Project Gutenberg's Elogio Historico do Conde de Ficalho, by Eduardo Burnay This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Elogio Historico do Conde de Ficalho Author: Eduardo Burnay Release Date: December 11, 2010 [EBook #34624] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ELOGIO HISTORICO DO CONDE *** Produced by Mike Silva
ELOGIO HISTORICO
DO
CONDE DE FICALHO
LIDO NA SESSÃO SOLEMNE
DA
ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA
EM 25 DE MARÇO DE 1906
PELO SOCIO EFFECTIVO
EDUARDO BURNAY
LISBOA
Por ordem e na Typographia da Academia
1906
EXTRACTO DA Historia e Memorias da Academia Real das
Sciencias de Lisboa,
nov. ser., Classe de Sciencias Moraes, etc.
—
TOMO XI—PARTE I
{1}
SENHORA E EXCELSA RAINHA
ALTEZA REAL
ILLUSTRES CONFRADES
MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES:
A Academia em sessão solemne, e como que na presença de seu Regio Presidente e Protector,—pois que impedido de comparecer, por motivo felizmente destituido de gravidade, se acha para todos gratamente representado por Vossa Magestade e por Vossa Alteza Real—a Academia entende prestar hoje a homenagem em divida a um dos seus mais distinctos e assignalados membros—o fallecido socio Francisco de Mello, 4.º Conde de Ficalho.
Se attendermos a que tendo elle estado n'esta Academia inscripto na sua 1.ª Classe e incorporado na Secção de sciencias historico-naturaes, como especial cultor do ramo botanico, que distinctamente professou na nossa Escola Polytechnica,—a quem mais directamente caberia officiar n'esta solemnisação seria ao nosso preclaro collega D. Antonio Xavier Pereira Coutinho, que ao Conde de Ficalho succedeu na cadeira de Botanica.
Não tendo sido possivel arrancal-o ao seu conhecido retraimento, filho de uma imperiosa e irresistivel modestia—na grandeza só comparavel á do seu realissimo merito—na verdade, qualquer socio d'esta Academia, sem distincção de classe, poderia assumir a tarefa, visto que o Conde de Ficalho, á semelhança de Latino Coelho e de Corvo, illustradissimo em quasi todos os ramos da sciencia, foi tambem, mais do que simples cultor de boas lettras, escriptor consummado.
É assim que, como a qualquer outro poderia caber, sou n'este momento o porta-voz da Academia na glorificação do seu fallecido socio, sem outro especial motivo que não seja, para mim, a razão... academica, de que tendo{2} elle, botanico, feito um dia n'esta mesma sala o elogio do chimico Antonio Augusto de Aguiar, a Chimica estaria de certa maneira em divida para com a Botanica......
É artificiosa esta invocação de um Deve e Ha de Haver em materia de panegyricos academicos?
Será. Mas amplamente corrigida fica pelo veridico, sincero, nada artificioso sentimento, que tão grato me torna prestar aqui, em nome collectivo, a um collega desapparecido, a homenagem do apreço e admiração que em vida todos lhe consagravamos, e que para mim se radicou em vinte annos de excellente camaradagem escolar.
O justo elogio do Conde de Ficalho surgiu, pode dizer-se immediato, por occasião do seu fallecimento, em todos os orgãos da imprensa, pois com elle desapparecera uma das personalidades de maior notoriedade da sociedade portugueza na ultima metade do seculo passado.
A sua complexa e brilhante individualidade pôl-a, tambem brilhantemente, em elegante relevo o elogio proferido em outro logar pelo Conde de Arnoso[1], e na Tradição[2], interessante publicação, a que o nosso consocio muito queria, e que viu a luz em Serpa, antiga villa-solar da Casa de Ficalho, um numero especial de homenagem lhe foi consagrado, com a collaboração de Ramalho Ortigão, D. Antonio Xavier Pereira Coutinho, Theophilo Braga, Conde de Sabugosa, Sousa Viterbo, e outros distinctos ornamentos da sciencia e das lettras portuguezas.
Chega mais tarde a Academia. Mas ainda não chega tarde, considerado o nosso já conhecido e descançado apego ao proverbial conceito de que quem tem pressa... vae devagar.
Mas quantos teem esperado mais... e continuarão a esperar?...
Da demora não terão, pois, á priori, de queixar-se os manes do nosso defuncto collega, se é que nas empireas regiões, onde pairam os espiritos evolados da Terra, os manes academicos ficam conservando interesse e gosto pelas coisas do nosso instituto.
Mas se essa mysteriosa telepathia atravez do Infinito existe de facto, e{3} d'isso agora tremo, de receiar é então que, em vez do infundado reparo de demasiada demora, se justifique antes, em concilio dos academicos que nos precederam na grande e tenebrosa viagem, a conclusão de que melhor fôra demorar muito mais, como para outros, a consagração a que hoje nos propomos.
Se assim succeder, só minha será a culpa, pois que, aos olhos de todos, bem patente é que no Conde de Ficalho não falta materia prima para elogio, e não só para elogio, mas para bom elogio.
Largo poderia elle ser, tantos são os aspectos, todos elles distinctissimos, da sua tão especial e superior individualidade, e tantos são os trabalhos seus dignos de detido exame e louvor.
Mas a sessão de hoje não lhe pertence exclusivamente: tem de repartil-a com o sabio Theodoro Mommsen, a quem o nosso eminente confrade Sousa Monteiro logo erigirá em aureas palavras o condigno monumento. E assim cumpre resumir-me, o que aliás faço tanto mais gostosamente quanto sempre algum proveito poderei auferir de me acolher, embora por necessidade, ao horaciano preceito, que promette maior agrado aos discursadores que não abusem da attenção do auditorio.
===
Posto isto, meus senhores, que hei de rapidamente referir da saudosa figura do Conde de Ficalho, como que presente ainda aos nossos sentidos?
Todos recordam n'este momento a sua tão esbelta figura, o seu tão donairoso porte, a sua esculptural cabeça e a fina linha do seu perfil, o seu intelligente, avelludado e piscante olhar, a sua bocca amoravel e espirituosa, a sua voz suave e clara, a expressão accentuadamente intellectualisada da insinuante physionomia, a aristocratica rescendencia de toda a sua pessoa.
Na lembrança de todos está tambem a sua singular, ou para melhor dizer plural, aptidão para tudo, e que lhe permittia desempenhar-se sempre distinctamente de quanto emprehendesse—litteraria, scientifica, artistica e mundanamente: o que, accrescido do seu saber scientifico e litterario e do peculio de noticias adquirido em visitas ás côrtes extrangeiras com os reis e principes portuguezes, tornava o seu convivio altamente interessante, sem embargo de, por vezes, com certa desegualdade de humor, que era o mas da sua normal affabilidade, se dar por seccado e falto de pachorra.
Ninguem esquece tão pouco, tão caracteristico era, aquelle patente e despreoccupado ar de satisfação, de si proprio e do seu exito na vida—de que estava longe de ser um vencido!—ar que nada se parecia com vaidade, e era{4} apenas uma especie de joie de vivre, e de que tão natural e temperadamente usava, que longe de ferir quem quer que fosse, que em si proprio ainda mais gosto fizesse, a todos parecia corrente, e antes mais inclinava para se sympathisar com esse agradavel estado d'alma, embora alheio, do que para de elle murmurar.
E, finalmente, algum mais intimo d'entre vós poderá tambem recordar na sua saudade o que n'elle havia—a despeito da sua sorridente mascara de sceptico e de certo intencional egoismo, mais intencional do que real, com o qual como que achara commodo simplificar a existencia—o que n'elle havia, iamos dizendo, de fundamentalmente bom e carinhoso para os seus amigos e de compassivo para o que de compaixão era digno.
Com um tal conjuncto de predicados physicos e psychicos, estheticos e moraes, Ficalho—assim era uso fazer-lhe abreviada referencia—Ficalho constituiu em todos os meios da sociedade portugueza, quer entre varões, quer entre donas,—que não desestimava e de que não era tão pouco desestimado—uma personalidade á parte, de especial relevo e distincção, onde quer que apparecesse, e pelo quê bem se comprehende que tantas vezes fosse utilisado para representar o Rei e a Nação em cerimonias internacionaes da maior pompa e responsabilidade decorativa, no melhor e mais alto sentido da expressão o dizemos.
Mas para nós, academicos, o que avulta no nosso preclaro confrade não são todos esses dotes naturaes, de que era o feliz, mas irresponsavel portador e usufructuario, por condição, não de acção e vontade propria, mas de simples nascimento. O que principalmente nos cabe celebrar é o que representa, na consideração e notoriedade a que chegou, a sua iniciativa na ulilisação dos congenitos apanagios que da estirpe lhe provinham, e que como que o embalaram no seu dourado berço de senhor de Ficalho e de morgado de Serpa.
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* *
Nas modernas sociedades, a maioria dos homens que hoje attingem situações culminantes na consideração publica veem de nada, ou de pouco. São self-made-men, na expressão ingleza. A necessidade é que os faz, é ella o inicial estimulo e factor do seu engrandecimento. Tal é approximadamente o caso de quasi todos nós.
Na lucta da concorrencia, ao contrario, os individuos das antigas classes aristocraticas, carregadas de glorias passadas, seculares e genuinas, mas constituidas em bases diversas das da illustração moderna, como que nascem com{5} a atrophia das faculdades necessarias para o moderno combate e propendem a decahir.
No nosso consocio o caso é todavia differente: nasce aristocrata, fidalgo de grande linhagem, illustre já no berço, mas a essa illustração de herança accrescenta outra mais effectiva, que conquista com o seu esforço, na mais democratica competencia, no concurso e na publicidade das acções por que se affirmam o merito e o talento.
Não ha duvida que de boa linhagem vinha o Conde de Ficalho, boa não só no sentido nobiliarchico do termo, mas ainda no do essencial valor.
Os Ficalhos, Mellos de appellido, proveem de Mem Soares de Merlo, um dos esforçados cavalleiros das ordens de Santiago e de Aviz, que ajudaram Affonso III á conquista final do Algarve, e de Martim Affonso de Mello, guarda-mór de D. João I.
N'estes Mellos se enraizam as casas de Cadaval, Sabugosa, S. Lourenço, Ficalho, Mello e Murça, dando á nação portugueza galhardos capitães, viso-reis, governadores ultramarinos e distinctos homens de guerra e de côrte, atravez todo o cyclo da velha monarchia.
Ao despontar, porém, das idéas liberaes, ao passo que a massa da nobreza reage e se concentra na defeza das instituições seculares, os Ficalhos vemol-os logo precocemente abraçados á nova causa, batendo-se e padecendo por ella.
E pela causa não padeceram só os homens, os quatro filhos da condessa viuva de Ficalho, D. Eugenia—Antonio, que depois foi o marquez de Ficalho; Luiz, que foi conde de Sobral; José, que na armada se distinguiu; e Francisco, que morreu conde de Mafra. Soffreu ella propria, prisioneira do governo miguelino no convento do Grillo, sequestrada de todo o conhecimento do destino dos valorosos filhos, pelo unico crime... de ser sua mãe!
Assim, com Palmella, Terceira, Saldanha, Loulé, terminada a lucta, os Ficalhos, como constitucionaes que eram da vespera, e não de simples adhesão ao triumpho liberal consummado, constituiram o nucleo da nova côrte, onde sempre permaneceram nos mais altos cargos. A torturada mãe, nomeada camareira-mór da infantil rainha, foi feita marqueza e depois duqueza de Ficalho.
Distincta raça esta dos Mellos, que em tantas das suas vergonteas, sem menosprezo de seus pergaminhos, antes de reforço a elles, mostrou comprehender que os homens valem, acima de tudo, pelo seu merito proprio e pelo de suas obras, que não pelo de seus antepassados, que apenas lhes cumpre honrar, e se esforçou em affirmar e desenvolver o valor proprio, em harmonia com o progressivo criterio dos tempos.
Para os quadros d'esta Academia deram os Mellos, em categorias varias, o seu contigente, pois na lista de socios e associados se encontram, além do{6} Conde de Ficalho, os seguintes nomes: Domingos de Mello Breyner; Pedro de Mello Breyner, regente que foi do Reino, constituinte de 1820 e fallecido nas masmoras de S. Julião da Barra; D. Segismundo Caetano Alvares Pereira de Mello, duque de Lafões; Antonio de Mello da Silva Cesar e Menezes, conde de S. Lourenço; Antonio de Mello, marquez de Ficalho. Aos quaes foi tão grato, quanto justo, associar recentemente a titulo effectivo, e como que para que os Mellos aqui tivessem sempre distincta representação, o nome de Antonio Vasco de Mello, conde de Sabugosa.
Como se vê, Francisco de Mello, que nasceu aos 27 dias de julho de 1837, filho do 2.º marquez e 3.º conde de Ficalho e da virtuosa marqueza D. Luiza Braamcamp de Almeida Castello Branco, primaria educadora de seu unico filho, e neto da duqueza de Ficalho, a prisioneira do convento do Grillo, Francisco de Mello, iamos dizendo, veiu a este mundo n'uma condição social, que, junta á independencia de fortuna e a seus sympathicos e brilhantes dotes naturaes, lhe permittia fazer uma agradavel, distincta e facil carreira na côrte e nos centros mundanos e elegantes.
Não desprezou isto, que lhe vinha como patrimonio da natureza e da familia. Mas não se contentou, e desde moço caprichou em ser tambem alguma cousa, por si mesmo, em ser o que foi: «par droit de naissance et par droit de conquéte.»
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Tinha Francisco de Mello 18 annos, quando, concluidos os preparatorios para entrar na Escola Polytechnica,—preparatorios que estudou em Serpa com a unica lição da mãe, do capellão e de um emigrado hespanhol,—ahi se matriculou em 1855. Cinco annos depois havia concluido com singular distincção o seu curso. E com tanta distincção que, tendo-se dado, ainda elle estudante, uma vaga de lente substituto na cadeira de Botanica, pela morte de José Maria Grande, e contando apenas 23 annos, a sua candidatura era acolhida com summo agrado, e, realisado o concurso em 1860, foi elle o preferido por unanimidade de votos, sendo nomeado lente substituto em 3 de janeiro de 1861. A lente proprietario só passou depois, em 27 de janeiro de 1890, pela morte de João de Andrade Corvo.
Conquistada a sua cadeira no alto professorado, podia tambem, como tantos prematuramente fazem, descançar sobre os louros colhidos, e limitar-se depois a arvorar o seu titulo de lente para vaidosa gloriola na côrte.
O sincero culto das coisas intellectuaes manteve-o, porém, sempre, e não só esforçando-se no cumprimento dos deveres escolares, mas preferindo a todos os outros o convivio dos livros e dos homens cultos que honravam o paiz.{7} E foi assim, talvez, que succedeu escolher para esposa D. Josepha de Menezes Brito do Rio, filha de D. Maria Krus Brito do Rio, cujos salões, onde se não dançava, eram ao tempo o grande centro intellectual de Lisboa.
Quem só conheceu o Conde de Ficalho nos ultimos dez ou quinze annos, com mais aspecto de mundano que de estudioso, poderia pensar que elle sempre assim fôra.
Puro engano. Assim se tornara como por uma especie de jubilação, que a si proprio se concedera cerca dos 50 annos. Mas além de que nunca desamparou os livros, e as suas ultimas publicações o demonstram, na sua mocidade fôra muito mais retrahido das mundaneidades, que aliás não estavam tambem tanto na moda como hoje, em que propendem a degenerar n'um assaz generalisado culto de deliquiscente snobismo.
Todavia, ao ser nomeado lente, não deixou de parecer extranho, e talvez espantoso, vêr-se um moço da côrte, filho de marquezes, neto de duques, arvorado professor de uma escola superior, em logar a que só se dedicam os que teem de por tal caminho fazer vida. E d'ahi maliciosos remoques e ironicos sorrisos sobre o caso, tão proprios do nosso galhofeiro meio.
Nasceu assim um dia o ambiguo dito, referente ao novel professor de botanica, segundo o qual dito elle era «lente entre os condes, e conde entre os lentes»! Maneira de se dar a suppôr que não era nem grande conde, nem famoso lente.
A formula na sua simplicidade aphoristica, e na sua contextura symetrica e alternante, não deixa de ser engraçada, e foi durante algum tempo bastante glosada, pelo seu sabor malicioso, ou simplesmente espirituoso.
Em si era absolutamente inexacta e injusta. Isto na parte de que podemos dar testemunho, e quero crer que na outra tambem. E tanto que não fez caminho.
Se entre os condes, o de Ficalho era ou não conde, não tenho qualidade para o dizer, mas no que por alto é conjecturavel, e tanto quanto d'isso é dado a simples academicos prever, é licito suppôr que se elle entre os condes não era conde, era então certamente marquez, senão duque.
Quanto a lente era-o entre os mais distinctos lentes, e não desmerecendo no confronto com elles.
Direi mais: tendo conhecido nas aulas publicas numerosos e abalisados mestres, poucos encontrei tão bem dotados para tão especial mister como o Conde de Ficalho.
Saber é uma cousa, ensinar é outra, embora o saber seja a base essencial de todo o ensino.
Não se pode ensinar sem saber. Mas pode-se saber em absoluto e não se saber ensinar. O ensino não se faz com excesso de erudição ou de criticismo,{8} sob pena de produzir inassimilavel e nocivo enfartamento, ou irresistivel repugnancia, desattenção e tédio.
O melhor professor não é o que propina mais doutrina, é o que na dose, qualidade e fórma a incute mais efficazmente. Saber do seu maior peculio de sciencia extrahir o mais essencial, esse extracto conformal-o n'um molde mais simples para que se torne mais adaptavel, condimental-o, se tanto for necessario, com observações ou exemplificações de caracter tal que tornem o assumpto mais insinuante e proprio a conquistar a attenção e interesse do alumno—sem o quê tudo é perdido—tal é a regra pedagogica fundamental.
A funcção do professor não reside por fórma alguma em ostentar erudição. Ao contrario, ha quasi sempre que fazer o sacrificio de a occultar, para não complicar o thema e o tornar incomprehensivel ou aborrecido, pois a arte do ensino, longe de ser, como alguns inconscientemente praticam, a complicação do simples, para o effeito de exhibir transcendencia, deve ser a simplificação do complicado, por vezes até á substituição das realidades naturaes pelos simples schemas ou formulas.
D'isto tem de compenetrar-se o professor. Mas não basta: importa que tenha em si as qualidades para o pôr em acção, que tenha por natureza, e n'uma palavra—faculdade e dote de insinuação.
Uma expressão nitida, rigorosa e apropriada, que permitia seguir-se com a comprehensão a exposição professoral, é indispensavel, sendo tão improprio e inconveniente o grande jogo da oratoria retumbante e carregada de phrases, como a linguagem confusa, imprecisa e equivoca.
Mas ainda não é tudo. Se a voz é deficiente ou ingrata, se a articulação é imperfeita, se o sobrio gesto que acompanha a palavra a não secunda, se os olhos não fallam com a voz e pela sua scintillação não attraem convergentemente sobre o professor o olhar e com elle o ouvido e a attenção dos alumnos—em grande parte a lição vae perdida.
Ao contrario, por completo é aproveitada se, observadas as regras enunciadas, aos dotes acima preconisados o professor reune condições de sympathia esthetica, de espirituosidade, de correcção moral e de cordialidade de trato, que lhe realcem o prestigio humano e a agradabilidade do contacto.
Tudo isto, senhores, bem o reconheceis, são considerações e previsões que se extraem da simples razão.
E, todavia, o facto é este: dir-se-ia que fomos como que photographar o Conde de Ficalho na sua aula, para d'essa photographia deduzirmos os ideaes preceitos e condições da distincção professoral.
Mas é que o Conde de Ficalho,—o conde entre os lentes,—foi sem sombra de favor o que se pode chamar um professor modelo. Ainda que assaz erudito, não puxava o ensino para transcendencias de erudição, e antes procurava{9} amoldal-o e amaneiral-o á condição dos neophytos da sciencia que professava.
E que lindo quadro o de Ficalho, com a sua garbosa e insinuante figura, na sua cadeira de mestre, deante de si a grande mesa recoberta de matizados exemplares vegetaes, empunhando um na sua tão fina e aristocratica mão, e commentando-o em palavras descançadas, harmoniosas e suaves, tão simples quanto proprias e graciosas, perante o juvenil auditorio!
Na atmosphera não havia só o perfume emanado da materia prima do ensino, havia o do encanto derramado pela palavra elegante do mestre e pela sua propria e communicativa elegancia de porte e de maneiras.
Estava-se n'uma aula, sem duvida, porque o professor não divagava para fóra da lição. Mas irresistivelmente se recebia a impressão de que se estava tambem n'uma sala, pois se preleccionasse perante as mais formosas damas da côrte não disporia o Conde de Ficalho de mais primor, de mais gentileza, de mais gosto de agradar e conquistar do que amoravelmente usava para com os rapazes de toda a condição que vinham frequentar o seu curso.
Amavam-no elles e respeitavam-no?
Sem duvida. Ainda que, não se prestando o feitio aristocratico, embora affavel, de Ficalho á familiar permuta d'essas sentimentalidades, que são a precaria base da popularidade, nem inclinando tão pouco na disciplina escolastica ás praticas corregedoriaes, que, sob a fórma de vago terror, accentuam o respeito, a impressão predominante que elle determinava era antes a de uma peculiar distincção entre os demais collegas seus, resultante de o olharem como um lente á parte—mixto primoroso e raro de homem de estudo e de homem de côrte, consorcio professoral imprevisto e maravilhoso de magister scientiarum e de magister elegantiarum.
Lisonjeiramente apreciado pelos estudantes, não o era menos pelos seus collegas, cujos trabalhos de toda a ordem partilhava e com os quaes mantinha as mais cordiaes e amenas relações. Não desamparava os conselhos escolares, nem se desinteressava de coisa alguma que importasse ao bem da Escola, e os seus pareceres eram sempre tão judiciosos quanto despidos de pretenção. Não se pode imaginar camaradagem academica, nem mais correcta, nem mais agradavel.
Isto, todos os lentes da Escola Polytechnica vol-o poderiam repetir, em corroboração do meu testemunho.
Mas não é preciso, pois que, senhores academicos, por vós mesmos o sabeis, do convivio de mais de 25 annos que aqui tivestes com aquelle cujo desapparecimento hoje saudosamente registamos.{10}
Em 7 de maio de 1877 foi elle eleito correspondente da Academia, em 19 de fevereiro de 1880 socio effectivo, e em 1897 tivemos a honra de o ter como Vice-Presidente. E durante esse assaz longo periodo, e n'essas diversas condições, o nosso instituto poude sempre apreciar, ao lado do seu grande valor academico, o conjuncto de qualidades moraes, que nos tornam hoje a sua memoria tão respeitada e querida.
Outras corporações a que pertenceu poderiam, aqui chamadas á auctoria, trazer identicos testemunhos.
Mas, repetimos, não é preciso: o seu primor moral está em todas as consciencias, e a sua valia academica demonstra-se nos seus trabalhos, na sua bella e esmerada obra.
O tempo nos aperta, mas indispensavel é consagrar a esta algumas palavras.
*
* *
A obra do Conde de Ficalho é relativamente extensa e volumosa, mórmente consideradas as prisões e distracções da côrte, em que mais ou menos esteve sempre envolvido. E, dada esta circumstancia, mais admira ainda que seja tambem, como realmente é, de tão bom e escrupuloso quilate e de tão primoroso lavor.
No campo restrictamente scientifico, como naturalista, occupou-se inicialmente o Conde de Ficalho do estudo do herbario africano, colhido em missão official do governo portuguez pelo Dr. Welwitsch, herbario pertencente a esta Academia, subsequentemente confiado á Escola Polytechnica, e de que em Londres existe duplicado.
Esse estudo fel-o conjunctamente com o Dr. Hiern, que ultimamente publicou a conclusão dos trabalhos, na qual se encontra repetidas vezes a nota collaborativa do botanico portuguez. E tambem com o mesmo Dr. Hiern publicou em 1881, em inglez, nas Transactions da Sociedade Linneana de Londres (de onde foi vertida para portuguez), a memoria intitulada On central Africa Plants collected by Major Serpa Pinto. Comprehende a nota de 60 especies, das quaes 20 foram descriptas como novas.
Concernente ainda á Africa, produziu em 1884, nos Boletim da Sociedade de Geographia, uma interessante memoria de cerca de 300 paginas, intitulada Plantas uteis da Africa Portugueza, com uma nota descriptiva e historica de 299 especies.
Da Flora Portugueza se occupou tambem, publicando, de 1877 a 1879, no Jornal da Academia, contribuições para a revisão de varias familias de plantas portuguezas do continente, e em 1899, com a collaboração de Pereira Coutinho,{11} nos deu nos Boletins da Sociedade Broteriana, de Coimbra, valioso trabalho sobre as Rosaceas de Portugal, comprehendendo a diagnose de 76 especies, relativas a 26 generos.
Mas o Conde de Ficalho não tinha o temperamento de um simples e frio naturalista. A sua tão completa e esmerada educação abrira-lhe horizontes mais largos, e o seu fundo era irresistivelmente de artista.
Assim, a maior parte da sua obra scientifica assume, não só caracter litterario e philosophico, mas uma perfeição e graça de fórma, que a torna singularmente distincta.
A Memoria sobre a malagueta, apresentada em 1878 á nossa Academia, é no genero um verdadeiro primor, onde se revela vasta leitura, excellentemente exposta, e consideraveis recursos de conhecimentos historicos, geographicos e philologicos. É modelar.
Em 1880 celebrava-se o Centenario de Camões. Ficalho consagrou-lhe tambem uma pequena monographia, que pittorescamente intitulou—Flora dos Luziadas.
É a identificação de todas as especies vegetaes referidas no immortal poema, europêas e exoticas, em numero de 52.
Trabalho essencialmente de erudição e de technica botanica, mas constituindo no conjuncto uma peça litteraria do mais gracioso lavor, nos seus tres capitulos: Flora Poetica—A Ilha dos Amores—Flora Tropical.
A Ilha dos Amores! Existe? Onde? No Atlantico? No Mediterraneo? Nos mares do Oriente?
Faria e Sousa localisou-a na ilha Anchediva. O morgado de Matheus, e outros, na ilha de Santa Helena. Gomes Monteiro na ilha de Zanzibar.
Ficalho dilucida o ponto, tão simples, quanto admiravelmente: a flora da ilha é a flora a um tempo da patria portugueza e a classica flora de Homero, de Virgilio e de Ovidio. Portanto a verdadeira situação geographica da ilha conclue elle... «é na phantasia do poeta; e não está mal collocada».
Ponto interessante tambem, n'esta engenhosa monographia de 100 paginas, é a observação dos abundantes conhecimentos que Camões tinha da flora, como de tudo o mais que ao tempo se sabia, e da precisão, propriedade e justeza com que, dentro do impeccavel metro e da perfeita rima, caracterisava a especie natural a que queria fazer referencia.
Affirmado o seu gosto e competencia para os trabalhos de erudição botanica, Ficalho estava naturalmente indicado para presidir á reedição dos Colloquios dos simples e drogas da India, de Garcia da Orta, deliberada em 1889 pela Academia.
Na India, em Gôa, onde era physico-mór, publicara Garcia da Orta, em 1563, os seus famosos Colloquios, repositorio importantissimo, embora de contextura{12} um pouco pueril na sua fórma dialogada, do conhecimento das plantas e drogas indicas, e constituindo n'esse momento o primeiro documento rigoroso, authentico e scientifico sobre a materia.
Logo em 1567, Carlos de l'Escluse—latinamente Clusius, tendo conhecido em Portugal, onde viera, o tratado do abalisado medico e botanico portuguez, o refundiu e simplificou em latim, e a esta edição se seguiram mais quatro, nos annos de 1574, 1579, 1593 e 1605.
Em italiano foi depois vertida, por Annibal Briganti, a traducção de Clusius, publicando-se, desde 1576 a 1605, oito edições.
Ha finalmente mais duas edições de uma traducção franceza de Clusius, por Antonio Collin, com as datas de 1602 e 1619.
Total: 1 edição portugueza, e 15 edições extrangeiras de imperfeitas traducções.
Em 1841 a Sociedade de Sciencias Medicas chamava para o assumpto a attenção dos poderes publicos, pedindo a reimpressão dos Colloquios, de cuja primeira edição eram já preciosamente raros os subsistentes exemplares, e recorria á intervenção de Fr. Francisco de S. Luiz e de Garrett. Ambos fizeram á idéa o melhor acolhimento, e por portaria de 27 de maio de 1841, assignada por Rodrigo da Fonseca Magalhães, se determinou a reimpressão dos Colloquios, sob a direcção do conselheiro João Baptista d'Almeida Garrett.
Não teve andamento este tentamen, e é só em 1872 que Varnhagen, visconde de Porto Seguro, nos dá uma 2.ª edição da obra de Garcia da Orta. Para se occupar d'este trabalho era sem duvida competente Varnhagen, mas, ou porque o não pudesse acompanhar, ou por qualquer outro motivo, a nova edição sahiu com bastos erros, uns trazidos da primeira, outros novos, e desacompanhada das necessarias elucidações.
Foi isto, sem duvida, que motivou a deliberação da Academia, encarregando o Conde de Ficalho de levar a cabo uma nova edição dos Colloquios, devidamente apurada e commentada.
A escolha não podia ter sido, a todas os respeitos, mais acertada, pois os dois volumes eruditamente annotados dos Colloquios dos simples e drogas da India, com o antecedente volume que lhes serve de introducção—Garcia da Orta e o seu tempo, ficaram constituindo, no total das suas 1200 paginas, um verdadeiro monumento classico, um trabalho magistralissimo em toda a parte.
Foram as leituras feitas para a confecção do admiravel prefacio historico dos Colloquios que deram mais tarde ao Conde de Ficalho a idéa e lhe propiciaram os fundamentaes elementos para o livro que a esse trabalho se seguiu—as Viagens de Pero da Covilham. De Pedro da Covilham, que á India foi dez annos antes de Vasco da Gama, de cuja empresa foi como que preparante,{13} e que mais de trinta annos passou na mysteriosa Ethiopia, junto do quasi fabuloso Preste João.
«Este pero de covilham, escrevia o P.e Francisco Alvares, é homem que todas as cousas a que o mandaram soube e de todas dá conta».
Ficalho commenta eloquentemente, no fecho do seu bello volume:—«Mandaram-no procurar a pimenta e a canella, quando ninguem nas nossas terras occidentaes sabia d'onde aquellas especiarias vinham; e elle foi, e encontrou o caminho, e chegou á India, e não se contentou em ir á India, foi tambem a Sofála. Mandaram-no ao Preste João, quando ninguem conhecia a sua morada, nem quasi em que parte do mundo tal morada se encontrava; e elle foi, e achou o Preste João, e fez-se amigo da avó do Preste João, e acabou pela convencer que devia mandar uma embaixada a Portugal. Todas as cousas a que o mandaram soube, e de todas deu conta».
É um minusculo specimen do estylo e maneira de Ficalho, mas que bem retrata as suas qualidades de simplicidade, de relevo, de gosto e de alma.
A obra scientifica do Conde de Ficalho accrescenta-se finalmente com a excellente introducção, admiravel quadro da economia rural portugueza, como diz Pereira Coutinho, com que enriqueceu o grosso e compendioso volume, que o governo portuguez enviou á Exposição internacional de Paris, de 1900, com o titulo—Le Portugal au point de vue agricole.
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* *
Na pura litteratura, que nos deixou o Conde de Ficalho?
Escreveu o nosso consocio, o conde de Sabugosa, que elle distinctamente versejava na inspiração acidula de Baudelaire e na dolente cadencia de Musset. Para publico,—além das suas admiraveis Notas ácerca de Serpa e do seu erudito estudo sobre O elemento arabe na linguagem dos pastores alemtejanos, tudo constante de numerosos artigos na Tradição, só veiu, em prosa, um volume de novellas e contos, em 1888.
Mas na sua mesma simplicidade, que primor de concepção, de observação, de analyse, de execução, e que revelação de talento romantico, n'esse delicioso volume, em que se encontram: Uma eleição perdida.—A caçada do malhadeiro.—A maluca d'A dos Corvos.—A pesca do savel.—Os cravos.—Mais uma!
Penitencio-me de só agora os ter lido, esses deliciosos contos a que se não fez reclamo, e é doce penitencia, que a todos que se achem no mesmo peccaminoso caso muito recommendo, para accrescerem de mais um motivo a sua admiração e sympathia pelo Conde de Ficalho.
A leitura d'esses contos, episodios todos referentes á terra alemtejana, com um profundo sabor regional, é um verdadeiro e saudavel goso.{14}
O auctor revela-se, como de prever, naturalista, mas de temperamento e sentimento seu, proprio, e não de escola. Inspira-se, como homem de sciencia, na verdade, mas sem a conhecida predilecção dos corypheus do realismo para os seus aspectos mais ou menos monstruosos e deprimentes, e antes propendente ás conclusões sentimentaes, felizmente não extranhas á natureza humana, e que moralmente a elevam e sublimam.
Na primeira e mais importante das novellas—Uma eleição perdida, no fidalgo Julio d'Azevedo julga-se a principio vêr despontar uma especie de parente de Carlos da Maia, o brilhante e amoral protogonista do famoso romance lisboeta de Eça de Queiroz, mas o desengano vem com commovido aprazimento do leitor. Julio d'Azevedo, coisa menos vulgar na litteratura realista, não é neurasthenico, nem nevrotico, nem degenerado, mesmo superior. A physiologia não se impõe n'elle acima das exigencias da dignidade humana, que prevalecem. Tem sentimentos, tem disciplina moral, e o episodio simples e casto do seu vago e doce enleio com a tão timida e rendida Margarida, a filha do entrevado escrivão Pascoal, o passarinheiro da meninice de Julio, mais de uma vez, pelo seu encanto tão singelo e irresistivelmente sentimental, nos humedece as palpebras.
Que revelação esta, e tão inesperada: Ficalho, juntando a tantas outras faculdades a de um enternecimento tão subtilmente communicativo...
Não ha duvida! Debaixo da sua mascara de impassivel homem do mundo havia, como sempre o disseram os seus amigos, um coração, humanissimo malgré lui, de honesta e bondosissima textura, e á piedade filial, dos que dignamente lhe ficam representando o aureolado nome e conservando sua resplendente memoria, será certamente grato observar n'este momento que em seu elogio a Academia não esquece o registo d'esses dotes de sensibilidade, que á saudade são sempre os mais caros.
Não posso alongar-me em considerações sobre a pequena, mas linda obra litteraria de Ficalho, representada no volume de contos a que acabo de fazer referencia, e que se poderia, de certa maneira, pelo seu caracter regional, por, sob o titulo de Novellas do Alemtejo, em parallelo com as Novellas do Minho de Camillo. Mas peço licença aos meus collegas da classe de Lettras d'esta Academia para, em fórma de fecho a este capitulo, summariamente aventar que, a avaliar pelos fulgurantes rastos e signaes que nos deixou, se o Conde de Ficalho se houvesse consagrado á extreme litteratura, n'ella deixaria um nome singularmente assignalado para a gloria das lettras portuguezas.
E é tudo, senhores?
Não. No seu espolio scientifico e litterario, affirma-o o conde de Arnoso no seu bello Elogio, deixou o Conde de Ficalho estudos sobre Correia da Serra,{15} sobre a Flora portugueza, memorias ácerca do Clima de Portugal, das Feculas alimenticias e da Flora fossil, numerosissimas notas historicas, anthropologicas e linguisticas, alguns contos, entre os quaes Cartas do Campo, o Jornal de Fulano, poesias, e até uma peça de theatro.
Mais. Além de escriptor, temos tambem Ficalho—orador, pronunciando o elogio de Antonio Augusto de Aguiar, abrindo o Congresso portuguez de medicina, por occasião do tricentenario do descobrimento do caminho maritimo da India com uma conferencia intitulada O descobrimento do caminho para a India e a Materia medica, dissertando na Sociedade de Agricultura e em outras agremiações intellectuaes.
E temo-lo tambem orador politico, proferindo na Camara dos Pares os seus memoraveis e exhaustivos discursos sobre a invasão do phylloxera e sobre o regimen cerealifero.
Fallava como escrevia, com a mesma correnteza, propriedade e elegancia, e na tribuna tambem o seu distincto porte physico soberanamente o realçava.
E já que á politica fiz referencia, cumpre registar que mais de uma vez foi convidado para ministro. Fontes, Bocage e Hintze Ribeiro debalde insistiram com elle. Recusou sempre, com premeditada e intencional obstinação.
Chega hoje isto quasi a não acreditar-se: ter existido, vivo e palpavel, sem defeito, um portuguez que não queria ser ministro!
Vê-se que o nosso consocio, quando se lhe proporcionava a occasião, não se lhe dava de cultivar tambem... a excentricidade.
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O Conde de Ficalho, meus senhores, como heis visto, foi distinctamente tudo quanto quiz ser, com muita gloria para si e muita honra para o seu paiz.
Trouxe do berço opulentissimos dotes, pelo seu esforço admiravelmente os multiplicou, mas em tudo tambem a sorte liberalmente o favoreceu na vida.
Foi tudo quanto mais eminentemente se pode ser.
Na côrte foi mordomo-mór; na ordem politica, par do reino, conselheiro de estado, embaixador extraordinario; na sciencia e nas lettras, lente e academico; na esphera mundana, um verdadeiro arbitro, cujos varonis e encantadores predicados, mais de uma vez—estamos em conjectural-o, como academicos, a quem nenhum interesse humano pode ser indifferente,—mais de uma vez, iamos dizendo, teriam, na longa e brilhante carreira do nosso consocio, posto em doce palpitação intimos anceios de frageis e commovidos corações.
Mas fidalgo ficou sempre e homem de côrte, superior ás avidas ambições{16} da epocha, hostil aos equivocos e promiscuidades a que taes ambições conduzem, considerando-as absolutamente incompativeis com a sua condição no serviço real, e com o bom gosto com que sempre primou em desempenhal-o, junto d'El-Rei D. Luiz, de saudosa memoria, e junto de Sua Magestade El-Rei D. Carlos, que por esse e pelos seus demais meritos tanto e tão justamente o apreciava.
Ninguem o invejava, estava como que—hors concours, e antes todos se compraziam no convivio social, proximo ao longinquo, d'aquella especie de compendio vivo de meritos e elegancias.
Na sociedade portugueza, mórmente na capital do reino, tinha uma evidencia e notoriedade especiaes, em que prestigio, sympathia e curiosidade se confundiam, e assim quando um dia, o da chegada da Real Familia dos Açores, correu a noticia de que o Conde de Ficalho fôra acommettido de um deliquio no Arsenal, houve um primeiro sobresalto.
Pouco depois o facto repetia-se, e logo a má nova se espalhou que a sua saude estava gravemente compromettida, que o seu robusto organismo se achava ferido de morte, na trama nobre e aristocratica por excellencia da humana textura, no systema nervoso.
Começou-se a reparar n'elle. Retezava-se contra o adversario, mas a tristeza invadira-o, e transparecia na fórma de uma maior affectuosidade. O andar tornara-se incerto e mal equilibrado, da espinha o mal subia ao cerebro, e na falla, no olhar, no pensamento, havia preludios timidos e fugazes, mas irrecusaveis e fataes, de incipiente inconsciencia e desvairamento, que a todos infundia a maior tristeza.
Ambulava, articulava, mas já não era o Conde de Ficalho. Estava vivo ainda, mas era peor do que se estivera morto.
Não era elle. Era o seu phantasma, de dolorosa e arripiante visão!
Felizmente para elle, felizmente para todos, o angustioso espectaculo do progressivo desmoronamento d'aquelle privilegiado e scintillante exemplar humano não se prolongou muito. Retido finalmente pelos progressos da doença no seu Palacio dos Caetanos, onde nascera, e onde a filha unica que lhe restava o fôra carinhosamente acompanhar, arrebatado por uma congestão, no dia 19 de abril de 1903 deixava de existir o nosso consocio, e de tão perfeito ser, de tão meritorio homem e de tão brilhante existencia—só restava um despojo material, a accordar mais uma vez para as mundanas meditações os echos da sempre tremenda palavra do Ecclesiastes:
Vanitas, vanitatum et omnia vanitas!...
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{17}
Mas será tudo vaidade, meus senhores, na existencia do homem, desde os dons da Natureza, os felizes acasos da Fortuna, até á propria Virtude e Sabedoria, como desoladamente o proclama o desabusado e penitente Salomão?
No ponto de vista individual, considerada a pequenez e fragilidade das mais assignaladas acções terrenas perante a eternidade dos destinos fataes, tudo é vaidade, que se desfaz em pó, cinza, nada, e ao termo da aspera jornada o mais afortunado e glorioso viandante a si mesmo pergunta—Para quê?
Mas não nos elevemos a tão altas conjecturações, não fitemos o Infinito, cogitemos, como academicos, singelamente dentro da esphera dos interesses terrenos, na orbita das benemerencias sociaes.
É tudo vaidade, e do que foi o Conde de Ficalho, só resta realmente uma imagem brilhante, que no seu mesmo brilho com vaidade se confunde?
Não quererieis, illustres collegas, que eu o dissesse, e não o digo.
Do Conde de Ficalho fica a sua obra, em muitos tomos valiosissima e perduravel, e fica, n'um aspecto mais transcendente—um exemplo e uma lição.
Não é licito apoucar em ninguem o merito de por seu esforço se elevar no saber e na consideração, seja a necessidade ou a ambição que o estimulem. O facto é todavia normal, physiologico, e constitue a banal e natural condição do progresso social.
Mas um tal merito sobreleva indiscutivelmente em quem, nascido sem necessidades materiaes, já do berço com logar marcado nas primeiras bancadas da hierarchia social, usufruindo-o por condição de nascimento, esse apanagio o corrobora como que pela conquista, affirmando esforçada e democraticamente meritos proprios, sufficientes para lhe alcançarem, fóra de todo o privilegio, eminente logar na consideração publica.
É bem caracterisadamente este o caso do nosso consocio, o Conde de Ficalho.
O terremoto constitucional de 1834, como terremoto que foi, destruiu ainda mais, do que se edificou. A nobreza soffreu ahi um profundo e talvez excessivo golpe, que a ulterior suppressão completa dos vinculos veiu tambem excessivamente consummar, e d'ahi começou o desmoronamento das grandes e tradicionaes familias, que eram como monumentos da historia de Portugal, pelo esforço de cujo sangue a nação se constituira, se mantivera e engrandecera, e que deviam ser salvaguardadas, como elos preciosos entre o Passado e o Futuro, a affirmarem a continuidade e indissolubilidade da gloria nacional.
Tomadas de surpreza, sem preparo para as competencias da nova ordem social, as classes nobres esmoreceram, e entrincheiraram-se—os que ainda o podiam, n'um altivo orgulho, os outros na desolada, inerte e mortifera contemplação{18} das suas tradições, preferindo depois ao trabalho energico e á lucta porfiada, para que não haviam sido educados, as magnanimas protecções, a que tantos se viram obrigados.
Não comprehenderam o novo mundo, que ante elles, de facto, se abria. Não comprehenderam que as arvores de sua nobre linhagem, em cuja triste e vaidosa contemplação puerilmente se quedavam, eram, na nova ordem de cousas, apenas inefficazes diplomas de grandezas passadas, arvores mortas, emquanto elles, pelo esforço e merito proprio, e no novo criterio das supremacias sociaes, lhes não reverdecessem as folhas e lhes não reinflorassem os ramos.
Alguns raros o attingiram, e o Conde de Ficalho, agora sagrado pela morte e entrado já na posteridade, sem quebra da nobreza do seu nome, antes com summo realce para elle, admiravelmente os symbolisa.
Não ha aqui, senhores, uma soberba lição, um experimental exemplo e um irrecusavel estimulo para que os netos dos que galhardamente combateram pela espada procurem manter a fama dos avós nas competencias modernas do merito intellectual e scientifico, aquelle que hoje em dia todas as portas abre, a todos os logares dá accesso, e em egual consideração chega a confundir e irmanar, nos fastos gloriosos d'uma nação, testas secularmente coroadas, como Luiz XIV, o Rei-Sol, e simples filhos do povo, como Luiz Pasteur, de immortal e benemerita memoria?
A aristocracia moderna, ia quasi dizer a aristocracia democratica, é a da sciencia e das lettras, a do talento. Só esta é universalmente irrecusavel, no tempo e no espaço.
Monarchas e principes não só a veneram, mas n'ella se comprazem em incorporar a magestade de sua alta condição, como tambem n'elles proprios estimam fundar a consagração de meritos pessoaes, que perante o mundo lhes realça a herdada primazia.
Não, a aristocracia intellectual não é incompativel com a do nascimento e da tradição, de que é antes conservadora e engrandecedora. E bem o demonstraram tambem, em exemplo ainda mais subido e frisante, que é da historia, e que á cortezia, e á justiça, é grato aqui recordar, os «altos infantes», que se chamaram—os principes d'Orléans.
—
Tal é, senhores, a lição que se extrae da vida e obra do Conde de Ficalho, que a Academia hoje glorifica entre os seus mais distinctos ornamentos.
E não destoa ella certamente n'este instituto, fundado em 1780 por D. João{19} Carlos de Bragança, duque de Lafões—qui mores hominem multorum vidit et urbes, e ao qual, com duplo e prestigioso titulo, preside—Quem, por nativo direito investido em tal funcção, por direito scientifico teria egualmente logar aqui, entre os academicos, que pela unica affirmação de algum valor ou esforço proprio conquistaram o seu ingresso n'esta casa.
Disse.
[1] Conde de Arnoso.—Elogio do Conde de Ficalho. Lido na sessão especial da Sociedade de Geographia de Lisboa, em 19 de maio de 1903.
[2] A Tradição.—Revista mensal de ethnographia portugueza, illustrada. Vol. V, n.os 6, 7 e 8.—Artigos de: Ramalho Ortigão, D. Antonio Xavier Pereira Coutinho, A. R. Gonçalves Vianna, Conde de Sabugosa, Alberto Pimentel, Dr. Theophilo Braga, Dr. Sousa Viterbo, Dr. Candido de Figueiredo, Manuel Ramos, Conde de Arnoso, Dr. Graça Affreixo, Dr. Thomaz de Mello Breyner, D. João da Camara, Pedro A. de Azevedo, Julio de Lemos, Costa Caldas, José Orta Cano, D. Antonio de Mello Breyner, Dr. Ladislau Piçarra e M. Dias Nunes.
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