The Project Gutenberg EBook of Nas trevas, by Camilo Castelo Branco

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Title: Nas trevas
       Sonetos sentimentaes e humoristicos

Author: Camilo Castelo Branco

Release Date: January 13, 2011 [EBook #34952]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

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Camillo Castello Branco


NAS

TREVAS

Sonetos sentimentaes e humoristicos

 

 

LISBOA
LIVRARIA EDITORA, TAVARES CARDOSO & IRMÃO
6, LARGO DO CAMÕES, 6


1890

 

 

 

 


NAS TREVAS


 

 

 

 

Camillo Castello Branco


NAS

TREVAS

Sonetos sentimentaes e humoristicos

 

 

LISBOA
LIVRARIA EDITORA, TAVARES CARDOSO & IRMÃO
6, LARGO DO CAMÕES, 6


1890

 

 

 

 


Typ. Christovão—60, Rua de S. Paulo, 62

 

 

 

 

Á memoria immaculada do Conde de S. Salvador de Mattosinhos, consagra o author estas derradeiras pulsações da sua vida litteraria.

 

 

 

 {7}

Nota Illustrativa

No soneto XVI d'esta collecção, dirigido ao sr. conselheiro e ministro d'estado honorario Thomaz Ribeiro, a posteridade, louvando o caracter honesto d'este funccionario, invectiva indirectamente a probidade de muitos comtemporaneos d'aquelle honrado secretario d'estado. Os versos dignos de reparo são estes:

«Dirão de ti as porvindouras eras:
«Ministro pobre em Portugal!... Chimeras!
«Ou viveu farto, ou nunca foi ministro..»

Eu já respondi á posteridade injusta nas{8} paginas d'um livro provavelmente esquecido: «Maria da Fonte

«O bispo de Vizeu, algumas vezes ministro, quando estava no poder, cedia os rendimentos da mitra e não podia sustentar dois sobrinhos em Coimbra por falta de meios; e por sua morte, o espolio da guarda-roupa prelaticia eram dois pares de calças, umas muito no fio, outras com fundilhos. Antonio Rodrigues Sampaio um luctador de meio seculo, legou á sua familia um miseravel monte-pio. O conde de Thomar estava pouco menos de pobre quando o conde de Ferreira lhe legou cem contos. E a alma immaculada do gentilissimo duque de Loulé? E o austero duque d'Avila encouraçado de commendas e cruses para que o demonio dos maus pensamentos lhe não penetrasse no peito? E Rodrigo da Fonseca, rival de Passos Manuel no desinteresse? E Fontes{9} Pereira de Mello, invulneravel em pontos de honra, como Anselmo Braamcamp? Antonio de Serpa, Mendes Leal e Andrade Corvo, quando deixaram de ser ministros iam ganhar a sua vida no jornalismo e no magisterio, e saldar com esses mesquinhos salarios as suas dividas contrahidas no poder. E Lobo d'Avila, um destro gymnasta do talento que se tem dado por bem pago com a benemerita reputação de muito esperto? E Latino Coelho? um ministro que, em materia de ladroagem, só correu eminente risco de ser roubado nos diamantes do seu estylo, se se demorasse no gabinete a ler e a subscrever portarias bordalengas? E o lovelaciano Barjona, grande salteador de corações incautos e mais nada? Não se viu Thomaz Ribeiro, quando largou segunda vez a pasta, abrir escriptorio de advogado? E Lopo Vaz, que tem sahido do governo mais illibado e{10} menos martyr do que sahiu do governo da India outro Lopo Vaz, seu problematico avô? Pinheiro Chagas escreve correspondencias para o Brasil e artigos avulsos nos jornaes litterarios afim de conservar a velha freguezia dos seus admiradores. José Luciano de Castro acinge-se ás restricções de uma austera parcimonia, para educar os filhos com o seu patrimonio. Ao Conde de Casal Ribeiro perguntem-lhe por metade dos seus haveres!

*
*     *

Outro soneto que remetti ao meu amigo Thomaz Ribeiro era acompanhado de algumas quadras significativas da conformidade com que eu me recolhi ás minhas trevas como d'antes ao meu gabinete de trabalho cheio de luz.

A imprensa jornalistica, transcrevendo{11} essas singelas coplas, revelou, de par com o sentimento da commiseração, uma especie de contentamento pela ressurreição da minha alma n'este mundo escuro em que a saudade da luz faz o milagre de me representar por momentos as coisas tragicas e as risonhas da minha vida passada.

Aqui estão as quadras que eu não posso estremar dos outros versos meditados na minha longa e já agora perpetua escuridade.

     A Thomaz Ribeiro
Se cá vens jantar, meu anjo!
Dou-te o esplendido soneto,
Que n'esta data remetto,
E talvez te faça arranjo.
Uma prenda caprichosa
Dá-se em mim e não t'a nego:
É que depois que estou cego,
Já não sei fallar em prosa.{12}
Tem delicias esta cruz
Feita de pranto e poesia!
Ah! que estranha anomalia...
Quanto mais trevas mais luz!
Homero, Milton, Castilho,
Portentos d'inspiração,
Acharam na escuridão
Sóes d'eterno e immenso brilho.
Poetas epicos d'Iliadas
Temos duzias; mas eu colho
Que tinha apenas um olho
O que escreveu os Lusiadas.
Quando regressou da Persia,
Um perfeito proletario!
Touxe um olho solitario
Sempre a chorar por Natercia.
Tivesse elle olhos normaes,
Com algumas Inscripções,
Faria chilras canções
Sonetos e madrigaes.
Assentemos sem refolhos
Que não seria o cantor
Do feroz Adamastor
Se possuisse os dois olhos.{13}
Por que Deus, quando escurece
A luz brilhante de fóra,
Faz repontar nova aurora
Dentro d'alma que amanhece.
Seja pois abençoada
A Providencia divina
Que apagando-me a retina
Me fez da treva, alvorada!
Se eu tiver um cenotaphio,
Em que caibam tres palavras,
A ti te rogo que as abras
Com este humilde epitaphio:
«Venceu emfim as procellas
«E o pavor da escuridade!
«Dai-lhe a vossa claridade,
«Ó lucilantes estrellas!

O soneto relativo ao sr. Oliveira Martins não carece de prosa que o desculpe. Este eminente escriptor e fecundissimo talento sabe, ha muitos annos, quanto eu admiro as suas aptidões litterarias e virtudes civicas.{14}

Esses versos foram ditados no dia em que se esperava a nomeação de S. Ex.ª para os conselhos da corôa, onde o discreto publicista não quiz subir, para não descer.

A flecha da satyra pode alvejar certos homens porem não os fere. A couraça do talento, retemperada pela honra, é impenetravel.

*
*     *

O soneto Te-Deum Laudamus d'esta collecção necessita de esclarecimentos que me absolvam da culpa da maledicencia. Eu não tive em vista satyrisar nem sequer ligeiramente melindrar o cavalheiro protogonista d'esse inoffensivo poemeto.

Destinei enviar a um jornalista eminente o soneto com uma carta que lhe tirasse as asperesas da mordacidade. Não sei que motivo se deu para que as rimas ficassem até{15} agora ineditas. Isso não impede que os versos e a prosa sejam publicados. Dizia assim a carta:

«Considero com respeitosa admiração as faculdades civicas e os talentos do sr. conselheiro Marianno de Carvalho. Ha-de haver 15 annos que Antonio Augusto Teixeira de Vasconcellos m'o assignalou como o mais esperançoso luctador da arena politica.

«Li muitos dos seus artigos humoristicos onde achei confirmado o vaticinio do grande mestre da polemica e da critica.

«Congratulei-me com os amigos de S. Ex.ª quando, ha poucos dias, uma eventualidade auspiciosa o salvou do desastre d'um descarrillamento na via ferrea d'Hespanha.

«Assisti espiritualmente ás missas que se resaram em acção de graças por esse motivo. V. Ex.ª sabe que no amago das coisas mais serias e graves ha sempre um sedimento{16} comico, o qual, bem esgaravatado, apparece. Este meu soneto, é o sedimento metrificado em rimas ordinarias e pouco felizes. Eu me persuado que o alto espirito do sr. Marianno de Carvalho se riu das taes missas, primeiramente que eu. Essa luminosa pratica do Catholicismo, que enveste Nosso Senhor Jesus Christo da qualidade, pouco divina, de fiscal e arbitro dos desastres em caminhos de ferro, figura-se-me um contra-senso prehistorico a todas as religiões conhecidas. Seria para mim um germem de revolta e descrença na suprema justiça, saber eu que o sr. conselheiro Marianno de Carvalho saiu do descarrillamento illeso de perigo, sem uma ligeira escoriação na sua epiderme, tendo-me succedido ha 9 annos sahir d'igual desastre com a cabeça oito vezes fendida. Não me posso convencer de que Sua Divina Magestade revellasse tamanha ausencia de{17} imparcialidade, como architecto supremo que dirige as cousas do Universo, e principalmente as que em Portugal respeitam ao sr. Marianno de Carvalho e a mim, quando viajamos. Seja como fôr, desejo ardentemente que o sr. conselheiro, dando-me a honra de ler este soneto, haja por bem de o applaudir com um sorriso.»

*
*     *

O Soneto: Logica de ferro, foi enviado com a seguinte carta a um jornal que o regeitou como inconveniente e desorganisador do systema de convenções methodicas em que todos estamos mais ou menos illaqueados.

«Mande publicar o soneto que lhe envio, senão fôr hostil ás suas opiniões theologicas, em tal assumpto. Eu por mim, pendo a favor{18} do Patriarcha, padre catholico, na linha recta dos seus deveres, entre os SS. PP. e os concilios. Aquelles que invectivam o Cardeal, e ao mesmo tempo promovem suffragios por alma d'El-Rei, não digo sejam hypocritas; mas aproveitam a methaphysica do catholicismo para alardearem um espalhafato de piedade.

«O padre catholico opera convicto e por consequencia correcto. Os outros servem-se da religião theatralmente. Como quer que seja, eu me persuado que El-Rei D. Luiz I está serenamente recostado no seu leito de marmore no Pantheon de S. Vicente de Fora; e quem se lembrar da bondade da sua alma, no transcurso de 28 annos de prospero reinado, presta á sua memoria a mais sagrada homenagem com que os vivos podem suffragar os mortos.»{19}

SENTIMENTO

 {21}

I
O Conde de S. Salvador de Mattosinhos

O conde entrou no albergue arruinado
De S. Miguel de Seide. Era anciosa
A vida que eu vivia tormentosa,
Á cegueira fatal já condemnado.
Eu vi-lhe o coração bondoso e honrado
Na face ingenua e triste e maviosa;
Pulsava n'elle a nota dolorosa
Do estranho soffrimento recatado.
Chorava ao despedir-se. Era a tristeza
De me deixar na formidavel presa
Da treva, em quanto a morte a não dissolve.
Partiu chorando. E nunca mais nos vimos.
Mortos! Ao mesmo tempo, ambos cahimos
Na eterna escuridão que nos envolve.

{23}

II
Visconde de Benalcanfor

Já morto! Dilacera-me a saudade.
Não tenho mais ninguem d'aquelles dias
De ephemeras, vibrantes alegrias,
Que me illumine a escura mocidade.
Que ridente e subtil jovialidade!
Que brilhantes hyperboles fazias,
Com graça encantadora, quando rias
Dos sérios carnavaes da sociedade!
A dor de envelhecer não a venceste;
Pois que do coração sempre viveste,
Matou-te finalmente o coração.
Vencido luctador, meu pobre amigo,
Desde hontem que tu dormes no jazigo
O sinistro dormir da podridão.

{25}

III
A maior dor humana

(Na morte quasi simultânea dos dois filhos unicos de Theophilo Braga)

Que immensas agonias se formaram
Sob os olhos de Deus! Sinistra hora
Em que o homem surgiu! Que negra aurora,
Que amargas condições o escravisaram!
As mãos, que um filho amado amortalharam,
Erguidas buscam Deus. A Fé implora...
E o ceu que respondeu? As mãos baixaram
Para abraçar a filha morta agora.
Depois, um pai que em trevas vae sonhando,
E apalpa as sombras d'elles onde os viu
Nascer, florir, morrer!... Desastre infando!
Ao teu abysmo, pai, não vão confortos...
És coração que a dôr impedreniu,
Sepulchro vivo de dois filhos mortos.

{27}

IV
Luiz—O Bom

Quando El-Rei D. Luiz for accolhido
Aos penetraes da escura eternidade,
Será pungente a funeral saudade
Que mais pondera e chora o bem perdido...
Não houve em seu reinado um só gemido
De guerra fratricida! A Magestade,
Passando o sceptro ás mãos da Caridade,
Baixava ao lar sem pão, do desvalido.
Senhor! deram-te as lettras ledos dias,
E as intimas, supremas alegrias
De quem trabalha—Eterna e sancta lei!
Revives na saudade, alma serena!
Se a patria em que reinaste era pequena,
Fôras em maior reino um grande rei.

{29}

V
Lagrimas

Senhora! em vosso rosto macerado
Transluz da alma afflicta a immensa dôr!
D'um lado, a morte; do outro, o vosso Amor
Tremenda lucta ao pé do Esposo amado!
Contaes as pulsações do peito anciado
Em estos convulsivos do estertor;
Só podem vossos labios dar calor
Áquelle corpo inerte, hirto, gelado.
Vós bem vêdes, Senhora, este quebranto
Que enluta Portugal! Ergue-se o pranto,
Quando a morte do Paço se avisinha...
Pois quanto uma nação póde soffrer
Não tem o acerbo e intenso padecer
Das vossas sanctas lagrimas, Rainha!

{31}

VI
Corôa de espinhos

Das trevas d'alem-mundo o esposo amado,
Rainha, é Rei comvosco! Inda reinaes,
Que o vosso throno assenta em pedestaes
Dos corações que tendes conquistado.
Mas que delicias tem esse reinado?!
Senhora, alguma vez não invejaes
Os remançosos dias sempre iguaes,
D'um doce egoismo calmo e recatado?
Reinar!... reinar chorando a cada hora!
O vendaval da dôr que ruge fóra
E a propria dôr!... Chimeras dolorosas!
Ha tanto abysmo em flóridos caminhos...
O diadema de Christo era de espinhos!...
Sagradas sois, corôas tormentosas!

{33}

VII
Velhos problemas sagrados

Pergunta-se á divina Providencia
Que segredos são estes do Destino?
Ha vidas triumphaes: parecem hymno
Sem nota de penosa intercadencia.
Mimosas em regalos d'opulencia,
Não soffrem o revez d'um desatino:
Se o buscam, acham sempre o Velocino,
Sem medo que naufrague a consciencia.
Outros vão sobre espinhos arrastados
Pela mão da Virtude, acorrentados
Aos preceitos sanctissimos do Eterno!
Quem deu á infamia vida tão folgada?
Quem dilacera a honra? É Deus ou Nada?
Responde, Excelso auctor do meu inferno!

{35}

VIII
Rachel

Libavas, borboleta, a flôr da vida
No parque ameno d'ideaes chimeras.
Que seja amor, não sabes; mas esperas
Vencer captiva, e captivar vencida.
Chega a paixão... Retraes-te espavorida!
Saudade tens das quinze primaveras,
Em que, menina e moça, amada eras,
Sempre isenta, risonha e distrahida.
Vence a paixão... E o teu anjo innocente,
Desligado de ti, mésto e dolente,
Regressa para o ceo; mas vai chamando-te...
Não foste! És presa á minha desventura!
Em grande amor te dei grande amargura...
Fui teu verdugo, mas verdugo amando-te.

{37}

IX
Alexandre da Conceição

Bem me lembra que o vi, na juventude,
Rosado pela aurora d'essa idade.
Eram prismas d'amor e d'amisade
Os carmes do seu mystico alahude.
Sendo fatal que degenere e mude
A crença, o affecto e o bem da mocidade,
Sangram-lhe o peito espinhos de vaidade,
Nos arranques da briga azeda e rude.
Mais tarde o encontrei. Já era o homem
Ralado por desgostos que consomem,
E põem na face um gesto acre e severo.
Se o seu bondozo riso era apagado,
Restava-lhe este honroso predicado:
Prégando o Socialismo, era sincero.

{39}

X
Paciencia

Quem pode conceber que Deus creasse
Tanta obra perfeitissima, esmaltada
Pelo espaço infinito, e a desgraçada
Raça humanal de imperfeições manchasse?
Quem pode conceber o acerbo enlace
De miserias que esmagam, condemnada
A creação mais nobre, atormentada
Desde o berço até ás ancias do trespasse?
É certo que as desgraças são enormes;
Mas tu, Deus abscondito, não dormes,
Quando eu te invoco a divinal clemencia.
Ao dar-me as penas com que me torturas,
Um thesouro me deste de venturas:
Chama-se este thesouro a PACIENCIA.

{41}

XI
Veterano

Sensiveis corações, ouvi meus brados!
Nasci lá nas montanhas de Barroso.
Meu pae foi um pastor libidinoso,
Que brutalmente fez alguns peccados.
Foi minha mãe pastora de cevados.
Morreu quando eu nasci; mas tão mimoso
Que foi meu berço! um antro penhascoso...
Setenta e quatro annos são passados.
Soldado fui; servi, em Caçadores,
Dois amos, ambos elles mais peores:
Um era D. Miguel; o outro, o irmão
Metteram-me tres balas n'este flanco...
Bem me custa, arrastado, andar tão manco
De porta em porta a mendigar o pão.

{43}

XII
Scena trivial

Este homem que me vem pedir esmola,
Muito bem conheci, galhardamente
Vibrando o pingalim no dorso ardente
Dos seus nedios frisões. Fez alta escola.
Quando o fulvo ginete encaracola
E assesta o seu monoculo insolente
Nas timidas donzellas, cuida a gente
Que João Tenorio a virgindade assola!
Que descalabro é esse em que se liga
Este esqualido velho que mendiga
Ao dandy esvelto e triumphal que eu vi?!
Inquiro o desabar em tal miseria...
Responde: «Essa pergunta será séria?
«Fui rico, hoje sou pobre...»
                                        Ah! percebi...

{45}

XIII
Alcacer Kibir

Verdugo, que esmagaste a India aos pés
Eis aqui, Portugal, o que tu fôste!
Repulsivo morphetico d'Aoste...
Eis aqui, Portugal, o que tu és!
Os Gamas, Albuquerques e Sodrés,
Alçando a cruz em sanguinoso poste,
Bradam ser Christo o general da hoste,
Se os povos sangra o ferro portuguez.
Terrivel vae mostrar-se a Providencia,
Arrancando das mãos da prepotencia
A levantina raça acorrentada.
India, escrava gentil, espera um pouco...
Lá vem sobre Marrocos um rei louco...
Eis Alcacer-Kibir! estás vingada.

{47}

XIV
Jorge

Constantemente vejo o filho amado
Na minha escuridão, onde fulgura
A extatica pupila da loucura.
Sinistra luz d'um cerebro queimado.
Nas rugas de seu rosto macerado
Transpira a cruciantissima tortura
Que escurentou na pobre alma tão pura
Talento, aspirações... tudo apagado!
Meu triste filho, passas vagabundo
Por sobre um grande mar calmo, profundo.
Sem bussola, sem norte e sem pharol!
Nem goso nem paixão te altera a vida!
Eu choro sem remedio a luz perdida...
Bem mais feliz és tu, que vês o sol.

{49}

HUMORISMOS

{51}

XV
Critica do auctor

Estes velhos sonetos não rutilam
Brilhantes Documentos sociologicos,
Nem modernos processos biologicos,
Leis que os vates senis não assimilam.
Abundam lentejoulas que scintillam
Disfarçando microbios pathologicos,
Fermentações de vicios phisiologicos,
Basofias anormaes, lesões que opilam.
Escreve alguem: «Quem reina é Sancho Pança.»
Serodio D. Quixote, jámais podes
Sanar a podridão que avulta e avança.
Se os preconceitos, velho, não sacodes,
Se não deixas de ser sempre creança,
Fazem-te o que ás creanças fez Herodes.

{53}

XVI
Thomaz Ribeiro

Ao cantor de D. Jayme era ousadia
Dedicar uns insipidos sonetos,
Bem pallidos, mesquinhos esbocetos
Dos Ridiculos grandes d'hoje em dia.
A ti que illeso passas n'esta orgia,
Modesto, honrado e amado, que amulêtos
Te salvam d'estes pantanos infectos
Em que chafurda a esqualida anarchia?
Tantas vezes Governo!... E não tens pejo
De ser pobre, ó Thomaz ?... Isto que vejo
Me inspira o vaticinio que registro:
Dirão de ti as porvindouras eras:
«Ministro pobre em Portugal! Chimeras!...
«Ou viveu farto, ou nunca foi ministro!»

{55}

XVII
Remorso

Eu choro quando, ás vezes, me concentro
A meditar nas horas malogradas,
Noites de inverno, gelidas, passadas
Nos Carnavaes rhetoricos do Centro.
Convidam-me a ser socio. Acceito e entro,
Deixando solitarias, consternadas,
Três Marilias que amei! Estaes vingadas!
Remorsos me excruciam cá por dentro.
Dizia-me um dynastico-esquerdista:
«Prepara-se você para estadista?
«Aspira a ser ministro? A escola é esta.»
Pois, senhores, dez mezes decorridos,
Bom politico, em todos os sentidos,
Sahi do Centro, mas sahi mais besta.

{57}

XVIII
Te-Deum Laudamus

Vai grande barafunda lá no Empyreo!
Acaba de chegar um estafeta,
Que diz ser natural d'este planeta,
E as noticias que dá causam delirio.
Formou-se logo um luzitano cyrio;
E o Marquez de Pombal, lendo a gazeta,
Fita em Garrett a celebre luneta
E diz: «Veja, collega, este martyrio!
«O nosso Portugal tornou-se um Congo!...
«Resam missas Lisboa e mais Vallongo,
«Por que um feliz descarrillou sem damno.
«Recebo agora officio do governo,
«Pedindo-me agradeça ao Padre Eterno
«O favor de salvar o Marianno.»

{59}

XIX
7:500 contos

Finou-se em França, ha pouco, um millionario
Nascido em Portugal.—Honra é dizel-o!
Sahindo d'um cardenho de Lordello,
Foi no Brasil doutor e boticario.
Não tem seu nome algum Nobiliario;
Não foi conde sequer, ou não quiz sel-o,
Qual outro seu collega, do Restello,
E outros mais fidalgos d'Hervanario.
Seu nome é conhecido em toda a Europa;
Que um tal Nababo rara vez se topa
Com opulencia tal, mais que aziatica!
Tendo quinze milhões, soffria um mal
Rebelde ao milagroso capital...
Morreu d'uma anazarcha aneurysmatica.

{61}

XX
Lua de mel

Aquelle teu amigo de Peniche
Casou, já sabes? Com a «Celidonia»,
Horisontal, (hectaira, em lingua jonia)
De labio rubro e olho d'azeviche.
Naufragou muitas vezes no beliche
De notaveis pilotos da Parvonia;
Vogou desde Monção á Patagonia,
E, voltando, não topa onde se aniche.
Emfim, com sete filhos engeitados
E os musculos bastante escanifrados,
Pilha um palerma que jámais lhe escapa!
São noivos. Vão fazer a lua em Cintra.
Pergunta agora tu ao tal pelintra
Se a lua foi de mel ou de jalapa.

{63}

XXI
Messias

Oliveira Martins, por toda a parte,
Se augura que será novo Pombal!
Vou dar-lhe uns leves toques d'immortal
N'um soneto pomposo, primor d'arte!
Prostrada Lusitania, irmã de Marte,
Emerge d'este podre tremedal!
Levanta-te, caduco Portugal,
Que os philtros do Martins vão remoçar-te!
Ouvides estrallar o Terramoto?
O sangue dos ladrões, continuo moto,
Já faz nas praças charcos e meandros!
Ministro redemptor, não retrogrades!
Se Joaquim d'Aguiar foi mata-frades,
Sê tu, bravo Martins, mata-malandros.

{65}

XXII
Portugal Contemporaneo

Não se olvidem jámais os casos serios,
E as epicas façanhas dos Archontes!
Ó Musa da calumnia, não me contes,
D'esta luza Calabria altos mysterios.
Fulminavam-se outr'ora os ministerios,
Porque tinham ladrões; depois, o Fontes,
Rasgando á patria novos horisontes,
Exterminou os Verres deleterios.
Sumiram-se os fataes homens sinistros!
Já não são sacerdotes os ministros
Do vil bezerro d'ouro, ou da bezerra.
No tocante a ladroes, não ha nenhum;
Já não se encontram três, nem dois, nem um...
No pinhal da Azambuja e na Falperra.

{67}

XXIII
Logica de ferro

Nas bemaventuradas regiões,
Onde existe do mundo o Directorio,
Não entram almas sem, no Purgatorio,
Purgarem a peçonha das paixões.
Que são indispensaveis orações,
Em desconto das culpas, é notorio;
Dil-o Affonso Maria de Ligorio,
Confirma-o Frei José dos Corações.
Arguir de fanatismo o Patriarcha
É sandice ou má fé que excede a marca:
É não saber do Cathecismo a lei.
Se entendem que o bom Rei já vive em gloria,
De que serve essa vã Deprecatoria
De suffragios e missas pelo Rei?

{69}

XXIV
Aromas

Meu lindo Portugal, mina de heroes,
Ser teu filho é bem bom, e até bonito!
Percorre a gente as ruas sem apito,
Sobraçando os pacatos guardas-soes.
Matronas de comprados caracoes,
Que ao ceu não vão de certo com palmito,
Se, primeiro, parecem de granito,
De borracha é que são; mas é depois...
Ha povos que se nutrem só de flores,
É Camões quem o diz. Tambem Lisboa,
Vapora fragrantissimos odôres.
Mas eu não sei dizer-lhes, meus senhores,
Se os taes cheiros são coisa má ou boa:
Sei que é d'elles que vivem os auctores.

{71}

XXV
Lisboa bucolica

Na lusa Babylonia ha parvoices
Atavicas, talvez; pois bons auctores
Carimbam de sandeus os fundadores,
E chamam parvo ao seu caudilho Ulysses.
Assim começa o rol das taes tolices:
Familias vão, nos mezes dos calores,
Refrigerar no campo os seus ardores,
E haurir das frescas brisas as meiguices.
Alugam-se uns casebres purulentos,
Onde os ratos vorazes e macrobios
Esfarelam a dente os vigamentos.
Mettidas n'esses fetidos cenobios,
Depois de incalculaveis soffrimentos,
Voltam do campo cheias de microbios.

{73}

XXVI
A outra metade

Quando este corpo meu esfacellado
Baixar á leiva humida da cova,
Hão-de os jornaes carpir a infausta nova,
Taxando-me de sabio consumado.
Estalará na imprensa enorme brado,
Pedindo a resurgencia d'um Canova,
Que a morta face em marmore renova
Para insculpir meu busto laureado.
E algum dos imbecis necrologistas,
Com soluçantes vozes de saudade,
Dirá em ricas phrases nunca vistas:
«Esse genio immortal, rei dos artistas,
«No ceu pede ao Senhor que a outra metade
«Reparta por vossês, ó jornalistas!»

{75}

XXVII
Comedia humana

Litteratos! chorai-me, que eu sou digno
Da vossa gemebunda e velha tactica!
Se acaso tendes crimes em grammatica,
Farei que vos perdoe o Deus benigno.
Demais conheço a proza inflada, emphatica,
Com que choraes os mortos; e o maligno
Desaffecto aos que vivem... Não me indigno...
Sei o que sois em theoria e em practica.
Quando o avô d'esta vã litteratura
Garrett, era levado á sepultura,
Viu-se a imprensa verter prantos sem fim...
Pois seis dos litteratos mais magoados,
Sahiram, n'essa noite embriagados,
Da crapulosa tasca do Penim.

{77}

XXVIII
(Recordação dos 9 annos)
Ao visconde d'Ouguella

Nós aprendemos juntos a grammatica
Do insigne e facundissimo Lobato.
O nosso pedagogo intemerato
Nos Calafates fez resurgir Attica.
Afora esta funcção assaz sympathica
O mestre era guerreiro; e o desbarato
Que fez nos miguelistas, não relato,
Que eu da guerra civil detesto a tactica.
Devemos-lhe os segredos do dativo
E os mysterios do occulto adjectivo
E os do supino, e mais coisas supinas.
Visconde, é gratidão dizer ao mundo
Que quem nos deu o litterario fundo
Foi mestre João Ignacio Luiz Minas.

{79}

XXIX
Triumphos da eloquencia

Se o bruto (b pequeno) desalforja,
Desbragadas injurias nos comicios,
Contra argentarios, padres e patricios,
Explue nos olhos crispações de forja.
Esmurra o peito e jura pela gorja,
Que o Vaticano cai podre de vicios.
Se pede para os reis forcas, supplicios,
Hurrahs sanguineos vocifera a corja.
Este luso Rigault é petrolista;
Na lingua tem navalha de fadista;
De resto, faz pagode e rija pandega.
Está compondo agora outro discurso
Com que espera alcançar, mas sem concurso,
Ser despachado capataz d'Alfandega!

{81}

XXX
Derrocada

Ao passo que vasqueja e expira a luz
Do Templo onde, algum dia, celebraram
O Passos, e o Mousinho e os que arrastaram
Em terra estranha a esmagadora cruz,
Na imprensa, uns pugilistas, braços nus,
Uns contra os outros, rábidos, disparam
Sarcasmos, que ao diabo não lembraram...
Que linguas, sancto nome de Jesus!
O Deus dos seis Affonsos e das Quinas!
Se um vil desabamento nos destinas,
Escuta o meu sincero e ardente voto:
Faz pena este acabar quasi indecente...
Concede-nos morrer mais seriamente:
Transmitte-nos, Senhor, um terramoto.

{83}

XXXI
O ultimo romantico

O extravagante Arthur, em Compostella,
Viu desnalgar-se uma gitana Lola,
Que tocava pandeiro e castanhola,
E jurava que nunca foi donzella.
Chamava-lhe Esmeralda, ou Graziela
O romantico Arthur da velha escola;
Mas tanto na paixão carnal se atola,
Que os bens que tinha dissipou com ella.
Assim que empobreceu, Lola safou-se;
E Arthur a pouco e pouco definhou-se
Até se evaporar sem ter vintem,
A ti, que foste o ultimo romantico,
Dedico o meu, talvez, ultimo cantico...
E adeus! Se estás no ceu, porta-te bem.

{85}

EPILOGO

{87}

XXXII
Epilogo

Paroxismos da luz! tristes cantares!
Sahis da treva, em treva esquecereis!
Romanticos leitores não choreis;
Poupai-vos para os vossos máos azares.
Se navegaes por bonançosos mares,
De subito, no azul do ceu vereis
A nuvem que se rompe nos parceis
De imprevistas borrascas de pezares.
Disse Henry Heine, o cego: «Não lastimem
«As lancinantes magoas que me opprimem...
«Espere cada qual chorar por fim.»
E eu, que tanto carpi os condemnados,
Os cegos—os supremos desgraçados!—
Já lagrimas não tenho para mim!

{89}

INDICE

Pag.
Nota Illustrativa 7
O Conde de S. Salvador de Mattosinhos 21
Visconde de Benalcanfor 23
A maior dor humana 25
Luiz—O Bom 27
Lagrimas 29
Corôa de espinhos 31
Velhos problemas sagrados 33
Rachel 35
Alexandre da Conceição 37
Paciencia 39
Veterano 41
Scena trivial 43
Alcacer Kibir 45
Jorge 47
Critica do auctor 51
Thomaz Ribeiro 53
Remorso 55
Te-Deum laudamus 57
7:500 contos 59
Lua de mel 61
Messias 63
Portugal Contemporaneo 65
Logica de ferro 67
Aromas 69
Lisboa bucolica 71
A outra metade 73
Comedia humana 75
Ao Visconde d'Ouguella 77
Triumphos da eloquencia 79
Derrocada 81
O ultimo romantico 83
Epilogo 87





End of the Project Gutenberg EBook of Nas trevas, by Camilo Castelo Branco

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and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
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