda em que sou rasoavel. Imaginas que teria a triste coragem de contar ao João, ou a outro qualquer homem que amasse—e se o amasse é porque o julgava honesto e bom—que meu pae fez dividas que não pagou, e jogou o que tinha e o que não tinha, fugindo sob a maldição de toda a sociedade, e vive sabe Deus em que miserias, ou morreu de fome e vergonha?! Querias que impudicamente abrisse a minha alma e lha mostrasse despedaçada como ma fez a vergonha de meu pae? Querias isto? Não! Ha muito que resolvi não casar, para me não prostituir acceitando qualquer d’esses sem honra nem brio, que pouco se lhes daria do nome de meu pae fazendo-me meu tio sua herdeira. Julgava-me[158] forte, incapaz de gostar d’um homem a ponto de me parecer um martyrio incomportavel a memoria d’aquelle, que, apesar de tudo, foi um carinhoso pae!...
—«Isabella, imaginas que o João te accusaria das faltas de que não és, não podes sêr por fórma alguma, responsavel?...
—«É natural; por isso que é honesto, é que mais lhe deve repugnar a filha d’um...
—«Cala-te! Encommoda-me vêr-te assim. Não, o João não era capaz d’isso. Tenho mesmo a certeza que deve já ter havido alguma bôa alma que lhe dissesse não só a verdade, como a mentira... E vê lá se elle por isso te abandona um instante.
—«Talvez não saiba nada... Ninguem seria capaz d’essa infamia. Não é a mais negra das vilesas essa de contar a vida dos outros?...—um soluço fundo apertou-lhe na garganta a voz ansiada e terminou, quasi n’um tremulo de lagrimas:—Porque me não hão de deixar gosar esta dôce amisade espiritual que tanto me consola?... É tão bom, tão delicado, tão ao contrario dos outros, que o meu espirito, educado no despreso pelos homens, se depura e eleva na convivencia do d’elle.
—«Pois farás o que entenderes, com a condição de te não vêr triste e muito menos infeliz.
—«Cumprindo o meu dever não o poderei ser, não é verdade?
—«Se o dever nos desse felicidade!... Depois, o dever é tambem ser franco para quem estimamos...
Chegou n’esse momento o grupo em que vinha[159] o João, um pouco affastado e silencioso como sempre, n’aquellas companhias.
A Candida, radiante, dava o braço ao Visconde, e jungia ao seu carro triumphal o Braga, cada vez mais apaixonado, e os rapazes hospedes da casa.
Depois da ceremonia dos comprimentos, dirigiram-se em festiva algazarra para o sitio destinado para a festa, uma clareira entre arvores seculares onde se cruzavam ruas de copados cedros. D’uma cascata, perto, a agua cahia a cantar de pedra em pedra por entre as begonias velludosas, os fetos arrendados e a avenca franzina.
Chegava o juiz, arrastando a perna gottosa ao lado da mulher vestida de côr de canna,—«com um fato usado, explicava o marido, porque para festas no campo não se podia levar coisa boa.
O dr. Pinto veiu logo atraz, rindo sempre muito alto, a sacudir as barbas brancas de propheta; depois chegou o Domingos, de sobrecasaca preta bem lustrosa como se assistisse a casamento ou enterro. As cunhadas, as manas Rebellas, falladoras e alegres, mettiam as raparigas a um canto. E vieram ainda as meninas Costas e as Souzas, a rir e a gralhar, guinchando a proposito de tudo e de nada: achando pilhas de graça ao Móttasinho, chamando o Neves para a sua róda, olhando para o Telles como para uma praça forte a desafiar conquista.
Por fim, fazendo se propositadamente esperar como pessoas reaes, chegaram os Maximianos, com espavento e comitiva. O padre Mathias á frente, a baroneza pelo braço do conselheiro,[160] o Jorge Cabreira fallando ao ouvido da conselheira n’uma intimidade que trazia sorrisos a todas as boccas. No coice do prestito, mademoiselle Hortense, entre o Vilhegas e o visconde d’Alvora, com o descendente de Nun’Alvares ao lado. Toda de escarlate, com cinto preto, semelhava uma papoila, e ria, encantada com aquella festa:—d’um chic hors ligne. Perfeitamente aristocratica: já lhe parecia estar em Cintra ou n’outra villegiatura civilisada. Nem menos de tres viscondes, um conselheiro, uma baronesa e duas viscondessas, não fallando dos bachareis, que esses eram a élite do pensamento—voltava-se toda para o Vilhegas, envolvendo-o n’um olhar desvanecido e languido.
—«Oh, mademoiselle Hortense, sabe lá o que é vêr titulares reunidos!—commentou o d’Alvora, desdenhoso.—Em Portugal não ha o que se póde chamar uma nobreza. Em Hespanha, sim, aquillo é que é grandeza! Uma vez em casa do duque d’Ossuna, a uma ceia, reunimo-nos seiscentos titulares.
—«Ih!... Essa agora foi d’arromba; o que vale é estarmos ao ar livre, oh Visconde!—commentou o D. Manuel Pereira.
—«Não acreditas? Pois olha que em Hespanha ha trezentos duques, fóra o resto. Palavra d’honra, oh menino!...
Quanto mais crúa fosse a mentira, com mais segurança elle fallava, endireitando-se, estendendo a mão em juramento, torcendo o bigode encerado.
Decididamente, mademoiselle Hortense estava com a sua gente. Era impagavel aquelle Visconde.[161] Ninguem como elle para marcar um cotillon e saber fallar a uma grande dame ou a uma jeune fille na ultima corrida de Longchamp, na cantora em voga, nos escandalos de foyer, no couplet mais gamin. Tinha como ninguem o savoir vivre d’un vrai azuré. Não era possivel sem elle fazer-se uma festa distinguée—explicava ao Vilhegas, um pouco deslocado entre aquella fina flôr da elegancia lisboeta.
A Viscondessa ia-os recebendo a todos com aquella amabilidade que chega a ser natural á força de usada nas pessôas de que a posição social fez escravos. Ouvia o juiz gabar o peixe assado que mandára, uma especialidade lá da casa—ella diria depois se a mulher não tinha um optimo paladar de cosinheira...
Respondia gentilmente a um e a outro, procurava para cada qual a phrase mais propria a causar-lhe a satisfação da vaidade, sabendo de ante-mão o que interessava a toda essa gente para quem o marido lhe pedia que fosse amavel.
Isabella acompanhava-a como de familia e ajudava-a com um interesse que não estava nos seus habitos e a affastava de João, que, junto do dr. Ramalho e outros, ouvia os commentarios á romaria da vespera.
—«Creia você, dr. Pinto, que o homem não está nada bem; deram-lhe a matar com um marmeleiro que lhe circundou a cabeça; não affirmo que se salve.
—«Oh diabo, que lá se vae um quarenta maior!...
—«Dois, porque o Manuel Duarte, da Povoa,[162] é que bateu,—veiu dizer o padre Mathias com um arsinho picante de troça.
—«Ainda se não sabe quem foi.
—«Foi elle, ha testemunhas. Além d’isso, você bem sabe que ha muito que andavam de rixa por causa da agua da Lameira.
—«É o mesmo, elle ou outro, o exame medico é egual—respondeu o dr. Ramalho.
—«Se os não corrompo na conversa...—achegou-se o Domingos.
—«Ora essa!—riu ás escancaras o dr. Pinto—o amigo Domingos não corrompe ninguem, nem a si mesmo, é incorruptivel.
A conversa estirou-se renhida sobre o assumpto que a todos interessava como caso que se dera quasi á sua vista e que tanto peso tinha na politica local.
No mais acceso d’ella, affastou-se o padre Mathias sorrateiramente e chamou o Maximiano a um lado.
—«Sr. Conselheiro, nas eleições dos quarenta temos o Manuel Duarte por nós.
—«A esse tempo deve elle estar na Penitenciaria, homem.
—«Não irá para lá, se V. Ex.ᵃ quizer. O caso é que não morra o Cabral, de S. Mamede...
—«O que quer você dizer com isso, padre Mathias?
—«Depois lhe explicarei. Vá segurando o juiz, que eu logo fallo com o da Povoa. O Ramalho não percebe nada de politica. Perder um quarenta maior sem mais nem menos... é parvoeira... Eu vou fallar ao Vilhegas. Não percebe a tramoia?
—«Eu não, por emquanto ainda não attingi o que você quer.
—«Não me posso agora explicar. Só duas palavras: supponha que o homem não morre e o juiz manda fazer novo exame e esse exame é feito por medico nosso, que do processo de jury faça um processo criminal de galão branco, em que o réo fica á mercê do juiz...—atabalhoou confidencialmente.
—«Sim senhor, sim senhor, você vale um thesouro; não ha de ser um triste abbade de aldeia—aqui é que eu o quero!—o velhote que trate das contas e do breviario.
Deixando radiante o incansavel galopim, encaminhou-se para o juiz, fingindo naturalidade, fallando com um e com outro, até que o poude abordar. O padre chamou o Vilhegas e arrastou-o para longe da criadagem, que se azafamava nos ultimos detalhes da meza.
—«Está por isto ou não está?—ouviram-lhe ainda dizer.
—«Se o conselheiro fizer empenho—respondeu a meia voz o medico.
—«Nada que não ha de fazer, é uma cartada de mestre. Se é! De uma assentada apanhamos os quarenta em que elles teem tido a maioria. É um rombo d’alto lá com elle. Se o Manuel Duarte vae comnosco, temos mais o pae e os dois cunhados marchantes... O Cabral, doente... É como lhe digo, quando mal se percatam temos o concelho na mão. Uns parvalhões que ainda fazem politica com lealdade...—e ria surdamente, satisfeito de si.—E você? vae ou não vae adeante com o negocio do casorio?[164] Olhe que o pae gosta de você, homem, basculeja-me até de que o prefere para genro antes do que a esses bonifrates de Lisboa.
O Vilhegas, n’um d’aquelles rasgos de quixotesco orgulho que são sempre de effeito em almas de meridionaes, e de que elle abusava, um pouco sinceramente, tambem, sem mesmo dar por isso, respondeu com emphase:
—«Sim, tambem me parece que elle me vê com bons olhos. O padre Mathias comprehende que sendo eu, como elle, filho do meu trabalho e da minha intelligencia, o conselheiro me estime. Os meus pergaminhos são as cartas de bacharel conferidas pela Universidade de Coimbra. Hei de subir e fazer subir os meus; agora lá vae o meu irmão Pedro para Coimbra, e em breve poderei dizer que tenho mais um bacharel na familia!
O padre Mathias, muito terra á terra, não percebeu, n’aquellas phrases descosidas, o embryão de um discurso de futuro deputado da minoria affirmando os seus principios democratas e liberaes, para mais depressa ser chamado ao paço e entrar nos salões da alta burguezia que tem titulos e dinheiro, e nas relações dos grandes nomes historicos, que, apesar de tudo, ainda exercem influencia no espirito d’esses ambiciosos ansestralmente servos, a quem a educação e a vida ensinou o caminho por onde se sobe aos pinaculos de uma sociedade em descalabro, mas não ensinou a verdadeira liberdade, que só dão o trabalho e o despreso por taes processos e correlativos premios.
—«O que é verdade é que você tem boa[165] familia—affirmava o cura—O João com uma fortuna d’aquellas, a Candida uma belleza... Olhe a roda que lhe fazem todos esses janotas da capital.
—«Que me importa d’esses parentes que só valem pelo dinheiro e pela formosura? Eu valho pelo talento, que é mais.
—«Decerto que é. E a pequena, a Hortensia?
—«Veja como ella já me anda procurando com os olhos.
—«Bom, bom, homem, isso é que eu desejo. É aproveitar, olhe que a fortuna não bate á porta duas vezes... Depois, veja lá se esquece dos amigos, hein?!—batia-lhe no hombro com familiaridade:—Olhe que fui eu que o apresentei em casa do conselheiro...
—«Protegê-lo hei, pode crêr—terminou o outro com importancia.
—«O que andará o cura a tramar?—dizia o dr. Pinto ao ouvido do Ramalho, que encolheu os hombros indifferente.
—«Minhas senhoras e meus senhores, dizem os praticos que vamos emfim ser servidos—gritou o Visconde alegremente.
As conversas suspenderam de prompto e todos, n’uma celeridade que denotava bons appetites, correram para a comprida mesa de pedra, que comportava mais de cem convivas.
Cada qual procurou o logar que melhor convinha aos seus interesses e affeições, foi o motivo por que Bella se encontrou, sem saber como, á direita de João de Mello e com o Telles á esquerda.
Defronte assentava-se a Viscondessa e a muito espirituosa Viscondessinha de Pereira, sua hospede e amiga, casada com o mais condescendente dos maridos e não sabendo que mais mal dissesse do casamento—essa prisão celular para um espirito de mulher superior—dizia. O pobre rapaz, de um loiro deslavado e uns olhos de velha porcelana desmorecida pelo uso, olhava-a encantado com tanta graça e belleza e considerava o casamento a melhor das instituições.
Seguia-se o Ramalho, o dr. Pinto, a baroneza com a sua côrte de pretendentes, e ao fundo o Visconde junto da Candida, que enfeixava no seu côro de louvadores o Braga e os mais rapazes de fóra que a sua excepcional belleza attrahia.
—«Está doente, miss Bella?—perguntou João, cuidadoso, á sua visinha.
—«Não, porquê?
—«Ainda a não vi comer nada...
—«As deusas não comem mais do que petalas de rosa e bebem a doce ambrosia—respondeu do lado o Telles, com o seu ar pretencioso de janota e lyrico provinciano.
—«As do Olympo, pode ser... As que habitam este valle de lagrimas achariam pouco substancial—alimento tão poetico.
—«As senhoras vivem de poesia.
—«Já vejo que sou o escandalo do meu sexo, pois prefiro um sangrento bife á ingleza a uma grinalda poetica. Uso de um appetite nada ideal, como vê.
—«Mas hoje está-se desmentindo, miss Bella—censurou com bondade o João.
—«Ora! Pois, se tenho estado sempre junto dos cestos da merenda, fui-me aproveitando da situação...
—«Fallaram para ahi em bifes—reclamou o dr. Pinto—onde é que ha bifes?
—«Aqui, vindos da casa do sr. Conselheiro—respondeu da extremidade da mesa a voz grossa do padre Mathias.
—«Deixe lá ver isso, homem, não faça monopolio!—Recebeu o prato esbracejando alegre, serviu-se abundantemente, comeu e ainda com a bocca cheia dirigiu se ao Maximiano:—Estão muito bons, estão optimos, uma especialidade, sim senhor. Ainda assim, Conselheiro, não chegam aos calcanhares dos que se comiam na hospedaria de sua mãe, a sr.ᵃ Joaquina, lembra-se?
O conselheiro mordeu os beiços e agradeceu com um sorriso amarello a lembrança do dr. Pinto. A conselheira, vermelha como a lagosta de que se servia com gulodice, voltou-se para o Cabreira e achou intoleravel aquella gente de provincia. Se a familia do marido e principalmente aquella mãe estalajadeira eram o pesadello da burgueza afidalgada, que não perdia a occasião de fallar nos tios, titulares da ultima hora, que nas quintas phyloxeradas do Alto Douro tinham encontrado o filão d’uma grande fortuna e pelas praias e thermas passeavam as filhas e as flatulancias dos seus estomagos.
A Hortensia é que não tinha ouvido nada, entretida como estava a dizer para o Vilhegas,—que a lingua franceza era afinal muito pobre.
—«Não ha maneira de se dizer é preciso!
—«Ha—respondeu muito sério o dr. Ramalho—é que V. Ex.ᵃ se esqueceu.
—«Como, então?
—«Il est précis...
—«C’est vrai, c’est vrai!...—continuou muito interessada a sua conversa em francês, não reparando no fungar sarcastico dos que tinham percebido a troça do medico.
—«Oh Visconde—chamou o d’Alvora com emphase—nós agora podiamos dizer como n’aquella historia dos Viscondes: Sêmos aqui tres Viscondes! É sêmos ou samos?...
—«É verdade, o terceiro era o mais prudente, que respondeu não saber. Temos bons colegas, não ha duvida...—respondeu o amphytrião rindo e deixando cahir sobre alguns dos convivas o seu olhar scintillante de ironia.
A festa prolongou-se pela tarde fóra sem esmorecimento de animação. Os ditos voavam de conviva para conviva, ás vezes do fundo para o principio da mesa, n’um esfusiar de alegrias despreoccupadas que contrastava rudemente com o luminoso e tranquillo cahir d’aquelle dia estival.
Ás gargalhadas e ás vozes juntava-se o tinir dos copos e dos talheres n’uma algazarra e sem cerimonia, para a qual os criados davam o seu contingente, correndo, fallando, pedindo coisas uns aos outros, n’um reboliço que unicamente lhes desculpavam n’aquelle caso excepcional.
Terminara o jantar, que já só era seguido pelos mais destemidos campeões do garfo e faca. Já d’aqui e d’alli rompiam effusivos os brindes que as pragmaticas baniram dos grandes jantares de ceremonia.
Bella, que durante todo o tempo conversara com João e com o Telles, disse a este, vendo-o recusar o vinho loiro e perfumado que o chefe da mesa vinha offerecendo:
—«O quê?! O sr. Telles não bebe vinho?!
—«Oh! não, minha senhora! Não posso tomar nada que me excite os nervos doentiamente emotivos...
—«É incrivel! Um poeta não beber o nectar que reluz como topasio no fundo da copo, é quasi uma blasphemia. Não sei que poeta latino disse que parecia impossivel que se trocasse por miseraveis moedas de prata o oiro liquifeito e perfumado que se vertia em taças de crystal, nos banquetes da civilisada Roma!?...
—«Apesar de toda a sua decadencia ainda podiam com isso os descendentes de Romulus, mas nós, os abastardados filhos dos grandes navegadores, com os nervos crispantes como temos...
—«E porque tem assim os nervos? Uma raça só é decadente quando o quer ser pelo desleixo da sua educação e costumes... Mas não vamos entrar agora em sabias discussões educativas, que mal iriam a um fim de jantar em pleno campo. Diga-me antes, que mal lhe poderá fazer uma gotta de Kumel tomado com o café?
—«Mas se eu tambem não bebo café!
—«Tambem não? Nem fuma, aposto! É então um verdadeiro regimen de abstinencia a que sujeita esses pobres nervos pelo crime de sentirem a vida com mais acuidade?!...
Divertia-se a faze-lo fallar, com a presumpção do costume, sobre a neurasthenia artistica que[170] dizia ter contrahido desde que perdera noites e dias a escrever o livro de edição esvaída, que dava a toda a gente: Verde mar... Para se divertir com o espanto do Telles tomava um ar masculinisado que não tivera nunca, apesar da sua livre educação feita ao lado do tio, errando pela Europa em busca da egualdade de clima, que, dizia elle, os medicos lhe recommendavam e só uma constante emigração pode fornecer aos super-civilisados que o requinte do luxo e da arte fizeram regressar ao nomadismo dos povos primitivos.
—«Pois eu, sou exactamente o contrario—continuava a rir—posso beber impassivelmente todos os excitantes porque os meus nervos, se é que os tenho, não se lembram de me encommodar.—Pegou na garrafa e continuou com ironica amabilidade.—Bebe, sr. Telles? Só hoje, para nos acompanhar...
—«V. Ex.ᵃ manda! Beberia até a cicuta que matou Socrates offerecida por tão delicadas mãos—respondeu desvanecido, apresentando o calice.
—«Não posso agradecer-lhe o desejo de fazer das minhas pobres mãos cumplices de tão nefando crime. Agora, sr. Telles, á minha saude, e a voltar—levou o copo á bocca e pousou o com naturalidade, vasio, sobre a mesa.
Quando olhou para o pharmaceutico e o viu torcer-se em caretas caricaturaes e apertar o estomago como quem se escaldou, partiu na mais sonora gargalhada que durante a festa se tinha dado.
João não poude deixar de sorrir das caretas[171] do Telles, apesar da tristeza que lhe causava ver esse espirito habitualmente calmo e simples estorcer-se em risos de troça, n’uma desforra da natureza, que não esquece nem poupa, que no rosto angelico, na alma limpida de Bella apresentava quando a amargura lhe acicatava os nervos, um como reflexo do sangue d’esse pae que era ainda para elle um mysterio, mas que lhe diziam, em carta anonyma, aventureiro e elegante, sem escrupulos nem piedade, o homem de mais espirito e de mais coragem que se tem apresentado a deslumbrar e a enganar Lisboa.
—«O senhor acha isto forte?—dizia ella ainda a rir.
—«É lume, minha senhora.
—«Pois eu achei tão agradavel que vou repetir; dá-me, João?
—«Oh Bella!...—disse este a meia voz, entristecido, emquanto lhe deitava o licor.
—«O que é?—Olhou-o bem de frente e vendo-o com parecer desapprovador fingiu esquecer-se do que estava a fazer, e mettendo a faca por debaixo do copo fê-lo cahir com um telintar crystalino sobre a meza de pedra.
—«O que foi?—perguntaram algumas vozes.
—«Nada—disse a Viscondessa, que tinha observado a scena—crystal partido porte-bonheur.
—«Um telegramma para a sr.ᵃ D. Isabella—veio dizer o guarda-portão, entregando o subscripto amarello a um criado que logo lho apresentou, sobre uma salva de prata.
—«Oh! Vê, Maria Helena.
—«Então o que dizia eu? É uma grande felicidade para nós.—E muito alto, propositadamente:—Duarte, um telegramma de M. Burns prevenindo-nos de que vem ámanhã no comboio das nove. Para ser amavel até ao fim, depois de se ter sacrificado, privando-se da companhia da sua adorada sobrinha, vem ainda assistir á nossa festa.
—«Muitos parabens, miss Bella! Ámanhã irei esperar seu tio e pedir-lhe-hei que se continue a sacrificar, ficando tambem.
Ella abaixou a cabeça agradecendo, emquanto toda a meza estremecia n’um fremito de respeito.
Os pretendentes da baroneza olhavam se desconfiados com pressa de retomarem os seus logares junto da presumptiva herdeira do riquissimo inglês.
—«Grande subida de cambio!...—disse a meia voz, escarninhamente, o dr. Pinto.
Chegára finalmente a noite do baile que trazia alvoraçadas as cabeças em toda a villa e arredores.
Poucos havia que se não estivessem preparando para a festa, porque os viscondes que em Lisboa se prodigalisavam pouco, tinham na provincia relações com todos, e a todos convidavam para o baile que costumavam dar depois da romaria, nos annos da Viscondessa.
Aquella boa gente que durante o anno pouco se mostrava, como que armazenando energia e dinheiro para gozar por atacado durante os dois ou tres mezes em que os forasteiros lhe animavam a terra; não fallava n’outra coisa, não pensava senão no baile e nos arranjos para se apresentarem á altura de quem os convidava...
Não seria possivel calcular as horas angustiosas que tal divertimento fizera já passar ás meninas da terra. Esta, porque uma impingem maldita lhe nascera na face; outra, porque o teimoso papá lhe não déra a certeza de a levar, e só á ultima hora diria que sim, quando fosse impossivel arranjar o vestido, e a ter que levar um fato já visto todas preferiam não ir.
Desde manhã que as meninas Souzas, em saias de baixo e papelotes, mascaradas de cold cream para amaciar a pelle, o collete apertado para adelgaçar a cinta, se afadigavam nos ultimos preparativos, fazendo uma préga mais funda, cosendo plissés, lustrando os sapatos e lavando as luvas, mandando a criada percorrer as lojas, pondo emfim a casa n’uma dobadoira para que os seus vestidos fizessem morder de inveja as amigas Cunhas e as delambidas das Costas mais as do recebedor e as do escrivão... Umas e outras não pensavam n’outra coisa e contavam as horas com a solicitude de quem vae contando os momentos que os separa da suprema felicidade.
A Viscondessa, innocente causa de tantos cuidados e despezas, desde as oito horas que entrara na sala e conversava com os convidados que já a esperavam perfilados em trajes de gala.
Mal terminara o jantar subira a mudar de vestido e descera logo por saber o costume da velha-guarda, as Rebellas com as suas saias embaloadas de sedinha antiga, a irmã do velho abbade, o Domingos e outros, que ainda pertenciam aos bons tempos honestos em que os saraus terminavam com escandalo depois da meia noite.
Isabella, desejosa de ajudar a amiga e tambem porque a espicaçasse a curiosidade de ver o primeiro desfilar solemne de toda aquella gente que já conhecia, apressou-se a descer á sala de recepção.
O seu rosto delicado de pequena loira estava como nunca de um encanto espiritual, que enlevava.[175] A sombra de melancolia que lhe enodoava a alma desde aquelle passeio á romaria, realçava-lhe a formosura, tornando-a mais feminil e humana.
Os olhos tinham menos vivacidade maliciosa, o sorriso franzia-se n’um quasi preguear de quem quer com elle encobrir lagrimas, os gestos eram mais lentos e as faces empallidecidas já não semelhavam um rosicler de dia álacre.
Ao lado da Viscondessa, toda de preto, o decote a envolver-lhe o busto em soberbas rendas hespanholas, afogada e coroada de brilhantes, a cauda a faze-la mais alta; Bella, simplesmente de branco, um ligeiro vestido de crepe da China, transparente e leve como a espuma, com a saia redonda cahindo naturalmente, sem enfeites que a arrebicassem, sobre o pé calçado de meias de seda preta e sapato sem salto, sem mais joias alem de um collar de perolas que o tio lhe escolhera uma a uma com meticulosidade de conhecedor e capricho de milionario; ellas harmonisavam-se bem, apezar do contraste, como duas flores criadas com luxuoso esmero na mesma atmosphera de elegancia e riqueza.
Uma entrava apenas na vida, sentia-lhe o primeiro golpe e curvava a cabeça com resignação apezar do seu espirito naturalmente revoltado, porque a sua dôr era d’aquellas que amachucam almas delicadas e quebrantam a vontade dos caracteres impollutos. A outra, levantava-a já com orgulho, como se os desgostos fossem cadinho onde a alma se lhe purificasse e enrijasse para supportar a existencia.
Iam chegando os convidados e eram já tantos[176] que o salão de entrada, uma linda miniatura da sala dos espelhos de Queluz, tornava-se pequeno para tanta gente.
—«Vae-se tornando impossivel respirar aqui—disse a Viscondessa á amiga.—Vae lá para dentro, minha filha, bem basta que soffra eu, já que não tenho outro remedio.
—«Não, estou melhor junto de ti.
—«Fazes-me mais favor indo ver o que se passa pelas outras salas, insistiu para a convencer.
—«Encarrega-se d’isso a Laura, respondeu indicando a Viscondessa de Pereira que só n’esse instante appareceu pelo braço do marido, bem posta no seu vestido lilaz, que lhe ia a matar á côr branca de leite.
—«Não é a mesma coisa, bem sabes que faço cerimonia com ella.
—«Pois então deixa primeiro entrar as meninas Souzas.
—«Quando virão ellas!?
—«Não se demoram, ouvi guinchos, vejo a pera militaresca do tio, e o nariz achatado do pae alem á porta da entrada, já os garotos furam por todos os lados... não devem tardar, verás... Olha que isto de levar crianças a festas d’estas é espantoso! Eu se fosse a ti prohibia.
—«Posso lá fazer isso! Quem dá prova de falta de educação e de senso é quem os leva; os donos de casa tem que se aguentar...
—«Se alguem fizesse isto em Inglaterra era logo accusado a uma sociedade protectora da infancia como autor de infanticidios...
A Viscondessa teve apenas tempo de disfarçar o riso para receber as quatro irmãs, direitas como fakires que engulissem espadas, o cabello em carapinha sobre os olhos, o pó de arroz empastado sobre a pelle de um trigueiro requeimado, quasi amarello sépia. As duas primeiras de azul e verde, sem sombra de gase que tentasse velar o largo decote que exhibia o peito forte; as mais novas escondendo a indecisão dos bustos de anemicas, a sahir da infancia, com exagerados folhos de crêpe-lisse amarella.
Atraz a mãe, gorda e ofegante, mostrava a physionomia lorpa e materialmente inexpressiva que as filhas terão aos sessenta annos, depois de uma mocidade consumida a procurar marido, logo inferiorisadas após o casamento, tornando-se criadas dos filhos e as servas do homem que as sustenta e veste.
As raparigas fitaram Bella com o sobrecenho desdenhoso de quem tem visto muito nos clubs das praias onde o tio as levava, de annos a annos, á pesca de marido.
—«Oh Maria Helena, não me deixas continuar aqui?—perguntou ella disfarçando o riso com o lenço.
—«De modo nenhum, além de ser um incommodo, parece-me que és capaz de me comprometter... Olha o João, que vem mesmo a proposito para te offerecer o braço.
—«Da melhor vontade—disse este adeantando-se—tanto mais que andava já procurando V. Ex.ᵃ para ser meu par na primeira quadrilha e na primeira valsa. Não é isso o que diz o seu carnet?
—«Exactamente.
Isabella tomou-lhe o braço com uma perturbação inexplicavel e, como na romaria, iam em silencio atravessando a multidão buliçosa.
—«Oh, miss Bella—cumprimentou o Telles, que encontraram vindo da sala onde os homens rodeavam o visconde—hoje como nunca a abreviatura do nome de V. Ex.ᵃ é a expressão da verdade.
—«É realmente mais bonita a abreviatura do que o nome, não importa que não corresponda á pessoa.
—«Oh se corresponde! E plenamente, como um delicioso nome de princeza encantada que é.
—«Sim, recordo-me de que me contavam a historia de uma princeza, Bella, que foi amada por uma féra...
—«E que por fim se commoveu e chegou a amar o pobre monstro que a adorava!...
—«Porque afinal não era mais do que um principe encantado. N’estes tempos banaes em que os encantamentos não existem, as bellas já deixaram de amar as féras que as perseguem...
Deixou o Telles desapontado, a morder o raro bigode nervosamente, e seguiu pelo braço do João.
—«Foi de uma crueldade para o desgraçado!...—disse-lhe este quasi a mostrar no riso a alegria que lhe déra.
—«O que quer!? Tenho dias em que me sinto sem paciencia nenhuma para aturar parvos. Se as minhas palavras fôssem veneno, matava-os a todos.
—«Que barbaridade!
—«Era uma limpeza que a hygiene aconselharia...
—«A bondade acolhedôra com que ás vezes os attende é que os convence de que pódem dispensar-lhe os seus galanteios.
—«É simplesmente para conversar, mas nunca lhes dei motivo para se julgarem auctorisados a dirigirem-me galanteios. Se é que taes baboseiras o são.
—«Com esta gente quanto menos conversas melhor...
—«Despresa os então muito?
—«Em geral não despreso ninguem, mas aborrecem-me os seus ridiculos. Depois, são maldizentes e invejosos. A não ser com o dr. Ramalho, com o abbade e uns cinco ou seis rapazes que fôram meus companheiros na escola do Padre-Mestre, e que são hoje uns honestos trabalhadores, vivendo dos seus officios, poucas relações tenho na villa. Como sabe, ha uns poucos d’annos que vivo mais tempo fóra do que aqui.
—«Sim, os seus provincianos tem defeitos, mas olhe que os lisboetas não lhes são superiores. Ora repare no modo impertinente, pela sobranceria e insistencia com que a Viscondessa de Pereira fita o lorgnon em todo o mundo. É, impossivel aquella Laura! Vê? Ahi está, é boa rapariga, e intelligente, mas tem a mania das relações de nome; tudo quanto não seja fazer a Avenida, como lá dizem, ir a S. Carlos, vender prendas nos bazares de caridade ou frequentar celebridades, é fóra do tom e faz perder a linha. E que infinidade de pessoas pensam como ella em Lisboa!
—«Nem V. Ex.ᵃ imagina o que por lá existe! Que miserias a fingir opulencia, quantas dôres que só a vaidade causa, que tristeza nessa vida postiça e sem elevação moral!
—«Conhece bem a vida de Lisboa?
—«Muito bem, tenho vivido lá bastante e sei perfeitamente o que tem de falsa. De quantas familias sei eu que passam o verão calafetadas em casa para dizerem que villegiaturam pelas praias elegantes!
—«O que quer dizer que tinha eu razão quando lhe dizia que é peor ainda a pretenção dos lisboetas...—retrucou Bella sorrindo.
—«Não sei... O que quer dizer é que, julgando-se differentes, não são mais do que eguaes productos de uma sociedade sem elevação, pobretona, sem amôr ao trabalho e sem modestia, uma sociedade em que todos são fidalgos e tem vergonha de serem o que realmente são.
—«Resumindo...
—«Póde viver-se apenas com raros que se isentam d’este vicio geral. E é o que eu faço aqui e em toda a parte.
—«Eu tambem—volveu Bella—tenho um horror intimo, instinctivo, quasi louco, ao contacto com a multidão...
—«Haja vista a noite da romaria em que cuidei que ficaria doente.
—«É certo, mas não foi n’aquella festa por ser popular. Pelo contrario, eu estimo o povo e desejava poder-me identificar com as suas festas, que têm de superior a sinceridade na alegria, a animação sem convencionalismos; hoje, a impressão não é de assombro como foi no arraial,[181] é de tristeza, de profundo desgosto; toda esta gente grave imaginando que se diverte dá-me a impressão de uma mascarada n’um enterro...
—«A mim tambem esta festa me afflige muito, mas eu tenho outras razões....
—«Não se podem dizer?
—«Podem. Faz um anno que a Pillar aqui estava, e tão cheia de vida, tão alegre!... Dançou toda a noite com aquelle estupido que já hoje a esquece pela Carneiro!... Não imagina como isto me faz soffrer!
—«Les morts vont vite, meu amigo.
—«Quando não eram verdadeiramente queridos. Eu sinto hoje como no primeiro dia a dôr violentissima que a morte de minha irmã me causou. Não pode comprehender a repugnancia que o Vilhegas me inspira! Ás vezes como que uma onda de sangue me sobe á cabeça e penso que me seria agradavel despedaça-lo com as unhas, ferozmente, como um animal bravio. Um estremecimento nervoso lhe percorreu o corpo.
—«E ella amava-o?!...
—«Muitissimo, desde criança. E pensar em que se vivesse seria hoje a mulher de tal homem!... Antes morta, está mais descançada.
—«Não diga isso! Eu queria tanto que a Pillar vivesse! Seriamos duas irmãs, porque os nossos espiritos se irmanavam, tenho a certeza, pelo que d’ella me têm contado.
Insensivelmente tinham-se affastado para a ultima sala, ainda deserta, e sentado no vão de uma janella.
—«Tem rasão. Foi um horror a sua morte.[182] Não faça caso. A minha cabeça fraqueja sempre que fallo n’isto. Mudemos de assumpto, que miss Bella não tem culpa das minhas dôres para com ellas entristecer o seu espirito despreoccupado...
—«Imagina que eu não tenho tambem lagrimas a recordar e a verter ainda?...
—«V. Ex.ᵃ?!
—«Eu, sim! Sob esta apparencia de alegria e despreoccupação, sabe lá que amarguras posso recordar! Poderá sequer comprehender as vergonhas e as dôres de que a minha infancia se teceu?
—«Tambem soffre? Oh, desculpe o egoismo, mas quasi o estimo porque sômos assim mais irmãos, pela amargura...
—«Sim, irmãos, e como tal o estimo, João!
—«Só como irmão?...
—«Sim...—vendo que queria protestar accrescentou:—não perturbemos o encanto d’este affecto, sejamos apenas irmãos...
Estendeu-lhe a mão, n’um d’aquelles seus antigos gestos de rapariga educada sem biôcos, e na preoccupação evocativa em que o seu espirito se alheava não reparou que toda estremecia ao contacto d’essa mão que queria considerar fraterna.
—«Se o João soubesse o que foi a minha infancia!—proseguiu.
—«Não viveu sempre com seu tio?
Abanou a cabeça negativamente, e, passados momentos:
—«Já tinha dez annos quando fui para a sua companhia.
—«Até ahi?!...
—«Vivia com... em casa de meu pae. Não se póde dizer que vivesse com elle, porque só raramente o via. Ah! como isto me faz mal, fico nervosa, sabe?!
—«Faz-lhe mal, sim. Está n’uma tremura e tem as mãos geladas... mudemos de assumpto. Tudo quanto lhe diz respeito me interessa, mas não a quero vêr triste—disse-lhe com doçura.
—«Não,—respondeu sacudida, querendo fugir á commoção que a tomava e a fazia estremecer, deliciada, por encontrar uma tão grande ternura a diluir-se em palavras tão simples, mas tão repassadas de affecto e respeito, ditas n’aquella voz um pouco velada, de amoroso.—Quero contar-lhe o que foi a minha primeira infancia. Não lhe disséram ainda de quem sou filha?!...
—«Tentaram dizer-mo, recusei saber tudo aquillo que não viesse da sua bôcca.
—«Como esse procedimento é nobremente orgulhoso! Admiro o pelo caracter, mas, mais me obriga ainda a dizer-lhe o que me entristece e envergonha.—Como o João ia responder, atalhou—não me responda! Deixe-me dizer-lhe tudo de uma vez só, sem respirar, como quem se resolve a beber um remedio custoso. Toda a demora me faria perder a coragem. Meu pae chamava-se Pedro Avellar; nunca ouviu fallar de um banqueiro com este nome que foi accusado de falsificar lettras e quebra fraudulenta e que n’essa quebra arrastou muita gente que lhe tinha confiado as suas fortunas e tinha negocios com elle? Antes do escandalo final desappareceu e ninguem mais soube onde pára. Esse era o[184] meu pae. Um desgraçado, uma victima mais do que um malfeitor. A sociedade tinha-lhe permittido todos os desregramentos porque era rico e para o exilio pouco ou nada terá levado d’aquillo que dizem ter subtrahido; as mulheres e o jogo tinham-no arruinado primeiro. A minha mãe é que era inglesa, sobrinha unica do tio Burns que a tinha educado e criado com os mesmos cuidados e mimos com que depois me tratou a mim. Mas a minha mãe era melhor do que eu, de uma doçura, uma passividade angelical. Nunca abriu os labios para um gemido de queixa. Os escandalos que meu pae deu, logo após o casamento, eram taes e tantos que o tio queria que ella requeresse separação. Como não quiz, sahiu elle de Portugal, onde então vivia tambem uma grande parte do anno. Nunca mais se viram. Quando eu tinha dois annos morreu minha mãe—de desgosto, de saudade!? Sei lá comprehender em que rios de lagrimas se affogou aquelle pobre coração! As horas que eu tenho passado a querer evocar a dolorosa physionomia da sua ultima hora, quando concentrasse em mim todas as suas forças vivas, n’um ultimo olhar de angustia!...—Um soluço nervoso sacudiu-lhe todo o corpo doridamente. João, com os olhos avermelhados de lagrimas que reprimia, quiz interrompê-la com alguma palavra consoladora, mas suspendeu o com um gesto e continuou:
—«Não diga nada, que a piedade da sua attenção vale bem mais do que todas as palavras.
Cahiu n’um fundo meditar; depois continuou n’uma voz quebrada, vinda do sonho da[185] sua recordação infantil, como a recitar sem interesse phrases que lhe sahiam dos labios já feitas, a contar essa historia milhões e milhões de vezes pensada e nunca repetida, que se lhe tinha fixado na memoria como melodia sempre egual de um instrumento mechanico.
—«Imagine o que seria a vida d’uma criança passada entre criados que, a não ser a bonne, uma pobre velha inglesa que criára a mamã, eram d’esses que a fortuna traz e leva, como lama de enxurrada. Raras vezes via meu pae, mas quando o via eram tantas as festas e os presentes que me dava que eu tinha por elle uma verdadeira adoração. Não houve decerto criança que mais faustosamente fosse passeada pelas ruas de Lisboa, nem que mais rica fôsse em brinquedos e mimos. A criadagem, sabendo que tudo lhes era desculpado se me tratassem com carinho, não havia capricho que me não satisfizessem. Podia dizer-se que era feliz, se não houvesse não sei que saudades ou presentimentos infantis, que por vezes me punham em crises de lagrimas. Um dia, já então tinha oito annos, sahi a passear com a bonne, e vi n’uma montra o brinquedo mais interessante que até então tinha visto. Maravilha chegada de Paris e que o negociante não imaginava, por certo, vender tão depressa. Imagine uma linda bonequinha vestida como uma marquesa do seculo desoito, com alta cabelleira empoada e vestido no rigor da moda de Versailles, n’um palacio verdadeiramente principesco. Tinha tudo aquella feliz imagem de outras bonecas vivas, que egualmente envelhecem e morrem na ociosidade e no[186] luxo em que a minha pobre boneca se fanou. Cadeirinha para passear, criados empoados, pequena sala de receber no mais rigoroso rocaille, salão, casa de jantar, alcova com seu leito baixo de grande cabeceira entalhada e doirada... emfim era uma verdadeira marquesa do grande seculo á qual não faltava a soubrette theatral, o abbade poeta, nem o fidalgo galante. Parece que estou a vêr todo este encanto da mais louca phantasia infantil,—terminou sorrindo á ingenua recordação, que dava um pouco de frescura e mimo ao sombrio evocar de uma infancia de orphã, criada no fausto, e tão pobre de alegrias simples e de affectos desinteressados.
João sorria tambem de tanta ingenuidade á mistura com o estranho vibrar de uma alma de mulher já feita pela dôr e pelo pensamento.
Bella continuou:
—«Quando vi aquella maravilha estaquei defronte da loja, ao cimo do Chiado, e custou muito á bonne arrancar-me d’alli. Devia ser coisa bem cara para que a pobre mulher apertasse as mãos na cabeça quando fallei em pedir a meu pae que ma comprasse. Mas que valor póde dar ao dinheiro a pessôa que não lhe sentiu nunca a falta? No entanto, com os discursos da velha inglesa, sempre me acanhei de pedir a realisação d’esse desejo. Tão pouco habituada estava a uma contrariedade que, de noite, não dormi com o socego de costume, e quando de manhã fui fallar a meu pae, que por acaso não tinha dormido fóra, elle estranhou-me o parecer. Inquirida com interesse, não tive forças de negar e, n’um mar de lagrimas, confiei a minha[187] dôr pelo desejo não realisado. Elle sorriu-se, acarinhou-me com a delicadeza de uma affectuosa mãe e, passado duas horas de ter sahido de casa, appareceu me um gallego á porta com o meu thesoiro. A alegria, que tive ao vêr desempacotar, peça por peça, o que constituia o meu sonho realisado, não se descreve. Já elle então luctava com difficuldades, mas não recuou em arcar com mais essa despesa para satisfazer o capricho de uma criança mimosa! No entanto, pouco se importava com a minha educação moral; que para a outra tinha professoras que pagava generosamente para me aturarem com paciencia... E costumava dizer, quando lhe censuravam a maneira como me educava, ou... me deixava por educar, que é mais proprio:—O unico fim da existencia na sociedade em que vivemos é a felicidade, e a pequena assim é feliz!... E era o como poucas crianças o tem sido, n’uma inconsciencia, n’uma innocencia, que a maldade passava por mim sem me macular o espirito, porque a não comprehendia. D’este sonho fui despertada um dia brutalissimamente por uns agentes da justiça, que nos sellavam as portas e poriam na rua se a bonne não conseguisse que eu habitasse no meu quarto até que o tio Burns respondesse ao seu telegramma. Eu fiquei como que assombrada, cahida d’um mundo desconhecido onde me collocara, com a minha marquesinha, sem chegar bem á comprehensão nitida do que me succedia... Foi desde então que me chamaram Isabella Burns, e nunca mais me fallaram de meu pae—como coisa vergonhosa...
Terminou n’um murmurio, curvando a cabeça para esconder as lagrimas que lhe corriam silenciosamente pelas faces.
—«Pobre criança!—disse João apertando-lhe a mão com respeito.
—«O quê?! Pois não me quer mal por ter aquelle pae, que a sociedade me manda despresar, depois de o ter pervertido, e que eu, apesar de tudo, recordo com a affectuosa saudade?...
—«Como poude pensar tal, Bella? Ao contrario, parece que a estimo mais, muito mais ainda, porque sabe o que é soffrer.
Levantou os olhos, ainda humidos de pranto, e ia responder-lhe, mas foi interrompida pela Viscondessa que entrava pelo braço do Dr. Ramalho.
—«Então vocês vêm se esconder a um canto despresando a valsa?! Sim senhores, dão um grande apreço á minha festa, vejam o que tenho a agradecer-lhes!...
—«É verdade que sim! Tinhamo-nos esquecido de que estavamos n’um baile...
—«Cabecinhas de vento! Ora vão recuperar o perdido, andem, a valsa convida.
—«E tu não vens tambem dar uma volta?—perguntou-lhe a amiga levantando-se e beijando a com uma nervosa affectuosidade que deu logo a perceber á Viscondessa que alguma coisa se passára de estranhamente grave entre os dois.
—«Eu? Já estou velha para valsas, quando muito o passeio da contradança cerimoniosa. E mesmo isso, querem crêr que já me fatiga?! Estou positivamente velha.
—«A prima deu agora na galanteria de se querer fazer uma avósinha...
—«Infelizmente sem netos. Já me vão tardando os que tu me has de dar, sabes?!...
João sorriu e não protestou. Isabella tomou-lhe o braço e disse, como quem quer terminar a conversa:
—«Vamos então á nossa valsa?
—«Miss Burns, encontro-a finalmente—entrou dizendo o visconde d’Alvora, retorcendo o bigode e empertigando-se para disfarçar a rotundidade do seu corpo abbacial.
—«Que empenho era esse, visconde? Julgava-me perdida e queria merecer alviçaras?
—«Oh não! O simples empenho que tem todo o cavalheiro em offerecer o braço á sua dama.—E offerecia-lho na verdade, sempre retorcendo o bigode e olhando João com altivez desprezadora.
—«Peço perdão, sr. Visconde, mas eu prometti a primeira valsa ao sr. João de Mello.
—«Mas, minha senhora, nós já estamos na segunda.
—«Não posso considera-la assim, visto que não assisti á primeira. Espero que me desculpará, meu caro visconde.
—«Eu não devo prescindir da honra concedida...
—«Mas prescinde porque eu desejo, e porque é de justiça. E vou já passar procuração ao tio William, que vem atravessando a multidão dos valsistas com a mesma impassibilidade com que atravessaria uma avenida deserta, para ser arbitro n’este importante pleito.
Na verdade Mr. William Burns vira de longe a sobrinha e sem mais cerimonias resolveu atravessar o enorme salão onde os pares dançavam ou esperavam a sua vez, fazendo roda, apertando-se e confundindo-se.
Olhava-os com interesse de observador, fitando todos com a viva curiosidade de uns olhos azues que lhe illuminavam a fronte de propheta e attenuavam o geito da bocca d’uma ironia mordente.
Alto e robusto, hombros largos, voz, olhar, gestos e o proprio andar, demonstrando a placida serenidade do homem saudavel e forte, bem equilibrado na vida; e que, apezar dos longos annos de existencia laboriosa, ainda se sente com musculos superiores aos dos rapazes a quem uma infancia atrophiada preparou uma mocidade rachitica.
Olhou o Telles a calçar as luvas e apressurando-se em amabilidades para a mais velha das Souzas, arrogante na pretenção de valsista incansavel e elegancia sem rival. Ouviu de passagem que ella respondia aos enthusiasmos litterarios do rapaz por Loti e Huysmans com a sua predilecção por Paul Féval e Montepin, que conhecia dos folhetins.
—«Garrett—dizia estendendo o beiço carnudo—não conheço. É francês? De Herculano já ouvi dizer que tinha um romance bonitinho, empresta-mo?!...
O inglês sorriu e cumprimentou a baroneza que estava de pé, pelo braço do D. Manoel Pereira, que lhe ficara fiel, e disse lhe com amavel bonhomia:
—«Sempre gentil, minha cara baroneza: dir-se-hia que descobriu a receita da bella Diane de Poitiers...
—«Mr. Burns sempre galanteador e... mordaz. Assim me passa uma certidão d’idade compromettedora...—ria francamente, porque tinha o bom senso de não querer ser moça pelos annos, contentando-se em o ser de facto pela elegancia e pelo espirito.
Mr. Burns que a estimava pelas suas reaes qualidades, escurecendo defeitos com os quaes nada tinha, respondeu sorrindo e continuando o caminho:
—«O que quer, minha amiga? diz o ditado português que ha um sujeito velho, que não aprende linguas novas...
No meio da sala esbarrou com o par valsista por excellencia, Mademoiselle Hortense e o Vilhegas, que no dia seguinte seriam fiancées—participava a todo o mundo.
A mãe não estava menos soberba com o seu vestido rosa velha com traine de velludo verde e adereço de esmeraldas, tal qual fôra ao paço quando ministra e merecêra descripção especial no Illustrado. Mr. Burns parou para a cumprimentar, achando-a cada vez mais formosa, parecendo irmã da filha.
Agradeceu a amabilidade que lhe não era das mais agradaveis, porque detestava o titulo de mamã. Até por muitos annos a filha vivera quasi sem que as relações da mãe dessem por isso, ou no collegio ou em casa de parentes ou entre os criados, quando em familia, para que a mãe se não apresentasse com tal certidão de[192] idade... Só o desejo de a casar e livrar-se assim de uma companhia importuna por indiscreta, vencera o receio de se envelhecer com a sua apresentação na sociedade.
Rodeando um pouco para não ser atropelado, mr. Burns encontrou o visconde que ia tirar a Candida para valsar. Sorridente, recusou, a não ser que o sr. Braga consentisse, pois o considerava como noivo, faltando-lhe apenas que o Visconde, em seu nome, fallasse ao tio. O velhote, como que assoberbado com tanta felicidade n’uma idade e com um physico que não eram os mais proprios a inspirar amoroso interesse, consentiu em que dançasse com o illustre amigo.—Ora essa, a menina bem sabia que não tinha outra vontade que não fosse a sua...
O inglês teve um rapido franzir de sobrancelhas de quem vê um caminho que lhe não parece o mais direito e ficou um instante parado a seguir a casaca preta do Visconde, que no giro da valsa se confundia com o vestido negro com palhetas d’oiro d’essa formosissima mulher sorrindo bondades e de uma quasi ingenua perfidia á força de inconscientemente sentida e usada.
Já voltavam e paravam deante do uzurario a quem dizia n’um meigo arrastar de phrase:—que o visconde a encarregara de lhe dar a boa nova de que estava emfim resolvido a seu favor o negocio da casa de Bernabé...—e ainda o velho William alli estava a considera-los attentamente.
Depois encolheu os hombros e foi mais adeante, até onde a mais nova das Costas conversava[193] com a mais nova das Souzas, ambas insignificantes, inferiorisadas pelas irmãs, a Costa um pouco mais bonita, clarinha e gorda, com grandes olhos inexpressivos em que as pestanas demasiado compridas davam um aspecto de boneca de loiça. Viu-as alongar a vista pela grande sala de baile—a que os espelhos das portas dobravam, pela illusão, o tamanho—em procura de par e ouviu-as murmurar:
—«Parece que não ha rapazes!...
—«Elle ainda os ha—commentou a dos olhos tristes—mas parece que viram lobo!...
Sorriu ainda; e foi com o rosto aberto n’esse sorriso entre caridoso e ironico que chegou ao pé da sobrinha, o seu enlevo como artista, o seu amôr como tio, quasi pae.
—«Jesus, que longa e difficil travessia, querido tio! Julguei por vezes vê-lo sossobrar em tão perigoso mar!—dizia-lhe ella a rir, com affectuosidade.
—«Ainda por cima a ingratidão de uma troça! Ora eu que emprehendi esta jornada só para a vêr, porque a minha amiguinha já nem se importa de se mostrar ao velho tio! Sim senhor, deixa-me á meza com os caturras, não me procura na sala de jogo onde os velhos se refugiam... estou perfeitamente posto á margem.
—«Não diga tal, querido tio! Pelo contrario, estava-o esperando para lhe dar a honra de o fazer juiz n’um pleito que ora aqui se debate. Exponha a sua queixa, visconde.
—«Oh, miss Burns está brincando, eu cedo sempre á vontade das damas, embora a justiça lhes faça mingua.
—«Oh, muito obrigada pela generosidade, mas nós as mulheres já temos os nossos direitos: queremos tambem as nossas responsabilidades. Despresamos a vossa piedade cavalheiresca, que nos dava a irresponsabilidade... das crianças.—Respondeu Bella com certo entono comico, que muito divertiu o tio e fez esboçar um sorriso ao João, a quem a questão não agradava.
—«Vamos, Visconde, não ha remedio: ella reclama justiça, justiça se fará, mas... talvez de moiro, que é o que ellas querem...
—«Se elle não apresenta a queixa, já vê que é uma prova de que não está seguro da sua justiça...
—«Menina, isso é um sophisma.
—«Não é tal! O caso é que a valsa acaba e a questão não acaba antes. Eu a exponho em duas palavras. O sr. João de Mello convidou-me para a primeira valsa e o Visconde para a segunda. Ora eu estive lá dentro e só agora venho dançar,—qual é a primeira para mim?
—«Realmente!—Burns deu uma alegre risada—um theologo não defenderia melhor um dogma arrevezado. Tu tens razão, o teu par é o João e o meu caro Visconde vae ficar compensado passando pelo Messias desejado de duas almas em pena que lhe vou mostrar.
E levou o alegremente a uma das pobres raparigas que lamentaram não ter par que dançasse com ellas uma vez ao menos...
Bella agradeceu-lhe com um sorriso, e, pondo a fina mão desluvada no hombro de João, deixou que elle a enlaçasse com um respeito quasi de religioso tocando em preciosidade cultual.
Seguiram na valsa colleante que os levava na corrente de um rythmo de musica vinda do norte, do paiz dos longos amores sentimentaes e dos lendarios castellos alcandorados nas montanhas...
Iam, levando-se nos braços um do outro, sem se verem nem ouvirem por entre aquella confusão divertida, obedecendo quasi mechanicamente ao espreguiçar inebriante da musica, n’um estonteamento de felicidade que parecia dar-lhes asas n’uma inconsciencia a roçar pelo sonho, tão intenso, tão extra-terreno era esse goso.
Só quando os ultimos acordes morreram nos violinos chorosos é que elles pararam, ambos egualmente atordoados e commovidos, deante de uma das portas do terraço, onde se ia respirar um pouco d’ar puro embalsamado pelas rosas trepadeiras.
—«Sabe que está encantadora, miss Bella!?—murmurou João levando-a para a varanda onde se refugiaram os conversadores.
—«Não diga isso, meu amigo.
—«Porque não, se é a verdade, o que sinto, o que vejo com os meus proprios olhos?!...
—«É o mesmo que qualquer outro me diria.
—«E que culpa temos nós de que as palavras estejam tão banalisadas que não haja meio de exprimir com ellas uma coisa nova, delicada, e sentida como eu a sinto?!
—«Que voz a sua, João! não me falle assim! Atemorisa-me. Eu, que nunca tive medo de coisa alguma, estou agora tremendo como uma criança—dizia commovida, encostando-se á balaustrada de pedra e ficando toda na sombra.
—«E porque é que a sua voz treme como a minha, porque é que nos seus olhos as lagrimas querem rebentar, Bella?!...
—«É verdade, estou a chorar, mas porquê?!...—e tentava sorrir mas não conseguia dominar a tremura do seu pequenino queixo de uma pureza de linhas verdadeiramente infantil.
—«Porque me ama, Bella. Para que nega-lo? Porque me ama como eu a amo, com toda a minha alma, com todo o meu sangue, com a certeza de que o seu espirito e o meu se identificarão sem se absorverem, que seremos dois amigos para caminharmos juntos na jornada da vida...
Fallou por muito tempo, muito, tecendo sonhos, bordando phantasias, que ella ouvia enlevada, encostando a cabeça á mão que lhe deixava livre, numa passividade deliciada.
Calaram-se ambos, sem nada encontrarem que exprimisse a ternura immensa que transbordando da alma lhes enchia os olhos de lagrimas de ventura.
Elle, mais forte, conseguiu articular uma palavra que dizia o desejo ansiante do seu coração na sua mesma simplicidade—«Amo-a!...
Bella estremeceu toda, como se fosse emergindo n’um banho de caricias, e ciciou n’um halo de sonho:—«tambem eu o amo...
E de mãos enlaçadas, olhos nos olhos, sorriso com sorriso, assim ficaram completamente alheados do borborinho e esbanjamento de alegrias e egoismos que se degladiavam na arena do baile com brutalidades de feras em pleno circo romano...
Os azedumes e as rivalidades accentuaram-se depois do baile, onde, parece, se tinham querido reunir n’uma ultima revista de forças os dois campos que a politica, com todo o seu cortejo de baixas vinganças e mesquinhas ambições, conseguira levantar na pequena e socegada villa sertaneja.
Em tal lucta ia de vencida o grupo do visconde porque elle, apesar do seu elegante cynismo e da obliteração quasi completa do senso moral no sentido rigoroso da palavra, que lhe fizera o habito de viver no mundo e n’uma sociedade que a custo se sugeita ao direito commum, julgando-se crédora de isempções e privilegios, era todavia incapaz de uma vileza ou de uma flagrante injustiça para alcançar os seus fins. Tanto mais que não fazendo da politica modo de vida, não disputava com desesperos de esfomeado o direito de trepar.
Depois, a seu lado, usando ainda assim de processos que á viscondessa não pareciam bons[198] no seu grande e puro ideal da reformadora, mas n’esses mesmos processos conservando uma certa dignidade e limpesa, agrupavam-se os mais honestos, os mais sinceros, os que menos culpas tinham a exprobar-se.
O exame directo imparcialmente feito pelo dr. Ramalho no Cabral, de S. Mamede, ferido na romaria da Senhora do Monte pelo Manuel Duarte, da Povoa, em desforço de rixa velha em questões d’aguas, diziam algumas testemunhas, levantára descontentamentos entre os partidarios e alguns já diziam pelas tavernas—que se passariam para o Maximiano nas primeiras eleições, visto o dr. Ramalho não ter coragem de salvar um amigo da cadeia lá porque n’uma romaria bebêra uma pinga e dera umas pancadas.
É certo que o Cabral morrera, mas o Vilhegas affirmava a todos, confidencialmente, que a morte não resultára da pancada mas da deficiencia do tratamento que deixára sobrevir uma meningite.
Debalde o medico se esforçava por conservar o sangue frio e explicar a sua attitude, não como acusador nem desejoso de ver um homem condemnado, n’uma iniqua lei de Tallião que a sociedade arbitrariamente se arrogou, soffrendo porque fez soffrer, mas porque acima de tudo estava a verdade e o seu dever de perito era dize la completa e inteira sobre o caso que sujeitavam ao seu julgamento. O juiz que fizesse o que entendesse, mas que por um interesse politico não fossem condemnar ou absolver, fiados n’uma mentira.
Mas feriam-no aquellas luctas traiçoeiras, magoavam-no muito mais do que as floreadas correspondencias do Telles para um jornal de Lisboa, em que tinha phrases de sapiencia e de effeito como aquella de citar Diogo Arias—o celebre valido de D. João de Castella que no mundo só desejava ter um prego com o qual podesse pregar a roda da fortuna—isto para insinuar que o Dr. era um malvado que não acudira ao Cabral para fazer mal á infeliz victima da politica, o Manuel Duarte, curtindo na enxovia a sua innocencia...
O Ramalho contava a Bella, que muito se indignava com tal meada de embustes, que o Manuel Duarte era o primeiro a rir-se d’elles porque dizia a quem o queria ouvir—que bem se ralava de que o mandassem para a Penitenciaria, pois já lá estivera dois annos e como tinha empenhos sahia á cidade e até trouxera dinheiro ganho a vender chapéos de sol. Que para tudo se queria sorte e o sr. Conselheiro o protegeria, porque eram o pae e os dois cunhados marchantes todos por elle na eleição dos quarenta.
—«Já vê, minha senhora—dizia-lhe n’uma tarde de quinta feira nos ultimos dias de setembro, na varanda do palacio dos viscondes—que não vale a pena explicar. Descobrem-se bem os grosseiros manejos do padre cura. Primeiro quiz requerer novo exame para que o Vilhegas dissesse que o caso não era perigoso; mas como o homem morreu, fui eu que o matei...
—«Oh, mas é indecente, uma lucta assim feita de mentiras!
—«Pois é; mas que fazer? A não se querer usar dos mesmos processos, mais vale não lhes ligar importancia.
—«O dr. hade confessar—dizia lhe o João indignadissimo—que tanta porcaria, tal esterquilinio d’almas desperta o desejo de caminharmos para o futuro varrendo todo esse lixo sem dó nem piedade...
—«João, João, cautella, não te mettas a regenerar o mundo, olha que se estes são o que vês, a canalha sem eira nem beira ainda se lhes avantaja em atrevimento...—respondia o visconde sybariticamente deitado n’uma cadeira de baloiço, soprando para o azul hilariante do céo o fumo leve do charuto.
—«Mas suppondo mesmo que a canalha, como o primo diz, seja mais exigente nas suas reclamações, tem direito a faze-las tendo arrastado seculos de captiveiro, tendo a vingar rios de sangue e de lagrimas...
—«Deixa lá, João,—acudiu a viscondessa para terminar uma discussão que sempre a irritava entre o egoismo do visconde e o ardente enthusiasmo do primo, que trouxera da Belgica, a par de uma grande instrucção, uma fé sem limites n’um melhor futuro para os despresados de hoje—O dr. soffre o castigo de ser honesto e ter entrado em politiquices de campanario.
—«Queres então dizer que eu não sou honesto, não é verdade?—sorriu com indifferença o visconde.
—«Não é isso, mas tu como chefe tens tido sempre melhor posição e menos responsabilidades locaes...
A conversa terminou, felizmente, pela entrada da Candida que vinha convidar a viscondessa para madrinha do casamento.
Apesar da indiferença que aparentava, o dr. Ramalho soffria com tal campanha; demasiado honesto para usar de processos identicos e pagar diffamação com diffamação, sentia-se adoentar n’uma crise de desânimo que o deixava impotente para a lucta.
Só o dr. Pinto sustentava a retirada desembestando ironias a torto e a direito e conseguindo ridicularisar o Maximiano e a sua malta a ponto de obstar a que todo o partido do visconde, por um resto de pudor, se passasse com armas e bagagens para o campo inimigo.
Mas, contra esta influencia, mais paralysadora do que militante, alevantava-se a do padre Mathias carreando descontentes e ambiciosos que pediam empregos e ganhos, que não se regateavam no partido aos bons serviços politicos.
A sua bilis de atrabiliario extravasava em doestos e arremetidas que visavam todos os contrarios e em particular o abbade a quem odiava e invejava.
O velho padre, que era um bom e um humilde, sem sombra de maldade nem ambições gananciosas, fechava os olhos e desattendia-se para evitar questões, que se lhe afiguravam pouco em harmonia com os deveres da posição de ambos.
Bastas vezes fingira não saber dos desregramentos do cura, que a pretexto de ter sido feito padre pela violencia da vontade paterna não olhava a conveniencias que o mais simples homem[202] livre tem o dever de attender. Mas porque o bom abbade não podera calar um dia a murmuração do povo pela escandalosa vida do novo cura e o admoestou em palavras mansas de caritativo pastor, o outro embezerrou e d’alli lhe veio odio terrivel, d’estes odios sem mercê que crescem na fria sombra das sacristias e se erguem como floração insalubre a ligar e a prender os movimentos até á suffocação dos miseros que n’elles pozeram um pé em falso.
Com um desejo de vingança e uma ambição a satisfazer, entrara para o serviço do Maximiano, tornando-se em breve o principal agente e o seu mais util auxiliar.
A conselheira é que, mal se annunciara o outomno, fixara a sua partida, para ainda poder gosar uns dias de praia elegante, em Cascaes ou Estoril. Era sempre contrariada que vinha para a villa e só se mostrava alegre e amavel no dia em que marcava o regresso ao mundo civilisado, segundo a sua expressão.
Irritava-a alli a preponderancia e real superioridade da viscondessa que era estimada pelo povo miseravel, que a ella recorria como a fonte inexgotavel de soccorros.
Eram noivas a quem dava dotes e enxoval, casas que deixava habitar de graça pelos mais pobres, crianças e velhos que era preciso vestir e metter em asylos e hospitaes a não ser que a familia recebesse alguma coisa para os tratar... Ella satisfazia todos os pedidos, feliz por se tornar util, não pensando sequer na gratidão, que afinal lhe tributavam todos.
Ora estas e outras superioridades de riqueza e de espirito eram um continuo manancial de sensaborias para o orgulho da conselheira que recebia n’essa noite, pela ultima vez antes de partir, os frequentadores das suas quintas feiras.
Como de costume, a maior animação era em volta das mezas de jogo.
Só a baroneza da Amieira se affastara com o D. Manuel Pereira—porque, dizia ella, era o jogo o unico vicio que nunca lhe dera prazer. Se perdesse, não se encommodaria, porque o dinheiro pouco valor tinha aos olhos da viuva que aos deseseis annos comprara, com o inestimavel preço do seu corpo juvenil e bello, uma fortuna quasi ingastavel. Se ganhasse, de que lhe serviria o dinheiro, que aos outros fazia tanta falta?!...
Não seriam positivamente essas considerações altruistas a causa da sua abstenção, mas como era divertimento de que não gostava, sabia com ellas tornar se sympathica. Chegava mesmo a sê-lo, apezar de todas as loucuras que os annos não tinham ainda interrompido. Intelligente, de uma saúde vigorosa, activa e com muito espirito, ousára fazer sempre o que a vontade e o capricho lhe aconselhavam sem sombra de respeito pela sociedade que conhecia cheia de tolerancias para as que, como ella, se escudam na fortuna, e tão austera soe sêr para as pobres que prevaricam.
No intimo da sua alma leviana havia um fundo de instinctiva justiça que a fazia prodiga com os miseraveis e sem maledicencia que ennodoasse[204] as outras, como quem se quer desculpar com o exemplo alheio.
Se não era honesta e não dava grande valor a essa virtude que só lhe parecia bôa para pobres usarem, tambem não era hypocrita; e chegava a ser ingenua á força de impudencia na phylosophia adquirida no longo convivio de pessôas que se habituara a julgar o typo commum.
Pelo braço do D. Manuel Pereira affastara-se para a sala de bilhar onde, a um canto, a Hortensia languidamente recostada n’uma commoda mas feia cadeira inglesa, conversava com o Vilhegas, em requebros, retorcimentos de pescoço e gritinhos de cãosito de regaço. Ao fundo da sala, a meia voz, o conselheiro conferenciava com o juiz.
—«Então o que lhe dizia eu, D. Manuel? Onde menos gente houvesse é que era mais certo encontrar os noivos—dizia a baroneza alegremente.
—«Procuravam-nos?—perguntou M.ᵉˡˡᵉ Hortense voltando meio corpo, como manequim de uma só peça.
—«Não, precisamente, mas procuravamos alguem que não estando a jogar podesse dizer alguma coisa que distrahisse.
—«Viemos bater a má porta; estes senhores estavam tão absorvidos na sua felicidade que chega a ser um crime distrahi-los.
—«Pelo contrario, D. Manuel, dão-nos muito prazer. Estavamos fazendo un petit bout de causerie intime, mas temos para isso tanto tempo!
—«Faço ideia! Vão-lhes parecer seculos estes mêses. Quando casam?
—«Lá para o fim da primavera, para se sahir para Cintra ou para o Bussaco. A mamã queria que fôsse já, mas eu prefiro noivar durante o inverno, é mais chic e não corro perigo de me privar dos bailes...—sublinhou com impudor.—Já mandamos fazer participações de fiançailles, qui est du dernier chic.
A baroneza riu francamente e respondeu a meia voz qualquer coisa a que outra replicou n’um esgare de enjoada:
—«Tem suas conveniencias le rôle de madame mas é d’uma falta de chic assomante ser mamã. Oh! les petites bêtes! uff!...
D’ahi a conversa foi derivando entre risos e anedoctas em que a rapariga representava o primeiro papel, com um despreso soberbo de todas essas velharias a que se chama pudor e ingenuidade. O Vilhegas, um pouco compromettido porque aquillo bulia-lhe ainda com todos os preconceitos provincianos, de que tentava limpar o espirito, contava tambem as suas graçolas, dizia historias de Coimbra.
—«Olhe, doutor—disse por fim a baroneza, sempre procurando novas distracções—parece-me que entrou agora o seu amigo Telles e esse é que nos vae entreter recitando alguma coisa. Chame-o e peça-lhe.
—«Da melhor vontade, mas se fôsse V. Ex.ᵃ a pedir teria muito mais valor.
—«Olha, parece-me que se anima a soirée. Lá entraram as Souzas e as Cunhas. Onde estaria toda esta gente mettida?
—«E o Móttasinho tambem, esse póde dizer charadas, dizem que tem geito.
—«É melhor chama-los todos para aqui, se os deixam ir para o jogo, então acabou se!... Faz falta o visconde d’Alvora,—commentou a baroneza.
—«Ah, esse agora é todo viscondes—começou o Telles que se adeantára a saudar.
—«Desde a noite do baile que lá está e nem ao menos uma visita!... C’est incroyable!
—«Ha muitos annos que é amigo intimo de sir William Burns e deve-lhe mesmo grandes favores—defendeu o D. Manuel.
—«É muito louvavel o seu procedimento, descendo á liça por um amigo ausente, sim senhor! Bem se vê que é descendente de Nun’alvares, o cavalleiro sem macula. Mas olhe que o visconde não merece defesa porque é um transfuga—riu a baroneza.
—«Elle quer chegar á sobrinha pendurando-se no braço do tio—retorquiu o Telles com azedume.
—«Vae mal por esse caminho, porque sei, e agora já não ha inconfidencia porque toda a gente o sabe, que Bella está pedida por seu primo, creio que é seu primo o João de Mello, não é, sr. Vilhegas?—respondeu e perguntou a um tempo a baroneza.
—«É meu primo affastado...
—«O quê, Isabella Burns vae casar com o Mello?
—«Parece que se admira, Hortensia?! Pois não é para isso; é até casamento bem igual. Ambos novos e bonitos, educados e ricos, é um verdadeiro casamento d’amôr, coisa rara n’estes tempos de brutal utilitarismo.
—«Ora adeus! O João de Mello é um sensaborão—une vrai bête fauve.
—«Por não ter o seu espirito perfeitamente gaulez, não se segue que não seja muito interesante. Ha pessoas intelligentes, que não gostam de conversar. Eu não o conheço a fundo, mas parece-me sympathico e muito instruido.
—«A sr.ᵃ baroneza está sempre disposta a defender.
—«É para me vingar dos que me accusam, meu caro dr.—respondeu para o Vilhegas.
—«Além d’isso, a Bella é galantinha, mas a baroneza sabe o que foi o pae...—tornou Hortense com gesto desdenhoso.
—«Não pense em tal, minha querida; bem sabe que para a sociedade essas coisas dos paes só lembram quando não ha tios ricos. E, aqui para nós, com toda a imparcialidade, quem não tiver um parente cujo procedimento o faça corar, que lhe atire a primeira pedra.
—«Oh, mas o pae deu um escandalo medonho!... Foi um verdadeiro ladrão!...
—«A Hortensia é muito nova para julgar, um facto que tem a sua explicação, como tudo no mundo. O pae de Bella era um perfeito homem da sociedade, fez o que outros têm feito impunemente, foi infeliz...
—«A baroneza conheceu-o?
—«Conheci-o admiravelmente, era das minhas intimas relações. Tinha deffeitos que mais ou menos todos nós temos, mas, a par d’elles, quanta bôa qualidade tambem!...
—«Pois sim, mas se não fôsse o tio rico talvez o João de Mello, que sempre passou por[208] tão serio e esquisito, não achasse muito merecimento n’uma menina que vae para uma romaria só com um rapaz...—insinuou a mais velha das Souzas que tinha vindo com as outras juntar-se ao grupo sem interromper a conversa.
Já percebera que a assiduidade do Telles a devia ao despeito que lhe causava a indifferença de Bella e isso enraivecia-a, não poupando doéstos á inglesa, como por escarneo a tratavam.
—«Decerto que um homem honesto não poderia já acceita-la para esposa—frisou ainda o pharmaceutico.
—«É que o sr. Telles não sabe, talvez, que Isabella Burns foi educada em Inglaterra. O que n’uma terra pequena de provincia portuguesa lhes parece escandaloso é perfeitamente natural e correcto em todos os paizes onde as mulheres são mais respeitadas. O senhor, que é homem, sabe perfeitamente que só é deshonesto quem o quer ser...
—«Sim, nós sabemos que a educação e os costumes ingleses são outros, mas temos obrigação de respeitar os costumes da sociedade em que vivemos—acudiu o Vilhegas em defeza do amigo.
—Decerto, os que vivem d’ella e para ella. Mas Isabella é bastante independente para despresar commentarios malevolos de quem em tudo lhe é inferior. Terminou seccamente, quasi agressiva e n’aquelle tom que não admittia replicas, porque Isabella era uma das suas grandes sympathias, e a baroneza, quando gostava d’alguem, não queria mesmo averiguar se era retribuida[209] a sua affeição para francamente se pôr em campo pelos que lhe agradavam.
O Vilhegas porêm não desistiu e com o gesto largo e o tom emphatico de quem sonha bancadas parlamentares ainda accrescentou:
—«Oh senhora baroneza, mas isso é negar toda a virtude e condemnar sem remissão uma sociedade de que V. Ex.ᵃ faz parte.
—«É por isso que fallo com conhecimento de causa, o que se requer é hypocrisia e dinheiro, bem sei, sentimentos intimos e nobres são frioleiras... Pois se ha pessoa que esteja acima de todos os egoismos e mentiras é Isabella, pode crêr! Se casa com João é porque decerto muito o ama.
—«Oh, dizem que sim,—atreveu-se a dizer a Aurora Cunha, que havia algum tempo estava morta por fallar, retrahindo-se logo com acanhamento—um amôr assim nunca se viu. Andam ambos tão felizes, tão contentes, que até dá gosto vê-los.
—«A menina vae lá?—perguntou a baroneza com interesse.
—«Eu era amiga da Pillar, que me tratava com muito agrado. Agora vou lá menos, mas a Engracia, que é muito amiga da minha avó, foi hontem fazer-lhe uma visita e contou isto. Lá em casa gostam tanto da noiva, que até ella, que d’antes só fallava na sua Pillarsinha, agora já diz que esta é um anjo do céo que Deus lhes mandou para pagar o roubo que lhes fez...
O Vilhegas torcia-se nervoso desde que a conversa tomara aquelle rumo, e Hortensia desviava a cabeça com enjôo, contando, por disfarce,[210] os berloques que trazia no cordão de oiro ao pescoço. O Telles quiz desviar a conversa, mas a baroneza perguntou ainda com interesse.
—«A menina sabe quando elles casam?
—«Á Engracia disse que era depois de janeiro, porque faz um anno que morreu a Pillar. A Candida é que casa primeiro.
Novo estremecer do Vilhegas trocando olhares de intelligencia com o Telles.
—«Sim? Com quem casa essa? É uma formosura, não é, D. Manuel? Olhe que em Lisboa, convenientemente emoldurada em luxo, e n’uma frisa de S. Carlos, era d’um soberbo effeito—disse com a convicção de quem se não julga prejudicada pela mocidade nem pela belleza, forte no seu reducto de oiro.
—«É realmente perfeita! Faz pena ver escondida entre serras uma tão rara planta—respondeu o Pereira, que ás vezes se mettia em floreados de phrase recordando tempos de Coimbra.
—«Em casando já ella vae para Lisboa viver—tornou a menina Aurora, que estava tendo um verdadeiro successo com tanto saber de vidas alheias.
—«Quem é esse marido ideal?
—«É o Braga, v. ex.ᵃ não conhece? Cá chamam-lhe o Braga usurario, porque empresta dinheiro a noventa por cento. É muito rico. No baile da viscondessa estava sempre ao pé d’ella, não viram?—voltou-se a pedir confirmação ao dito, ás irmãs e ás meninas Souzas, que abanaram a cabeça affirmativamente e começaram todas a fallar ao mesmo tempo, querendo[211] ser interessantes com o saber muito d’esse casamento, que era o escandalo da terra.
—«Dizem que o velho está doido pela Candida.
—«Até já fallou aos pedreiros para deitarem abaixo a casa do Bernabé, que o visconde sempre fez com que a camara expropriasse por utilidade publica...
—«É um verdadeiro escandalo, uma arbitrariedade sem nome, uma d’estas coisas que só se fazem n’uma terra de cafres como esta!...—apostrophava o Telles pensando já na correspondencia para o jornal de Lisboa.
E uma das meninas ainda elucidava:
—«Dizem que para o anno já hade ter um chalet como nunca se viu outro cá!...
—«O tio comprou-lhe um enxoval que nem que fosse para uma rainha—disse ainda outra com inveja.
—«Diz se que casam já para o mez que vem...
—«Ora ahi está un vrai mariage d’amour!...—casquinou a Hortencia.
—«Não se ria, minha querida,—respondeu a baroneza, que tinha o gosto particular de contrariar a filha do Maximiano—elle gosta sinceramente, e n’este genero de negocios um quasi sempre é enganado, quando não são os dois!...—sorriu com finura.
—«Oh Vilhegas—chamou do fundo da sala o conselheiro.
O Emygdio correu com interesse de subordinado humilde a perguntar o que lhe queria o patrão.
—«Venha cá, meu amigo. O sr. juiz pode ter algumas duvidas e quero que lhe diga com a[212] mão na consciencia se o Cabral morreu assassinado pela pancada ou em resultado da doença que lhe deixaram sobrevir.
—«Não tenho duvida nenhuma em affirmar que foi da doença...
—«Deixem-me dizer-lhes—continuou o esperto politico—que o meu interesse pelo Manuel Duarte é apenas filho da revolta que toda a injustiça me causa, notem que nem é meu partidario... Mas o dr. Vilhegas, que em breve será meu filho, faça o mesmo que eu, feche os olhos a resentimentos e diga sempre o que a sua probidade mandar.
—«Sr. Conselheiro—começou o medico, dando um passo atraz e pondo a mão no peito n’um gesto de comediante sentimental—eu respeito v. ex.ᵃ mais do que ao meu próprio pae—e n’isto era sincero porque não fazia grande caso do barbeiro d’aldeia que lhe dera o ser...—mas acima dos affectos humanos está a justiça e a consciencia. Eu farei sempre o que uma e outra me ordenarem; se v. ex.ᵃ me pedisse o contrario teria muita e sincera magua, mas não cederia...
Isto é que já soava como bilha rachada, mas o conselheiro bateu-lhe no hombro e disse com enthusiasmo:
—«Bravo, meu rapaz! Assim é que eu aprecio o caracter d’um homem! É com toda a confiança que lhe porei nas mãos os meus negocios e sei que não usará da minha influencia senão para o bem d’este desgraçado paiz que caminha para o abysmo!... Dê cá um abraço, homem!—abraçaram-se com gravidade.
—«O sr. dr. Vilhegas—começou o juiz, arrastando a phrase como arrastava a perna gottosa—é um rapaz a entrar na vida com nobre caracter e agúda intelligencia. Abre-se aos seus passos um largo caminho que não hade querer manchar com uma injustiça inspirada pela má paixão da politica, como usam alguns seus collegas; fico pois com a minha consciencia tranquilla.
—«Agradeço o conceito que v. ex.ᵃ forma do meu caracter e tenho a vaidade de o julgar justo.
—«Mas não o prendâmos por mais tempo, aliás a Hortencia ficará zangada...—disse o conselheiro empurrando-o com amavel sombra. Depois continuou n’aquelle ar de indifferença bem calculada que todos os politicos conhecem para despertar a curiosidade que desejam espicaçar:—Sabe que é definitiva a aposentação do dr. Saavedra? Escrevi ao ministro para não dispor do logar sem me ouvir...
—«O que respondeu?!...—perguntou o outro arregalando os pequenos olhos de porco, n’um esfusear de curiosidade.
Interrompeu-os o padre Mathias, fulo com o Neves que se lhe fôra pôr ao lado e o fizera perder todos os cobres,—porque engallinhava com aquelle typo... dizia, bufando.
—«Ora—respondia-lhe o conselheiro sorrindo—vocês não sabem jogar, perdem logo a cabeça! Vae-se tenteando emquanto se perde com pouco dinheiro; depois, quando a sorte vem, é só uma cartada bastante para a desforra.
—«Isso era bom se todos soubessem e tivessem a felicidade de v. ex.ᵃ
—«Então hoje está o caso muito feio; hein? Vamos lá ver.
Dirigiram-se para a outra sala emquanto o juiz rodeava, arrastando a perna e trauteando o estribilho favorito, até ao grupo das senhoras ás quaes costumava dirigir grosserias que imaginava deviam tomar por amabilidades.
—«Oh sr. Telles—dizia a baroneza, para terminar a conversa das vidas alheias que já a enfadava—eu tinha pedido aqui ao seu amigo para interceder por nós junto de v. ex.ᵃ.
—«Que valor tenho para merecer um pedido de v. ex.ᵃˢ?!...
—«Tem o valor de ser poeta, acha que é pequeno? Nós queriamos ouvir recitar alguma das suas poesias.
—«Oh, sr.ᵃ baroneza, os meus pobres versos são pedaços d’alma angustiada que não podem interessar aos felizes da terra!...
—«As obras d’arte, quando sinceras, são comprehendidas por todos e commovem as almas menos sensiveis, não é verdade, sr.ᵃ baroneza?!...—disse o Vilhegas querendo que o amigo figurasse.
—«Decerto—respondeu ella.
—«Não se faça rogado, sr. Telles, j’aime beaucoup vos poésies!...—acrescentou Hortencia languidamente cerrando os olhos e apertando os beiços com denguice.
Um coro de insistentes pedidos rodeou o Telles, que se fazia grave, mettia os dedos nos cabellos, fechava os olhos, dizia não se lembrar nada do seu livro Verde-mar... Por fim, como que victimado, mas radiante de vaidade, levantou-se,[215] pôz a mão sobre as costas da cadeira, levou a outra ao coração, fez ainda um gesto vago de quem se lhe tinha varrido tudo da memoria, o que impacientava os ouvintes, e começou com voz sibilando entre sorrisos de superioridade.
—«Dedicatoria: Á Doce e Pura que a minha alma espera para entrar na Turris eburnia da Perfeição.
Mas a palavra foi-lhe cortada violentamente pela explosiva apparição da conselheira n’um desmanchamento de modos de quem precisa desabafar arrelía séria.
Offegante, rubra de indignação, dirigiu se á baroneza como se quizesse toma-la para testemunha da justiça que lhe assistia.
—«Veja isto, veja isto!—e mostrava-lhe uma grande folha de papel escarlate por aparar, com uma enorme corôa de visconde ao centro encimando floreado brazão—aquelle pelintra que já desdenha assistir ás nossas partidas!... Não ha maior desaforo!
—«Mas o que é afinal?—perguntou a baroneza, que apreciava pouco scenas tragicas no seu epicurismo de pessoa que quer tirar da vida só o fructo saboroso e leve.
—«Leiam, vejam isto, desde que veio o inglês para lá está assoldado... Não se lembra o pobretana que veio para ahi sem roupa; até foi preciso emprestar-lhe camisas do Maximiano!... Ainda hontem a costureira me veio mostrar um par de meias d’elle que não tem por onde se lhe dê um ponto!... Agora, o figurão já não perde tempo a vir aqui...—voltando-se indistinctamente[216] para quem tinha mais perto e calhou ser o Telles—leia o senhor o que manda por um lacaio. Só visto!...
O discurso ameaçava não deixar occasião para se ler a carta, porque a conselheira, vendo-se benevolamente escutada, não tinha mão nos improperios. Interrompeu-a a baroneza benevolamente:
—«Deixe que o sr. Telles leia a carta, aliás não percebemos nada.
—«Pois que leia, para verem quem é aquella bisca!... Só a chicote!...
O Telles pegou na carta traçada com larga calligraphia inglesa propria de sportman e de pessôas de poucos dizeres, e leu:
—«Minha ex.ᵐᵃ e querida senhora. Venho humildemente a seus pés depôr a minha homenagem e pedir desculpa pela falta que hoje darei na sua quinta-feira. Não poço.—O sr. Visconde escreveu posso com ç, não sei se quer dizer o mesmo, commentou o Telles com litteratica ironia.
—«Deixe lá os erros e diga para deante—apressou a baroneza.
—«Não póde deixar a partida de mr. Burns, a quem acompanhará n’uma caçada á serra ás tres da manhã—resumiu o Vilhegas, que acabou de ler por cima do hombro do amigo.
—«Ora então, coitado do rapaz, tambem tem alguma razão—desculpou a baroneza.
A conselheira ia sair-se talvez com nova ladainha de injurias e improperios, se o Jorge Cabreira a não chamasse da porta, n’um gesto desesperado. Estava pallido; o bigode, que enrolava furiosamente[217] entre os dedos, mostrava bem a excitação nervosa que o tomava.
O conselheiro tinha-lhe limpado todo o dinheiro n’um baccarat rijamente sustentado, e elle vinha pedir á mulher que lhe emprestasse mais para tirar a desforra do marido...
Tinha passado o tempo das festas com os primeiros rebates de um inverno que vinha rudemente soprado pelas ventanias da serra, a afugentar os veraneadores.
Primeiro sahiram os Maximianos, seguidos pelo Emygdio, que, fiado em tão bôa escóra, resolvera a sua ida immediata para a capital. Estava lançado, como por ahi se diz n’um francesismo de mau gosto, o que ao dr. Pinto fazia commentar: só um estomago de avestrus como o do conselheiro teria bojo para expellir tão grande maroto!
Os viscondes seguiram-os tambem, depois de assistirem ao casamento da Candida, a quem Maria Helena serviu de madrinha, visto Josephina não sahir de casa nem assistir a festas, lamentosa como continuava ainda pela morte da Pillar.
A Bella, que primeiro partira com o tio, fôra em breve reunir-se o João, para juntos combinarem todos os preparativos para a sua vida commum, que elles queriam bem harmonicamente organisada como em harmonia estavam sempre os seus gostos e maneira de vêr e sentir.
Retomára, pois, a villa o seu ar de pacatês provinciana; e se não fossem os odios e luctas politicas ateados pela proximidade das eleições, ninguem diria senão que aquillo era burgo medievo esquecido pela civilisação, cujos habitantes o tempo tinha mumificado.
Nem carruagens de luxo nem garboso trotar de cavallos de raça pelas calçadas desiguaes faziam assomar ás janellas entreabertas as cabeças, entre curiosas e receosas, das meninas da terra. Cahiam no marasmo que ataca as provincianinhas ambiciosas por movimento e vida, que se resignam a só mostrar os vestidos de luxo aos domingos, á missa das onze, e a passear funebremente, quando a musica toca na praça, as suas anemias sentimentaes de quem não tem um nobre e util destino a preencher, de quem lhes falta, para sacudir os nervos e hygienisar a alma, uma educação de trabalho remunerador que as liberte da escravatura feminina, que tem por carta d’alforria... só a porta da igreja que dá para o casamento.
As partidas arrastavam-se somnolentas pelo anno fóra, sem despertarem o enthusiasmo e o interesse das reuniões de verão. Emquanto as mesas do sólo e da manilha se armavam para os velhos junto da brazeira, os outros rodeavam a mesa do centro para o jogo ou para a conversa, e era então o momento escolhido para se rememorarem os acontecimentos da passada estação e darem-lhes a fórma anedoctica que depois se transmitte de geração em geração, como as receitas dos dôces e os lençoes de linho caseiro.
E não fôra, na verdade, das menos ferteis em acontecimentos sensacionaes, essa que originára o casamento do melhor herdeiro das redondesas com uma estrangeira: o que fazia, apesar das poucas esperanças que João déra sempre ás meninas casadeiras da terra, com que todas se julgassem offendidas.
Depois, o casamento, mais que imprevisto, do velho Braga com a formosa sobrinha de Antonio de Mello—que era o caso escandaloso por excellencia. Commentava-se o insolito luxo que o homem botára, elle que fôra sempre considerado o maior dos avarentos, o que enraivecia as raparigas e fazia dizer aos paes—«que bem o tinham previsto: o Braga seria o ideal dos maridos, babadinho pela mulher...» Ellas gritavam repugnancias que não sentiam, e os velhotes encolhiam os hombros:—«tolices de raparigas! Sabem lá o que custa a vida e o que uma mulher perde quando despresa um casamento rico!... Depois é que torcem a orelha. A Candida, sim, essa é que tivera juizo. Não ha como as mosquinhas mortas para se saberem governar.
Fallando com a segurança de quem não tivera o Braga como genro porque as meninas o não tinham querido, não pensando, na sua illusoria vaidade, que só uma invencivel e tresloucada paixão transformaria em prodigo amante o homem que, na sua já larga vida, não tivera mais desejos que não fosse os de accumular oiro, mais orgulho que o de juntar propriedade á propriedade, ambição que não fosse a da riquesa pelo prazer avaro de a possuir.
Por fim, até o Vilhegas, que, depois da morte da Pillar ainda fôra uma esperança de marido rasoavel, até esse era levado pela filha do Maximiniano Carneiro!...
Estes e outros factos contados e completados pela bisbilhotice da criadagem, davam alimento para as conversas em todas as infindaveis noites de inverno.
O rico enxoval da Candida, mandado fazer pelo tio nas melhores casas de Lisboa, com duzias de duzias de cada peça, rendas finas, sedas e bretanhas, as joias de preço com que o noivo a brindára, os mais presentes que tivera, tudo se commentava trazendo á baila a pobreza da rapariga, o que seria ella n’esse momento sem a generosidade dos tios, na mediania quasi pobreza em que vivia a mãe e os irmãos... Depois, a cerimonia do casamento, a que tinham assistido por convite do Braga, chegado ao delirio da paixão, todos querendo associar á sua alegria. O orgulho da Candida, a arrastar a cauda do seu branco vestido de noiva; o véo de verdadeiro tule de seda e as flores de larangeira a coroá-la n’uma alvinitencia de castidade; a cara do noivo e a sua figura ridicula, que ainda mais os fazia morrer de riso; a partida para Lisboa e a permanencia lá durante o inverno... nada ficava por dizer e commentar.
Quando este acontecimento já ia aborrecendo por demais refervido, como o chá de Tolentino, começaram alguns jornaes da capital a trazer umas noticiasinhas sorrateiras, que interessavam a todos. Tratava-se do Vilhegas, fallado em pequenas mas insistentes locaes, no corpo[223] do jornal, que lhe apregoavam o talento formoso, a sua delicadesa e habilidade profissionaes, o casamento ajustado, para a primavera, com a gentil filha do illustre estadista...
Na botica velha o dr. Pinto ria sem respeito das maximianices, como costumava chamar ás espertesas do habil conselheiro, e affirmára ás gargalhadas, quando viera no carnet mondain de um jornal elegante que o enxoval da noiva fôra encommendado em Paris, que o vira a fazer em casa das meninas Sebastianas, as pobres costureiras e bordadeiras de roupa branca, que um escrivão de fazenda chamado Sebastião alli deixára na miseria.
Chamava o Neves e fazia-o fallar, elogiando-lhe o primo, fingindo-se de boa fé. O outro, coitado, ia dizendo, no seu grande fanatismo de parente pobre que julga engrandecer-se com a grandesa dos seus:
—«O rapaz vae a ministro, não tarda, o sr. doutor verá! Não, que uma cabeça como aquella... ha poucas!
O finorio, cofiando as barbas brancas, em que punha vaidade, ria sorrateiramente, achando que era realmente esperto, que se soubera arranjar, que casava bem...
—«Mas que bem!—dizia o outro tomando a deixa.—Casamento de trús! O sogro entende-se bem com elle; ha de leva-lo a tudo!...—Voltando á sua idéa fixa:—Não tarda que seja ministro, o sr. doutor verá!
—«Sim, sim, é natural. D’aquella massa é que elles se fazem por cá. O sogro, em demasia conhecido, dá homem por si, sim senhor, é[224] bôa tactica!—Despedia gargalhadas jubilosas, batendo fortes palmadas nos joelhos.—É um patusco, aquelle Maximiano! E comem-na, vocês verão!...
Voltava-se para a roda dos frequentadores da botica velha, que iam rareando á proporção que a nova crescia em créditos e fama, o que trazia o Domingos estomagado.
O caso do Manuel Duarte responder n’um processo correccional em que o juiz lhe déra por pena o tempo decorrido na cadeia, antes do julgamento, isto fundado no exame e na autopsia feitos pelo Vilhegas, com patente desconsideração ao Ramalho, suscitára contendas varias nos partidarios de um e de outro campo, e rompimento de hostilidades.
Da parte da velha fallava-se com indignação e sem rebuço no procedimento do juiz, peitado pelo conselheiro, e de todos os mais que haviam entrado no conluio. O delegado, um pobre rapaz sem vontade, especie de serventuario do juiz, torcia-se, mas não fazia nada que fosse contra as suas indicações.
D’ahi descomponendas nos jornaes por uma parte e por outra, mas principalmente pelo lado do Maximiano, feitas pelo Telles em redundancias de estylo a que o Dr. Pinto respondia em chalaça. Nessa tarde caturrava elle com o Neves, que não queria estar mal com uns nem com outros—«por causa da engrenagem dos governos», dizia.
—«Você desculpe, eu não quero dizer mal do seu primo, mas esta de certificar que um homem que leva com um marmeleiro na cabeça e[225] morre em seguida de uma meningite, não é em resultado de pancadas, é de cabo de esquadra.
—«O sr. dr. bem vê, elle depende do sogro...
—«Deixe lá, ha coisas que se fazem só de vontade. Elle é seu primo, é verdade, mas isto brada aos céos...
—«Pois decerto, ora essa!... á vontade, sr. doutor; entre amigos não ha cerimonias, que eu, aqui para nós, o que quero é que o meu primo Emygdio vá a ministro. Depois é só eu lá chegar...
—«Com certeza... Pelo menos director da instrucção!—ria entre dentes.
—«Eu cá não quero muitas grandezas. Tamanha é a náu tamanha é a tormenta. Para mim basta-me um logarsito que me dê tanto como o do Manuel Vilhegas, uns dois mil reisitos por dia... e mais esse mal sabe assignar o seu nome.
—«Não é muito, é até rasoavel,—respondeu com sarcastica seriedade o doutor—mas diga-me, oh Neves, porque razão se assignavam os seus primos Viegas e agora são Vilhegas?! Olhe que isto dá-me que pensar...
—«O Emygdio começou a assignar-se assim lá nos estudos, depois os outros fizeram o mesmo.
—«Diga-me d’essas; é o que se chama uma nobresa de repuxo... Elles têm razão, o nome fica mais bem soante; isto de Viegas lembra pobreza, gente sem representação...
—«Pois é por isso; elle como está mettido na politica!
—«Não tem outro remedio.
Não se fartava de troçar o pobre homem, com applauso de toda a roda.
Na botica nova não era menor a azafama de parlatorio e coscovilhices azedas.
Quasi sempre era o Telles, como senhor da casa e mais versado em litteraturas e oratoria facil, quem tomava a palavra para declamar contra os adversarios.
Achava elle, no ultimo artigo de arromba,—que ninguem de bôa fé deixaria de seguir essa gloria da terra, esse homem que, nos pinaculos do fastigio politico, não desdenhava a patria que o vira nascer e para a qual projectava tantos melhoramentos que fastidioso se tornaria enumera-los. Melhor seria que o povo abrisse os olhos para vêr, e então desfolhariam aos seus pés, como homenagem de corações sinceros, as flores do agradecimento... Bem se sabia o que até ahi tinham feito os magnates da aristocracia, exhibindo escandalosos feitos de protecção descarada aos seus adeptos, que de ha muito servem de muletas ao illustre côxo da medicina...
Este era o Ramalho...
Enumerava as phantasmagorias com que o conselheiro trazia embaidos os papalvos:—telephone para todas as aldeias, estradas em todos os sentidos, luz electrica, um lyceu, e até um americano a vapor, vários parques e jardins, e a exploração de umas aguas medicinaes que se esperava apparecessem na Senhora do Monte...
De jornal em punho o Telles lia ao seu auditorio[227] attento e approvador, de que era principal figura o Padre Mathias, que dizia com um certo ar de compunção que ultimamente adoptára:
—«Está bem, sôr Telles, mas veja lá se o povo percebe... Seria melhor dizer ahi que esse côxo da medicina, o tal materialista que não conhece Deus nem o Diabo, não frequenta os sacramentos e para encobrir a sua irreverencia se finge philantropo á moda nova, tratando sómente do corpo e deixando a alma perder-se e cahir nas profundas do inferno!...
—«Isso não; olhe que o povo gosta d’elle e deve-lhe muito. E, escorado pelo abbade, ninguem poderá chama-lo hereje por não ser um frequentador assiduo da igreja.
—«Pois ahi é que está o ponto. Os que não são por nós são contra nós. Acabaram-se os tempos da transigencia culposa. Que o povo saiba que tem um abbade sem fé!...
—«Homem, não diga isso; eu sou um crente, mas olhe que uma das paginas mais negras da humanidade é sem duvida a da Inquisição e de todas as perseguições feitas em nome da religião...
—«Pois sim, sim, você tambem... é um poeta. O que se quer é força, é energia; se viesse a Inquisição, não se perderiam senão as que cahissem no chão, como o outro que diz...
—«Isso é retrogradar, padre. Muito ensino, muita luz, é do que carece o povo.
—«Você parece que me está a sahir jacobino!...
—«Deixe ser, antes isso do que retrogrado...—respondeu[228] o Telles, com uma importancia impertigada de chefe, vendo-se assim considerado na terra pela intima amizade que o ligava ao Emygdio.
E, no entanto, nem elle nem o padre Mathias conseguiam manter o equilibrio de opiniões e ideias que o Maximiano conservára sempre, sem levantar attritos.
O primeiro não liberto ainda do ideal de progresso que o fizera em Coimbra o redactor de um jornal republicano em que toda a mocidade intellectual e livre exposera as suas opiniões progressivas; o outro, mudado nos ultimos meses, transformado não se sabia bem porque influencias estranhas...
Havia um certo tempo, desde umas visitas amiúdadas que fizera á capital do districto e de umas conferencias que tivera, dizia-se á bocca pequena, com o chefe da sua diocese, considerado o protector do reaccionarismo regional, que o cura mudára tão completamente que se dizia que o tinham voltado do avesso.
Seguira o conselho do Maximiano, que, em ar de chalaça, como dizia tudo, o avisára um dia:—Olhe que isto de padres liberaes é uma asneira. Já ninguem os quer. Deixe para os tolos dizerem o que pensam... Falle com o bispo se quer ser o nosso abbade... As coisas mudaram muito nos ultimos dez annos... Nós só referendâmos o que os bispos querem.
O padre meditára; e n’aquella sua maneira impulsiva e violenta de atacar as situações, marchára para a cidade, confessára as suas culpas n’uma confissão geral, e desfizera-se em arrependimentos,[229] que a benção do bispo santificaram.
Do antigo e expansivo cura de aldeia, gritando aos quatro ventos a sua revolta ao dogma, a contrariedade da vida que forçado adoptára, o despreso com que calcava as mais comesinhas noções da honestidade vulgar e consagrada, pouco ou nada restava, apparentemente.
Sempre sério, olhos no chão, viver regrado e quasi ascetico, toda a violencia d’aquelle temperamento de camponio mal desbastado se voltava agora, como arma de dois gumes, tornando-o um fanatico perigoso, que aos proprios amigos incommodava ouvir.
Entre as beatas já era tido por santo, e não faltava pobre velha senil que não affirmasse que aquella reviravolta miraculosa tinha sido visão que tivera na missa, entre o calice e a hostia.
Aproveitando a occasião e para se tornar effectivo e mais assiduo na convivencia do grupo com o qual contava subir até ao logar ambicionado, lembrou-se o padre Mathias de implantar n’aquelle meio, até ahi refractario a beaterios, graças ao bom do abbade, a devoção ao Coração de Jesus.
Fallou com o seu chefe, que lhe louvou particularmente o seu zelo e o aconselhou a interessar em tão meritoria obra o parocho da freguezia, porque era da melhor disciplina christã não relegar os superiores.
O cura sorriu: conhecia o bondoso velho que seguia a lettra do evangelho cuidando cumprir o seu dever de padre, não reparando, na sua simplicidade de primitivo, quanto se distanciava[230] do catholicismo triumphante... Tinha a certeza de que o abbade não annuiria ao seu intento, e isso convinha-lhe para a intriga em que o queria illaquear.
Assim foi. Consultado sobre a urgencia de se abrir uma subscripção entre os fieis para a compra da imagem do Coração de Jesus, o velho não acquiesceu a essa opinião e respondeu ao cura:
—«Que bem mais do que de novas imagens precisavam os parochianos de quem os soccorresse em tanta fome e miseria como havia por esses casebres...
Voltou o padre Mathias a conferenciar com o bispo, aggravando com unctuosas e velhacas palavras de desculpa o procedimento do parocho—mas que, graças a Nosso Senhor, as damas fieis se tinham quotisado entre si e a imagem estava encommendada ao santeiro de mais fama.
Quando chegou á matriz a imagem, reluzente de vermelho e oiro, atarracada e sem elegancia nem sombra de espiritualidade esthetica, o abbade mandou-a collocar no altar-mór, visto a recommendação do prelado, sem reluctancia nem enthusiasmo.
Achava aquillo disparate, com tantos santos que havia na igreja e até na arrecadação, quando tantas obras de urgencia eram necessarias, desde o telhado até ao altar do Santissimo.
Passados dias viera o padre Mathias ter com elle para conferenciarem sobre a festa de inauguração que se devia fazer em breve, com toda a pompa, e pedir-lhe o seu auxilio moral e bôa vontade para a nova devoção tão cheia de indulgencias[231] e promessas divinas, pela qual o sr. Bispo tanto se interessava e n’ella tanto fiava para a regeneração da humanidade.
O pobre velhote, alma lavada, coração virgem de rancores, respondeu ao cura:—que interessar-se por essa nova irmandade não podia, pois que estava velho e cançado. Mas á festa prestaria o seu concurso como a outra qualquer que particularmente os seus parochianos quizessem fazer. No entanto, sempre lhe dizia á bôa parte que melhor se lhe antolhava que protegessem as confrarias existentes e que de tanta utilidade corporal seriam como por exemplo, a do Santissimo, a da Misericórdia tão digna de protecção para sustentar o hospital e o asylo, e a da Senhora do Carmo tão util aos seus associados, e tão antiga, tão portuguesa! Deixasse aquella, invenção de uma ordem riquissima e poderosissima, que só era bôa para gente ostentosa e sem obrigações, ou para frades e freiras que pouco mais têm que fazer que desfiar rezas.
Quando á tarde contou o succedido em casa, a irmã mais velha, que mal se mexia na cadeira onde a paralysia a tinha presa, levantou do livro que lia os olhos embaciados de présbyta, e avisára:—que na sua opinião mal andára usando tanta franqueza com o cura; bem sabia que elle o odiava e lhe ambicionava o logar!...
—«Cá lhe fica quando eu morrer; deixe a mana estar que o não levo. Não me dê Deus outros cuidados. Quero mas é descançar, quando a minha vez vier...
—«O mano bem sabe—tornou ella ainda com a sua voz mansa—que o cura é impaciente.[232] Bem sabe de que gente elle vem, que o pae nunca achou obstaculos ao seu querer...
—«Ora, mana! Não se faça echo desses boatos!... Dado mesmo que o pae fôsse, como dizem, companheiro do Braga pae no assalto á casa do Olival, que culpa tinha o filho?
—«Tinha culpa, tem culpa de ter aquelle sangue—que se fôsse só o roubo da casa do Olival!...
—«Pois sim, pois sim, não vamos agora esmiuçar a historia dos que Deus já lá tem e a quem já pediu contas... O rapaz até hoje não tem sido máu—leviano, doidito, verduras da mocidade... Até bem mudado está elle, nem já parece o mesmo que era!
—«Pois é o que me espanta, é o que me dá cuidado; a natureza d’uma pessoa mudar assim d’um dia para o outro, só por grande milagre, mano Antonio!... E os milagres vão tão raros, que até parece Nosso Senhor já os não querer fazer!
—«Ora Joanninha, desde que a mana tolhida se pôs só a lêr e a pensar, já me parece que de todo perdeu a confiança na humanidade; até ás vezes se me affigura que já descrê mesmo da Providencia divina!?...
—«Nem uma nem outra. Cada vez creio mais na humanidade, que bem guiada e educada não pode ser má. A Providencia nos acudirá n’este angustioso transe, em que tudo parece andar fóra do seu logar, em que os pobres, sem ninguem que os dirija para o bem, pensam na vingança tremenda que fere ás cegas bons e maus, culpados e innocentes. Mas tambem me[233] convenci de que a hypocrisia é o peor inimigo do homem justo!... Lembre-se o mano do que lá diz Frei Luís de Souza:—«Oh abysmo de toda a verdade!... Quão medonho monstro é a apparencia!»
Olhava o abbade, estarrecido de espanto, do ar illuminado de pithonissa que a irmã mais velha tomára desde que, paralytica, não se levantava da cadeira senão para ser levada em braços para a cama.
Desde criança que se habituára a respeitar essa irmã poucos annos mais velha do que elle, mas que á morte da mãe tomára a direcção da familia e fôra quem os criára e educára, tendo sempre grande amôr á leitura e aos livros que em casa dos antigos viscondes, de quem o pae fôra zeloso e honrado administrador, encontrára sempre ás ordens. Mas nunca, como n’aquelle dia, comprehendeu quão fundos eram os pensamentos da intelligente senhora.
Valeu-lhe para acabar o mal estar de tal conversa, a irmã mais nova, que da cosinha, onde fazia uns bolos, ouvira do que se tratava e viera tambem dizer:
—«Queira Deus, queira Deus que o mano se não mettesse em alguma!... Não sabe que o padre Mathias anda agora mettido com todos os beatos; não sabe que o sr. Bispo o confessou e absolveu?!... Ora Deus queira!... Este homem é um barbeiro abafado, ora porque não faz o mano como elles?...
—«É verdade, sr. abbade,—acabou por intrometter-se a criada, que no costume patriarchal das boas casas antigas tinha vindo ao desmamar[234] para a sua companhia e fallava como da familia—já me disse a mulher do Antonio da Capellinha que é raro o dia em que elle não vae a casa da viuva do Marques; que é ella quem protege a irmandade e quer trazer para cá um collegio de jesuitas e irmãs de caridade para o hospital.
—«Vê o mano?!... Ricos, protegidos do sr. Bispo, e com os jesuitas a aconselha-los, o que será de nós?!...
—«Hade ser o que Deus quizer, mas hão-de contar commigo—respondeu o abbade, com uma ruga na fronte. Depois terminou alegremente, levantando-se da cadeira onde se assentara defronte da irmã—Mas deixem-se vocês de lamentações e vamos ao nosso jantar. São bem capaz de me terem deixado esturrar as sôpas, suas falladoras. É aviar, que ainda vou a Maceira ver um rapaz que lá está com um typho e que aquelles brutos não querem tratar. Á tardinha heide estar de volta para examinar os pequenos da doutrina, á noite a lição do filho do José sapateiro que tem o exame á porta, coitado!... Hoje é um dia cheio e ainda vocês me vêm maçar com essa historia de beatos e Coração de Jesus!... Nem que Jesus nos não tivesse já dado o coração no Evangelho; eram lá precisas aquellas maluqueiras, que até contradizem a palavra do Senhor!...
—«Ai mano, não diga essas coisas, credo! Se o ouvem!...
—«Deixe ouvir, dê-nos a mana os bolos e deixe o resto por minha conta.
Tinha sido um bom dia para o abbade.[235] Quando elle assim o achava e satisfeito se assentava á meza comendo as suas sopas, é que muita lagrima podéra enxugar, é que muita dôr, muita miseria, conseguira suavisar. Era por isso que o povo o estimava como a um pae, e era por elle, por Josephina, pela viscondessa e pelo dr. Ramalho, todos collaboradores de uma grande obra de simples beneficencia prática, que a eleição do Maximiano, apesar de tudo quanto usava gravata lavada, no dizer do Telles, o seguir, estava muito tremida. Isto, sem contar os caseiros das tres grandes casas da comarca: a dos Mellos, a dos viscondes e a dos Athaydes, da Fradosa, ainda seus parentes, que todos á uma, por ordem dos patrões, levavam votos ao visconde.
Como se previa, e apesar da lucta desesperada do partido maximianista a que se tinham aggregado todos os trunfos da terra, ainda n’essa lucta eleitoral fôra o visconde o vencedor. Mas não desanimava nem afrouxava o enthusiasmo dos vencidos, porque o governo, após as eleições e apesar da maioria nas camaras, cahira vergonhosamente com a publicidade de uns casos de empenhos e empregos por demais escandalosos.
Dissolvidas as camaras pelo novo gabinete, esperava-se que o governo em dictadura marcasse data para eleições, e para ellas trabalhavam já com affan.
Os partidarios do visconde pleiteavam, mais por honra da firma do que pelo interesse que verdadeiramente a lucta já lhes despertava, visto que o chefe a pouco e pouco, tambem, se tinha desinteressado da politica, não faltando mesmo já quem affirmasse que era combinação com o Maximiano, senão pouca vontade de gastar dinheiro... Affirmações estas tão gratuitas quanto mostravam o desconhecimento completo do caracter do visconde, tão incapaz de se prestar a[238] uma traição assim grosseira como era incapaz de vestir uma camisa manchada ou uma casaca fóra da moda; tão incapaz de antepor o dinheiro aos seus compromissos como era incapaz de faltar a um dever de cortezia ou de acrescentar as suas colleções com um objecto de que não podesse authenticar a procedencia. Não obstante, era certo e bem certo que o enthusiasmo da politica lhe passára como até alli lhe tinham já passado muitos outros. Voluvel, apaixonado e enthusiasta, era um d’estes caracteres que não se dão a meio e com a violencia passional com que se entregam a um desejo ou capricho, com o mesmo arrebatamento o abandonam sem piedade nem recordação.
Ficára, pois, deputado, como ficaria sempre emquanto o recenseamento não fosse falsificado ou se desse um caso que não previam, pela forca numerica dos caseiros das tres casas grandes da comarca e pela vontade espontanea do povo da villa que mais lhe queria, apezar de todos os seus defeitos, do que ao Maximiano, que não tinha pretensões nem desejos ambiciosos a realisar-lhes. A noticia de ter vencido recebeu-a com a mesma risonha indifferença com que receberia a da derrota.
Outro era agora o seu empenho, outra a sua ambição e cuidado.
Como o inverno se passára assim na villa decorria o verão, que esse anno não chegou a ter o bulicio e o animado convivio dos precedentes.
Ao conselheiro, agora no partido governamental, não convinha affastar-se muito das altas[239] regiões onde se jogam os interesses politicos; era occasião de acceitar o pretexto que a mulher francamente lhe fornecia com o seu odio confessado á provincia em geral e muito particularmente á terra do marido.
O Vilhegas, casado de fresco, viera apenas com a senhora, no principio da estação, visitar os paes e irmãos de quem se fizera protector e respeitoso amigo, seguindo a maxima do sogro: de que os parentes pobres não se despresam—empregam-se.
E era o que ia fazendo, tendo já á sua conta uma não pequena parte de responsabilidade pelo dinheiro esbanjado criminosamente n’este paiz.
Mandára ainda pedir licença aos Mellos para os visitarem, querendo seguir á risca os preceitos do conselheiro que não gostava de levantar atritos, principalmente com gente rica; mas tanto Josephina como o marido pretextaram doença para os não receber. A maneira porque se apressára em arranjar casamento que lhe servisse os planos ambiciosos davam-lhes a prova de quanto eram justificadas as desconfianças de João e quasi a certeza de que a morte da filha a causára elle mostrando d’alguma maneira, que ainda não conheciam, que era a fortuna que elle visava quando mostrava um tão ardente amôr.
Hortencia, durante a sua estada na villa, aborrecia-se francamente, agora que já casada não encontrava na conversa com o marido os attrativos picantes do galanteio, e para uma sã e honesta intimidade espiritual nem um nem outro tinham alma nem educação. Affirmava cathegoricamente ao Móttasinho e ao Telles e mais ás[240] Souzas e ás Cunhas, que lhe formavam a limitada côrte,—que se o Emygdio quizesse podia ficar; emquanto a ella, pas possible... A mamã esperava-a para irem juntas para Cascaes e não podia trocar por nenhuma a companhia da mamã, que demais a mais escolhera a praia chic, onde se reune a côrte e com ella toda a haute-gomme... Cela va sans dire...
A Candida tambem conseguira que o Braga a não obrigasse a vir alli passar o verão, tendo demais a mais o chalet em obras, que lhe não podia dar o conforto a que estava habituada. E o visconde, a pretexto de que o ar das montanhas não é aconselhado aos cardiacos, convenceu a viscondessa em procurar para a mãe uma estancia onde passasse socegada os grandes calores de julho a outubro, mais perto da casa e das commodidades da capital.
Apenas João e Isabella se estabeleceram alli, depois de uma visita larga a Inglaterra e d’alguns doces dias de inverno italiano passados a reverem juntos o que ambos já conheciam e admiravam.
Mas nem um nem outro animavam a terra: «dois bichos—no dizer espevitado das Souzas—que nem sabiam para que lhes servia o dinheiro e a educação...
Indifferentes a taes opiniões, um e outro começavam a pôr em prática o sonho de altruismo que juntos tinham architectado. No meio da sua grande felicidade um como pugir de remorsos lhes amargurava o espirito, achando injusta a vida que a uns colloca tão alto, bafejados pela fortuna em calentoso ninho, e a outros faz rastejar[241] tão baixo pela estrada poeirenta da miseria e da dôr.
Ha muitos, ricos como elles, que sentem no silencio das suas almas piedosas o agrôr da comparação, e gosando do desafogo da propria vivença não podem fechar os olhos inteiramente á pávida realidade. Mas, incapazes de juntar a acção ao pensamento, traduzem essa piedade que os devia tornar uteis obreiros na grandiosa obra que o futuro reclama, dando esmolas, protegendo um ou outro, associando se á caridade farfalhuda e acomodaticia, fazendo o que se convencionou chamar o bem philantropico, e não passa de fórmula egoista para assocegar aturvados ânimos em sobresaltos...
João e Bella intentavam pôr em prática o seu ideal humanitário, não dando esmolas para entreter o vicio da pobreza mas educando individuos que, conscientes do seu valor e dos seus direitos e deveres, se acerquem da meza lauta que a natureza e a industria reservam aos que juntarem ao esforço material de obreiros a intelligencia e a educação.
Ajudada pelo dr. Ramalho e pelo velho abbade, já Isabella tinha organisado um rasoavel serviço de inspecção á miseria, que nas populações ruraes é tanto ou mais desoladora do que é nas cidades. Visitados pela doença e pela morte amiudadas vezes, curtindo fomes e frios sem alimento nem abrigo, quasi inconscientes e irresponsaveis pela ignorancia profunda em que se abysmam, mais do que a entes humanos se podem comparar a bravos animaes do monte...
Adaptando provisoriamente para hospital e[242] para escolas duas velhas casas pertenças da familia, esperava em breve completar esses beneficios criando officinas, instituindo a créche, juntando ao asylo-escola para crianças, um asylo para velhos, mas governado de maneira a não fazer dos desditosos que se obstinam em viver uma especie de revoltados contra a propria beneficencia que os força á prisão.
Entretanto ia João pondo em execução o seu plano de um bairro operario, com casas simples mas não desprovidas do encanto que só a arte pode dar, bem saneadas e arejadas, com janellas e portas bem largas e com seu jardinsinho á frente e pateo interior onde se faziam as construcções proprias para acomodação dos animaes, que em toda a população rural fazem parte integrante e importantissima da familia.
João, todo radical e violento, como o avô materno que não transigira nunca com opiniões e preconceitos alheios, queria dispensar o concurso de toda essa gente da villa, que de sobra conhecia, e entender-se só com aquelles que devia melhorar. Mas n’isso não concordavam Isabella nem o abbade e o próprio Ramalho, antes mais habil lhes parecia utilisar elementos existentes para a organisação immediata de uma escola onde rapazes e raparigas aprendessem officios e misteres que os habilitassem a ganhar a vida no futuro. Para isso foram convidadas as pobres Sebastianas, que serviriam como professoras de bordados e roupa branca, o que fez com que a Aurora Costa, invocando a amisade da Pillar, viesse pedir tambem um emprego—pois o pae ganhava pouco e a familia[243] era muita. Sabia talhar alguma coisa, se bem que nunca tivesse sido ensinada, e fazia flores e bordados muito especiaes em cascas e aparas...
Isabella teve um sorriso de amargurada censura a tão pouco prática educação e disse-lhe—que sim, que a utilisaria como ajudante de uma professora de córte que mandára procurar em Lisboa, e que, mais tarde, se essa senhora não quizesse ficar ou ensinasse outra qualquer coisa, a Aurora, em sabendo bem, tomaria o seu logar.
—Mas—lembrava-lhe ainda—precisava d’uma senhora que a auxiliasse no trabalho de escripturação e contas que taes emprehendimentos necessitam, um trabalho material que não requer grandes conhecimentos e sim escrupulosa meticulosidade e uma lettra rasoavel. Se quizesse, podia ficar já n’esse logar.
A Aurora córou e confessou, vexada, que escrevia muito mal e que de contas sabia pouco; piano é que tocava alguma coisinha, se fosse preciso ensinar...
—Não,—respondeu-lhe a outra tambem vexada porque, naturalmente bondosa, nunca fazia sentir a ninguem a sua inferioridade—piano não precisava, porque pretendiam educar para o trabalho e para a vida, e o piano, como qualquer outro instrumento ou arte, só se queria cultivado em pessoas de rarissima vocação e ensinado por professores bem habilitados, aliás era uma inutilidade. Mas experimentasse ella estudar um pouco de contas e português e depois com a prática faria o resto.
O abbade andava radiante: aquillo sim, aquillo[244] é que era a verdadeira religião, que fervorosamente praticava. Mal de manhã dizia a missa conventual, abalava para os campos a farejar desgraça, que podessem minorar. E doente que encontrasse ou criancita a mandar para a escola, ou mulher a reclamar cuidados de sabia hygiene, era logo apontado na carteira, com o alvoroço de quem aponta rendoso negocio a aproveitar e que não deve esquecer.
Práticas que fazia aos domingos todas versavam sobre a conveniencia de se instruirem e trabalharem, que era assim que Deus queria o seu povo.—«Casa onde não ha pão todos ralham e ninguem tem razão—dizia na sua phrase chã, simples como a sua alma e facil de comprehender por todos os humildes que lhe frequentavam a igreja—ora vocês trabalhando e tendo saude têm que comer. Aos domingos, se se entretiverem a estudar um pouco, a lerem bons livros para não ficarem uns brutos como os animaes que os servem, se cultivarem as suas flores no quinxoso ou nos vasos da janella, que isso não é peccado nenhum, desamparam as tabernas e não se mettem em rixas e bulhas que não dão bom pão. Olhem vocês que o que Deus quer é a alegria e a felicidade de nós todos; deixai dizer quem préga o contrario...
Na sua santa inconsciencia, que bem preoccupava as irmãs, deixava que o cura se assenhoreasse a pouco e pouco das obrigações da parochia que traziam bem estar e lucro, que as outras as ia desempenhando sempre o velho. Era agora elle, o padre Mathias, quem dizia a[245] missa das onze e esperava na sachristia a passagem das senhoras que se habituavam a encontra-lo alli para tratarem dos negocios espirituaes em que as entretinha. Era elle que as confessava e lhes insuflára o gosto pela devoção do mez de Maria, tão habilmente escolhida para esse dulcido mez de maio em que as rosas desabrocham perfumando a atmosphera, e os corações moços deliquiescem em ansias de consoladora ternura... Era quem lhes fazia as novenas e lhes levava as filhas á primeira communhão, em procissional theoria; era o indispensavel em tudo.
E gabava-se para o Telles:
—«Você verá quem vem para a festa do Sagrado Coração! É uma bomba que ha de estoirar ahi.
—«Quem é então?
—«Se lho disser fica sabendo mais do que eu...
—«Ora diga lá, ande, bem sabe que sou de confiança. É alguem que eu conheça?
—«É alguem que nos dá a certeza de nunca mais cá metterem o bico no concelho...
—«Ah!... É o André de Athayde?...
—«Adivinhou ou alguem lho disse. Apre! Tem custado, mas agora é que é definitivamente nossa a victoria.
—«O recenseamento já não estava mau...
—«Mas o grande caso ainda não é esse...
—«Então qual é?
—«Não digo; confio em você mas o seguro morreu de velho...
—«Olhe que isso até me offende! Sendo eu de confiança do Emygdio, que até me fará seu secretario[246] particular logo que seja ministro, nem sei agora o que pensar dos seus segredos.
—«Vá lá, não se zangue. O caso é que não só vem o André Athayde com o Padre Sancho como trazem os dois missionarios que têm levantado toda essa provincia com a sua palavra temerosa!...
—«O que vejo é que você mudou de todo! Ha pouco mais de um anno que era todo liberalão e até tinha raiva a esse André da Fradosa por causa de ter causado a morte ao filho, com a beatice. Lembra-se?
—«Agora vejo as coisas melhor... O Pedro era um asno, quem no mandou fallar antes de tempo? Casasse primeiro que depois de senhor da fortuna da prima é que podia cantar...
—«Mas você era o primeiro que dizia que elle era uma joia, um caracter esplendido, e que foi o pae quem o matou com as más ideias reaccionarias.
—«Não se queria sugeitar, pois neste mundo quem quer ser independente de mais acontece-lhe assim. Diz que foi o pae que o matou, ora! Foram mas foi as pandegas lá de Paris.
—«Oh homem, já lhe ouvi dizer, e a muita gente mais, que o Pedro era até um rapaz honesto e sério, como dizem que é o sobrinho, que foi companheiro e amigo intimo do João de Mello...
—«Pois sim, era até honesto de mais porque chegava a ser parvo com as taes franquesas. E d’ahi, que mal lhe faziam os padres e as irmãsinhas lá em casa? Deixasse. Hãode ir para muito longe os taes meninos educados nas ideias modernas!
—«Oh Sr. Padre Mathias, olhe que parece que o voltaram de pernas para o ar. Parece até impossivel que um homem como você era se mudasse assim! Isto até me faz mal, creia. Tomára que o Vilhegas me arranjasse um logar lá por Lisbôa, porque aqui abafa-se. Hãode tornar esta terra inhabitavel. Eu, que me preso de ser liberal e tenho confiança que a sciencia e a instrucção hãode transformar o mundo, sinto-me manietado e impotente, com os nervos tangidos n’um sobresalto deante do reaccionarismo triumphante.
—«E você cuida que lá por Lisbôa não é o mesmo?... Está enganado, pergunte ao Vilhegas quem é que lá manda agora.
—«Mas a par d’isso ha muito quem se liberte, ha maneira mesmo de se reagir sem todavia ser um revoltado.
—«Pois sim, faça você versos, que eu cá trato da vida comforme calha. E deixa-me ir á prosa, que é como quem diz á vida, que a morte é certa. Preciso de encontrar sem falta aquelle velho tonto do abbade que sae de madrugada e só recolhe á noite. Hade ganhar muito em se metter com a ralé, deixe, assim como o Ramalho e a tal inglesa e o marido que querem fazer d’estes brutos gente livre!...
—«E porque não?
—«Você é nephelibata, oh Telles! Eu cá não o entendo. Pois se approva aquellas lindas ideias,—que lhes hãode dar na cabeça, verão!—vá com elles.
—«Olhe, sr. padre Mathias, a dizer a verdade, a minha sympathia intellectual têm-na toda.[248] Não vou com elles porque sou amigo do Emygdio e tenho necessidade de subir, de ser mais alguma coisa do que simples boticario d’aldeia. Para isso têm cá o Domingos desde que você o passou, com a tropa toda, para o seu lado...
Torcia o bigode, ironico, emquanto o cura, para não responder, protestava pressa e ia dizendo entre dentes:
—«Pois sim, rala-te! Tem mais juiso do que tu com as tuas republicanices...
Foi a correr para apanhar o abade na igreja depois de recolher do enterro de uma pobre viuva, que deixava quatro filhos sem outro patrimonio mais do que o dia e a noite. Preferia fallar-lhe alli, de surpreza, antes do que em casa, onde os olhos de D. Joanna o obrigavam a morder-se n’uma impotencia de remordimento culposo.
Tão feliz que foi a tempo de o abordar já quando recolhia, tiradas as vestes cultuaes, e, de passagem, piedosamente, se ajoelhára nos degraus do altar mór.
Pedia-lhe o seu consentimento e concurso para que nova e mais luzida festa se fizesse ao Coração de Jesus, coincidindo com a communhão das meninas, que andava preparando...
—«Que sim,—respondera o velho, farto de ouvir reprimendas da irmã mais nova e de perceber os sustos em que vivia D. Joanna—que prestaria o seu concurso de bôa vontade. Como era servir a Deus, de qualquer maneira lhe agradava...
—«Mas, sr. abbade, é que nós tinhamos ideia de convidar os dois santos missionarios que[249] têm levantado a sua voz auctorisada até na Sé, deante do sr. bispo, para virem fazer algumas práticas e preparar as crianças, e moralisar esse povo tão desenfreado...
Aqui deu um salto o velho abbade e, olhando o cura de alto a baixo, respondeu-lhe com uma voz vibrante, que o tornava respeitavel, apesar da sua estatura quasi a dobrar e da sua pobre batina no fio:
—«Mal me parece, sr. cura, que venham a esta terra, onde só ha ovelhas mansas, esses caçadores de terriveis lobos, para, em vez dos seus pastores naturaes, as conduzirem a melhor pastio. Se para missionarios têm vocação, para que preferem estas bôas terras onde todos adoram Nosso Senhor Jesus Christo e na sua lei vivem, e abandonam tanto infiel á negra ignorancia e idolatria?!...
—«Nós não temos nada com isso; prouvera a Deus que eguaes meritos me fizessem a mim tão admirado e estimado como elles.
—«Pois sim, mas esta gente é que não precisa de quem lhe faça práticas, antes lhe faz mingua quem lhe dê pão...
—«Sr. abbade, sr. abbade,—gritou o cura desvairadamente, vendo-se contrariado por quem até ahi lhe não tolhêra o passo.
—«O que é?—respondeu o velho com serena grandeza.
—«Veja o que faz, olhe que o sr. bispo approva a nossa ideia e elle saberá quem nos contraria.
—«O sr. bispo, como meu superior, póde affastar-me da minha igreja, mas não pode, emquanto[250] eu estiver sentado n’aquella cadeira de parocho, obrigar-me a receber intrujões que só querem desvirtuar a palavra de Christo e conduzir o povo ao barbarismo. A isso não me obrigará elle, nem ninguem!...
—«Previno-o mais uma vez, sr. abbade!... Olhe que lá diz o dictado: «com teu amo não jogues as peras».
—«Podem tirar-me o pão, mas ninguem me obrigará a falsear a minha consciencia.
—«Aqui não ha consciencia, ha desobediencia,—gritou fóra de si.
—«Vá, sr. cura; demais sei eu o que o senhor é e o que pretende. Diga ao sr. bispo que estes braços trémulos de velho, cançados de se levantarem em supplicas ao Deus piedoso e bom que nos deixou o testamento do Evangelho, ainda terão forças para pegar na enxada e ganhar o pão honradamente para mim e para os meus.
—«Sr. abbade, não me cance a paciencia—rouquejou o cura, vendo o sachristão e o sineiro pararem assombrados á porta da sachristia.
—«Paciencia demais tenho eu tido, sr. cura, e já me basta de lhe ouvir as hypocrisias e fingimentos. Nunca por nunca, fique sabendo, emquanto eu fôr parocho d’esta terra, hãode ouvir os meus parochianos quem os desnorteie e afflija.
O padre Mathias sahiu a deitar lume pelos olhos—na expressão ingenua do sachristão—e n’essa mesma noite partiu aforradamente para Fradosa, a conferenciar com o fidalgo e com os missionarios seus hospedes.
Tres dias depois teve a resposta á sua justa objurgatoria, na noticia de que a missa lhe era tirada, ficando suspenso emquanto não respondesse ás accusações que lhe eram feitas:—de despresar o culto divino, tratar tão sómente do bem corporal, entravar com seus discursos e opposição toda a iniciativa dos bons catholicos para uma salutar propaganda religiosa... A seu tempo seria chamado para se defender.
—«Defender-me eu?—dizia, mal segurando a carta nas pallidas e vacillantes mãos—defender-me de quê, se de nenhum mal me accusa a consciencia?!...
—«Então que lhe dizia eu, mano?! Se o seu defeito é ser franco!...
—«Pois fui e não estou arrependido; tiram-me a igreja, tiram-me as obrigações, mas tenho as devoções...
—«E obrigações tambem, querido amigo,—disse Isabella que tinha entrado, chamada pela criada do abbade que n’um pulo a fôra prevenir d’aquella grande afflicção.
Abraçou os velhos soluçantes, tentando em vão conter as lagrimas que a pungitiva scena lhe repuxava aos olhos.
Por fortuna não tardou que João accorresse ao seu chamamento e, para maior consolo dos velhos, acompanhado pelos paes: Josephina, não querendo abandonar as amigas n’essa hora de provação; Antonio de Mello, muito grave, pesando bem as palavras da carta que o abbade lhe entregára.
—«Mas o que é isto—dizia João, animadoramente—ha aqui quem chore e esmoreça por[252] ser perseguido em nome da hypocrisia e da ambição?!... Ora vamos, tia Joanna—desde criança que assim chamava a velhinha, que bem como sobrinho o amára sempre—isso nem me parece seu! O nosso abbade já o não é da parochia, melhor nos póde servir e ao povo que tanto ama. Tiram-lhe a igreja, tem a escola; tiram-lhe a missa, tem a communhão espiritual dos infelizes. Não acompanhará os mortos que vão para a vala, ajudará a bem morrer os que não tem que deixar em testamento...
—«Vamos, sr. padre Antonio,—ajudou Isabella—mais do que nunca o seu concurso nos é preciso, mais do que nunca é urgente que se dedique á nossa obra de redempção.
—«Nada de lagrimas, que felizmente não lhe tiram o pão. Procuravamos um director para o asylo, têmo-lo felizmente agora, e o melhor que podiamos esperar.
—«Não é a falta de dinheiro que nos mortifica, Joãosinho, é a desconsideração...
—«E vêr aquelle marôto tomar o logar do nosso irmão, como se já estivesse morto!—soluçou a outra irmã.
—«Deixe, mana, que isso não me magôa. Bemventurados os que soffrem perseguição pela justiça. E vamos mas é tratar de sahir d’esta casa, que desde hoje deixa de pertencer-me.
—«Ora até que emfim!—disse João, sorrindo—É preciso trabalharmos todos para hoje mesmo irem para nossa casa e deixarem a residencia para o sr. cura...
—«Não, prefiro que me alugue a primeira casa que se acabou no nosso bairro. Pois não sou[253] eu agora um operario, um trabalhador, como aquelles a quem as destinamos?!
—«Concedido e approvado, e será a melhor festa de inauguração que podiamos sonhar!
—«Chega a ser symbolico—concordou Isabella gravemente—e hade dar-nos ventura, porque prova a justiça da nossa causa.
Ia o inverno quasi no fim, e, apesar de não estar frio, os ultimos dias tinham vindo tão chuvosos e tristes que a viscondessa se conservava junto do fogo n’um enregelamento d’alma tiritante de abandonada e tediosa.
O que lhe custára esse ultimo verão que passára, sacrificada, sem ir gosar os seus mezes de verdadeiras férias na casa de provincia em que tinha nascido e onde lhe andavam esparsas as melhores saudades da sua vida, diziam-no bem o empallidecimento das suas faces, o amortecimento dos seus bellos olhos de peninsular. A melancolia que a principio fôra uma ligeira sombra, como nuvem que se esgarça e dilue em céo puro, começava a avolumar-se, carregando-lhe a expressão e avelhentando-a quasi.
Era a impressão que teria quem lhe podesse vêr o ar mortiço, o quebramento de forças e de vontade que a tinha alli em frente do fogão,—um livro aberto, no regaço, os olhos presos na chamma que se avivava ou amortecia, seguindo caprichos de fórmas e phantasias de desenhos varios.
N’aquella hora triste que precede a noite,[256] quando o céo enlividece com a ultima claridade de um dia que se arrastou pardacento e molle, e nas ruas encharcadas o gaz começa a reflectir-se em largas manchas espelhadas, os pregões n’um rouquejar de miseria atiram para a vida o ultimo soluço e os que passam açodados sob a chuva têm o ar de sombras que se esgueiram e desapparecem mysteriosamente na noite, a viscondessa sentia-se tão desoladamente só, tão abandonada de gosto e desejo que pouco mais tinha da vida além do brilho dos olhos, que conservava presos no faiscamento do brazido.
Cahira, havia mezes, n’uma d’essas tristezas vagas e sem causa aparente, que nenhum divertimento consegue afugentar e que já na medicina é tida como prognostico de doença que é das mais teimosas e caprichosas que atacam as almas e os cerebros rudemente experimentados pelo trabalho ou pelo soffrer.
É que a paixão de Bella e João, observada e sentida de perto, como se a sua alma lhe fôsse abrigo, levara-lhe todo um anno n’uma sobre-excitação, n’uma alegria que a volvera criança, que a fizera viver essa época unica da sua existencia em que amara, fôra amada e sonhara a vida um roseo sonho sem despertar, que julgou a realidade.
Ao lado da amiga, aconselhando-a, acompanhando-a e guiando-a em todo o complexo assumpto do enxoval, o seu espirito chegaria, talvez, a possuir-se da ideia de que era sua aquella felicidade.
Depois, com o casamento d’elles, a solidão fizera-se-lhe mais completa, a sua alma cahira[257] mais fundo na indifferença d’uma existencia que não tinha um fim.
É certo que não abandonara o que chamava os seus deveres de mulher de sociedade, tendo camarote em S. Carlos, indo ás primeiras representações, frequentando as festas elegantes, dando o seu nome para todos os divertimentos de caridade, recebendo semanalmente n’umas reuniões intimas a que ia toda a Lisboa, ella que não tinha intimidade com ninguem.
Mas tudo isso o fazia por habito, com o espirito alheado e desinteressado d’aquella vida em que o corpo se lhe fatigava.
Não obstante,—tão grande é em nós essa força!—adquirida pelo uso conseguia communicar ás suas festas uma alegria de que estava bem longe, e tinha espirito e intelligencia bastantes para intellectualisar mesmo essas reuniões, que havia dois invernos estavam na moda e para as quaes se mettia empenhos para ser convidado, como se fosse a iniciação da suprema elegancia ser recebido n’aquelle interior aristocratico.
Na verdade, a severa compostura do seu porte e a graça exangue do seu sorriso diziam bem com o rico mobiliario herdado e que o visconde acrescentava sempre n’um enthusiasmo de apaixonado bric-a-braquista.
Entre os pesados cadeirões com pés de garra, os tamboretes de velludo lavrado, os pannos d’Arrás forrando as paredes onde os avós se alinhavam em solemnes attitudes, os reposteiros armoriados, os bufetes e contadores, n’uma uniformidade de estylo que era a maior preocupação do visconde, essa nobre figura de mulher[258] d’um ancestral perfume como que completava o conjuncto.
No entanto, a verdadeira alma de todas aquellas festas era o proprio visconde, que nos ultimos tempos mudara as suas predilecções e habitos, a quasi ser outro homem. Conservava-se sempre no salão junto das senhoras, indo de fugida e contrariado á sala de jogo, respondendo distrahidamente a quem o abordasse para negocios e politica.
Tornára-se o idolo das mulheres, que lisongeava nos seus gostos e caprichos, discutindo modas, organisando festas onde podiam exibir o encanto dos sorrisos e o luxo dos vestidos copiados dos grandes retratos de mestres, escolhendo as musicas com que as fazia dançar, e não deixando fugir os rapazes para as salas de fumo, sendo emfim a alma de toda uma sociedade que vive para se divertir.
Tinha ditos de espirito que faziam época, e a pessôa que distinguisse uma vez tinha a certeza de estar em evidencia, pelo menos oito dias.
Mas eram ainda as mulheres as suas mais sinceras admiradoras, porque lhes deviam momentos de orgulho satisfeito, porque as envaidecia e lisongeava sem o dizer, só porque era um homem d’espirito que se divertia e se mostrava alegre junto d’ellas.
Por isso sorriam n’uma tacita desculpa, quando os descontentes e os adversarios boquejavam sobre a sua grande intimidade com o Braga usurario, que aproveitava a situação politica do Visconde para fazer o seu jogo e augmentar a fortuna,[259] sem embargo do fausto em que a Candida vivia.
Tambem esta se tornára a mulher da moda, em que todos fallavam, que as modistas vestiam como figurino, que os homens cortejavam, que as outras invejavam, procurando-a e convidando-a, não obstante, para todas as festas, porque seria uma falta de actualidade imperdoavel não mostrar entre as flores das grandes jarras da China, os espelhos de Veneza e os biombos laqueados, esse busto de mulher que se desnudava com orgulho e tinha soberbas attitudes de marmore antigo.
Sorria, sentia-se feliz, quasi bondosa á força de felicidade n’aquelle meio elegante e futil que correspondia a todas as aspirações do seu espirito. Se n’elle tivesse nascido, se não tivesse consumido a infancia no sonho ardente de todos os gosos que o dinheiro pode trazer a uma alma que de vaidades vive, não teria sido a mesma Candida que empurrara para a sepultura a que lhe fôra mais do que irmã.
Perversamente egoista e ambiciosa era tão culpada por isso como pela belleza fatal que a tornara uma força da natureza.
Filha do meio, herdeira d’um sangue que o alcool envenenara, adulada em vez de severamente orientada pela educação, era como bella e orgulhosa flor cujo pé mergulhado no pantano de morte e podridão nutre o encanto das suas petalas.
Desvanecida a anthipathia que a principio inspirara á Viscondessa, tornara-se á força de delicadezas e blandicias a sua amiga mais intima,[260] quasi da familia, um dos atractivos das suas festas. E n’esse convivio aprendêra o segredo de usar o luxo com a indifferença elegante, que raro alcançam os ambiciosos que a fortuna visitou tarde, já depois da miseria lhes ter imprimido a marca de vulgaridade.
A Viscondessa é que não era feliz n’um meio onde tudo é falso mas brilhante, onde só se cuida de apparencias, n’uma sociedade que se acotovella desrespeitosa na ambição de gosar e subir, n’uma sociedade que despresa almas e sómente se curva ao dinheiro e ao poder.
D’ahi aquelle eterno sorriso, aquelle deixar correr a existencia sem lagrimas nem alegrias, que lhe dava o ar mortiço e egual de quem anda por habito no mundo, sem energia nem desejo de correr á feira d’interesses e luctas que desvaria quasi todos.
Sentia-se só. Faltava-lhe a companhia de Isabella Burns, cujo espirito arejado e vivo se tornara uma necessidade do seu coração. Porque, se é verdade que Bella tinha uma dôce e nobre alma feita para comprehender os mais elevados ideaes, no seu espirito deixara fundo traço a educação prática que recebera. Era uma meredional pelo queimor do sangue, pela vivacidade da phrase e pela paixão; mas tinha a dar-lhe a fórma viavel no mundo o altivo bom senso, que a tornava um espirito prático, um d’estes caracteres que as mesquinhas contrariedades não quebrantam e á força de persistente energia realisam o que no dizer da maior parte não passa de utopias de sonhadores.
As suas cartas vinham cheias de enthusiasmo[261] pelos trabalhos já executados e vibrantes de esperança pelo muito que ainda tencionavam fazer. Fôra por ellas que a viscondessa soubera da intriga que tornara o velho abbade uma victima das invejas e ambições do cura, e fôra por ellas tambem que lhe constara a entrada para o hospital e para o asylo da Misericordia das irmãs hospitaleiras, tornados assim succursaes de conventos e collegios, com pretexto de beneficencia... O que podiam fazer os seus amigos n’uma terra assim illaqueada, com a protecção interesseira do Maximiano que sem embargo se apregoava ainda um velho e convicto liberal?!... Por ella, sem força nem vontade para luctar, decerto que desistiria limitando-se a fazer o bem compativel com as suas forças. Mas Isabella protestava.—Que lhe importava que todos esses burguezes roidos de ambições e mesquinhos de interesse preferissem continuar a viver na ignorancia e na falsidade?! Ella oppunha-lhe o futuro com a fundação da sua escola de enfermeiras para a qual o tio lhe abrira já um crédito no banco de Londres, opporia a illustração e a intelligencia á rotina e á ignorancia. Quando tivesse no seu instituto enfermeiras bastantes, educadas segundo os preceitos da sciencia e da hygiene moderna, com ellas se apresentariam a todos os medicos dos hospitaes portugueses e veria então a Maria Helena se esses homens, que representam a sciencia e são como que os fiadores da vida de seus irmãos, teriam coragem, ainda os mais reaccionarios, para lhes preferirem outras, ainda que bondosas, mas sem illustração ou curso que as[262] faça uteis collaboradoras na obra da sciencia. Esperava fazer em Portugal a luminosa obra que em Inglaterra realisou Miss Florence Nightingale, assim vivessem... E com respeito a asylos e escolas o seu projecto era o mesmo... A não ser que n’este pais já se tivesse obliterado por completo a noção da justiça, claro que os mais bem apercebidos para a lucta é que seriam preferidos...
Maria Helena duvidava... tinha já visto tanto e sentia-se tão desanimada de triumphos que a politiquice e a mariolada eleitoral não bafejassem, que sem querer o espirito se lhe entravava na descrença que aliena tantos corações honestos, que quebra tanta iniciativa proveitosa.
Quedava-se n’aquelle vago scismar que era agora a sua melhor distracção, quando uns passos apressados pararam á porta e uma voz perguntou de fóra:
—«Minha senhora, minha senhora, posso entrar?
—«Entra.
E Rosalina, a criada de quarto, uma trigueirita alegre que adorava a ama, entrou dizendo vivamente:
—«É a senhora D. Bella, apeou-se agora, vae entrar...
—Que tolice!—duvidou, entre alegre e desconfiada, a viscondessa.
—«Tenho a certeza!—affirmava a rapariga, expansivamente, feliz em trazer uma alegria assim.
Emquanto ella ia á janella ver se descobria alguma coisa que confirmasse a noticia, Rosalina[263] accendia o candieiro velado pelo abat-jour de seda rosa e dispunha com uma certa ordem os livros e retratos que se amontoavam sobre o grande buffete do centro.
Mas a porta abriu-se logo e a voz clara de Isabella chamou:
—«Maria Helena, estás aqui?
Por um momento as duas estiveram abraçadas, beijando se e rindo com aquelle riso chalrante de mulheres novas que se estimam e se vêem depois de grande ausencia.
—«Bôa surpreza! Como se resolveram?...—perguntava, custando-lhe ainda a acreditar.
Foi preciso que Bella recebesse primeiro os comprimentos de Rosalina e lhe desse noticias circunstanciadas dos seus, que tinham ficado de saude e mandavam recados; que se desembaraçasse depois do chapéo e da grande capa de viagem e passasse ligeira os dedos pelos cabellos, a concertá-los, para responder ás perguntas insistentes da amiga.
—«Não imaginas como vinhamos alegres pela alegria que tu sentirias—dizia pouco depois.—Durante a viagem não fallámos n’outra coisa, o João e eu.
—«É verdade, e o João onde está?
—«Foi arranjar quarto no Alliança e mandar para lá as malas, emquanto eu vim dizer-te que tinhamos chegado. Quiz ir ajuda-lo, mas não consentiu porque entendeu que nós estavamos anciosas por nos abraçarmos. Era verdade, não era?
Voltou-se toda, pondo as mãos nos hombros da amiga.
—«Mas o que é isso, Bella?! Estás d’uma gordura espantosa!
Rindo muito, a outra sentou-se com a maneira pesada e desgraciosa da mulher gravida, e respondeu:
—«É verdade, carrée, como diria mademoiselle Hortense, d’uma gordura que nos enche de esperanças e de felicidade.
—«Oh Bella, e não me dizias nada?!
—«Isto era a maior surpreza projectada.
—«Como eu vou amar esse pequenino anjo que é teu, que é do João, que hade tambem ser um pouco meu, não é assim? E não dizeres nada! É capaz de lhe teres já feito enxoval sem eu ter pensado em coisa alguma. Quem o déra ver! de quanto tempo, para quando vem?
Sorria para a amiga, pegando-lhe na mão, enchendo-a de carinhos maternaes, approximando um tamborete para descançar os pés, voltando o écran para lhe tirar o calor do rosto, perguntando coisas, fallando sempre na criancita que lhes viria encher a existencia, vibrando na approximação d’essa maternidade que a tornava quasi mãe, a ella que soffrera sempre da esterilidade que a deixara em irremediavel solidão, quando, por desilludida, o amôr do marido lhe desaparecera.
Bella sorria pacificamente, n’uma grande beatitude de felicidade intima; a voz tornara-se-lhe mais grave, pontoada de grandes silencios extaticos, por vezes irritada, outras, á menor contrariedade, chorando nervosamente por coisa nenhuma.
—«Isto—contava, risonha, á amiga—faz andar[265] o João sempre em cuidados, e parece que mais me estima ainda pelo que eu soffro.
—«Mas soffres muito, muito? Porque mo não dizias? É preciso consultar algum medico.
—«Para quê? D’aqui a cinco mezes todos os encommodos serão passados...
—«Como és corajosa, bravo! não sentes então nenhum receio?
—«Para fallar com franqueza, lembra-me ás vezes que posso morrer e isso faz-me passar um calafrio pela espinha. Não me importaria morrer se fôsse infeliz, mas sinto-me tão amada, que na verdade seria estupida a morte. Demais tendo tanto desejo de ter filhos, que já me ia tardando esta gravidez, que me deixou mais de um anno na espectativa... Nem eu queria dizer o desgosto que tinha para não torturar o João!... Mas agora estou socegada; anima-me o pensamento de que ha tantas mulheres que têm filhos sem perigo, que é impossivel que a mim me não aconteça o mesmo. Quando vejo os pastores trazerem á tarde para casa os cabritinhos e cordeiritos, que as mães tiveram no campo entregues a si mesmas, sem trabalhos nem perigos... penso que nós não devemos ser menos protegidas pela sabia natureza. É uma coisa tão natural esta!...
—«Pois é, e tu has de ser muito feliz, verás. Dizem os medicos que a vida sedentaria e a má educação physica da mulher é que trazem todos os perigos á mãe dos nossos dias.
—«É verdade. Todos os tratadistas o dizem.
—«Já vês; então não ha perigo para ti, que[266] tiveste uma educação physica bem dirigida e ainda hoje tens uma vida activa.
—«No fim de contas, é uma questão de sorte. Quantos animaes soffrem e morrem tambem!... No entanto, não vale a pena pensar n’isso, é uma pequena percentagem.
—«Ora, tu has de ser feliz, tenho a certeza. Quem me dera já ver o focinhito tontinho do nosso bébé! Eu que gosto tanto de crianças, como hei de amar esse que é nosso!... Acho-lhes tanta graça quando são pequeninos e fecham as mãosinhas em murro, e riem, e fazem caretas!...
—«Que estupida coisa não teres filhos! E tantas mulheres que os não desejam, que os aborrecem até. Vem-lhes como castigo.
—«Pobres d’elles!
—«A proposito, que interessante ha-de ser o desespero de m.ᵉˡˡᵉ Hortense quando perder a sua elegancia de fada!
—«Faço ideia!
—«Não os tornaste a vêr?
—«Só de longe, felizmente.
—«O Vilhegas está empregado?
—«Quem o poderia estar melhor?! Medico no hospital, especialista em doenças de senhoras, consultorio elegante na rua Nova do Carmo, deputado, lente, e dizem que o primeiro indigitado para ministro...
—«Tudo é possivel n’este paiz.
—«Elle é, incontestavelmente, intelligente.
—«Mas tambem, incontestavelmente, um vil, sem caracter nem escrupulos.
—«O que se diz por lá de politica e do Duarte?
—«Que não fazia caso dos amigos, que não respondia ás cartas de empenhos, e que, por esse motivo, se vão passar os ultimos fieis. Com o auxilio do vosso rico primo da Fradosa aquillo ficou nas mãos dos maximianos, mas aggravado pelo fanatismo que o padre Mathias vae atiçando...
—«E o nosso abbade? Devia ser uma scena desoladora a da sahida da residencia!
—«Se te parece ha quarenta annos que alli viviam! Já a tinham como propriedade sua. A tia Joanna portou-se com heroicidade. O velho chorava de dôr e de alegria, levado em triumpho por toda aquella bôa gente do povo que chorava e gritava. As mulheres faziam uma bulha!... Se houvesse alli quem quizesse dirigi-las, parece-me que o cura havia de passar um mau bocado.
—«Já lá vi duas revoltas d’essas, interessantissimas, uma por causa do fisco, outra d’uns maninhos que queriam tirar ao povo,—sorriu a Viscondessa.
—«Mas o nosso bom abbade não queria violencias; coitado, elle que é todo paz!... A irmã mais nova é que esteve com os sentidos perdidos immenso tempo.
—«Parece impossivel como ha coragem para fazer uma intriga assim tão infame.
—«Pois ha, e lá vive satisfeito e poderoso o sr. abbade que tudo manda. A tal festa ao Coração de Jesus foi um verdadeiro desafio, as crianças da communhão todas de branco e fita azul á cinta, coroadas de rosas como senhoras de Lourdes, os missionarios gritando improperios...[268] As damas de fitinha escarlate no peito... uma verdadeira revista de forças.
—«E o povo?
—«Deixou passar, indifferente e desinteressado.
—«Ah! este povo português que parece já não ter sangue que lhe suba ás faces com vergonha... E ainda vocês sonham com o futuro! Com este povo que só parece já viver pelo unico interesse material de existir e comer!...
—«Falta-lhe educação. Não desanimemos, que talvez alguma coisa se faça ainda. O que me consola, n’aquelle caso do da Fradosa, é que o Pedro ha de vingar a morte do tio e secundar a nossa obra... Por emquanto é segredo entre nós. É um bello caracter.
—«Basta que seja o que foi o tio, coitado, que bem infeliz foi! Dizes então que o Duarte deixa de ter partido?!...
—«Parece, quando o Dómingos lhe fugiu!... O outro dia fez-se encontrado com o João e começou por lhe dizer que estava muito mal, passára toda a noite a conspirar para ver se lhe passava a constipação.
—«É mesmo d’elle!
—«Mas sabes o que queria? Que empregassemos o filho Dómingos Junior na pharmacia do nosso hospital, o tal que não fez inzame porque se lhe tolheu a falla nas gólas.
—«E vocês?—perguntou em frouxos de riso.
—«Dissemos-lhe que não. Ficou desesperado e não ha mal que não diga de todos nós.
—«Agora que está senhor do bolo, ninguem lhe chega á importancia.
—«É verdade, o que é o Telles, sabes?
—«Inspector não sei de quê...
—«É espantoso!... Em todo o caso eu é que ganhei com tudo isso. Ficarei livre de uma vez para sempre dos influentes politicos?!... Poderei pensar na minha terra e na minha casa sem o pesadello que me amargurava o tempo que lá estava, o melhor do meu anno?!...
—«Não soffres então com o triumpho dos maximianos!...—perguntou-lhe Isabella por troça.
—«Oh filha, quanto lho desejava ha muito!
—«Pois nem elle, nem principalmente a mulher, pensam ter-te dado tanta satisfação.
—«Bem sei. Nem admiro que não comprehendam o meu sentir. Somos tão differentes! A politica, esta nauseante politica portuguêsa de empenhos e partidinhos, fez-se para gente com o seu feitio. Custava-me vêr o nome do Duarte baralhado no mesmo jogo. Prefiro vê-lo outra vez o arbitro da elegancia...
—«Um novo Petroneo d’este baixo imperio...—riu ainda Bella.
—«Sim, visto por um binoculo ás avessas, como tudo é por cá... Sabes que a Candida é tambem considerada a elegante maxima de Lisboa?! Tem feito successo. Se a visses este anno em Cintra, n’uma festa de caridade vendendo bilhetes na barraca da Belleza, estava realmente um deslumbramento, a verdadeira personificação do bello. O triumpho mais completo da materia sobre o espirito...
—«Na barraca da Belleza! Como então?!... Não me contaste isso.
—«Não me lembrou realmente. Era uma barraca que o Duarte dirigia e ornamentou consagrada ao amôr como supremo creador da belleza universal...
—«E a Candida é que estava n’essa barraca?...
—«Escolheram para lá as mais bonitas, mas era incontestavelmente ella a mais formosa.
—«E o que vendiam?
—«Objectos d’arte, flores...
—«Dás-te muito com ella?
—«Dou, afinal é uma bôa rapariga que só tem o defeito da vaidade, desculpavel um tanto em quem tem de que a ter...
—«Não me parece, mas emfim!... Visita-te amiudadas vezes?
—«Coitada, aproveita todos os momentos que lhe deixam livres, que não são muitos, para me acompanhar.
—«E tu... gostas muito d’ella?
—«Muito, não, este gostar d’alma que se sente comprehendida e comprehende, não. Mas gosto mais do que d’outras a quem dou o nome de amigas. É muito delicada, muito serviçal, muito meiga. Depois, é um encanto ve-la, está cada vez mais formosa. Aqui tens o seu ultimo retrato.
Tirou uma moldura de crystal de sobre um contador indio com incrustações de madreperola e mostrou uma linda photographia da Candida, largamente decotada, arrastando uma longa cauda de rainha.
—«É realmente bonita, mas uma formosura fria que me assusta—volveu Bella, entregando o retrato.
—«É porque a conheces mal. A mim succedeu-me o mesmo, sentia até uma especie de repulsão.
—«Emfim... eu cá estou para a ver e modificar as minhas opiniões.
—«É verdade, ainda não te perguntei nada lá de casa. Josephina como está? Ainda muito queixosa da morte da filha?
—«Sempre o mesmo. Estimam-me muitissimo e eu como que preencho o grande vacuo que a infeliz deixou no coração de todos. Mas a casa está tão cheia d’ella que eu mesma me desespero com tal morte.
—«E não a conheceste! Era uma criança encantadora, tudo quanto possas imaginar de mais gracioso e intellectual. A morte d’um filho deve ser para enlouquecer!
—«E deve!... Só eu pensar que me pode morrer o meu filho, e mais ainda não vive senão dentro em mim, parece-me que endoideço!...
—«Bem, mas não se deve agora fallar em coisas tristes, faz-te mal. Teu tio, já o viste?
—«Não. Imagina onde estará por este bello tempo dos cães beberem de pé?
—«Aonde?
—«Em Cintra! já para lá telegraphamos. Sabes que vive agora no hotel, aborrecido de se ver só em casa, enfastiado de aturar criados. Mobilou tres quartos e lá está com o velho Dick.
—«Confessou-me o outro dia que está realmente aborrecido de viver só e muito resolvido a fazer-te a vontade indo para a provincia... Offereci-lhe a nossa casa, agora deshabitada e... já me pareceu mais longe d’isso.
—«Quem me dera que assim fosse! Se te lá apanhasse a ti e a elle, era completamente feliz. Vive-se tão bem longe de tudo e de todos!...
—«Lá por mim, se não vou não é por falta de vontade. Agora dizem-me que o clima é mau para mamã... Não creio muito, mas não quero tomar a responsabilidade comprehendes.
—«Pois, na verdade, tua mãe é de lá, sempre lá se deu bem!... Coisas do mundo. E o Duarte como está?
—«Creio que bem, ainda hoje o não vi. Ao almoço não appareceu, mandando pedir desculpa por ter de sahir cedo.
—«Não sabes onde foi?
—«Não sei.
—«É-te indifferente isso?
—«Quasi...
—«Mas o que o retem tanto por fóra?
—«Talvez ainda a politica, talvez os negocios. Sabes que a sua ultima mania é o bric-á-brac?
—«Sempre foi um colleccionador intelligente.
—«Mas agora é negociante. Tem comprado coisas de um alto valor artistico, pequenas maravilhas de arte que nos suggerem toda a grandeza e magnificencia do nosso pais. É prodigioso o que havia e o que ainda existe por ahi!
—«Tem tudo cá em casa?
—«Pouco, o mais precioso e o indispensavel para decorar segundo as suas ideias de artista e de estudioso. Não me interesso como possuidora por essas riquezas que a maré do seu capricho e do seu dinheiro amontôa ou espalha. Doe-me a consciencia só de pensar que o melhor[273] tem seu caminho para o estrangeiro—e nós sem um verdadeiro museu d’arte em Portugal!... Preferia que o Duarte não negociasse, comprasse só para si. Em todo o caso, antes isso do que a politica...
—«Estimas que deixasse a politica pelo bric-á-brac, mas aposto que não gostarias que a abandonasse por uma mulher...
A viscondessa sorriu com amarga ironia.
—«Por uma... meu marido!?... Creio que não conhece o singular nesse genero.
Bella teve um franzir de labios—que queria ser um sorriso—e um gesto de imperceptivel desânimo, emquanto a amiga continuou:
—«Bem sabes que vivemos de modo que não se comprehenderiam os ciumes. Exijo-lhe apenas a delicadeza de não me tornar ridicula e o dever de não amargurar os ultimos dias de minha mãe... Mas espera, nós aqui a conversar, a conversar, e afinal, isto devem ser horas de jantar. Olha, já oito! Como o tempo corre quando se está bem; querida Bella, que alegria me deste hoje! Estava n’um d’estes estagnamentos d’alma em que alegrias e tristezas passam pelo nosso espirito como gota d’agua correndo sem o molhar sobre um panno enxuto... Vieste sacudir-me d’este torpôr, fizeste-me um bem que nem tu sabes!
Ao tempo que se levantava para dar ordem de servirem o jantar, um ruido de vozes fê-la parar na espectativa e a porta, abrindo-se, fez-lhe soltar uma exclamação de alegria ao deparar com o dr. Ramalho.
—«Meu Deus, mas hoje então é o dia das[274] surpresas agradaveis?—dizia comprimentando. E perguntava á amiga se sabia que o doutor estivesse tambem em Lisboa.
—«Viemos juntos.
—«Porque me não disseste?
—«Para ser surpresa completa. Espera, parece-me que oiço a voz do João.
—«Vamos que estou morta por o vêr.
Mas João não se fez esperar, appareceu á porta, sorridente, já de mão estendida para comprimentar a prima, que o abraçou n’uma grande ternura maternal.
—«Agora, para a mesa, que já é tarde para estomagos de viajantes—disse encaminhando-se para a casa de jantar.
—«E teu marido?
—«São oito e um quarto, não appareceu é porque janta fóra.
Os dois homens e Bella entreolharam-se e seguiram-na sem mais fallar no assumpto.
—«Amanhã é que teremos de jantar mais cedo—disse, quando já sentados á meza—para não perdermos nada da Duse. É claro que vão comnosco.
—«Oh filha, cá por mim e pelo João se não tiveres logar não te apoquentes. Eu já a vi em Milão, em Paris e em Madrid, conheço-a em todo o seu reportorio.
—«Mas não fazes sacrificio em vê-la, não?
—«Isso não, pelo contrario. É sempre um saboroso prazer ouvir uma grande artista.
—«Então iremos.
Quando os viscondes, com João e Bella, entraram na sua frisa no D. Amelia, a sala tinha o aspecto buliçoso e alegre das grandes noites de enchente. Já no vestibulo os homens quasi se esmurravam, apesar de apparencias de cortezia, junto do cubiculo do bengaleiro que não tinha mãos a medir para guardar abafos e bengalas.
Alguns, mais impacientes, não duvidavam empurrar as senhoras que aguardavam os maridos para entrar na sala, com o desplante que geralmente usam os homens quando o egoismo os mostra tal qual os tem feito seculos de supremacia social e que torna identicos em todas as classes os processos que usam para se desembaraçarem de importunos.
Toda essa multidão, partindo do vestibulo, se escoava pelas portas e corredores, apressando-se a occupar o seu logar antecipadamente obtido e acariciado como sonho que a fortuna realisára. O pittoresco e o brilho d’esses espectaculos, muito caros e de pouco interesse para o vulgo, accentuavam-se nas poucas noites em que a Duse se apresentava[276] ao publico de Lisboa, ávido de se mostrar á altura da civilisação que lá fóra consagrára a grande actriz.
Não havia logares inferiores, de cima a baixo todos representavam um preço que não admittia a blusa do operario e o vestidinho domingueiro da costureira ou o côco dos pequenos burguezes, bem indifferentes de resto a acontecimentos artisticos, para os quaes lhes falta a educação esthetica.
As casacas pretas crusavam-se nos corredores do terceiro andar como nos do primeiro, e senhoras conhecidas na sociedade, que não tinham podido obter melhores logares, riam de se encontrarem nas varandas com artistas, principalmente litteratos novos, cujas bolsas lhes não abonavam mais commodo logar para satisfazer a necessidade intellectual de ouvir e vêr a genial artista, faziam uma festa picante, com sabôr a extravagancia, d’essa invasão elegante em todo o theatro.
A cada momento se abriam portas de camarotes, e mulheres meio-vestidas de gala, refulgentes de pedrarias, vinham encostar ao parapeito carmezim da balaustrada os braços enluvados. O ruído das conversas enchia a casa de um rumorejar de colmeia e os leques agitavam-se como azas palpitantes de loucas phalenas nocturnas que a luz atrae e queima. Sentia-se uma atmosphera quente de primavera que já floria os primeiros lilazes e enverdecia as arvores do passeio sem embargo da chuva que todo esse inverno se mostrara, com raros intervallos, irritante pela persistencia.
Os homens na plateia voltavam as costas ao proscenio, passavam em revista as espectadoras, punham o monoculo e acariciavam o bigode, sorrindo, satisfeitos, do mundo e de suas pessoas. Outros discutiam politica, liam os jornaes da tarde, ou amodorravam-se nas cadeiras ao lado das esposas.
Como nessa tarde fôra a primeira toirada da época, que terminára sob uma forte batega de agua, espessa como fumo, que n’um abrir e fechar d’olhos evacuára a praça, contavam-se incidentes picarescos da volta sob a chuva violenta que não admittia chapéos e cegava os que na lucta por americanos e carros tinham ficado vencidos, tendo de esperar em qualquer abrigo de porta ou resolver-se a aguentar o peso d’agua caminho de suas casas. Discutia-se Guerrita, que não estivera nas suas melhores tardes de sorte; fallava-se na Duse, que alguns já tinham visto lá fóra, que outros ardiam por vêr, dispostos a acharem extraordinaria essa notabilidade que uma fama universal precedia—Messias de uma arte nova, toda feita de verdade flagrante, commovendo com lagrimas e alegrando com risos copiados da sua maneira de sentir a vida, gritos arrancados ás suas proprias dôres, gestos usados nas scenas reaes em que a superioridade intellectual da artista apreende e estuda no corpo da mulher que a materia despoticamente reivindica.
Sarah, a sacerdotisa—magna, amada sobre todas, vinha aos labios dos fanaticos como um desafio á tragica italiana. Os que as conheciam, a ambas, discutiam apaixonadamente, ora dando[278] a supremacia áquella que na sua voz cantada no ritmo da phrase, no choro contido a custo, consegue hypnotisar a multidão, vencer o bom senso que requer a verdade, subjugar os profanos e os descrentes até que o seu fragil corpo se estorça em gritos que arrepanham a alma, que a esfrangalham n’uma lancinante espectativa e lha atiram aos pés, frenetica de applausos, para se não dar em lagrimas e contorsões de hystería.
Outros desdenhavam a francêsa, vantajosamente apresentada a um povo que vive intellectualmente da França, copiador servil dos seus modelos, e aclamavam como a maior de todas, a mulher de verdade que a Duse se mostra, fazendo do palco uma escola de anatomia em que a sua alma escalpella com a precisão scientifica de um operador retalhando fibra a fibra o corpo que a doença ou a morte lhes trouxeram á mesa das operações.
Na frisa da direita, onde a Viscondessa e a amiga se sentavam entre os maridos, discutira-se arte, evocara-se nomes e situações em que os artistas favoritos se excediam a si proprios, e Bella lembrára Novelli, o artista que para ella, mais ainda do que a Duse, realisava o supremo ideal da arte moderna, a verdade, que é para os nossos espiritos fatigados de sentir e soffrer pela imaginativa o oasis onde nos comprazemos em descançar das orgias poeticas e romanticas de ha vinte annos.
Mas o Visconde não se sentia n’essa noite disposto a conversas que exigissem esforço de maior attenção, e a meia voz, n’uma visivel sobre-excitação de nervos que se mascarava em risos,[279] notava figuras, recordava escandalosinhos que andavam na boca de todos, contava casos que faziam sorrir os companheiros, principalmente na descripção dos raouts que esse inverno inaugurára o Maximiano e onde os jornaes do high-life diziam encontrar-se quanto ha de mais selecto na nossa melhor roda.
—«A nossa é a d’elles, jornalistas—ria com soberano despreso—O que os faz enternecer é a abertura do bufete á meia noite e a possibilidade de um empregosinho disfarçado...
—«Temos então o Maximiano singrando com vento de feição no mar largo das grandezas?! Como a conselheira não exultará com a civilisação britannica das suas reuniões da moda!...—commentou João.
—«É plantio d’estaca, ainda está longe da floração...
—«É ridicula esta gente na sua mania imitadora!—disse, séria, a Viscondessa.—Nem o nosso meio, nem a educação, nem as fortunas, comportam essas festas inventadas pela aristocracia de Londres, que em divertimentos como em negocios não pode esbanjar tempo, e que n’um mesmo dia tem que assistir a muitas reuniões, sob pena de deserção.
—«Mas se o nosso feitio é de perpetuos imitadores, que se lhe hade fazer? Já nos não contentâmos em imitar a França, invadimos agora a nossa perfida alliada, que qualquer dia reclama por indemnisação e contribuição de guerra qualquer das nossas possessões... Com perdão de V. Ex.ᵃ, minha querida prima inglêsa!...
—«Só meia inglesa, meu caro Visconde, e[280] não tiro d’isso motivo de orgulho superior ao de ser portuguêsa...
—«Pois nem todos dirão o mesmo, quantas pessoas desejariam ter uma costellasinha de qualquer país estrangeiro para maior lustre e chic dos seus nomes!...
—«Não vi ainda a Candida—reparou a Viscondessa.—Não virá?
—«Hade vir, mas tarde, com os ares de soberana que se arroga...
—«O camarote está vasio.
—«Mais uma razão. Se ella não viesse já o Braga o teria occupado, para não perder tudo. Não encontrando a quem o passar, o que não seria facil a estas horas, viria elle mesmo, para tirar o seu rico dinheiro a limpo.
—«Pobre homem! Vocês riem-se d’elle e afinal é um bom marido, que faz tudo que a mulher deseja.
—«Oh prima, essa opinião é a das meninas lá da terra, por isso se desesperam de o não ter conquistado—sorriu João á convicta lamentação da Viscondessa.
—«Nem com todas teria a mesma docilidade. A Candida é uma força viva que não convem alienar a quem se arrisca por caminhos de que só a politica conhece as encrusilhadas.
Esta, como todas as outras phrases do Visconde, sahira lhe cortante de ironia, tão amarga, por intencional, que João e Bella se entreolharam surpresos da revelação. O ciume escancarava aquella alma que o estudo e o habito tinham conseguido conter na reserva que a essas ligações exige a hypocrisia social.
Ingenuamente, a Viscondessa continuou:
—«Não acredito nada d’isso que dizem; para que fosse verdade o ministro da fazenda estar ao dispôr do Braga pelo interesse que a Candida lhe inspira, seria preciso que ella o animasse.
—«Sei lá, mulheres!...
—«Nem todas são o mesmo. Apesar de coquette, creio bem que a Candida é honesta.
Para cortar a conversa que lhe indispunha os nervos e como que os tornava cumplices no engano em que a amiga se ridicularisava, Isabella perguntou se não era a baroneza d’Amieira que entrára na frisa correspondente á sua. Tomando habilmente a deixa, o Visconde desviou a conversa scintillante de espirito, exuberante de risos, que, bem observados, se sentiriam falsos e contrafeitos.
De instante a instante os seus olhos interrogavam, manifestamente impaciente, o camarote fronteiro, fechado até ahi com uma persistencia desesperadora.
Eram quasi horas de começar o espectaculo quando a physionomia se lhe illuminou n’um jubilo illimitado ao vêr a Candida apparecer, como que surgindo de entre as rendas da capa de baile, triumphante de belleza, irisante de pedrarias, n’uma opulencia de trajar que attrahiu todos os olhares. Da plateia muitos cumprimentos e sorrisos a procuraram como votivo incenso que se eleva do pó até ao throno das divindades, n’uma offerta de idolatria.
E o Visconde d’Alvora dizia bem alto a um grupo de amigos, cofiando o bigode e empertigando-se[282] na ponta dos pés,—que jurava aos deuses ser a mulher mais linda que em sua vida conhecêra! Isto depois de ter viajado por toda a Europa e ter chegado de Hespanha enjoado, positivamente, de ver caras bellas. Palavra de honra, meninos!...
A campainha electrica deu o signal de se levantar o panno, e os homens, excepcionalmente, apressaram-se a occupar o seu logar antes de começar o espectaculo, o que fez com que a tragica podesse logo ser ouvida desde a primeira scena. Desempenhava n’essa noite o papel de Magda, a mulher soberba de independencia e energia que a traição e a infamia do homem, em vez de quebrantar em baixesas de victimas, faz erguer n’um protesto de indignação.
A actriz, soberana da Arte, dominando em todos os países onde o capricho de artista a leva, sublime bohemia, que o mundo aclama exaltado, faz vivo, arquejante de interesse, esse typo symbolico da mulher de que a sociedade fez uma revoltada e que uma vez lançada fóra do ramerrão comesinho da existencia burguesa, impossivel se lhe torna a vida entre os seus, cujas ideias a amesquinham e irritam, que ella propria escandalisa com as suas palavras e modos, de pessoa que conhece dos preconceitos sociaes o bastante para avaliar a sua hypocrisia.
Quando a Duse (Magda, a grande cantora) entra já fatigada da lucta embóra coroada de loiros em que o dinheiro lhe não faz mingua, mas soffrendo da miseria affectiva em que se vê, como filha espúria de um mundo feito de harmonia e amôr, e vem recorrer á familia, como[283] fonte inesgotavel de carinho, apenas encontra estranheza e hostilidade...
É então que a artista se revella extraordinaria de sentimento, flagrantissima de psychologia feminina, mais ainda do que nas scenas violentas de paixão, reconhecendo quanto differe da pequena irmã que na sua ingenuidade lhe mostra o que já fôra e nunca mais poderá ser, fatal sciencia do mal que uma vez adquirida não mais se pode esquecer nem limpar da memoria.
Magda pensa com horror no brutal egoismo do amante que, fugindo como covarde á responsabilidade do crime, o faz recahir esmagadoramente sobre os hombros mais fracos da mulher, que deixa de ser cumplice para se tornar victima.
A Duse, encarnada n’esse papel, deixa de ser uma pessôa que representa a ficção alheia para se mostrar ella mesma, elevada e transfigurada pelo proprio esforço e talento; tão depressa carinhosa e dôce, como mãe que encontra um filho perdido, junto da irmã, recebendo-lhe as confidencias, revivendo n’ella o seu passado de pureza e sentindo a devastadora mágua dos factos irremediaveis; logo, ironica e vaidosa da leviandade que escandalisa as burguezas puritanas que frequentam a casa dos paes; cheia de nobre dignidade quando recusa o marido que lhe impõe o abandono do proprio filho em respeito ao mundo; extraordinaria de paixão, quando responde com o seu despreso de mulher que só o talento, e um feliz acaso da natureza que lhe deu uma garganta privilegiada, salvaram da miseria e da vergonha de que tantas outras, por desajudadas,[284] se não podem mais erguer. Que lhe importa uma sociedade á qual nada deve?!...
Mas não se tem impunemente uma generosa alma de mulher sequiosa de affectos simples, não se é uma ingenua de que a vida fez uma sincera revoltada; o grito de dôr e de remorso que lhe arranca a subita morte do pae é tão humano e desesperadamente sentido que se fica na duvida se é realmente para applaudir se para retirar respeitosamente, com a commoção propria de quem assiste a um drama de familia.
Logo no primeiro acto, que terminou com ruidosa manifestação, chamadas e applausos delirantes, o visconde sahiu com João, mas appareceu pouco depois, já só, no camarote da Candida, que o Braga prudentemente deixára, protestando urgentes negocios que o chamavam ao jardim d’inverno, a fallar com uns amigos.
Retirados para a penumbra do camarote, reconhecia-se, pelo gesticular phrenetico do visconde, que era de importancia a conversa em que elle punha todo o ardôr da paixão e em que ella o ouvia sem deixar de sorrir vagamente no seu sorriso incolor de imagem.
A baroneza d’Amieira vira Isabela e perguntára duvidosa a mr. William, que a comprimentava na passagem,—se realmente era ella, a querida criança?!...
Á sua affirmação retrucou expansiva que lhe reclamava a companhia até á frisa dos viscondes.—Ha quanto tempo não via a Bellasinha! E mesmo Maria Helena havia muito se não encontrava senão em casa, e ella ultimamente tinha tido outros deveres nas suas noites.
Á entrada d’elles na frisa, onde já estavam o João e o Dr. Ramalho, a conversa animou-se com a discussão da these debatida no drama, que a baronesa achava de grande exagero.—Casada, a Magda seria uma mulher recebida na sociedade, respeitada por todos; mais tarde pensaria no filho...
Bella contestava com indignação, exaltava-se mesmo e parecia-lhe até impossivel que a baronesa, sinceramente despresadora de preconceitos, ainda tivesse tão injustas ideias, applaudisse tal hypocrisia.
—«O que quer, minha querida!? Embora se sinta que é injusto, é mais commodo pensar como toda a gente... Para que serve discutir e protestar? Se o mundo é o que é e não o que devia ser!
—«Mas é dever nosso, dos que pensâmos conforme a razão e aspirâmos á justiça, protestar, luctar pelo futuro—respondeu-lhe João sinceramente.
—«Admiro estes seus sobrinhos, mr. William, são dois verdadeiros apostolos, cheios de fé e de energia.
—«Por isso hãode triumphar, verá.
—«Tambem já o conquistaram, já lhe insuflaram no ânimo o fogo sagrado da nova religião?
—«Parece... e aconselho-a, Baronesa, se tem amôr ao actual estado de coisas, a fugir d’estes terriveis evangelisadores; são perigosos exactamente porque são convictos, o que é raro.
—«Crê que se vença porque se tem fé, tio? Eu, não; se assim fosse não veriamos triumphando tantos cynicos que abraçam qualquer religião,[286] como qualquer ideia que lhes convenha aos seus fins.
—«Esses não têm fé em coisa nenhuma. Triumpham, é certo, mas a sua obra desmorona-se rapidamente, como edificio construido sobre lama. Só a obra dos verdadeiros crentes, dos sinceros, é que pode resistir e fructificar. Crês que fosse a ambição, o orgulho e a mentira dos padres, que fizeram do christianismo uma religião? Não, foi a humildade, a sinceridade e a fé dos convictos... É por isso que creio no futuro da vossa empresa e aconselho a Baronesa a fugir se não quer tornar-se tambem uma convicta...
—«Pois vou-me já, tomo o seu conselho, meu caro. Nada, que não quero dar aos meus conhecimentos o espectaculo grotesco de fazer dançar nos meus salões os criados da lavoura nem de medir pela mesma bitola a moral da cosinheira e a da grande dama...
—«A Baronesa a fingir-se o que não é! Todos sabemos que não ha ninguem melhor para os seus inferiores—contradictou Maria Helena.
—«Tratá-los bem, trato, mas julgá-los meus eguaes, com direitos e deveres como nós, isso, filho, é muito grande inovação para uma velha como eu.
—«Mas não é isso, cada um no seu logar, mas crédor do nosso respeito, tão superior no seu officio como nós no nosso.
—«Sim, eu vejo que a razão está do vosso lado. Mas... eu afinal de contas ainda me não dei mal com o mundo como elle está.
—«Para que V. Ex.ᵃ tenha essa consoladora[287] phylosophia, quantos terão soffrido miserias inconfessaveis, quantos terão amaldiçoado mil vezes a hora em que nasceram!
—«Ora, querida Bella, se fossemos todos a pensar assim, não estaria aqui ninguem dos que deram o seu dinheiro para vêr a Duse.
—«Porque não? Se nós viemos e podémos dar um preço exagerado, porque temos necessidades de espiritos educados e possuimos fortuna para realisar o nosso gosto, justo é que os que menos tem egualmente possam frequentar divertimentos mais baratos e mais em harmonia com os seus gostos e conhecimentos.
—«Ahi está em contradicção, logo não somos todos eguaes, vê?!
—«Jesus, que confusão! Não queremos todos eguaes, queremos todos felizes, o que é differente. Queria a minha amiga que eu, porque detesto os bailes, os passeios, os divertimentos em que ha muita gente, obrigasse os outros, que só assim se divertem, a tornarem-se anachoretas? Imagina que não ha muita gente, muitissima mesmo, que preferisse a uma recita da Duse uma corrida de toiros?!... Até aqui, entre muitos que vieram por luxo, porque é moda vir ao theatro por maior preço quando vem uma celebridade estrangeira...
—«E hade ser cara, porque se fôr pelos preços da casa já não tem o mesmo merecimento. Quando penso no Novelli a representar para as cadeiras, aqui mesmo, pelo centenario da India!—disse a viscondessa.
—«É verdade, até nós viemos cá sempre para protestar—respondeu Bella.
—«Além do prazer de ver representar como poucas vezes na vida se pode vêr!
—«Mas tudo isso não me chega a convencer de que seja o vosso o mais commodo caminho.
—«Isso não é, mas o melhor.
—«O que importa o bem dos outros, no fim de contas? Gente que está habituada a soffrer não lhe custa tanto. Melhor é contentar-se cada um com a sorte que tem.
—«Quando a má fôr para os outros...
—«Claro.—Ria desabusadamente—vejam alli a Candida se precisa pensar no trabalho ou na ignorancia dos pobres, na felicidade ou na infelicidade do proximo, para ser hoje a mulher mais linda de Lisboa. Não digo uma profissional beauty porque a frase é importante demais para a nossa modestia e mesmo porque não tenho a mania de M.ᵐᵉ Vilhegas.
—«Ó Baronesa, mas de que serve ser-se bello sem mais nada?
—«Ora de que serve, mr. William, agrada aos outros. Repare n’ella, veja se no meio de tanta cara vulgar, de tanto rostosinho miúdo de chloroticas caiadas, não é um prazer para os olhos deparar com aquelle typo de perfeita belleza—repostou com leviandade.
—«É uma opinião de artista. Mas é tão fragil o reinado da belleza material—disse por fim o Ramalho, que até ahi se tinha conservado silencioso.
—«É certo, mas emquanto dura, a belleza é um merecimento como outro qualquer. Uma superioridade como a do talento ou a da bondade.
Respondeu a viscondessa, mas de modo tão[289] singelo, que todos se entreolharam na dúvida, se seria uma illudida ou uma cynica. Só Isabella, que a conhecia bem, poderia affirmar a sua completa ignorancia de um facto que para ninguem já era mysterio. Ciumes, dôr pungente de coração offendido, sabia que os não teria, porque o amôr pelo marido lhe desapparecêra ha muito com o despreso que lhe inspirára a leviandade do seu caracter, mas esperava d’elle respeito bastante para a não inferiorisar em convivencias equivocas, para a não obrigar hypocritamente a ter relações que deprimiam a sua dignidade de mulher honesta.
Por isso Isabella, sentindo todo o amargôr da situação, soffria pela amiga tão intimamente que o resto do espectaculo o passou desattendida, apesar do interesse que a artista lhe despertava, a ella cuja alma finamente temperada se enlevava sempre na comprehensão de todas as grandes manifestações de arte, a ella que alheada de si mesma já seguira uma vez, como em extasis, o desenrolar d’esse mesmo drama, só grande pelos interpretes, quando o papel da mulher se subalternisava e quasi desapparecia, vendo Novelli, no papel do intransigente e rigido coronel, tomar toda a scena, encher de assombro todos os espiritos, com a verdade tragica da sua dôr e da sua morte.
Desattendida tambem passou o intervallo do segundo acto, que lhes trouxe á frisa innumeros conhecidos, fatigada de cumprimentos e conversas a que não ligava sentido, com os olhos a fugirem-lhe para a Candida que avultava em proporções quasi tragicas, nova lady Macbeth[290] maculada pela mentira e pela traição, laivada pelo sangue das suas victimas, aquellas que mais acariciadoras achegava ao coração.
Quando entrou finalmente no quarto do Alliança teve a sensação de allivio que sente o dormente acordado do pesadello esmagador.
—«Estou cançada—dizia desapertando o vestido e cobrindo os hombros com uma capa para chegar á varanda, onde João fumava um resto de cigarro—estou fatigada de arte, de luzes, de barulho, de gente, sobre tudo de gente.
—«Ou isto ou o socego da nossa casa!—respondeu João, passando-lhe o braço pela cinta, fatigado tambem de impressões, aborrecido de mentiras e convencionalismos.
—«Que longe já estamos d’essa miseria—accrescentou ella, reclinando a cabeça no hombro do marido—parece que vivemos em outro mundo.
—«N’um mundo que tu criaste, no reino da felicidade pelo amôr e pelo bem, querida.
—«Tenho já tantas saudades da nossa casa, que parece que sahi ha muito de lá. E tu?
—«Tambem eu, muitas, da nossa casa, da nossa familia, das nossas flores, de todas as coisas que lá nos interessam, e sobre tudo da alegria e do descanço que têm os nossos espiritos, crentes na obra redemptora que encetámos e da qual chego a duvidar cá por fóra ouvindo o riso escarninho de todos estes egoistas epicurianos, ou sinceramente desilludidos, como a Maria Helena.
—«D’essa é que tenho pena... quem me déra podê-la levar para a nossa republica de[291] bons! O que terá feito o nosso velhinho agora assoberbado com todo o trabalho?
—«Coitado! O que terá andado do hospital para o asylo, do asylo para as obras!... Que fortuna foi obrigarem-no a sahir da igreja! É assim muito mais util á sociedade.
—«Não ha nada para certos caracteres se depurarem e redobrarem de energia como as injustas perseguições. Outros desanimam na lucta e ficam com a vontade quebrada, como a pobre Maria Helena.
—«Eu acho a na mesma, filha.
—«Não acho eu, desespera-me aquella indifferença resignada que até lhe fecha os olhos para o procedimento do marido com a Candida.
—«Que é infamissima, como sempre. Quanto mais a conheço mais se confirma para mim a opinião que formou d’ella a Engracia. Na sua ingenuidade de ignorante viu melhor do que nós todos. Quando lhe vejo o impudôr, afigura-se-me que a Pillar a aponta ao meu odio.
—«Odio, não; ao teu despreso, João.
—«Tivesse eu a certeza, querida, que não sei se teria coragem de só despresar. Quanto daria por essa certeza, quanto!
—«Não devias dar nada; a responsabilidade dos criminosos é tão limitada, que ninguem tem o direito da vingança.
—«Oh, minha querida, isso não é bom theoricamente, mas criminosos como a Candida, embora irresponsaveis, são um perigo social.
—«Mais do que ella são criminosos os Vilhegas ambiciosos e os viscondes no seu papel de fina hypocrisia. E mais do que elles todos é[292] criminosa a sociedade que os acolhe e os cobre com a sua cumplicidade, que faz d’elles ornamento respeitavel da sua vida.
—«Tens razão, mas a morte da Pillar foi um repelão do destino, tão brutal, tão cruel, que ainda me faz ter ideias de vinganças, se penso que houve culpados!... A sangue frio concordo, a sua morte não será vingada porque ella mesma o não desejaria; de que serve esmagar uma vibora n’um campo juncado d’ellas? Exemplos nunca emendaram ninguem nem eu creio no arrependimento, sublime illusão de Christo. Cada um é filho do seu meio e da sua ascendencia, producto hibrido que só a educação e a remodelação da sociedade poderia orientar para o bem.
—«Jesus, lá vae o meu João ao extremo!...—respondeu Bella rindo mansamente á sua exaltação e afagando-o carinhosa—não vale desanimar, talvez de productos pouco contaminados d’esta floração pantanosa ainda alguma coisa se possa retirar para o novo campo saneado e moralisado.
—«Tudo isso para eu confessar que foi um acto de bôa politica acceitar bondosamente a collaboração da pequena Costa e das Sebastianas, não é verdade?
—«Coitadas, essas não fazem muito mal ao mundo. Mas o que me interessa sobre tudo é a pobre Maria Helena. O que dirá ella em sabendo das relações do marido com a Candida?
—«O que hade dizer? A situação na sociedade em que vivem, está tão vulgarisada que não lhe dará a minima importancia.
—«Não creio! É vulgar sim, tanto que nem chega a ser escandalo, mas é estupido para uma mulher honesta que tem invencivel repugnancia pela mentira reconhecer que tem vivido rodeada d’ellas. Pobre Maria Helena! Quando a vejo tão desgraçada, não sendo feliz nem fazendo feliz o marido, podendo-o ser tanto com quem a ama e... ia jura-lo, ella ama tambem!
—«O dr. Ramalho?
—«Sim. Se houvesse divorcio tudo se liquidava bem.
—«É um triste remedio.
—«Mas sempre era remedio, e assim é a condemnação irremediavel das mulheres honestas.
Calaram-se ambos olhando o céo scintillante d’estrellas, que um vento fresco limpára de nuvens. Pelo Chiado passavam apressados os retardatarios que tinham ido cear aos restaurantes. Raros garotos apregoavam ainda os jornaes da noite humidos de tinta e cheirando fortemente a papel impresso; um cautelleiro gritava n’uma melopeia triste:—é o 3:499, amanhã anda a roda! Quem se habilita?... É o 3:499. Quem quer ser rico sem trabalhar tem o 3:499, tres... mil... quatrocentos... e noventa e nove...—repetia na cantilena que todo o dia tinha gritado pela cidade, que arrastava pela noite fóra como um pungir de saudade e de vaga esperança...
Toda a psycologia dolorosa de um povo, vivendo de aventuras e de milagres, alli estava no pregão do cautelleiro, inconsciente do bem e do mal, cego como o destino que deu a sorte grande um dia a este povo corajoso e submisso para, após longos annos de baldões, seculos de[294] aureas miserias, chegar á suprema inconsciencia de hoje.
—«Quem quer ser rico sem trabalhar?—isto é, quem quer viver para gosar de todos os luxos e commodidades, sem comprar com o seu labor o direito de possui-las?
Trabalhar, para quê?! Se foi a sorte que nos guiou á conquista do mundo; se é a sorte, a cega roda da fortuna que girando sobre si mesma nos pode dar a fruíção dos gosos sem o cançaço do trabalho? Se é a sorte, o arbitrio, o empenho, que eleva os nullos aos primeiros logares, e se é na esperança d’ella ser favoravel uma vez, que todos, desde o operario que arranca á sua miseria os vintens para a cautella até aos ricos que põem nas despesas obrigatorias um bilhete da loteria grande, têm a vaga esperança de um dia a sorte lhes ser favoravel!... A fatalidade, a sorte, o destino, são palavras de desânimo e resignação passiva, palavras que trazem impressas em si mesmas a porção de sangue mosarabe que por cá ficou...
A pouco e pouco toda a vida da cidade parou, suspensa por um pouco, emquanto não começavam os varredores o seu trabalho de forçados.
As estrellas punham tremores nervosos na impassibilidade do céo, uma aragem leve lembrava que a primavera ainda de todo não escorraçara o inverno... João e Bella sentiam-se tranquilisar, como que adormentados de espirito, longe do mundo que os irritava, muito alto sobre a cidade adormecida.
Querida Isabella
Como se passaram quinze dias desde que me deixaste, não sei!... Sei apenas que te escrevo hoje num destes momentos de profundo quietismo que a vida nos traz após as maiores desgraças. Desgraças?!... que eu não posso bem chamar assim ao facto succedido hoje, com a mais elegante simplicidade, e que, ao receberes esta, já não será novidade para vocês porque todos os jornaes fallam n’elle,—a fuga da Candida e do Duarte.
Qual o motivo que os levou a este escandalo, não sei, posso apenas dizer-te que ainda hontem estivemos em S. Carlos, que ella me beijou affectuosamente á despedida e que o Duarte me acompanhou a casa. Depois... partiram no expresso para Paris, ao que dizem.
Sinto-me enojada de tanta baixesa de caracter e de tanta hypocrisia! Enojada, e vexada tambem, um pouco, pelo papel ridiculo que me obrigaram a desempenhar em toda essa vergonhosa intriga. Nunca o Duarte tinha descido[296] a impôr-me as suas amantes para amigas intimas—faltava-me essa vulgar consagração mundana!... É de morrer a rir, e a chorar.
Agora comprehendo tudo, os sorrisos que acolhiam os meus elogios á Candida, as phrases com dois sentidos da baroneza, as palavras trocadas a meia voz, até a tua má vontade para ella e a raiva do João, o vosso aborrecimento súbito e que tão poucos dias os conservou aqui, tudo eu comprehendo e tudo eu vejo agora!...
Tu sabes melhor do que ninguem o que tem sido a minha vida; conheces-me, pois tens a minha alma, palpitante de soffrimento, agasalhada no teu coração de verdadeira e unica amiga. É portanto escusado vir com rodeios. Demais isto é um facto consumado, uma coisa indiscutivel:—meu marido fugiu para França com umadas minhas amigas intimas. Eis a singela e fatal verdade.
E eu não encontro, Isabella, no fundo da minha alma, nada, absolutamente nada, que me faca soffrer d’este abandono. Orgulho, parece que já o não tenho! Offensa da mulher, que veio a minha casa, que me beijou, que era a primeira a dizer mal d’elle—quando eu nada me importava de procurar saber a sua vida intima—confesso-te, querida, que não chego a recebê-la. Despreso-a e lamento-a; desculpa-la-hia talvez, se fosse sincera no seu affecto; mas não é, não! Uma coquette vulgar que vae seguindo o seu capricho ou—o que é peor—a sua ambição. Não me offendeu, porque eu vivo como estranha n’esta sociedade convencional. Conheço demasiadamente este mundo para que me prenda[297] nas suas redes de hypocrisias. Vim do conchêgo dulcissimo da minha familia patriarchal para este meio desmanchado e futil, que só me deu amarguras em paga do que lhe trouxe—o meu coração virginal, a minha alma ingenuamente enthusiasta, a minha mocidade ingenua.
Ninguem sentira como eu a vida assim vasia, assim desconsolada, assim inutil! Viver não é nenhum bem para mim, a morte tambem nada me diz... Que posso encontrar na cóva?—A eterna paz do não ser, o somno do esquecimento dos outros e de mim mesma...—Isso encontrei na vida. Nada me interessa, senão apparentemente, e a ninguem interesso senão a ti, oh minha dôce amiga, e á pobre velhinha que é minha mãe! Olha, o que eu não tenho podido soffrer com este escandalo, em que o meu nome será murmurado entre sorrisos escarninhos e lamentos falsos, como falso é tudo isto, tem ella soffrido, a desgraçadinha! Adoeceu de mágua e de surprehendida, porque não sabia as relações em que eu estava com o Duarte. Tu só, querida Bella, foste a minha confidente das horas amarguradas de lucta e revolta, tu só presenciaste e ungiste com o balsamo consolador da amizade as feridas sangrentas do meu coração; por isso, minha filha, só a ti sei confiar a minha alma em farrapos. Se eu podia ter dito á minha pobre mãe o inferno de soffrimentos em que vivi?!... Para ella soffrer mais ainda:—que o coração das mães soffre duplamente as amarguras dos filhos!
Foi isto unicamente o que hoje me affligiu. Se elle me tivesse dito que me queria deixar[298] para ir com a minha amiga eu, crê, ter-lhe-hia dito:
—«Vae! Que me importa isso? Com essa ou com outra é-me indifferente, mas despede-te de minha mãe, da pobre senhora tão velhinha e doente que morrerá d’um primeiro desgosto. Tem dó d’ella—ao menos tem esse sentimento bom—ajuda-me na mentira santa em que a tenho deixado viver socegada.»
Oh! se elle tivesse feito isto, de joelhos lhe beijaria as mãos, agradecida o cobriria de bençãos. Mas não, nenhuma delicadeza, nenhuma bondade, n’aquella alma egoista.
Avalia o que eu soffri com a scena que hoje se passou!
Á hora do almoço o Duarte não appareceu, mas isso era tão vulgar que eu nem perguntei por elle ao criado respondendo á minha mãe: «Teve que fazer e sahiu mais cedo naturalmente»... Mas o Bernardo adiantando-se:—«Se V. Ex.ᵃ me dá licença direi que o Sr. Visconde mandou o José arranjar as malas e encarregou-me de dizer a V.ᵃˢ Ex.ᵃˢ que partia para o estrangeiro.»
Imaginas bem como eu fiquei pelo sobresalto em que vi a minha mãe! Ante o meu olhar de censura o pobre Bernardo, coitado, daria tudo por não ter dito tal coisa, mas era muito tarde! Tentei ainda convencê-la de que sabia d’aquella viagem, que tinha sido combinada commigo, mas quê?! Os jornaes deram logo a noticia tão transparentemente velada que tudo foi inutil. Coitadinha! Se a ouvisses dizer-me:
—«Eras então infeliz e nada dizias, filhinha?!...
Foi uma censura e um agradecimento, que ella bem percebeu a minha delicada intenção. Não poude mais!—As lagrimas que ha tantos annos lhe escondia vieram todas juntas cahir-lhe no coração de mãe amantissima.
O que foram esses momentos não tentarei descrever-te. Sente-os tu com o teu coração de mulher—que o sentimento tão amoravelmente maternisa. Depois d’isto, compôz a phisionomia para apparecer com dignidade ás amigas presurosas que vieram, sob variados e engenhosos pretextos, buscar assumpto para entreter a sociedade... Estive quasi tentada a dizer que não recebia, que me deixassem para sempre; mas a mamã aconselhou, pediu-me quasi, para que respeitasse as conveniencias. Oh, as conveniencias!... Como as despreso e me importam pouco, e como tenho sido escrava d’ellas!
Logo á noite consegui fazer recolher á cama a minha adorada mãesinha, que o seu organismo abalado por tantos desgostos e doenças já não podia mais.
Achei-lhe febre e mandei chamar o medico. Sahiu agora mesmo depois de lhe dar um calmante, que a adormeceu no mais infantil dos somnos. Que delicia dormir assim! Como o seu pobre rosto serenado sorri santamente! E hei-de vê-la acordar amanhã, para soffrer?... Oh Isabella, Isabella, que não sei o que deseje!...
A minha pobre cabeça perde-se de todo n’este inferno de dúvidas e sobresaltos. E como não posso dormir, venho repartir comtigo as minhas lagrimas, que a tua amizade tomaria como indigno[300] egoismo, se as guardasse todas para mim, não é verdade? No silencio da casa adormecida sinto-me mais só, mais abandonada que nunca, e por isso encontro ainda algum consolo em conversar com o unico espirito meu irmão. Recordo com infinita ternura as horas de paz que a tua amizade me tem dado. Lembras-te da primeira vez que nos encontrámos? Parece que te estou a vêr: muito fina, d’uma elegancia um pouco infantil, um sorriso de bondade divina na tua bocca graciosa. Convalescias d’uma perigosa doença e eu arrastava os desesperos da minha felicidade manquée. Só uma doente de corpo e uma doente d’alma iriam procurar a solidão religiosa da natureza, por aquelle principio de primavera, no Bussaco, quasi inverno ainda! Talhadas uma para a outra, as nossas almas reconheceram-se logo. Os mesmos passeios, as mesmas predilecções pelos largos horizontes, os mesmos embevecimentos pantheistas deante da natureza. Já nos tinhamos encontrado tanta vez na Cruz-alta, procurando o mar no poente longinquo e querendo vê-lo na rosea claridade do céo... no Calvario, na Memoria, recordando tempos passados, admirando a gravidade pachorrenta da sentinella, divagando pelas ruas cheias de sombra por todo esse cantinho paradisiaco, mais bello ainda na solidão de thebaida em que o encontravamos. A nossa conversa primeira tida alli na Fonte-fria, ao compasso da agua murmurante, sob a cópa das arvores seculares, foi intima e confiada como se nos conhecessemos desde o berço. Sob a reserva das minhas maneiras, que fundo de ingenuidade[301] encontraste! Na infantilidade dos teus risos, que bom senso e conhecimento da vida tu já tinhas! Bem se podia prever a equilibrada e corajosa mulhersinha que soube fazer da sua casa um verdadeiro refugio d’almas, que da fortuna que tão felizmente lhe cahiu nas mãos fez uma salutar obra de progresso, de combate pela justiça.
Querida, querida Isabella, recordar as lagrimas que me viste chorar durante aquella consoladora convivencia de mezes, é quasi um prazer. Então ainda eu soffria, então ainda vivia. Hoje... é isto que vês.
Lembro-me agora, com uma nitidez desesperante, das tuas palavras sensatas quando se fallava em divorcio:—Para quê?... Em Portugal não ha divorcio; apenas temos o desquite, que é a prisão maior para as mulheres. Não vale a pena ir contra a opinião geral que condemna a mulher separada do marido, para tão pequeno resultado.
Como a opinião dos indifferentes me importava pouco, lembravas me então a minha familia, a minha mãe. A minha mãe!... Por ella consenti em ficar amarrada de pés e mãos a esta situação quasi infame para mim. E queres saber? N’esse tempo ainda ella poderia supportar o golpe, agora... não sei o que se dará. Tremo pela sua vida tão abalada!
Não me queixo de ti, minha joia, podias porventura imaginar que seria elle o primeiro a despedaçar escandalosamente as cadeias, que só foram pesadas para mim?
Que estupido destino o meu! Aos desesete[302] annos, cheia de enthusiasmos e de infantis curiosidades, deixo-me convencer que era amôr o que sentia por meu primo. Amôr egual ao que elle me confessava em phrases, que eu então imaginava só ditas para mim, santas como o seu affecto.
Um bello casamento o nosso—fortunas eguaes, familias eguaes, paixão, alegrias, festas, nada faltou!
Mas que profunda differença entre esse rapaz vaidoso, futil, sempre morto por se divertir, com um fundo de egoismo e de hypocrisia atroz; e a rapariga cheia de sonhos, amante e infantilmente crédula que eu então era! E tudo lhe perdoava, tudo n’elle me parecia toleravel, porque o amava e o julguei sincero. Enganou-me como se pode enganar uma criança de seis annos, até que o acaso se encarregou de me abrir os olhos á verdade brutalissima da vida. Em tantos annos de casada não houve um só dia em que eu desconfiasse da lealdade do seu caracter, e não houve um só dia em que elle me não enganasse vergonhosamente. Depois de saber isto estava mulher, uma passiva ter-se-hia resignado, algumas fariam o mesmo que elle, outras ainda encontrariam nas vaidades mundanas a phylosophia cinica a que usam chamar savoir vivre. Eu, era uma selvagem, não me resignei, e fugi como um animal ferido para a solidão magnifica da natureza, resolvida a tudo acabar pela separação. Encontrei a tua amizade santa e ella me obrigou a comprehender a vida e a resignar-me na apparencia. Os teus poucos annos de rapariga educada no mundo e para viver no mundo[303] souberam aconselhar a mulher que apenas tinha vivido pela alma. Disseste-me que fingisse—fingi! Que ninguem devia vêr as minhas lagrimas—e ninguem as viu senão tu. Mas que friesa tumular foi a nossa vida desde então! O capricho que lhe inspirei esvaira-se, como fumo, n’aquella alma inconstante. O sincero affecto que eu lhe dedicara tinha morrido sem que eu soubesse como. O que então mais soffria em mim era o que já não tenho hoje—o orgulho, a vaidade de mulher nova e bonita.
Que vida a minha! Se eu tivesse um filho—a suprema aspiração da minha alma—então teria ainda esperança de ser feliz, assim!... Mas se o tivesse, que dôr eu sentiria vendo-o despresar seu pae, porque o despresaria decerto, e nada se pareceria com elle. Desgraçado, não lhe tenho nenhum odio. Odio só tenho á sociedade que me liga eternamente a um homem que me despreza e a quem egualmente despreso. Só isso me faz ainda vibrar os nervos n’uma revolta! Has-de perguntar para que queria eu a liberdade dada pela lei, visto que já nada espero do mundo?...
Não sei. Era livre, ao menos, não tinha o meu nome ligado ao d’elle—já era alguma coisa!
Olha, Isabella, quando criança sonhei uma vez que ia por uma estrada cheia de sol e poeira. Caminhava, caminhava n’um desconsolo de cansaço e solidão. Muita gente passava por mim e corria para a frente empurrando-me e deixando-me cada vez mais desconsolada. Os campos em volta eram d’uma aridez desolante—nem um pedaço de paisagem verde, nem uma[304] sombra onde podesse descançar os olhos mortificados. No fim de tanto andar, que os pés em sangue já se recusavam a continuar a marcha, encontrei a sombra rachitica d’uma arvore, cahi extenuada e alli fiquei sem pensar em mais nada. Das pessôas que tinha visto, muitas voltavam abatidas e tristes, outras corriam ainda para a frente, lindas de esperança e alegria.
Vendo-me tão abandonada, os conhecidos chamavam-me, os outros olhavam-me lamentosos, e eu, indifferente a uns e a outros, não me levantava, cançada para sempre d’esse caminho árido. Levantar-me, para quê?
A traz sabia eu que nada havia bom, para a frente não tinha coragem de procurar saber.
A minha vida é isto, Bella: fecho os olhos e deixo-me adormecer na desgraça—que me falta a coragem para procurar existencia melhor.
Não sei se comprehenderás esta carta, que não tenho coragem de reler. Vae n’ella toda a minha alma ansiante acolher-se ao teu coração honesto. Dize-me que vivo, que eu já não sei o que isso é!
Adeus. Lembra-te sempre da
tua:
Maria Helena.
P. S.—Esta carta escripta hontem vae tal qual a senti e a penna a traçou; não a rasgarei para te dar mais uma prova de quanto confio no teu affecto. A mamã está mais socegada e com a sua saude volta-me a coragem e o sangue frio para ver claramente a situação que meu marido me deixou.
Vou aproveitar definitivamente a liberdade que me dá. É quasi um allivio, depois de tantos annos de servidão. O dr. Ramalho acaba de sahir d’aqui e affiançou-me que em tres dias a mamã poderá acompanhar-me. Sahiremos então desta casa que é d’elles e que devo deixar sem a mais leve saudade... Sem saudades?... Não sei que têm estas coisas inanimadas que nos rodeiam para assim nos custar a separação, mesmo quando apenas foram testemunhas de maguas... Do que é seu fará o que entender; o que nós temos chega para a nossa sustentação mais do que modesta. Sinto-me tão serena que já me parece que sou feliz. O que me aconselhas que faça? Espero a tua resposta para sahir d’aqui.
Abraça o João e recebe muitos beijos da
tua do coração:
Maria
A entrada sobresaltada de João, com os jornaes onde lêra o escandalo da alta roda bem claramente expresso por iniciaes e certas indicações, arrancou Isabella ao absorto meditar em que a carta a fizera cahir.
Não que a surprehendesse ou interessasse a fuga do Visconde e da Candida, realisadas com a mais moderna e despoetisada simplicidade, á sahida de um espectaculo, onde a mulher cumprimentára affectuosamente a amante, entrando para um commodo expresso que os affastava de um meio mesquinho que mal correspondia aos seus gostos e desejos de goso, para os levar a uma civilisação requintada, vivendo luxuosamente no[306] vicio de que fez um sacerdocio, esbanjando dinheiro, actividades e energias vitaes no desesperado empenho de usufruir a existencia intensamente, como quem não pode dispôr do incerto dia de amanhã. Era um destes casos do dia que apenas despertam o interesse pela evidencia os nomes que desempenham os principaes papeis e que fazem convergir para uma determinada e minima parte da sociedade a attenção de todos, despertando risos, odios, despreso ou pena, conforme o temperamento e a orientação de cada um. O que lhe feria o espirito, o que a entristecia, era essa carta que lhe ficára aberta nas mãos trémulas, sangrenta de sinceridade, eloquente na sua acusação, como um grito de victima esmagada sob as rodas triumphaes do carro doirado donde os preconceitos sociaes dictam as suas leis.
Arrependia-se de ter aconselhado a amiga á inerte resignação, que é uma transigencia; arrependia-se de a não ter mesmo incitado a despresar toda a hypocrita consideração mundana e tornar-se sinceramente o que os seus nervos e o seu lucido criterio lhe diziam que fosse—uma revoltada.
Os annos que Maria Helena levára na paciente resignação de uma voluntaria sacrificada, pesavam-lhe como um crime proprio; porque Isabella, como todos os conscientes, caminhava das trevas para a luz com segurança, despresando hoje o que hontem ainda a amedrontava, vendo a pequenez das coisas que a maioria respeita, demolindo no seu proprio espirito os idolos sociaes e criando novos ideaes de justiça, de bondade[307] e de obrigações para com os outros e para com a propria existencia que não temos direito de sacrificar á dôr, por conveniencias de egoismo alheio.
—«O que se ha de fazer?—perguntou João, depois de ler a carta, acostumado a encontrar na mulher o primeiro conselho que orienta e vence o sobresalto, dispondo-nos á lucta.
—«Acho que devemos mandar um telegramma a prevenir a Maria Helena de que partimos no primeiro comboio, para a trazermos para a sua casa. É onde ficará melhor.
—«Mando já o telegramma, mas a prevenir só da minha ida; tu não vaes, queridinha, tenho medo por ti e pela chegada do nosso pequenino hospede.
—«Estou em cuidado na Maria Helena, que nunca se viu só a tratar dos seus negocios.
—«Descança em mim, verás que mereço a tua confiança, minha vaidosa.
Ella sorriu ao sorriso d’elle, erguendo a cabeça, que apenas lhe chegava ao hombro, para receber na bocca o beijo que lhe offerecia amorosamente.
O sol entrava pela porta de vidros que descia para o jardim, onde as rosas se abriam á primeira caricia da primavera, e nimbava-os de luz n’uma transfiguração milagrosa de vida.
Fôra alli, n’aquelle mesmo quarto, pela transparencia d’aquella mesma janella, na impassivel cumplicidade das coisas, que a Pillar assistira, por uma lucida noite de lua, ao desmoronar de todas as suas illusões. Fôra d’alli que vira, com seus proprios olhos, a traição d’essa mesma[308] Candida que continuava, atraiçoando sempre, o seu caminho de viciosa e ambiciosa perfidia.
Mal poderiam imaginar, olhando o bello sol primaveril que se escoava pela folhagem das arvores cahindo em chuva d’oiro, buliçoso e alegre, nas ruas areadas e na relva dos canteiros, que fôra exactamente n’esse quarto, encostando-se a essa mesma janella, que o Vilhegas se consumira na dúvida, por uma tragica e revolta noite de inverno que vergastava as arvores desguarnecidas, sobre a causa da doença e do horror que por elle e pela cumplice manifestára a noiva moribunda...
Fôra grande o escandalo em Lisboa pela fuga do Visconde, repercutindo-se fortemente na villa onde tantos interesses os ligavam a todos.
Havia quem acusasse violentamente a Candida pela leviandade de que dera provas; outros tornavam o Visconde como unico responsavel de todo o mal, e visto que, definitivamente, tinha deixado a politica, já não havia considerações que tolhessem a livre critica dos seus antigos partidarios.
Houve tambem quem arrastasse por todas as baixesas o nome do Braga, ambicioso e usurario, a quem o caso não déra maior abalo, o que parecia indignar os homens sérios e convulsionar em risos chocarreiros as meninas, que a proposito segredavam coisas, pelos modos, nada edificantes.
Não faltou até quem perfidamente quizesse attingir a Viscondessa, que viera acolher-se aos muros amigos da velha casa e se fechára resolutamente na mais completa reserva, porque ao tempo que o caso se déra estava o Ramalho em Lisboa e com João as acompanhára alli.
A pretexto da doença de D. Genoveva escusara-se[310] ella ás visitas dos que pressurosos accorrem sempre onde ha desgraças, não pela natural piedade de corações bem formados mas pelo gosto de insectos poisando com delicia sobre cadaveres e podridões.
Esse affastamento, que em boa logica não devia fornecer pasto á malevolencia, era o que mais a expunha ás considerações dos que nenhuma idealisação affasta da mesquinha curiosidade das vidas alheias e mais irritava as opiniões que tão agremente se referiam já aos primos.
O menoscabo das suas pessoas calava fundo no orgulho d’aquella gente e fazia desembestar saraivadas de doéstos pelas salas e lojas, com estupida superioridade do boticario Domingos José da Silva, appoiado pela mana Josepha, que procurava em vão no principe Rodolpho caso similar e bradava não ter nunca visto uma ingratidão assim.
O Padre Mathias, grave e conspicuamente, como lhe pedia a sua nova encarnação, bordava commentarios phylosophicos sobre o caso, que cahiam no ânimo dos ouvintes como sentenças de prégador. Fazia-os notar o orgulho e ingratidão d’esses herejes, comparada á lhaneza proverbial do conselheiro, que era um talento—a melhor cabeça do paiz! Nem elles sabiam apreciar o bem que tinham com tal protector,—um homem de vastissimos conhecimentos e de uma prodigiosa faculdade assimiladora—coisas que ouvira ao Telles n’uma noite em que tivera que se defrontar em discussão acalorada com um antigo companheiro de casa, algo desdenhoso pelos méritos da Excellencia.
—Sim, comparassem elles o que tinham ganho os seus partidarios, desde o Telles secretario particular e inspector das escolas, até ao Neves vantajosamente empregado na fiscalisação do alcool, ganhando dinheiro sem sahir de casa, nem fazer mais do que assignar o nome no fim de cada mez. E os adversarios?! Nada tinham obtido com a sua dedicação, politica, recebendo por paga o despreso da fidalga que achara maior prazer na degradante companhia dos esfarrapados, seguindo as pisadas da tal inglesa, e do orgulhoso padre a quem o sr. Bispo tivera que expulsar do gremio christão...
Entretanto ia a Viscondessa retemperando as forças, e o seu espirito tão dolorosamente abalado a pouco e pouco se ia alevantando no sadio regimen moral das verdadeiras dedicações, das amisades sem movel interesseiro.
Bella affirmava peremptoriamente que a queria vêr feliz e que não lhe bastava para isso o socego de espirito; precisava tambem de tonificar o organismo, despir, como quem arremessa do corpo uns miseraveis andrajos, os habitos de cidadã que do campo só ama e conhece as avenidas sombreadas dos jardins e quintas de regalo. Seria ella, uma estrangeira, quem lhe faria as honras da paysagem, que já conhecia como os seus dedos. Quem lhe mostraria os mais doces caminhos afofados de musgos que o sol tonisa em toda a brilhante gama de verdes. Quem a acompanharia por essa serra que os castanheiros vestem alternando com os pinhaes sombrios o seu bello verde luzente; ella quem lhe ensinaria os sitios onde a agua corre fresca e[312] leve entre arrendados de avencas e fetos, chorada pelas pedras barbaras do monte.
—Ah como esse paiz é lindo e como até ahi o tinha desconhecido, assim como tinha ignorado o encanto de ser livre, de viver ao seu gosto, sem ser confragida pela vontade alheia!—pensava ella, remoçada, tendo readquirido, no pouco tempo que decorrera, o encanto do riso sem constrangimento, a alegria das côres perdidas na descrença e na melancolia, que envenenam o espirito e o sangue.
E com a saude e a serenidade vinha-lhe o desejo de trabalhar, de ser util, de acrescentar á iniciativa dos primos a energia da sua actividade e da sua intelligencia. Isto alegrava Isabella, que assim a via resurgir para a vida e para a felicidade como se milagre fosse, e de boa vontade lhe ia confiando as multiplas obrigações, que nos derradeiros tempos de gravidez já lhe custavam a desempenhar.
Planeavam novos estabelecimentos, gisavam melhorías nos existentes, que urgia completar para que a obra fosse verdadeiramente justa e util. Queriam todos que a criança de pequenina arrancada á miseria e á dôr não tivesse que voltar para a vida mais infeliz do que nunca, com a alma vulneravel a todas as amarguras, a todas as faltas, que mais sentirá depois de ter conhecido o aconchego e asseio da roupa, a delicia de uma cama limpa, a fortuna de comer sem ter sentido o estomago crispar-se com fome, o luxo das abluções e dos sabonetes, tendo adquirido, pelo simples uso de singelissimos habitos de hygiene, necessidades materiaes, impossiveis[313] de satisfazer entre a miseria dos seus, tendo aberto o espirito a horisontes largos, que a tornarão na propria familia uma estrangeira, victima indefesa da philantropia usada luxuosamente por quem nada se importa da desgraça alheia.
Para evitar esse mal é que tinham criado, como continuação do asylo e do hospital, as escolas-officinas onde rapazes e raparigas adquiriam aptidões para seguirem o caminho traçado pela propria intelligencia e gosto, tendo junto real a real e com o proprio trabalho, o pequeno capital com que fazer face aos primeiros embates da lucta, chegados que sejam á idade de serem livres e tratar de si.
De todo o paiz tinham já vindo modelos de industrias acompanhados por quem as podesse ensinar alli, porque Isabella punha muito de phantasia e de arte na maneira prática de ver e apreciar a vida.
Mas para o trabalho de administração propriamente dita, para seguir pacientemente o fio encetado, esperando que o tempo lhe trouxesse o resultado benefico, não tinha maior paciencia. Não, para isso era melhor Maria Helena e o proprio dr. Ramalho, encarregando-se de calculos meticulosos, sempre sereno e bondoso, sob a mesma calma e apparencia de reserva.
O velho abbade, que não descançava um instante, descobrindo meio de ser util em toda a parte, augmentando cada dia o asylo, enchendo a créche de pequenos, que vinham entregar-lhe sem receio, desde que constara que não se olhava a procedencia nem se esperava idade para[314] admissão, que se dispensava dinheiro e enxoval, não só a desgraçadas sem marido infelizes que os homens abandonam com um filho nos braços e a fome a brutalisa-las ferozmente, como a casa das cujos homens mal podem sustentar o rancho esfomeado que pede pão, com o producto da sua enxada de cavador ou das ferramentas officinaes.
Trouxessem lhe pequenos entes fracos a criar e a proteger, que a todos egualmente abriria os braços e o coração, novo apostolo dos desherdados, casto como uma virgem, puro como criança de um anno, ardendo em fogo sagrado de espiritual fraternidade.
João triumphava com o seu lindo bairro operario—o encanto de mr. Burns, que ajudava todos com o seu lucido criterio e vastos conhecimentos, aconselhando, fornecendo capitaes, e comprando, por fim, terrenos incultos que repartia com egualdade em arrendamentos que terminariam pela posse, em tempo marcado para a remissão. Lembrava ao sobrinho a utilidade de uma industria que aproveitasse e desenvolvesse energias e aptidões, que fosse o complemento do trabalho rural, como a escola deve completar o asylo, seguido da aprendizagem prática.
O tempo caminhava e com elle cresciam as impaciencias e cuidados, que mais ou menos todos sentiam por ver chegar o momento em que Bella, emfim livre dos incommodos e do mal estar que em vão tentava disfarçar, lhes desse o pequenino anjo que tantos braços esperavam para acalentar, que tantos carinhos encontraria á sua chegada ao mundo.
Antonio de Mello e Josephina sentiam-se remoçar[315] aguardando o primeiro neto, como outrora tinham esperado com alvoroço a vinda do primeiro filho. A velha Engracia descrevia ás amigas o enxoval que esperava o seu menino e não se continha sem mostrar cada peça de roupa que das artisticas mãos da mãe e da viscondessa sahia, como modelo de outros mais, que a Aurora Cunha fazia executar no asylo.
Maria Helena contava as horas e os dias e em cada noite que se despedia não deixava de recommendar—que havendo qualquer coisa a fossem prevenir.
Uma madrugada, emfim, Isabella queixou-se mais. João, nervoso, correra ao quarto da mãe, que lhe dizia em modo de consolação:—coitadinha, soffria, soffria muito, mas então!? Tivesse paciencia, quem lhes dera que soffresse muito mais, que era para se despachar depressa.
Pobre João! elle queria sorrir da prática phylosophia da mãe, queria convencer-se da justeza das suas observações, mas custava-lhe tanto ver Bella muito pallida, silenciosa, encostando-se aos moveis a cada assalto das dôres, arrumando o enxoval na cestinha forrada de seda azul—pois se seria um rapaz, todos sabiam!...—sorrindo-lhe com resignação e coragem, entre dois gemidos abafados.
Elle mexia em tudo, arrumava tambem, pensava em muitas coisas, excitado, atordoando-se um pouco, dando ordens, e pretendendo ser o que tinha mais sangue frio para pensar em todas as coisas; para o provar repetia mil vezes que fossem chamar a comadre, e que não se esquecessem[316] tambem de ir ao palacio prevenir Maria Helena, e a casa do dr. Ramalho, isto já quando todos estavam em casa e rodeavam a doente.
Emquanto ao tio, lembrou Bella que o não prevenissem e encarregassem o abbade de o levar para longe n’alguma visita ás propriedades que adquirira e que andava melhorando.
Soffreu ella muito todo o dia; João já desanimava, perdia a energia, pareciam-lhe eternas aquellas horas, e, disfarçadamente, a cada gemido de Bella, limpava uma lagrima silenciosa que lhe vinha aos olhos.
Só mais tarde já quando no horizonte aclarava o céo de uma rosea aurora primaveril, é que; n’uma convulsão de dôres e de gritos, a criança nasceu.
Josephina chorava de alegria recebendo o embrulho precioso que a parteira lhe pusera nos braços, indo palavrosa e desembaraçada tratar da mãe, que já sorridente e feliz perguntava—se era rapaz.
Todos fallavam a um tempo, em voz baixa, havia risos felizes olhando João, que não queria crêr que fosse um menino—nem já lhe importava, nem mesmo que morresse, o que queria era a mãe com vida, a mulher que amava com todos os transportes de amante, que o sentimento paternal não podia extinguir e tão sómente completar.
—Viviam ambos, felizmente, e que engraçado que era o gorducho, e tão feiosinho com a carita inchada de recemnascido, mas tão engraçado aos seus olhos, e tão amado tambem!
O restabelecimento foi rapido, e com a saude[317] voltou a Bella a sua energia e bom humor. A criancita crescia a olhos vistos, querido e amimado por todos, só lhe chegando aos braços na hora marcada para mamar. Mas então o seu orgulho de mãe satisfazia-se bem com a alegria animal do pequenino glotão, que era bem seu, duas vezes seu, pelo sangue rubro de que o alimentara em seu seio e pelo branco leite correndo dos seus peitos como fonte de vida, de alegria e de amôr.
No meio da satisfação geral sómente D. Genoveva soffria da doença incuravel que trazia a filha em sobresalto e da ferida que o seu orgulho sentira com o escandalo dado pelo visconde, aggravado a seus olhos pela noticia que lera nos jornaes de que um grande leilão liquidaria em breve o palacio de Lisboa recheado de magnificencia e preciosidades, um verdadeiro museu de arte e mobiliario, como se não reuniria tão cedo outro na capital.
Sentia-se ferida na sua vaidade vendo o nome do genro, que era o seu proprio como tia, lançado assim á curiosidade publica, baralhado na confusão da sociedade como o de qualquer bricabraquista interesseiro ou pretencioso. Achava que a viscondessa se devia oppôr a tal venda, e era baldado o esforço do velho abbade para lhe fazer comprehender as vantagens que da presente situação advinham á filha, senhora emfim de viver ao seu gosto na serenidade de uma existencia sem obrigações, que intimamente despresava.
Muito agarrada aos velhos codigos nobiliarchicos, á boa senhora era custosa a conformação[318] com essa maneira simples de ver as coisas, que se lhe antolhava por demais despresadora das leis da sociedade a que pertenciam.
A seu ver não devia Maria Helena ter sahido de sua casa, do seu mundo, não deveria ter despresado os parentes e amigos que em Lisboa lhe fariam uma côrte, de lamentos, anathematisando o procedimento do Visconde.
Custava-lhe realmente a comprehender que se preferisse a solidão d’aquelle grande palacio ao convivio das relações mundanas. Não attingia o motivo que levara a filha a, mesmo alli, cortar relações com toda a gente que mais ou menos a distrahiriam. Dir-se-hia que era ella a criminosa, ella a que tinha motivos para se envergonhar e fugir.
Depois essa maneira de fazer bem educando os filhos do povo para serem tanto ou mais do que os nobres, não lhe quadrava.
—Decididamente já não comprehendia nada do mundo, nem a gente nova se parecia com a velha—concluia pegando no crochet de lã grossa com que se entretinha a fabricar saias e casacos para as criancitas pobres, na convicção intima de que era assim que se praticava o bem; distribuir esmolas a uns e a outros conforme o capricho e a sympathia de cada qual, sem livros e sem escolas... Escolas para que?! Só se era para os criados se julgarem mais senhores do que os proprios patrões... A seus olhos, o mundo tinha-se voltado do avesso; se até o velho abbade passava sem dizer missa e respondêra com o despreso ás accusações que da camara ecclesiastica lhe tinham mandado!...
Valia-lhe o dr. Pinto, a irmã mais nova do abbade e as Cunhas para lhe fazerem a partidinha do whist e lhe irem contando os casos da villa; era o que a distrahia um pouco depois das rezas obrigatorias e da leitura, feita pela dama de companhia, de toda a grinalda romantica do principio do seculo passado.
Com a aproximação do inverno seguinte a sua saude resentira-se-lhe e muitos dias havia já em que a filha a não podia deixar. Habituada áquelle affecto sempre prompto e tocante, acostumara-se tambem a vê-la sacrificada sem um murmurio e acceitava como obrigatorio o que só o amor lhe offerecia.
N’um d’esses dias, em que, por Maria Helena não sahir, Bella a fôra visitar, viu com surpreza, á sahida, que uma carroagem parava ao portão e um homem se apeava, fechando-a logo cuidadosamente. Ia passar sem procurar conhecer o visitante, mas sabendo que a amiga não tinha segredos para ella e presentindo desgosto ou incommodo que a sua interferencia podia talvez evitar, resolveu dirigir-se ao desconhecido.
Sem saber porquê, pensou no Visconde e lembrou-se que seria porventura estrangeiro rico seduzido pelas maravilhas de arte expostas no catalogo do leilão, que preferisse comprar a propriedade em globo e para isso necessitasse a assignatura da viscondessa.
Tudo isto lhe atravessou o cerebro apenas no tempo preciso para se lhe dirigir perguntando o que desejava.
Muita habituada a conhecer a sociedade a que[320] pertence qualquer individuo pelo exame rapido de toda a sua pessoa, Bella constatou no olhar em que o envolveu por completo que nada faltava ao trajo, consagrado pelo figurino britannico, de um homem rico em viagem.
Não sabendo muito bem em que lingua devia fallar a um homem que o cosmopolitismo parecia ter marcado fórtemente tirando-lhe a distincção de qualquer nacionalidade, perguntou em francez o que desejava.
Elle parou, cumprimentando. Era um homem de que se não poderia bem precisar a idade porque, se o busto se endireitava n’uma arrogancia de juventude, o cabello e o bigode já grisalhos davam-lhe uma apparencia de velhice precoce.
A pelle de um amarello verdoso denunciava longos annos de vida nos tropicos, as pregas mal difarçadas junto aos olhos, de uma intelligente viveza, accusavam uma longinqua mocidade mal aproveitada em vigilias e prazeres ou esgotadoramente trabalhosa. A bocca, onde fortes dentes ainda brilhavam, tirava ao rosto toda a expressão de bondade, franzida n’um rictus de ironia.
—«V. Exc.ᵃ poder-me-ha dizer se a sr.ᵃ Viscondessa está?—respondeu no mais correcto portuguez, acompanhando a phrase do seu riso escarninho, como quem esperava gosar do espanto da interlocutora.
Mas Bella pensou:—bom, já sei que é brazileiro que deixou a patria e com ella o soutaque da pronuncia e que vive cá pela Europa muito ao seu gosto. Conheço o typo geral, tão poucos[321] existem, por cá! Principalmente em Paris, que é para todo o legitimo brazileiro o resumo das perfeições humanas, a terra promettida onde vão terminar todos os seus sonhos de ambição.—E respondeu sem se desconcertar:
—«A sr.ᵃ Viscondessa tem a mãe tão perigosamente enferma, que me parece inutil qualquer pedido de attenção. Mas se não é caso urgente, V. Ex.ᵃ esperará...
Reprimindo sob o seu eterno sorriso um gesto de impaciencia, respondeu:
—«Perdão, o caso não admitte a menor de longa.
—«Então, asseguro a V. Ex.ᵃ que minha prima não tem segredos para mim e pode confiar-me a sua pretensão. N’este momento é inteiramente impossivel obter d’ella uma audiencia.
—«Em todo o caso, repito, o que tenho a dizer-lhe não admitte delongas...
—Entraremos, pois, porque me parece que o mysterio se liga á urgencia e V. Ex.ᵃ me confiará a sua missão, subindo eu depois a communicar-lha. É o unico remedio que vejo.
—«Effectivamente...—respondeu curvando-se—não ha grande inconveniencia em dar contas a uma amiga da sr.ᵃ Viscondessa da minha espinhosa e mysteriosa missão.
Isabella baixou a cabeça e passando á frente fê-lo subir alguns degraus e entrar na sala, de que fechou cautelosamente a porta. Sentou-se junto a uma meza e indicou-lhe uma cadeira a que elle preferiu encostar-se, ficando de pé.
Tudo isto tinha sido feito com tanta serenidade e gentileza natural, tão sem sombra de[322] pretenção ou vaidade, que o estrangeiro, evidentemente apreciador e habituado a julgar os mais raros exemplares da graça feminina, não poude deixar de manifestar no sorriso o encanto que o subjugava.
—«V. Ex.ᵃ dirá...—começou Bella para terminar o silencio.
—«Não sei bem como principiar, pois é estranho, em verdade, o motivo que me traz...—disse um pouco embaraçado.
—«Em todo o caso...—sublinhou com ironia.
—«Sim, em todo o caso o tempo urge e eu não posso deixar de dizer a V. Ex.ᵃ o que vinha pedir á dona da casa. Em primeiro logar, minha senhora, é da mais rudimentar cortezia dizer-lhe o meu nome. Chamo-me Pedro de Albuquerque. Isto decerto nada lhe diz porque estes grandes appellidos andam em todas as caras cá no nosso paiz...
—«Ah! V. Ex.ᵃ é portuguez?
—«Não e sim. Sou realmente portuguez de origem, e brasileiro de adopção. Mas como qualquer dos dois paizes me agrada menos do que Paris, foi lá que fixei residencia. E foi lá tambem que conheci ha alguns mezes uma pessoa, um homem que... por certo ainda deve interessar vivamente a amiga de V. Ex.ᵃ
—«Não me parece que exista hoje algum homem em Paris que disperte interesse a minha prima—respondeu ella friamente.
—«Um homem que foi, que é ainda, porque no nosso bello paiz não ha a lei redemptora do divorcio, o seu proprio marido—continuou sem deixar o tom de ironia que lhe era habitual.
—«A minha amiga dispensa bem a liberdade conferida pela lei, sentindo-se moralmente divorciada desse homem.
—«E no emtanto, veja V. Ex.ᵃ o que são as coisas! Eu venho exactamente trazer esse homem moribundo e pedir para elle a piedade da esposa—respondeu imperturbavel.
Bella levantou-se firme, crescida de orgulho e indignação.
—«Nunca lha pedirá, senhor.
—«Pelo amor de Deus, não me obrigue a ser indelicado, insistindo...
—Não! É um abuso, uma violencia. Ha um homem que atraiçôa vilmente sua mulher, que a despreza, sendo-lhe inferior, que a sujeita a todas as vergonhas e que por fim lhe atira com o nome á lama das ruas com o descaramento de um bandido que deixa no cofre, donde roubou os valores, o seu cartão de visita...
—«Minha senhora, mas esse homem está hoje morto e o desgraçado que lhe trago não tem de familia mais ninguem, alem da esposa. É justo que junto a ella se acôlha...
—«Justo porquê? Esse homem deixou de ter familia desde que foi o proprio a despreza-la; com que direito a procura agora?!
—«V Ex.ᵃ não me deixou explicar, não é elle que pede, somos nós, os seus amigos, ou antes os seus companheiros—emendou a um gesto de Bella—que resolvemos tira-lo de Paris onde não poderia viver entregue a criados...
—«Ha muitas casas de saude onde vantajosamente o poderiam internar.
—«Oh, mas seria escandaloso, um homem[324] com o nome d’elle, tendo familia, patria, fortuna...
—«Oh o rico sentimentalismo masculino! Tudo o que elle fez, então, não destruiu aos olhos de V. Ex.ᵃˢ essas raizes que prendem um caracter leal e honesto?...—gargalhou com nervosa ironia.
—«Não seria bem feito, mas é tão vulgar...
—«Será, mas na minha opinião familia já a não tem porque a despresou e insultou. Patria já não a merece. Fortuna gastou-a com as suas leviandades. Portanto, nenhum direito assiste aos seus amigos de vir exigir da esposa um novo e doloroso sacrificio.
—«Mas, tenha V. Ex.ᵃ embora razão, moralmente fallando, o que é certo é que tambem se pode chamar uma crueldade o morrer no abandono o marido tendo a esposa fortuna...
—«Não sei o que a minha amiga faria se fosse chamada aqui, creio que seria bastante generosa para se sacrificar mais uma vez. Sou eu, comprehende V. Ex.ᵃ, eu que não quero, que não consinto que ella saiba esta traição que lhe querem fazer á sua generosidade, á nobreza do seu caracter—respondeu com violencia.
—«Perdão, minha senhora, mas sou eu que não desisto. Não sahirei d’aqui sem obter a resposta da propria dona da casa. Não posso reconhecer em V. Ex.ᵃ o direito de me expulsar—replicou, já alterado tambem, sentindo no embate de vontades crescer-lhe as violencias de um caracter energico.
—«Fallo-lhe em nome da justiça, senhor! Sei muito bem que os que vivem n’essa[325] brilhante e desvairada vida de prazeres e divertimentos, conhecem d’esta palavra só o que dizem os codigos. Mas acima d’elles ha uma ideia superior, um criterio mais justo a que não creio que o seu espirito se tenha já fechado completamente. Milhares de homens e mulheres honestas e trabalhadoras morrem por dia de miseria e de abandono, longe da patria, escarnecidos pelo destino, abandonados de todos e de tudo. E ninguem corre ansiado a protegê-los, a leva-los nos braços cuidadosamente para os ir depôr na sua patria, para lhes ir deitar a cabeça moribunda no seio das familias. E ha um homem como este, que não teve virtude nenhuma, que não fez senão mal com o seu egoismo, de quem a propria intelligencia foi na sociedade um elemento corruptor, que da vida usufriu todos os gosos, e não ha lagrimas que não repuxem aos olhos, nem lenços de fina seda que não abafem gemidos! O que o senhor e os seus amigos querem fazer, impondo á mulher esse marido, que a villipendiou é, no meu criterio, uma infamia. Oppor-me, é o meu dever.
—«Minha senhora, V. Ex.ᵃ abusa do seu sexo...
—«Pode responder como quizer, porque eu despreso tambem as conveniencias que obrigam um homem a calar uma resposta altiva a uma mulher e o deixam babujar insultos sob forma de galanteios á primeira que passa, queira ou não ouvi-los.
Subjugado, vencido, o brazileiro respondeu conciliador:
—«E, no entanto, elle está lá em baixo moribundo,[326] não contando ser recebido porque não tem já bem a noção do que se passa, mas em todo o caso devendo ser attendido.
—«E lá em cima está uma senhora, uma velhinha que era sua tia e foi-lhe mãe, na orphandade, que é a mãe de sua mulher, e a quem não respeitou os annos nem a saude. Tambem um abalo moral a poderá matar.
—«Mas n’esse caso?!... O que quer V. Ex.ᵃ que se faça?
—«Que o levem.
—«É impossivel. Para onde o levariamos agora?
—«Em Lisboa ha casas de saude.
—«Não chegaria lá. É uma crueldade!—E alterando-se de novo, n’uma violencia de quem não esperava ser contrariado, continuou—hei-de fallar á sr.ᵃ Viscondessa, não sáio sem isso. Elle é ainda o seu marido, o dono legal d’esta casa.
—«Tem razão, senhor—disse por detraz d’elle a voz maguada de Maria Helena, a quem tinha chamado a attenção a carroagem estacionada á porta e Bella altercando na sala com um desconhecido, segundo lhe dissera a criada de quarto. Descendo em seguida podera ouvir parte da discussão e comprehender o sacrificio que o destino ainda lhe exigia.
A ultima phrase do brazileiro ferira-a no seu orgulho e fôra elle quem lhe dictara a interferencia immediata.
Adiantando-se até ao grupo surpreso que os dois formavam, repetiu ao estrangeiro, frizando com ironia a phrase:
—«Tem razão, senhor. Elle é ainda meu esposo, o dono legitimo d’esta casa, o senhor da minha vontade... Pode faze-lo entrar, que eu dou ordem para ser recebido como tal.
—«Ó Maria Helena!!...—gemeu a amiga abraçando-a, com as lagrimas a assomarem-lhe aos olhos.
—«Minha senhora!—curvou-se elle, tambem vencido pela emoção.
—«Deixa, Isabella, o sacrificio ainda não estava consumado.
—«Isabella?... V. Ex.ᵃ disse?—tornou atraz o brazileiro ferido por esse nome.
—«Isabella Burns, a minha unica amiga—repetiu a Viscondessa machinalmente.
—«Ó Isabella, como te não reconheci logo?!—rouquejou o desconhecido estendendo os braços n’uma supplica.
—«O senhor?! Porque?!...
E ante o olhar apavorado do homem que a fitava n’uma agonia, Bella deu um grito, reconhecendo-o tambem.
—«Meu pae?!...
—»Sim, sim—repetia estupidificado pela surpreza, recuando esverdeado e tragico, a bocca contorcida pela amargura, o cabello empastado, o bigode descahido n’uma lamentavel decadencia physica.
—«Meu pae?!—perguntára Bella n’um grito que participava da angustia, da surpreza e da alegria. Um grito que dizia claramente o complicado drama psychologico que era n’ella a lembrança d’esse homem, muito amado no silencio do seu coração, que a sociedade lhe mandava despresar como criminoso e que a sua razão conseguira desculpar, ou mais, definir como um symbolo d’essa mesma sociedade.
Passado o primeiro instante de indecisão, e emquanto a Viscondessa, pouco attenta a esta scena, sahira a ordenar á instalação do doente e o seu cuidadoso transporte da carroagem, venceu em Bella o amor enthusiastico que em tempo lhe inspirára aquelle pae galante e pouco escrupuloso, e correndo para elle apertou-lhe calorosamente as mãos e offereceu aos seus beijos as faces molhadas de lagrimas.
—«Querida Bella, és ainda a minha filha, a mesma alma generosa, a caprichosa e louca phantasista que me adorava, o unico amôr da minha vida!...—Chorava em soluços de criança, o que lhe dava um aspecto de velhinho dôce.
—«Ainda bem que te encontro, papásinho, ainda bem!...
—«Estimas? Oh! mas então, talvez te não dissessem, naturalmente não sabes, o motivo porque te deixei?!...—inquiriu como criminoso obrigado a confessar as culpas com a certeza de ser condemnado.
—«Disseram, sei tudo... Nesse particular não me têm poupado... respondeu com amargura.
—«Pobre filha! E não me despresas, não me tens amaldiçoado mil vezes?
—«Não; antes muitas vezes te tenho lamentado.
—«E tinhas razão, que eu não fui o que quizeram dizer. Verdade seja que tambem nunca fui dos mais infelizes.—Agora que tinha a certeza da benevolencia, voltava ao riso e á ironia, de que fizera habito.—O que me magoava era estar longe de ti e saber que te arrancariam da alma o affecto que me tinhas.
—«Isso não; em casa nunca se fallou de tal.
—«O tio Burns fez de conta que eu tinha morrido...
—«Pouco mais ou menos.
—«E tu não me esqueceste, nem deixaste de me querer?!
—«E porque é que me não escreveste, papá? Porque não quizeste saber mais de mim?
—«Primeiro, não poude... Quando sahi de Lisboa levava pouco dinheiro e pouca esperança... Tambem, tinha-me prevenido, se não encontrasse no Brazil as amizades com que contava para me tirarem de embaraços e ajudarem[331] a recomeçar a vida, tinha o meu revolver com cinco tiros para o momento em que me sahisse da carteira a ultima nota de cinco mil réis. Sempre considerei essa somma a minima para dinheiro de algibeira. Depois, fui feliz, ganhei dinheiro, mudei de nome como quem muda a flôr que murchou na botoeira, e fui feliz—accentuou com sarcasmo.
—«É nunca mais pensaste em mim, não é verdade?
—«Pelo contrario, pensei sempre em ti, mas não sabia as tuas ideias e conhecia demasiadamente as do tio; tive medo de te alienar a sua protecção mais proveitosa em todos os sentidos do que a minha.
—«Como podeste estar tanto tempo sem saber de mim, sem me veres?!...
—«E no entanto tens sido tu o meu unico affecto verdadeiro no mundo. Mas, que queres, nasce-se affectivo como se nasce poeta. Os cuidados sentimentaes são a poesia do coração, e eu, minha queridinha, nunca passei de vil prosador. Este mesmo amôr que te consagro e é sentido como não tive outro na vida, creio bem que é ainda uma forma do meu egoismo. A vaidade do artista que se vê creador de uma obra perfeita, porque estás perfeita, sabes? Não te reconheceria, não! Cresceste pouco, vamos. Promettias tanto! quando te deixei eras uma mulherzinha. E estás gorda, forte—fallava nervosamente, passando com volubilidade da ternura quasi ingenua de um velho pae affectuoso, ao riso futil de um homem do mundo, dizendo banaes comprimentos a uma senhora, outrora conhecida[332] criança.—Mas que casa tão escura! Não te vejo bem, vem aqui á janella.
A filha deixava-se conduzir docilmente, encantada tambem de rehaver esse pae que tanto amara e admirara na infancia e que tanto a fizera soffrer.
Caminharam para o largo vão da janella onde tres cadeiras cabiam a par e levantando o antigo reposteiro deixaram penetrar na sala o reflexo doirado do ultimo raio de sol poente, que foi movimentar as graciosas pastorinhas que n’um grupo de velho Saxe ensaiavam um alegre baile campestre.
As talhas de porcelana China de um brilhante vidrado côr de chocolate e phantastica floração, resaltaram do fundo pallido da parede donde se dependurava, em magnifico quadro, o corpo sangrento de homem, virando para o céo um olhos de angustiada esperança, emquanto o sangue corria rubro das feridas feitas pelas frechas que se dependuravam, ou espetavam ao acaso no corpo magro de martyr.
Em baixo, os criados com infinitas precauções arrancavam de entre as mantas de viagem e traziam em braços um corpo tão emagrecido e um rosto de tão mortal pallidez, que Bella recuou suffocando uma exclamação.
—«É o Visconde—respondeu o pae á sua muda pergunta.
—«Está morto?
—«Pouco lhe falta... Um cancro no estomago. Mataram no os ultimos dois mezes de Paris, gosados com o desespero de quem se vê arruinado e... abandonado.
—«E a Candida?!
—«Dize a senhora viscondessa, como por lá a apresentava.
—«E trouxeste-o á mulher, pae!—censurou gravemente.
—«Foi uma fortuna, para te encontrar...—gracejou com leviandade.
—«Porque o deixou ella, sabes?
—«Naturalmente porque o saberia arruinado physica e monetariamente. Suppomos, porque, orgulhoso como era, não se queixou a ninguem quando chegou de Luchon d’onde ella tinha partido com um principe russo, com tantos rublos e servos como cabellos brancos.
—«Que desgosto e que desillusão para a sua grande vaidade!...
—«Não os manifestou senão lançando-se em Paris á mais extenuante vida de deboche.
—«O que não posso é attingir o motivo porque, moribundo, o tiraram de lá.
—«Resolvemos isso, os amigos e compatriotas, para honra de todos nós. Foi uma fuga aos reporters. Querias que á sua morte tudo se dissesse e publicasse n’esses jornaes ávidos de escandalos, para a gargalhada d’esse Paris que tanto se diverte da vida como da morte? Demasiadas occasiões temos lá fóra para sermos fallados... malevolamente.
—«Levassem-no para Lisboa.
—«Não chegava lá. Aqui ficamos a meio caminho, alem de querermos evitar escandalos.
—«N’esta casa, aquelle homem!...
—«Por pouco tempo, descança.
Calaram-se, subjugados pelo espectro da[334] morte que passava na sala de fóra representada pelo visconde, crescido pela extrema magreza, os braços deitados ao pescoço de dois criados, quasi suspenso, parando a cada passo apunhalado pelas dôres.
—«Acompanha-o. Eu vou a casa chamar o João e dar leite ao pequeno.
—«O João, o pequeno?!...
—«Sim, eu casei com um primo da viscondessa e temos um filho, um neto teu, é verdade...
—«Ah, mas então!? Elle tambem sabe o que fui; quererá que me falles?
—«Sabe, o João sabe tudo, nem eu casaria sem isso. É o melhor caracter que existe. Vou busca-lo.
—«Espera Bella e... e... teu tio?
—«Vive cá tambem.
—«Então?! Não me deixará estar comtigo... Deve despresar-me muito—tornou outra vez angustiado pela duvida.
—«Não sei, nunca fallámos em tal já te disse. Logo se combina tudo com o João.
A Viscondessa estava na ante-camara do quarto que rapidamente mandára preparar para o marido e era o unico que havia no rez-do-chão, o quarto da rainha, chamado assim porque uma alli dormira outrora, de passagem pela villa.
Ao fundo uma larga alcova quasi cheia pelo leito baixo de cabeceira preciosamente arrendada, encimado pelo docél doirado de que se desprendiam as cortinas em pallida seda a que o tempo amortecêra o colorido. Fóra, era a sala; forrada em seda Pompadour, decorada luxuosamente[335] no mais puro e authentico Luiz XV, o mobiliario mais do gosto do Visconde, como se as preciosidades da fórma e o florido do desenho fallassem ao seu espirito ligeiro, ainda que brilhante, falho d’aquella sobriedade e rectidão proprias a quem encara a vida a sério. E fôra um acaso, filho da commodidade, que fizera com que a Viscondessa escolhesse para o rodear na morte que se annunciava banal de soffrimento atroz, todo o brincado futil desse estylo, a desymetria na apparencia tão symetrica, a sobreposição de ornatos heterogeneos no detalhe e tão harmonicos e bellos no conjuncto, copia fiel de uma epoca e uma sociedade assombrosamente grande pelo luxo, e pelo espirito, vista a distancia, e tão pequena, tão mesquinha de preoccupações e sombria de crimes, tão estranhamente formada de caracteres frisando entre si o mais absurdo contraste. Era exactamente n’essa moldura de luxo e requintada elegancia, entre raridades que tem o seu quê de libertino pela sensualidade das suas linhas, como pelas historias galantes que suggerem, que morreria o bello homem que fôra o Visconde, fazendo da vida apenas um jogo, egoista e ambicioso, tudo e todos sacrificando ao capricho de um momento, symbolo de uma outra sociedade, menos bella e mais banal por certo, mas como a outra eivada de erros, preconceitos e crimes, como a outra vivendo atordoada pelas proprias gargalhadas e festas, sem attender á multidão que rola na sombra como vasa de esgoto, torva de dôr e de miseria, a clamar vingança.
Longe estava a Viscondessa de taes pensamentos[336] ao escolher esses quartos só porque eram na extremidade da casa, affastados dos aposentos de D. Genoveva que assim ficaria perfeitamente livre de saber o drama que tragicamente se epilogava alli.
Uma certa repugnancia a conservava affastada do marido que os creados deitavam e faziam gemer doloridamente a cada abalo, apesar de todas as precauções.
Bernardo, o mais antigo serviçal da casa, soluçava sustentando-lhe a cabeça esvaída; conhecera o desde criança, tão alegre, tão enthusiasta e generoso, e no fim de tantos desgostos dados aos seus, via-o assim voltar feito cadaver, apenas vivo para soffrer. Na angustia dos olhos sahidos das orbitas, espantados e envidraçados pela dôr, fitos com dureza nos que o rodeavam, podia ler-se com horror toda a immensa saudade da vida que nunca lhe fôra amarga.
Na apparencia serena e digna, a Viscondessa sentia no travôr da bocca o horror do momento que via approximado e que sinceramente nunca lhe desejara.
Com a previdencia das pessoas habituadas a doenças, nada lhe esqueceu, nenhum detalhe faltou á installação rapidamente feita: a lamparina para a noite, o fogão acceso para tornar habitavel essas casas longo tempo abandonadas, até não esquecera mandar chamar o velho abbade e o dr. Ramalho, como amigos fieis, sempre promptos a acompanha-la na tristeza como na alegria. E tudo ordenára com rapidez, sem precipitação e sem barulho, como ella sabia fazer as coisas.
Pedro d’Avellar, depois de ter visto a filha atravessar ligeiramente o pateo, dirigiu-se ao quarto do doente e alli se instalou, pedindo a Viscondessa que se retirasse.
Doía-lhe o aspecto d’aquella mágua, que inutilmente viera acrescentar á somma não pequena das que a vida dera já a essa mulher, que tinha como toda a gente direito a ser feliz e que da sua superioridade apenas conseguira tirar motivos para agudo padecer.
Se o egoismo fallava e o absolvia da crueldade, mostrando lhe que só assim poderia ter encontrado a filha, a mesma felicidade que d’esse encontro lhe advinha e que lhe fazia mergulhar o espirito n’um calentoso banho de ternura, adoçava-lhe o coração e fazia-o soffrer do soffrer alheio, o que n’outro qualquer momento da vida lhe não aconteceria.
O seu temperamento amolgado pelas necessidades da vida fizera-o um sceptico. Muito novo ainda, tivera que defrontar-se com as miserias e mentiras sociaes, n’uma lucta de interesses e ambições em que todos os desejos de justiça e lealdade lhe foram fenecendo, tornados ridiculos como utopias de poeta—o mais sangrento e offensivo epitheto que descobriu a soberana mediocridade para lançar em rosto a um homem intelligente que deseja acompanhar o trabalho com a iniciativa propria.—Torcendo-se sobre si mesmo como planta trepadeira que não encontra apoio, procurára no egoismo e na satyra, no orgulho e no despreso pelos outros, vasar todo o rancor e nojo que lhe inspirava essa sociedade triumphante pela hypocrisia, pela[338] banalidade, pela ausencia de ideal e pelo roubo legalmente feito.
Encontrando a filha encontrara mais do que um affecto, encontrara a propria consciencia obliterada por tantos annos vividos n’um meio que se habituara a julgar com despreso longe da patria e da familia, trabalhando pelo prazer de ter dinheiro para gastar, aspirando pela fortuna para o goso material e egoistico.
Pensando, revivia todo o passado aventuroso cortado de dissabores e luctas que para outros teriam sido a morte e que para elle não tinham passado de meros accidentes e episodios de uma historia que lhe era quasi indifferente recordar.
Na meia luz em que estava o quarto e no relativo socego em que o doente cahira, cançado pela viagem, todo esse passado revivia, toda a inutilidade da sua existencia avultava como um remorso aos proprios olhos. Fôra uma força perdida na natureza, um criminoso moral, porque não utilisara a intelligencia e a energia luctando contra o erro, mas sujeitando-se a elle, transigindo embora lhe negasse a superioridade e com o riso causticante lhe quizesse fugir á cumplicidade.
Preoccupava-o o julgamento do genro, aterrorisava-o quasi o despreso do velho inglez. O que tinha elle então, que voz era que lhe fallava de tão differente maneira?
Tão absorvido estava que não reparou que os criados tinham sido substituidos pelo velho abbade e que o medico observava o doente, que de quando em quando gemia, desesperado, não[339] reconhecendo ninguem, fallando indistinctamente nos amigos de Paris.
Só quando Bella o veio buscar para a sala, onde João e a Viscondessa os esperavam, é que voltou a si de um sonhar que lhe cavára rugas na fronte.
—«Então?—perguntou um tanto contrafeito pela duvida.
—«Vamos, o João quer ver-te.
—«O que diz?
Pegando-lhe na mão, levou-o sem responder.
João caminhou para elle, mal a mulher franziu o reposteiro e se affastou para o deixar passar. Maria Helena levantou-se.
—«Papá—disse Bella com vivacidade—este é que é o João, que te ama tanto como eu, abraça-o.
—«Se me dá licença, com que prazer o farei, João!
Foi com verdadeira ternura que os dois se abraçaram, como se o amôr de Isabella os tivesse ligado pelos mesmos laços affectuosos.
É que João tinha realisado com ella o ideal do casamento, que precisa, para dar a felicidade ansiosamente procurada pelo homem e pela mulher, que o acaso de uma sympathia physica ou de um calculo grosseiro passageiramente ligou, que os dois se completem sem se absorverem, que as almas se transmittam mutuamente o seu sentir e o seu querer, sem que o espirito e a iniciativa propria sejam absorvidas, para que o fraco se não torne o martyr da vontade do mais forte.
Pouco depois, na sala de jantar de uso intimo[340] onde a Viscondessa mandara servir, já senhora de si, n’aquelle bem estar e quasi alegria que se apodera logicamente dos que, cançados de ver soffrer, saem por momentos de junto dos doentes, conversava, contava coisas, procurava mesmo mostrar a sua graça um pouco mordente.
—«Ganhei muito dinheiro no Brazil—dizia—mas emquanto a fortuna me enchia os cofres de dinheiro suado por milhares de desgraçados, que existem para o unico prazer dos felizes, eu não philosophava sobre estas pequenas bagatellas sociaes, claro! Sonhava, como todo o brazileiro que se presa de civilisado, em voltar á Europa, em habitar Paris. Paris, minha Bellasinha—dizia descascando com subtil delicadeza uma laranja doirada, que lhe pôs galantemente no prato—é a segunda patria de todo o brazileiro que se honra. Portugal é a terra de gallegos, embora seja o dos nossos paes, embora seja a mais bella, embora seja o paiz que mais nos ama como irmãos, embora o Brazil seja ainda para o portuguez a velha terra amada, refugio de Portugal, onde se vive e fica como se nossa fosse, não a defraudando como colonisadores vulgares que, fortunas feitas, ala para suas casas! com a riqueza das terras que lhes deram asylo.
—«Ó papá, mas tu devias escrever isso, que é realmente justo, talvez se podesse fazer alguma coisa...—respondeu Bella sempre sincera, sempre misturando o idealismo com a prática.
—«Escrever para quê?! Cuidas que se convencem povos com livros?... demais, que auctoridade[341] têm os portuguezes para protestar contra a franco-mania brazileira, se é mal que de cá lhes foi no sangue?!...
—«Pois sim, mas deve-se mostrar o mau caminho para que se emendem, cá e lá. Amar a França, comprehende-se, porque tem virtudes e superioridadas para isso, mas pô la acima de nós mesmos não deve ser, até por decôro proprio.
—«Pois sim, filha, mas vae-lhes lá dizer! Ninguem te lerá, minha encantadora ingenua! Manda-lhes romances francezes, falla-lhes de Paris, dize-lhes coisas em nome do cerebro do mundo civilisado, como ridiculamente alcunharam aquella deslumbrante cidade que mais não tem que fazer senão pensar a sério em alguma coisa!... Falla-lhes d’esse Paris que se diverte e que todos por lá adoramos, e que não é o verdadeiro Paris, não é o que trabalha e pensa, não é a capital da França intellectual e superior, mas o Paris galante que se prostitue como mulher facil, o Paris que nos dá nos seus livros o requinte da desmoralisação elegante, o Paris emfim que adoram os estrangeiros, como eu, que lá vivi annos inconfessaveis de prazer illegal.
—«E durante esses annos era uma vez uma filha, não pensaste mais em mim!... Que terrivel corruptora é na verdade essa Paris!...
—«Não te riás, querida. Eu pensava em ti, pensava até muito... Confesso que não era sempre, vá lá... mas julguei-te por muito tempo em Inglaterra, feita uma bôa e forte miss tratada a bifes em sangue, serena, alegre sem enthusiasmo, flirtando como quem desempenha um[342] sacerdocio; tal qual como as innumeras misses que na minha vida tenho encontrado pelo mundo, jogando o tennys ou subindo montanhas, dançando ou lendo ingenuas novellas, montando a cavallo ou trabalhando, com o mesmo chapelinho cannotier ou boina de exploradoras, o mesmo cinto, os mesmos yesses. Confesso-te que pensando em ti talqualmente, um certo frio de douche aplacava os meus enthusiasmos paternaes.
—«Repara que me insultas, papá, nos meus fóros de inglêsa, que exactamente tem usado todos esses horrores—reprehendeu fingindo-se indignada.
João ria francamente da descripção caricatural, e a propria Viscondessa franzira os labios n’um meio sorriso.
Vendo-se applaudido, Pedro d’Avellar excedia-se a si mesmo em graça esfusiante, tendo, como muita gente de espirito, a inferioridade de o querer ter sempre, fazendo d’isso a sua obrigação social.
—«Ora tu não passas de uma inglêsa falsificada. Soubeste tirar da tua ascendencia britannica todas as vantagens e despresaste os ridiculos...
—«Obrigada pelo comprimento, papásinho!
—«Não tinha reparado que o era, e não quero que por isso te enchas de vaidade, aliás teria que me haver com a indignação de teu marido...
—«Oh! ella é incapaz de ter mais...—troçou João.
—«Então não me desacredita este homem!... deixa estar que te heide castigar!
—«Vê lá! não sejas rigorosa, que vaes contrariar as tuas theorias...
—«Ó Maria Helena tu não me defendes deste bloqueio de ironias?
—«O melhor é bater em retirada perante a força numerica.
—«É prudente o conselho. Continúa então a tua historia, papá, julgando me inglêsa vulgaris de Lynneu; não me procuraste mais...
—«Enganas-te. Um dia resolutamente embarquei para Inglaterra a procurar o tio Burns, que é como quem diz procurar-te a ti, salvo as differenças. E o que imaginas tu que me disseram por lá os importantes gentlemen inquiridos, estendendo os beiços em prolongados oh, oh!? que o tio viajava comtigo por paizes exoticos e constava até residir agora na Africa. Á volta de tão desconsoladora viagem julguei-te perdida para sempre, porque vá lá um homem imaginar em que parte do mundo, em que paiz de barbaros vive um inglês que procura commoções que lhe afugentem o spleen, e regiões ineditas para uma joven miss que conhece o globo como qualquer conhece a sua terra? Foi então que encontrei em Paris o Visconde. Não me conheceu sob a encadernação nova de brazileiro a valer, e acreditou nas minhas antigas e frequentes viagens a Portugal onde conhecia tudo. Mas como fugia de fallar na patria, poude apenas apurar que era este o paiz exotico onde o tio Burns te tinhas vindo esconder.
—«Pobre tio William, elle que nunca teve desejo de me contrariar em coisa alguma!... És injusto para elle, papá, tão bom, tão honrado!
—«Injusto?! Não sou, tenho por elle a maior consideração. E, no entanto, foi a sua feroz honradez que me precipitou no abysmo em que te perdi, Bella—respondeu com amargura.
—«Elle que te perdeu!? Não creio, é incapaz de fazer mal a ninguem.
—«Se me tivesse respondido com o auxilio a uma carta supplicante que lhe escrevi antes de irremediavelmente perdido, tinha-me salvo. Tenho um medo atroz aos homens ricos e intransigentemente honrados porque não comprehendem as necessidades alheias e chegam a ser crueis, como elle foi.
—«Quem sabe se não acreditou na extremidade em que lhe escreveste, papá?! Não o julgues pelas apparencias...
—«Emfim, aconteceu o que tinha de acontecer e não lhe quero mal, basta ter feito de ti o que és.
—«Talvez nem recebesse a tua carta.
—«Está bem, não fallemos mais n’isso; precisamos fallar do presente, deixemos o passado ao passado—e continuou no tom ligeiro do costume.—Quando soube pelo Visconde que tu vivias em Portugal, pensei em voltar a Lisboa, fazer barulho de honradez, pagar as dividas e rehabilitar-me legalmente. Isto para te poder rehaver e contar com o teu affecto, que a rehabilitação aos olhos da sociedade é-me completamente indifferente. As dividas que me pesavam na consciencia eram as que tinha a bôa gente honesta que me entregára o seu dinheiro confiando-me a sua fortuna por confiarem em mim. A esses, que não eram muitos, nem dos[345] mais altamente collocados, já mandei entregar os seus créditos acrescentados com os juros. Os outros que me entregaram os seus capitaes na crença de que a minha habilidade lhes traria lucros fabulosos, não me preoccupam. Foi a sua cumplicidade que me atirou para essa vida de desperdicios e loucuras em que tudo é justo se trouxer dinheiro; foi a sua ambição que tentou a minha e foram elles os que depois de me verem atrapalhado me saltaram em cima para que me afogasse mais depressa, foram os que, maledicentes e vis, publicaram a minha infamia, não vendo que publicavam a propria—porque homens como eu só podem existir quando existem creaturas como elles. Por isso, não me preoccupei nunca com taes crédores, nem sinto remorso absolutamente nenhum pelas suas perdas... No entanto, far-se-ha o que teu tio exigir para que eu possa viver junto de vós.
Um silencio pesado, apenas interrompido pelo serviço leve do criado que trazia o café e os licores, succedeu a esta conversa.
Bruscamente a porta abriu-se e Rosalina, a cria da deconfiança da Viscondessa, entrou, pallida e assustada, dizendo que o visconde morrera.
—«Com certeza tinha morrido—explicava atabalhoadamente—porque se levantára da cama, atirara fora as travesseiras e puzera-se em pé no meio do quarto. Depois, sósinho, affastando os que o queriam ajudar, fôra metter se na cama e deitara-se de costas, muito direito, como até ahi não podera ainda fazer. Parecia já morto...
Levantaram-se e correram ao quarto, mas[346] tudo tinha já voltado ao relativo socego de uma camara de moribundo, onde, se pode dizer, os minutos estão contados pelos gemidos.
A noite passou, e com ella os dias, porque a doença caminhava lentamente, o estomago desfazia se em veneno, n’aquelle vomito negro e sanguineo que momentaneamente allivia os padecentes; mas não tinha chegado ainda o fim.
O Ramalho provocava-lhe esse allivio momentaneo lavando-lhe o estomago com infinita delicadeza, na sua grande piedade pela dôr, soffrendo da impotencia a sciencia perante certos males que torturam a humanidade, levando-a fatalmente á morte, e contra os quaes esbarram e sabe Deus se deixarão algum dia de esbarrar, todo o saber e bôa vontade do medico.
Bella e João tinham fallado ao tio em Pedro d’Avellar, e, apesar de todo o seu passado de impolluta honradez, do seu puritanismo quasi cruel, tanta era a confiança no julgamento dos dois, que o velho inglez delegou nas suas mãos a solução do caso.
Quem sabe quantas vezes não teria o honrado velho lamentado o rigorismo que julga os outros pelo proprio caracter e não admitte as attenuantes das circumstancias, da educação, da hereditariedade, e as proprias differenças ethnographicas do meio em que nasceu e viveu o delinquente? Psycologo profundo, habituára-se a desculpar o pae observando em Bella, melhorados é certo pela educação e pela alta concepção do bem que herdara da mãe, os mesmos caracteres differenciaes que os tinham affastado primeiro, depois feito despresar o sobrinho.
O que n’um individuo lhe parecera defeitos imperdoaveis podera vê-los reviver no outro tornados virtudes.
Bella, feita arbitra da questão que mais de perto a tocava, foi de opinião que o pae se não rehabilitasse. «Para quê—dizia ella—se não é o respeito pessoal pela sociedade que o leva a isso e tão sómente o egoismo? Para que entregar esse dinheiro, ganho por um trabalho que nada lhes devia, e que iria ser esbanjado, como dinheiro de jogo, inutil ou criminosamente?
Respondendo á Viscondessa, que se inclinava pela rehabilitação, Bella opinava ainda:
—«É um preconceito, Maria Helena, e é preciso revoltarmo-nos contra elles. Não sou eu hoje exactamente o que seria amanhã se meu pae fosse proclamado a mais illibada das creaturas? O facto deu-se e a nossos olhos, de todos os que tenham consciencia, tem a sua desculpa logica. O que poderá ganhar a humanidade, com o dinheiro entregue a quem d’elle só tirará motivo de inutil goso, em existencias perfeitamente parasitarias, aos cumplices de todo o mal que o victimou?...
—«E aos que mais severamente me julgaram e abocanharam o meu nome, dize...—respondeu o pae.
—«E o que vale a honra que se compra a dinheiro, querida?
—«A Bella tem razão, prima—terminou João.—É preciso que se faça d’esse sentimento que nobilita o homem uma ideia mais alta. E é para uma nova maneira, mais humana, mais justa, e[348] menos monetaria, de a comprehender, que é preciso dirigir a humanidade.
—«A fortuna que o papá arranjou e com a qual poderia comprar a immaculada honradez, sujeitando-se a uma romantica rehabilitação, melhor poderia ser utilisada na obra de regeneração que nós intentamos.
—«Ah! Já sei, vocês querem fazer de mim uma edição barata do Lucas, do Trabalho?
—«Não te rias, papá; então não te interessas pela obra que visitaste com tanto gosto, dando conselhos e propondo modificações tão justas, e para a qual offereceste já todo o teu appoio?!...
—«Não te zangues, Bellasinha, é que ainda me não me habituei a ser um homem sério, um representativo util á humanidade.
—«Tu dizes isso, mas eu bem sei que és bom, muito bom mesmo, e que a tua alma habituada ao riso escarninho tambem conhece as lagrimas... Não é verdade que hoje choravas com o nosso Pedrito ao colo quando elle disse—pela primeira vez para ti: abô?!...—E apertou-lhe a cabeça entre as mãos dando-lhe um beijo na testa, emquanto elle sorrindo de satisfação intima respondia:
—«Não me desacredites fazendo-me passar por sentimental choramingas.
—«Não, só o que quero é que sejas sincero e que não queiras passar por peor do que és. Soffres do vicio da sociedade que se compõe de tantos Tartufos do bem como do mal... O teu luxo de espirito é mostrar-te peor do que és, confessa.
—«Tens razão. Á força de viver comvosco heide modificar-me e tenho esperança de que terei ainda no futuro a mesma crença que os anima, de que a humanidade é bôa e de que é possivel agrupar-se em sociedade, dando a todos egual quinhão de alegria e bem-estar, tendo a mentira como um crime e despresando a hypocrisia por inutil... O vosso amôr me fará um crente, fazendo-me comparticipante d’uma felicidade, que nunca tive.
N’essa noite o Visconde peorou. Já pouco fallava; era com os olhos e levantando um dedo de cima das almofadas a que se agarrava com o desespero de naufrago que se sente submergir, que manifestava o desejo de qualquer coisa.
Indifferente, desde o principio, a tudo que o rodeava, parecia não ter reconhecido a Viscondessa ou se a reconheceu o seu espirito já andava muito longe para poder ligar factos que a doença lhe tinha feito recuar até ás brumas do passado esquecido.
O que n’elle vivia ainda era a materia que se decompunha, a materia triturada pela dôr e para o goso da qual tinha vivido a existencia inteira.
Na alcova, João e o Ramalho procuravam socega-lo; junto da chaminé conversavam em voz sumida Pedro d’Avellar e o Abbade; ao pé da meza onde tinham collocado a lamparina, Isabella e a Viscondessa trocavam a meia voz algumas palavras. De quando em quando, o doente, que já não tolerava a posição horizontal, passava pelo somno com a fronte apoiada á rima[350] de travesseiras que lhe aguentavam o corpo; então calavam-se todos, obedecendo ao gesto de Bernardo que, fielmente, como animal inferior que não julga o dôno, se conservava aos pés da cama attento ao menor gesto, ao mais leve volver d’olhos angustiados.
—«Por vezes, contrastando com esse silencio como uma gargalhada n’um enterro, vinha d’uma sala proxima o retinir alegre do relogio doirado em que um velho Tempo marcava horas e quartos, batendo com um martelinho de oiro no timbre de prata, e mais triste se fazia esse velar sem esperança á cabeceira de um moribundo, que se vê soffrer na impotencia de lhe dar allivio, a não ser na morte, no irremediavel da morte, contraste da vida e sua logica successão e ao qual o espirito orgulhoso do homem procurou sempre fugir, senão materialmente porque a materia não admitte illusões, ao menos pela revolta do espirito creando a immortalidade para elle.
Uma dôr mais intoleravel acordava o Visconde d’essa rapida somnolencia, e com o soffrimento voltava um pouco de vida ao quarto em sombra.
—«Como elle soffre!—murmurou a Viscondessa.
—«Ainda o amas?
—«Não, creio bem que não, mas tenho dó d’elle, não o queria ver soffrer assim, é horrivel!
—«Vem d’ahi. O que ganhas em estar sob a pressão d’esta longa tortura?
—«Não, parece-me que estando eu aqui não morrerá tão depressa...
—«Que tolice! Para que queres que elle viva?
—«Sei lá!... É uma loucura, mas ainda penso que ha esperança...
—«Ora, Maria Helena, isso não é teu. Não sabes o que é um cancro, não sabes que o que alli está já pouco é mais do que podridão de cadaver?...
—«Sim, sei isso tudo, mas não posso ter essa visão clara e sem illusões nem esperanças que tu tens...
Passados instantes, tornou a Viscondessa:
—«O que me esperará ainda depois d’isto, Bella?! minha mãe estava hoje tão nervosa, parece que d’alguma coisa suspeita.
—«Isso sim, naturalmente é a estranhesa que lhe causa o movimento desusado cá por baixo, talvez um pouco de sobresalto pelas tuas frequentes ausencias.
—«Custa-me tanto representar serenidade quando estou com ella! Hontem perguntou-me se estava alguem de fóra cá em casa.
—«E tu?
—«Disse lhe que não estava ninguem, e não foi mentira, não é verdade?
—«Mentira... não foi.—E pensou comsigo: para ti, elle não deve ser ninguem e a magua que imaginas sentir não é a da alma ferida no seu amôr, é a piedade natural por tudo quanto é soffrer...
Uma dôr mais violenta fez o moribundo levantar-se n’uma crispação de todos os membros e os seus olhos fixaram-se no fauteuil onde já tinha passado alguns momentos, quando[352] a cama se lhe tornava intoleravel potro de tortura.
O dr. Ramalho e João levantaram-no em peso e ajudados por Bernardo assentaram-no na cadeira.
O corpo que a doença devastara e redusira a um pobre esqueleto contorcido, procurou na mais absurda posição o descanço a que aspirava; a cabeça descahiu-lhe para traz indo encontrar appoio sobre uma commoda Boule em que o Bernardo se apressara a collocar uma almofada, o tronco torcia-se e as pernas ficavam direitas, cobertas d’edredons e mantas.
Então começou o estertor, um rouquejar ansiante que já não era de vida, a bocca aberta, os olhos fixos, os dedos enclavinhando se em movimentos nervosos e inconscientes, o rosto macerado onde os beiços se arroxeavam, de um amarello de palha tão accentuado, que mais parecia mascara de morto modelada em cera velha. N’aquella hora pacificada já pela inconsciencia da morte, as linhas do seu perfil alongavam-se doloridamente, tornando-o a reproducção fiel do quadro que na sala apresentava a ultima agonia de um santo.
Ao primeiro grito de Bernardo todos se tinham levantado e acercado do grupo.
—«É escusado fazer-lhe nada,—disse o medico a meia voz—já não ouve nem vê.
—«Apertou-me agora a mão—respondeu o criado soluçante.
—«São contracções musculares independentes da vontade. Felizmente já não soffre.
O estertor prolongou-se até á madrugada, depois[353] fechou os olhos e cahiu em modorra só cortada pelo arfar espacejado. Apesar da certeza de que não via nem ouvia andava-se de vagar no quarto, fallava-se a meia voz como se o ruido da vida ainda pudesse incommodar aquelle quasi cadaver, tornado motivo de curiosa piedade para todos.
Maria Helena pensava em toda a sua vida sacrificada por elle, na sua propria mocidade agonisante, como elle, na pavorosa lucta do coração que aspira pela vida, fechado n’um corpo que se vê envelhecer... Para ella tambem já não havia mais nada, dizia-lhe a razão; mas qualquer coisa muito adentro da sua alma se revoltava e lhe fazia antever a esperança de que a vida lhe daria ainda a porção de alegrias a que tinha direito, e das quaes, avaramente, lhe regateara pequenas migalhas...
Quando o sol entrava já pela janella mal fechada, pondo raios d’oiro em todas as frinchas por onde se escapava, João abriu as portas e o quarto inundou-se de luz, uma alegria radiosa de manhã de inverno fazendo da mais leve poeira um luminoso cantico á vida.
E foi na gloria de um sol triumphante, creador, purificador e bom, que a vida deixou de alimentar esse corpo de homem que tantos odios e paixões levantára, que tantas ambições servira e que apenas deixava aos corações que o rodeavam, mais ou menos feridos pelo seu egoismo, a vulgar piedade que se tem por todo o soffrimento physico.