The Project Gutenberg EBook of Julio Diniz, by Alberto Pimentel This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Julio Diniz Esboço Biographico Author: Alberto Pimentel Release Date: April 28, 2010 [EBook #32156] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK JULIO DINIZ *** Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search)
ESBOÇO BIOGRAPHICO
JULIO DINIZ
(JOAQUIM GUILHERME GOMES COELHO)
ESBOÇO BIOGRAPHICO
POR
ALBERTO PIMENTEL
PORTO
TYPOGRAPHIA DO JORNAL DO PORTO
RUA FERREIRA BORGES, 31
1872
{5}
Ao cómoro do athleta, que cahiu fulminado pela morte, não deixarão d'ir, em piedosa romagem, com as flores da saudade, os que mais d'uma vez lhe viram lampejar as armas impollutas ao sol da gloria litteraria. É um dever e um desafogo esta visita ao tumulo d'uma realeza que se extinguiu para os homens do seu tempo, mas que deixou após si um rasto luminoso no qual ha de reviver atravez das idades futuras. E tanto maior dever é, e tanto maior desafogo se afigura, quanto é certo que a litteratura portugueza, que parecia preparada para longa vida depois da fecunda revolução do romantismo, está vendo rarear dia a dia as suas fileiras, já porque a morte lh'as dizima, e já porque a politica lhe vem roubar com mão sacrilega os mais denodados legionarios para lh'os amollentar na vida regalada dos encargos parlamentares e diplomaticos.
Cada vez se vão multiplicando as perdas e as deserções, e todavia não se enxerga ainda no oriente o primeiro alvor d'uma aurora de redempção, que prometta trazer novos apostolos e novos soldados, novos elementos de vida, n'uma palavra, para o futuro das lettras patrias. Vejamos se é isto verdade ou se não passa d'uma asserção gratuita.{6}
Percorramos, ainda que com o coração cheio de magua e os olhos marejados de lagrimas, os fastos da litteratura moderna. A cada passo, ao folhearmos tão triste necrologio, encontraremos uma pagina tarjada de lucto a recordar um talento que se apagou. Para logo se nos deparam os nomes illustres de Lopes de Mendonça, de Soares de Passos, de Coelho Lousada, de Faustino Xavier de Novaes, de José Freire de Serpa, de Arnaldo Gama, de Rebello da Silva, de Gomes Coelho, e de quantos outros que nos não lembram agora! As deserções são por igual numerosas, mas, visto que escrevemos no Porto, contemol-as apenas intra muros e recordemos alguns litteratos que se secularisaram, José Gomes Monteiro, Augusto Luso, Alexandre Braga, e muitos outros que se dariam já por affrontados se rememorassemos a sua velha familiaridade com as musas. O mesmo aconteceu com o snr. Alexandre Herculano que, segundo parece, trocou definitivamente as lettras pela agricultura.
Este mesmo pensamento já o snr. visconde de Castilho o deixou apontado na Conversação preambular que abre o D. Jayme: «Dos nossos poetas, diz elle, que tantos e tão viçosos pullularam sempre ao bafo benignissimo d'estes ares, quantos apontamos hoje em dia? Morreram uns; envelheceram outros, que é peior maneira de morrer; outros secularisaram-se para os negocios; outros desertaram para a politica; não poucos succumbiram á epidemia da inercia, e jazem, sobreviventes a si mesmos, sobre os seus proprios nomes, como estatuas sobre tumulos, armadas mas inertes.» Raros são pois os que, infatigaveis, se conservam ainda abroquelados para os mais galhardos torneios do pensamento, como que zombando da idade, que é enfermiça e cobarde o mais das vezes.
O author das linhas que deixamos citadas, o snr. visconde de Castilho, todo se enleva ainda no doce poetar da sua lyra, vasando no suavissimo rhythmo da lingua portugueza as mais formosas obras primas da litteratura extrangeira. Não ha de certo em paiz nenhum mais abundante e prestimosa velhice.
O snr. Castilho é mais do que um traductor;—é um{7} nacionalisador. Rir-se-hão da sua gloria os meticulosos, dizendo que é crime de lesa-magestade o pôr mão reformadora nos monumentos artisticos. Será. Mas o que é, em verdade, muito para louvar e agradecer, é que um litterato portuguez esteja dando á sua patria um Anachreonte que ella não tinha, um Moliére que lhe faltava, e um Goethe que lhe não dera Deus.
Camillo Castello Branco é realmente um escriptor incansavel, que tem enfermado na faina das lettras, e que n'ella espera morrer, como aquelles guerreiros legendarios, de que falla a historia nacional, que só largavam da mão a espada, quando a morte lhes desnervava o braço.
Julio Cesar Machado sustenta, ha longos annos, as boas tradições do folhetim portuguez com uma graça e uma delicadeza que fazem ainda suppôr que elle não completou siquer vinte e cinco annos.
O snr. D. Antonio da Costa tem sido, é, e será sempre o apostolo convicto da suada obra do bem, o propagador nunca esmorecido d'essa grande verdade chamada instrucção nacional, que aos espiritos mais levianos de Portugal se afigura ainda, e Deus sabe por que tempo se afigurará, infelizmente, uma formosa utopia de ministro poeta.
Pinheiro Chagas é d'estes combatentes válidos e corajosos, que nunca desanimam nem fraquejam nas campanhas litterarias, posto que seja muito para receiar que a politica, que já lhe franqueou as portas de S. Bento, venha um dia a adormecel-o na indolencia dos seus braços perfidamente voluptuosos.
Poderá causar reparo que não citemos o nome do snr. Mendes Leal; mas s. exc.ª, envolvido em negocios diplomaticos presentemente, só de longe a longe apparece na imprensa ou desobrigando-se de encargos academicos ou modulando um carme fugitivo que mais saudades nos deixa da sua lyra poderosa.
O snr. Manoel Roussado, hoje barão d'este nome, e que era aliás um folhetinista de muito espirito, sahiu de Portugal para exercer no extrangeiro um consulado, quando o visconde Ponson du Terraiil lhe começou a{8} disputar tenazmente o rez de chaussée do Diario Popular. São portanto tres ou quatro os lidadores que estão em campo, e que ahi recolhem os louros do triumpho, sempre que sahem a provar a fina tempera de suas armas. Outros ha, como João de Deus, Anthero de Quental, Pereira da Cunha, visconde de Benalcanfor (Ricardo Guimarães), Teixeira de Vasconcellos, que, talvez enojados d'esta alluvião de versões a tostão o volume e de questiunculas de fanatismo religioso e politica bichosa, raro dão mostras de vitalidade litteraria.
Intencionalmente deixamos para o ultimo logar o snr. Theophilo Braga, por se nos afigurar que, escrevendo a Historia da Litteratura Portugueza, está traçando o epitaphio das lettras patrias cuja nova historia só uma outra renascença, proxima ou remota, poderá reatar. Procurando as causas etyologicas d'esta crise litteraria, não seremos dos que só attribuem o mal aos romances abstrusos de Ponson du Terraill, á influencia nociva da sua eschola realista, e ás operetas d'Offenbach, mas sim dos que lançam a culpa a esta epocha revolucionaria e anormal que está collocando a Europa toda sobre a cratéra d'um vulcão que tem já vomitado as primeiras lavas.
Não queremos ser prophetas da historia e aventar em que periodo e sobre que zona geographica rebentará primeiro a medonha erupção. Ha de vir, infelizmente acreditamos que ha de vir, mas não sabemos quando. O que é porém certo é que esta ebullição politica europea tem affectado sobremodo as litteraturas. A França, que d'ha muito ia sempre na vanguarda das sciencias e das artes, vae fluctuando como póde sobre o sangue derramado pela guerra com o extrangeiro e pela communa, e Deus sabe quando os seus negocios terão um caracter definitivo e seguro. O theatro francez está tão abatido como o theatro portuguez, onde se dão hoje as comedias hispanholas entrajadas á portugueza, por não haver realmente d'onde se importar melhor litteratura dramatica. A novissima geração, que poderia ser garantia de rehabilitação, resente-se d'esta incerteza geral e espaneja-se de genero em genero mais por se desfadigar de tristeza e tedio do que para amontoar peculio para o futuro,{9} que será de certo a revolução, e que portanto lhe havia de queimar as obras antes de lh'as lêr.
N'estas circumstancias especiaes e gravissimas é sobremodo para lamentar o que em qualquer tempo é sempre para sentir,—a perda d'um athleta que denodadamente luctava contra a indifferença geral, fazendo-lhe rosto e obrigando-a, apezar de sua pertinacia, a dobrar-lhe o joelho em sincera adoração. Joaquim Guilherme Gomes Coelho era um d'estes raros e poderosos luminares das lettras patrias, que, por não serem já muitos, se tornam indispensaveis. São estes homens os que devem ter uma biographia, porque a dos que nasceram para não deixar vestigios da sua passagem na terra resume-se apenas nas poucas palavras inscriptas na lousa que lhes demarca os sete palmos de terra.
Joaquim Guilherme Gomes Coelho, filho de D. Anna Gomes Coelho e de José Joaquim Gomes Coelho, nasceu no Porto aos 14 de novembro de 1839.
É dever nosso dizermos, remontando-nos á sua infancia, que frequentou primeiras lettras com Antonio Ventura Lopes, em Miragaya, sendo que n'estes inexperientes adejos de ave implume, que, saudosa do ninho paterno, receia defrontar-se com a figura mais ou menos severa d'um homem desconhecido, o professor, lhe serviu de estimulo e conforto a voz carinhosa e authorisada de seu irmão, José Joaquim Gomes Coelho. E pois que veio de geito escrever-se este nome, digamos de relance que era o de um profundo e notavel talento, que ainda hoje é motivo de justissimo orgulho para os fastos gloriosos da Academia Polytechnica do Porto, onde José Joaquim Gomes Coelho frequentara distinctamente o curso mathematico.{10}
O snr. J. J. Rodrigues de Freitas Junior, no seu discurso pronunciado na abertura das aulas da mesma Academia em 1 de outubro de 1867, alludindo aos mais distinctos estudantes dos cursos preteritos, fez menção honrosa do irmão de Julio Diniz e, não contente com isso, consagrou-lhe em uma nota explicativa estas saudosas palavras:
Gomes Coelho nasceu a 7 de novembro de 1834 e morreu a 30 de dezembro de 1855, tendo completado, havia dous mezes, o curso de engenheria civil. Foi premiado em diversas aulas; e sel-o-ia n'outras, se não houvesse perdão de acto em dous annos da sua frequencia,
O grande poeta Soares de Passos escreveu o seguinte epitaphio para a campa do infeliz e sympathico mancebo:
Vinte annos? Ai! bem cedo arrebatado
O guardaste no seio, ó campa fria!
Flor passageira, succumbiu ao fado,
E seus perfumes exhalou n'um dia!Quanta illusão desfeita em seu transporte!
Sonhou glorias, talvez! sonhou amores!
Tudo, tudo aqui jaz! Carpi-lhe a sorte;
Derramai-lhe na tumba algumas flores!
Era norma inalteravel das melhores educações d'aquelles tempos desenvencilhar a meada das declinações latinas, depois de estudada a grammatica nacional, theorica e praticamente. Gomes Coelho, como era de rigor, tomou assento entre a numerosa fila dos discipulos do padre José Henriques d'Oliveira Martins, conhecido latinista do Porto, já fallecido, e então muito em voga como professor particular. Como se não affrontasse demasiadamente o seu lucido espirito com o estudo da litteratura romana, começou, ao mesmo tempo, a iniciar-se na lingua franceza, ensinada pelo irmão com sensiveis progressos do discipulo e verdadeiro orgulho do professor. Familiarisado com os idiomas que eram então exigidos como preparatorios para um curso superior, matriculou-se em logica nas aulas da Graça, denominação que n'esse tempo se dava ás aulas publicas do Lyceu e da Academia, reunidas no mesmo edificio e principiou{11} simultaneamente a estudar inglez com o snr. Narciso José de Moraes Junior, professor particular.
As difficuldades que ordinariamente embaraçam a traducção dos classicos inglezes, não lhe foram obstaculo a que sobremodo os ficasse estimando, senão de preferencia, ao menos a par dos poetas latinos e francezes que a esse tempo já versava. É para notar que, sendo Gomes Coelho incorrecto na pronuncia do inglez, a ponto de desafinar os tranquillos nervos britanicos que por ventura o surprehendessem em peccado de lesaprosodia (como me diz pessoa de suas intimas relações e muito entendida no assumpto) vencesse por uma notavel intuição as mais intrincadas subtilezas que, não só a esse tempo, mas em todo o decurso de sua vida, lhe podia offerecer a leitura de Shakspeare, Milton e Byron, chegando muitas vezes, especialmente em Shakspeare, a sobrepujar a traducção franceza de Guizot.
Entre os quatorze e quinze annos, idade que então contava, matriculou-se na Academia Polytechnica nas aulas de chimica e primeiro anno de mathematica, regida pelo lente Antonio Luiz Soares.
Data d'essa epocha a sua intimidade com o notabilissimo poeta portuense Antonio Augusto Soares de Passos, e como o espirito de Gomes Coelho era d'estes que nascem com o privilegio de assimilarem toda a casta de conhecimentos, por mais heterogeneos que sejam, começou a manifestar certo enthusiasmo pela litteratura, enthusiasmo que a convivencia com o cantor do Firmamento foi desenvolvendo, dia a dia, insensivelmente. A poesia sorria-lhe já no intimo da alma uns doces sorrisos de visão feiticeira, mas tão egoista se sentia elle de tamanha felicidade, que não ousava metrificar os seus secretos colloquios com a fada da inspiração. Egoismo ou modestia,—ambas as coisas talvez. O certo é que o poeta não se tinha revelado ainda pelos versos, mas se adivinhava já pelos arrôbos.{12}
De 1854 a 1855 frequentou Gomes Coelho as aulas de segundo anno de mathematica e physica na Academia Polytechnica. Devemos notar que em todas as disciplinas que cursara obtivera classificações honrosas e accessits, não recebendo premio um anno por ter sido tirado á sorte, o que não exclue a distincção.
Fique d'uma vez para sempre esta advertencia.
No anno lectivo seguinte, em que frequentava botanica e zoologia, succumbiram a dolorosos soffrimentos pulmonares, molestia hereditaria, porque a mãe de Gomes Coelho era tuberculosa, os seus dois irmãos José e Guilherme. Alanceado com este duplo golpe o seu affectivo coração, parece que só encontrara balsamo para tão profundas feridas n'umas tristezas poeticas curtidas na solidão luctuosa do lar, tristezas que são tambem suaves, porque nascem da saudade, ao mesmo tempo espinho que fere e flôr que embriaga.
Em 1856 entrou Joaquim Guilherme Gomes Coelho na Eschola Medico-Cirurgica, desempenhando-se das suas obrigações academicas, durante todo o curso, com notavel distincção.
Tenho sobre a minha banca a dissertação inaugural que defendeu em 1861, perante o corpo cathedratico da mesma Eschola. Intitula-se: da Importancia dos estudos meteorologicos para a medicina e especialmente de suas applicações ao ramo operatorio. Como trabalho litterario, que só assim, ainda que mal, o podemos avaliar, afigura-se-nos digno de confrontar-se com os escriptos posteriores de Gomes Coelho. Sobre o merecimento scientifico pronunciou o tribunal academico o seu veredictum sobremodo honroso para o alumno que exemplarmente encerrava o curso escholar.{13}
Não foi isenta de soffrimentos physicos a sua vida d'estudante; de enfermidades moraes já vimos que tambem não foi.
No segundo anno do curso medico teve uma hemoptyse ligeira, bolçando sangue em pequena quantidade. Apezar d'este triste prenuncio, e da morte recente de seus dous irmãos, não esmoreceu na assiduidade com que desvelava as noites abancado diante dos compendios sobre os quaes mais d'uma vez se espanejaria, borboleta inquieta, o genio invisivel da poesia.
Em 1860 appareceram versos seus, com o pseudonymo de Julio Diniz, na Grinalda.
D'elles nos occuparemos mais adiante.
Graduado em medicina, restava-lhe exercer a clinica. Não lh'o consentia porém uma certa repugnancia natural, um certo pudor, digamos assim, que purpureava a consciencia do medico, quando de si para si tinha de accusar de impotente a sciencia que professava, á cabeceira d'um moribundo, ao lado d'umas creancinhas loiras que iam ser orphãs ou d'uma mulher lacrimosa que ia ficar viuva.
E depois o seu genio avesso a quaesquer expansões, a sua natural melancolia, suave mas meditativa, oppunham-se diametralmente aos predicados que se lhe afiguravam indispensaveis ao medico clinico, visto o que elle escrevia do João Semana, nas Pupillas do senhor reitor: «Esta bossa anedoctica é sempre de grande valor para o facultativo que aspira á vida clinica. Uma historia contada a tempo, e com graça, vale bem tres recipes, pelo menos.»
Foi de 1861 a 1862 que, já livre dos trabalhos escholares, escrevera o romance Uma familia de inglezes durante os tranquillos ocios do seu gabinete, d'onde poucas vezes sahia, com a repugnancia que deixamos mencionada, para visitar um ou outro doente.
Em abril de 1863 poz-se a concurso o logar de demonstrador da secção medica na Eschola do Porto. Gomes Coelho apresentou-se candidato, não tanto por se julgar habilitado á concorrencia, em razão da extrema desconfiança que tinha da sua mesma proficiencia, como{14} para renunciar d'uma vez para sempre á vida clinica com que não podia transigir. No meio dos assiduos estudos que então fizera veio assaltal-o a doença, e Gomes Coelho, poucas horas depois de ter tirado ponto teve de abandonar o concurso diante do caracter assustador com que se apresentou a pneumo-hemorrhagia.
Então, a instancias de seu pae, foi passar algum tempo, tres ou quatro mezes, a Ovar, onde tinha parentes.
Depois de escrever o romance Uma familia de inglezes,—a sua estreia litteraria,—compoz o formoso romancezinho As apprehensões d'uma mãe, em 1862, o O espolio do senhor Cypriano.
As Apprehensões d'uma mãe começaram a sahir em folhetim a 11 de março d'esse anno, no Jornal do Porto. A redacção d'este periodico agradeceu o mimoso presente, que de mão desconhecida recebia, com estas amaveis palavras:
Damos hoje principio á publicação do mimoso romance—As apprehensões d'uma mãe—que delicadamente nos foi offertado pelo cavalheiro que se embuça com o pseudonymo de Julio Diniz.
Sobrio de phrases e palavras retumbantes e arrevezadas, despido mesmo de atavios e damices de linguagem,—As apprehensões d'uma mãe—é, na singeleza do seu dizer, o daguerreotypo dos singelos costumes da provincia do Minho, da melhor perola do nosso Portugal.
Calamos elogios ao merecimento do romance, para que se não infira que vai n'elles a paga da offerta.
O nosso silencio poupa a modestia do author; e a publicação do romance, apenas encetada, prova o apreço em que o temos.
Se estas palavras são elogios, que traduzem agradecimentos, receba-os o snr. Julio Diniz, em boa hora, para que nos abram a porta da desculpa, que pedimos, por havermos, contra vontade, demorado a publicação das—Apprehensões d'uma mãe.
A 4 de novembro do mesmo anno sahiu, no Jornal do Porto, o primeiro folhetim do Espolio do senhor Cypriano, com o pseudonymo de Julio Diniz.
Cabe, pois, ao Jornal do Porto a honra de ter sido a lente que reflectiu os primeiros alvores do seu talento. N'aquelle acreditado orgão da imprensa portugueza muitas aguias, como em ninho querido, teem ensaiado{15} forças para voar depois ás regiões do poder e ás eminencias litterarias. Basta que citemos como exemplos, ao correr da penna, os nomes de José Luciano de Castro, Barjona de Freitas, Ramalho Ortigão, Augusto Soromenho, D. José d'Almada, Teixeira de Vasconcellos e Julio Diniz. Um grande escriptor, porém, alli começou a manifestar o seu gentilissimo espirito, sem se namorar dos triumphos em que outros pozeram mira, e a que chegaram pelos seus proprios merecimentos, que o Jornal do Porto, diga-se de passagem, tem sempre combatido pelos direitos publicos na vanguarda do periodismo portuguez, sem hypothecar a sua opinião a influencias pessoaes ou compadrios politicos. Permitta-se ao mais obscuro redactor d'aquella folha este sincero preito de consideração pelo nobre caracter do seu proprietario.
O escriptor a que nos referimos chamava-se Francisco de Paula Mendes, e outra individualidade não conhecemos que mais relações de similhança tivesse com o romancista, cujo esboço biographico estamos traçando.
Ambos herdaram de suas mães os germens da molestia a que succumbiram; em ambos era igual a modestia; ambos honraram as columnas do Jornal do Porto; ambos foram procurar á ilha da Madeira a saude que já não podiam encontrar; e ambos, finalmente, deixaram lacunas quasi irremediaveis no jornalismo e na litteratura.
De 1862 a 1863 escreveu Gomes Coelho o romancezinho—Novellos da tia Philomella, que principiou a ser publicado no Jornal do Porto em 22 de janeiro d'este ultimo anno.
Foi em Ovar, onde o deixamos em patriarchal tranquillidade, que planisou e traçou os primeiros capitulos das Pupillas do senhor reitor. O seu espirito, refocillado{16} nos ocios d'uma convalescença despreoccupada, comprazia-se nas variadas scenas com que a imaginação poderosa do poeta anima um mundo phantastico que para si creou. Assim se explica a espontaneidade com que não só encetou o romance Pupillas do senhor reitor, mas com que tambem foi trabalhando simultaneamente n'esse formoso esboceto—Uma flor d'entre o gelo—, cuja publicação começou no Jornal do Porto em 21 de novembro de 1864, apparecendo pela primeira vez o seu nome—Gomes Coelho.
Em maio de 1864 sahiram no mesmo jornal dois folhetins, creio eu, com o titulo de Cartas ao redactor do Jornal do Porto ácerca de varias coisas, rubricadas com o pseudonymo de Dianna de Avelleda. Facil foi reconhecer-se então sob aquelle véo transparente a individualidade litteraria de Gomes Coelho. Entrelembro-me que a maior parte de um d'esses folhetins era consagrada á memoria de Rodrigo Paganino, talento que, pela sua extrema delicadeza e o seu amor aos assumptos campesinos, tinha estreita affinidade com o de Julio Diniz. Em agosto d'esse anno publicou com o mesmo pseudonymo, e no mesmo jornal, alguns folhetins, poucos foram, sob a epigraphe—Impressões do campo, a Cecilia.
Em 1867 appareceram ainda com igual pseudonymo, no jornal litterario Mocidade, umas Cartas á vontade, a Cecilia, devidas á penna sempre modesta de Gomes Coelho.
As Pupillas do senhor reitor não vieram completas, quando o author regressou ao Porto, e a causa de só começarem a ser publicadas no Jornal do Porto em maio de 1866 foi de certo o ter de se preparar para concorrer pela segunda vez em janeiro de 1864 ao logar de demonstrador da secção medica da Eschola.
No anno seguinte, apresentou-se pela terceira vez candidato ao mesmo logar, e n'esse mesmo anno foi despachado.
Já que estamos fallando da sua carreira cathedratica, diremos que por decreto de 27 de julho de 1867 fôra promovido a lente substituto da mesma secção, e que{17} por decreto de 27 d'agosto do mesmo anno recebera a nomeação de secretario e bibliothecario da mesma Eschola.
Em maio de 1866, como já dissemos, principiaram a sahir em folhetins as Pupillas do senhor reitor, que em outubro do anno seguinte se publicaram em livro. D'este romance, o primeiro volume que se brochou offereceu-o Julio Diniz a seu primo e amigo, o snr. José Joaquim Pinto Coelho, como brinde natalicio, sendo esta uma das mais intimas festas de familia a que não costumava faltar.
O romance Pupillas do senhor reitor conta já tres edições successivas.
No Jornal do Porto, de 7 de fevereiro d'este anno (1872) appareceu a seguinte noticia:
JULIO DINIZ.—O rasto luminoso que o talento de Julio Diniz deixou na liiteratura portugueza não se apagará jámais.
O dito d'Horacio não é,—ainda bem!—uma palavra vã—Non omnis moriar. Julio Diniz começa a reviver na posteridade, e o Diario de Noticias do dia 5 mais nos entalha na alma esta profunda convicção com a seguinte noticia:
«Lord Stanley of Alderley está preparando a versão para inglez do lindo romance—As Pupillas do senhor reitor, de Julio Diniz.
Dá-nos esta interessante noticia o The Athenaeum, jornal de litteratura que se publica em Londres, e do qual é correspondente em Lisboa o snr. Soromenho.»
A 2 de maio de 1867, afoitado pelo successo d'este romance, encetou a publicação da sua estreia litteraria—Uma familia de inglezes,—que no anno seguinte sahiu á luz em volume com o titulo de Uma familia ingleza, Scenas da vida do Porto.
Este livro já teve duas edições.
A Morgadinha dos canaviaes foi escripta com extrema rapidez e começou a publicar-se no Jornal do Porto a 14 d'abril de 1868, sendo reimpressa em volume logo depois.
Em março d'esse anno subiu á scena em Lisboa o drama que o snr. Ernesto Biester extrahiu do romance Pupillas do senhor reitor. Gomes Coelho foi a Lisboa, acompanhado pelo seu amigo o snr. José Augusto da{18} Silva, no proposito de assistir como simples e obscuro espectador á estreia do drama. Estava elle no theatro da Trindade, pensando de certo em gozar a modesta tranquillidade do incognito, quando o snr. Henrique Nunes, distincto photographo portuguez, que o conhecia do Porto, o denunciou como author das Pupillas. A noticia circulou com a rapidez da electricidade, e para logo proromperam as plateias em enthusiastica ovação, sendo Gomes Coelho victoriado pelo publico e cumprimentado por alguns litteratos distinctos que estavam presentes.
O Diario Popular, de 24 de março de 1868, escreveu mais circumstanciadamente do assumpto, quando pela terceira vez se representaram no theatro da Trindade as Pupillas do senhor reitor:
O exito d'esta peça correspondeu ao muito que esperavam d'ella os que prezam as boas lettras e se occupam com interesse de novidades theatraes. E na realidade é tão raro vêr sobre a scena portugueza dramas puramente nacionaes, que não podemos deixar de applaudir a apparição de uma comedia que pelo desenho dos costumes, pela contextura, e pela linguagem honra o magro repertorio dramatico do nosso paiz. Dividida em sete quadros, resume a comedia todas as principaes scenas e peripecias, que dão vida ao romance com que o snr. Gomes Coelho enriqueceu a litteratura moderna, e cuja primeira edição foi esgotada em menos de um mez.
Como os leitores sabem já, as Pupillas do senhor reitor foram representadas no sabbado em beneficio da actriz Delfina. A mais escolhida sociedade occupava os camarotes, balcões e plateias.
El-rei D. Luiz, não querendo deixar de honrar com a sua presença a festa da distincta actriz, foi primeiro do que a nenhuma outra parte, provar a Delfina o muito apreço que liga ao seu talento.
Desde o final do primeiro acto até que o pano baixou terminando o espectaculo, os applausos repetidos e enthusiasticos testemunharam o prazer com que era recebida a producção, que o snr. Biester com tanta habilidade desentranhou d'aquella chronica d'aldeia, que n'um só dia deu nome ao que a havia escripto. Na primeira representação o publico chamou no fim do terceiro quadro o snr. Biester, que veio á scena agradecer. Quando novamente foi chamado no fim do sexto quadro, sabendo já que o celebre author do romance, o snr. Gomes Coelho (Julio Diniz) se achava na plateia, veio ao palco o snr. Biester, pediu silencio, e disse pouco mais ou menos as seguintes palavras:
«Aquelle que realmente merece os vossos applausos está entre nós. Eu não fiz mais que apresentar debaixo da fórma dramatica{19} um dos mais notaveis livros que se tem publicado n'este paiz. A esse escriptor já coroado dos applausos publicos peço eu agora a honra de permittir-me que o apresente n'este logar ao publico que o deseja vêr.»
A plateia levantou-se para applaudir o snr. Biester e o snr. Gomes Coelho, que se recusou a subir ao palco. Veio buscal-o á plateia o snr. Biester, e, mal appareceram ambos no palco, o enthusiasmo do publico chegou ao delirio. A todos commovia a modestia dos dois escriptores; um escondendo-se na plateia e furtando-se aos applausos, outro pretendendo que toda a gloria coubesse ao snr. Gomes Coelho.
Os actores que ainda estavam em scena abraçaram o snr. Gomes Coelho que profundamente commovido mal podia proferir uma palavra.
O correspondente de Lisboa dizia na sua carta para o Jornal do Porto no mesmo dia e mez de março de 1868:
O Porto teve dois triumphos em Lisboa nos ultimos dias—o da opera Arco de Sanct'Anna, do snr. Noronha, e o das Pupillas do senhor reitor, do snr. Gomes Coelho (romance transformado em drama pelo snr. Biester.)
Ambos estes filhos do Porto foram victoriados delirantemente, o primeiro no theatro de S. Carlos, e o segundo na Trindade.
O drama agradou, e o desempenho foi bom por parte dos actores Taborda, Izidoro, Queiroz, Emilia Adelaide e Rosa: pelos outros apenas supportavel.
Quanto ao merecimento do drama, consignemos de passagem que não satisfez a critica litteraria senão por ser um reflexo, ainda que pallido, do romance de Julio Diniz.
Pinheiro Chagas revelava-o em folhetim do Jornal do Commercio, poucos dias depois da primeira representação:
A luz do proscenio,—escrevia elle—digamol-o emfim, é uma luz mentirosa; a perspectiva do theatro tem condições especiaes. Ponham os frescos de Raphael recortados nos bastidores, e eu lhes juro que não produzem metade do effeito de quatro borrões espraiados na lona pelo snr. Procopio.
Em 6 de julho do mesmo anno, estando no Porto a companhia do theatro da Trindade, pôz em scena o drama Pupillas do senhor reitor. Copiemos ainda do{20} Jornal do Porto o que no dia seguinte escrevia a tal respeito:
É muito difficil adaptar bem á scena o entrecho d'um romance. Para que qualquer obra litteraria se considere absolutamente boa é preciso que os factos que n'ella se expressam, debaixo de nenhuma outra fórma se manifestem melhor. Um bom drama feito com o mesmo assumpto que inspirou um romance, seria a condemnação d'este, e equivaleria a dizer o dramaturgo ao romancista: «As tuas trabalhadas descripções e a esmerada pintura dos teus typos estavam de mais nas trezentas e sessenta paginas do teu livro: aqui tens os mesmos effeitos n'um só dialogo em tres actos.»
A razão de não ser mais perfeito o drama que vimos hontem consiste em ser muito bom o romance que lemos ha poucos mezes. A unica culpa de Ernesto Biester é Julio Diniz.
E mais abaixo:
A sala estava inteiramente cheia. Pela manhã já não apparecia um bilhete de plateia inferior. De tarde pedia-se libra e meia por um camarote de terceira ordem.
Já seria occasião de estudarmos a maneira do romancista. Todavia, attendendo a que Julio Diniz primeiro se revelou ao publico poeta que romancista, corre-nos obrigação, por amor da chronologia, de primeiro o avaliarmos, consoante nossa opinião, nos seus versos, que nas suas novellas.
A pagina 40 do terceiro volume (1860) da Grinalda apparece pela primeira vez o pseudonymo Julio Diniz rubricando uma poesia que se intitula A J... Quem fosse Julio Diniz não se sabia então; não o sabia o mesmo redactor da Grinalda, Nogueira Lima, que recebera os versos pelo correio.
Gomes Coelho, apesar de o conhecer pessoalmente, porque Nogueira Lima era tambem amigo dos seus mais{21} intimos amigos, os snrs. A. A. Soares de Passos, Custodio José de Passos, Augusto Luso, José Augusto da Silva e outros, não ousara, por excesso da sua peculiar modestia, impôr-se delicadamente como collaborador da Grinalda, procurando o redactor e proprietario, e entregando-lhe os seus versos. Não fizera assim. Enviara-lh'os cautelosamente e, por mais d'uma vez, escutara em silencio Nogueira Lima sobre o merecimento d'uma ou outra composição poetica á medida que pelo correio as ia recebendo com a rubrica Julio Diniz.
A inicial que serve de epigraphe á poesia publicada em 1860 na Grinalda envolve de certo um segredo intimo do poeta, e por conseguinte insondavel. Gomes Coelho morreu celibatario, viveu sempre na solidão amiga dos seus livros e, não obstante, em todos os seus versos, em todos os seus romances, modelava o typo da mulher por um formoso ideal de perfeições quasi divinas.
O que é certo é que na sua alma havia a tristeza temperada dos poetas que, como Lamartine, nascem para cantar e soffrer. As paixões revoltas de Byron e Espronceda não as conhecia elle. Era portanto o poeta da solidão, que vivia do seu ideal, longe do bulicio da sociedade, onde outros iam afinando a lyra pela excitação febril dos sentidos.
É justo que transcrevamos na sua integra os versos de que vimos fallando, não só por este destino mysterioso que elle lhes dava, como por serem os primeiros que sahiram publicados com o seu habitual pseudonymo:
A J...
Acredita que os anjos tambem soffrem
N'esta mansão de dores,
E não olhes o mundo lacrimoso,
Quando o vires despido de fulgores.Mal sabe a rosa, ao vecejar lasciva
Em plena primavera,
Que é passageira a quadra, que apoz ella,
Se despovoa o prado e a morte a espera.{22}O terreno, que pizas n'esta vida,
Occulta um precipicio;
O caminho, onde ao fim vemos a gloria,
Quantas vezes termina no supplicio!Eu já vi, junto a um tumulo isolado,
Um grupo de crianças,
Dando as mãos e travando em chão de morte,
Com risos infantis, alegres danças.Vi-os tambem sorrirem descuidados
Se piedoso viandante
Parava pensativo e, murmurando
Uma humilde oração, passava adiante.Assim tambem sorris, se melancolico
Eu penso no porvir,
Quando uma sombra vem turbar-me a fronte,
Tu, como elles, contemplas-me a sorrir.Mas olha, quer's saber a historia triste
D'esses tres innocentes,
Que, sobre as cinzas frias d'uma campa,
Se entregavam a jogos complacentes?Á noite a mãe, beijando-os, estranhou-lhes
Da face a pallidez,
E um presagio sentiu ao alvor do dia...
Eram frios cadaver's todos tres.É que os ares do tumulo dão morte
Em afago homicida,
N'esse ar infecto em que se extingue a chamma
Tambem arqueja e expira a luz da vida.Teme pois tambem tu, candida virgem,
O ar que aqui respiras,
E não perguntes mais ao viandante,
Que pensamentos d'amargor lhe inspiras.
Transparece d'estes versos,—senão os primeiros, uns dos primeiros de Julio Diniz,—a luz pallida d'uma alma triste. Em todas as composições posteriores, que litterariamente valem muito mais, especialmente as ultimas, prevalecem as cadencias melancolicas, que fazem lembrar o Cahir das folhas de Millevoie e as Azas brancas de Garrett.
No quinto numero do mesmo volume veem novas{23} estrophes suas, que teem estreita relação com as que acima deixamos transcriptas. Intitulam-se Apparencias. Julio Diniz extranha o teimoso sorriso nos labios da pessoa a quem se dirige:
Sempre o riso em teus labios! N'essa fronte
Nem uma sombra apenas!
Nem uma nuvem só, lá no horizonte
A ameaçar-te com futuras penas?!
Presente-se uma alma de poeta em completo antagonismo com outra alma, que ou nasceu fadada para estranhas alegrias ou, menos sincera, sabia concentrar em si mesma o segredo das suas maguas.
Quem sabe! Quantas vezes é mentida
Dos labios a alegria?
Quantas vezes no peito comprimida
Nos devora latente uma agonia!
Ainda na collecção do mesmo anno vem uma terceira poesia de Julio Diniz, cujo assumpto é estranho ao das duas precedentes. Todavia o poeta, sempre delicado, compraz-se em cantar os primeiros estremecimentos d'um coração de mulher, e intitula o seu canto—O despertar da virgem.
No quarto volume (1862) da Grinalda sahiram duas poesias de Julio Diniz. Intitula-se a primeira—A noiva. É ainda o coração da mulher o assumpto,—da mulher que está sentindo alternadamente os jubilos e os sobresaltos do noivado. É, podemos dizel-o, um estudo psychologico escondido n'uma tradição da idade-media. A noiva está prompta, toucada, anciosa...
A noite passára em vela.
E que noiva a dormiria?
E, ao desmaiar das estrellas,
Alvoroçada se erguia
E a alva flôr da larangeira
Ao véo de neve prendia.
Estas alegrias nupciaes não podiam deixar de ser anuveadas pela inspiração melancolica do poeta. Passam-se{24} as horas, e o noivo não chega. Em compensação, vem a noticia de ter sido morto em combate. A noiva succumbe
E a alva flôr da larangeira
Com ella á campa descia.
A segunda poesia denomina-se Thereza, e na ideia tem alguma coisa d'aquella suavidade dolorida dos versos de Soares de Passos. O ninho querido onde o poeta modula os sens carmes é o coração da mulher. Thereza é a historia d'uma creança pallida e triste, d'aquella tristeza scismadora das almas fadadas para o soffrimento, que só tem sorrisos nos labios no dia em que presente a morte...
Era uma criança loira
Quando a vi na sepultura;
Da açucena tinha a alvura,
Teve o seu curto durar................................
Folheando o quinto volume da Grinalda encontramos tres poesias de Julio Diniz. A primeira é uma versão de Henri Heine, que de certo Gomes Coelho escolheu pela delicadeza peculiar das legendas allemãs, que a caracterisa. A segunda,—No altar da patria—é uma formosa composição realmente, em que o coração da mulher lucta entre duas forças igualmente poderosas,—o amor da patria e o amor de mãe.
—«Ó mãe, da-me uma espada.
Ouço da patria a voz»
—«Eil-a! É immaculada.
Era a de teus avós.»—Pura a trarei, voltando...
Se não morrer alli.»
—«Vai», disse a mãe, chorando,
«Eu rezarei por ti.»
E trava-se o combate, e sibila a metralha, mas o{25} soldado não volta. É ainda,—e sempre,—a ideia da morte que inspira o poeta. A terceira poesia, que tem por titulo—A despedida da ama—e é offerecida ao snr. José Joaquim Pinto Coelho, é igualmente inspirada pelo coração feminino em lucta com as praxes sociaes, com o despotismo da superioridade. São lagrimas d'uma mulher que se deixou amar como se fôra mãe uma criança que não era seu filho.
Puz, á volta do teu berço,
Todo o amor, que um seio tem,
E arrancam-te dos meus braços
Porque eu não sou tua mãe?
De anno para anno são sensiveis os progressos do poeta. A fórma desenvolve-se, torna-se flexivel á inspiração, e o colorido vai ganhando em mimo o que jámais á ideia faltou em sentimento.
Os paes da noiva, poesia publicada no sexto volume da Grinalda, valem muito não só pela correcção metrica, que é irreprehensivel, como pelo thema, que é terno, mavioso, commovente. Tudo é festa em derredor da noiva. Só duas pessoas, os paes, teem lagrimas nos olhos. Quando a rapariga parte sob uma chuva de flores, recolhem-se os dous velhos para chorarem em segredo a sua profunda saudade. Está de lucto o lar; a velhice saudosa é peior do que a morte. Seis dias volvidos é tristemente verdadeiro o lucto. Os paes da noiva não poderam com o fardo de tamanhas tristezas. Succumbiram ambos.
Do mesmo volume quizera poder transcrever na sua integra a poesia—A esmola da pobre—que é uma delicadissima composição, em que duas creanças, uma rica e outra pobre, soccorrem uma velha mendiga, a rica dando-lhe esmola, a pobre beijando-lhe a mão...
No primeiro dos folhetins que em 1864 publicara no Jornal do Porto sob o titulo de Impressões do campo veem estes formosos versos que são, a meu vêr, um modelo de naturalidade e singeleza:{26}
O BOM REITOR
Sabem a historia triste
Do bom reitor?
Misero! toda a vida
Levou com dor.Fez quanto bem podia...
Mas... a final
Morre e na pobre campa
Nem um signal.Nem uma cruz ao menos
Se ergue do chão!
Geme-lhe só no tumulo
A viração.Vedes, alem... na relva...
Junto ao rosal
Flores que ha desfolhado
O vendaval?Cobrem-lhe a lousa humilde;
A creação
Paga-lhe assim a divida
De compaixão.Pobres, que amava tanto,
Nunca, ao passar,
Choram, curvando a fronte
Para rezar.Nunca, ao romper do dia,
O lavrador
Pára e lamenta a sorte
Do bom reitor.As criancinhas nuas,
Que estremeceu,
Já nem sequer se lembram
Do nome seu.No salgueiral visinho,
Ao pôr do sol,
Vai-lhe carpir saudades
O rouxinol.{27}Lagrimas... pobre campa!
Ai, não as tem.
Só da manhã o orvalho
Rocial-a vem.Da solitaria lua
A triste luz
Grava-lhe em vagas sombras
Estranha cruz.E elle repousa, dorme...
Vive no céo;
Dorme, esquecido e humilde
Como viveu.Ha n'esta vida amarga
Sortes assim.
Vive-se n'um martyrio,
Morre-se emfim...Sem que memoria fique
Para dizer
Ás gerações que passam
Nosso viver.Quem me escutar, se um dia
Ao prado for,
Ore pelo descanso
Do bom reitor.
Quem sabe se a inspiração d'estes versos, que se nos afiguram escriptos muito antes de serem publicados, foi ainda o germen de que desabrochou, recendente ao perfume das serras e colorido com as tintas mimosas das flores do campo, o romance Pupillas do senhor reitor? Cremos que sim. O grão que o semeador deixa cahir na leiva é na primavera flor, no outomno fructo, e no inverno riqueza.
Assim tambem a ideia, que o espirito recebeu um dia, póde florir ámanhã, fructificar depois, e opulentar para todo o sempre os celleiros onde se apascenta a intelligencia humana. Toda a primavera foi botão, e o mesmo sol, que ao meio-dia deslumbra, primeiro se mostrou dilucúlo...
No Almanach das senhoras para 1871 appareceu uma poesia de Julio Diniz epigraphada—A folha solta do ulmeiro—uma{28} formosa allegoria em que o coração da mulher, sedento de liberdade, é comparado á folha do ulmeiro que, anciosa de desprender-se do tronco, voa um dia, após as borboletas, impellida pelo ar, até que, depositando-se na terra, fica perdida no monturo...
Virgens, gravae na memoria
Este conto verdadeiro;
Que póde ser vossa a historia
Da folha solta do ulmeiro.
Outros versos escreveria Julio Diniz de que não obtivemos noticia; e alguns deixou elle ainda por corrigir, motivo por que não podem e não devem ser publicados.
Além d'estes, outros se encontram disseminados pelos seus romances, como a lenda da Cabreira e a Trigueira, nas Pupillas do senhor reitor; o Tabaco na Familia ingleza; e especialmente aquellas formosas quadras da Flor d'entre o gelo, uma das quaes, em que o poeta apostropha ás andorinhas,
Só eu, que vos sigo com vistas saudosas
Ao vosso desterro, dos mares além,
Já quando ao prado brotarem as rosas,
Talvez não reviva co'as rosas tambem,
parecia encerrar uma prophecia que infelizmente já se converteu em realidade.
Os padecimentos de Gomes Coelho aggravaram-se sobremodo desde 1868, especialmente depois de escripto um pouco afadigosamente o romance Morgadinha dos canaviaes.
Nem a ida a Lisboa, nem as distracções e passeios{29} que os seus amigos lhe proporcionavam, poderam suster o curso progressivo da doença, accidentada no mez de setembro d'esse anno por uma dor nevralgica. A 20 d'outubro, dia em que se celebrava intimamente a festa natalicia do snr. J. J. Pinto Coelho, assistiu, como tinha de costume, ao jantar de familia, se bem que visivelmente incommodado. Os dias que se seguiram foram para Gomes Coelho de verdadeira reclusão. No mez de novembro augmentaram os padecimentos, e a pneumo-hemorrhagia foi mais violenta do que precedentemente havia sido.
Em janeiro do anno seguinte (1869) resolveu-se a ir passar uma temporada a Lisboa, hospedando-se n'uma casa da rua Direita da Graça, á Cruz dos quatro caminhos, onde se conservou cerca d'um mez.
A vida de Gomes Coelho na capital foi triste e concentrada, chegando a passar dias inteiros sem fallar com outras pessoas além das que estavam de portas a dentro. Aconselhado pela medicina, cremos que pelo doutor May Figueira, tomou a rapida resolução de partir para a Madeira. Tirou passagem no vapor d'Africa e sahiu o Tejo no dia 5 de fevereiro. A cento e sessenta leguas do continente, n'essa pyramide de terreno vulcanico que se estende de leste a oeste sobre o oceano occidental,—a Madeira—como disse o desventuroso Arnaldo Gama,[1] devia de encontrar Gomes Coelho a pittoresca realidade d'esse formoso quadro que traçara na Flor d'entre o gelo, «d'essa collina elevando-se graciosa do meio de uma amplissima e vicejante bacia», onde uma constante chusma de invalidos ia pedir allivio á piedade da milagrosa Senhora da Saude e á profunda sciencia do doutor Jacob Granada.
A maior parte d'estas casas (as que alvejavam por entre a verdura da encosta)—dizia elle—era habitada por uma população fluctuante de valetudinarios ou convalescentes que procuravam vigorar forças, respirando a pleno seio o ar purificado e livre das montanhas e dos bosques.
Pela manhã, quando as névoas principiavam a dissipar-se e,{30} por entre a folhagem das arvores, o sol penetrava mais fomentador de vida e ia evaporar o orvalho que ainda rociava as hervas dos caminhos, viam-se subir a collina, a passos vagarosos e com frequentes pausas, esses pallidos doentes, que pareciam renascer só ao receberem aquellas auras embalsamadas pelos perfumes das flores, e suavisadas pelos primeiros calores da manhã.
Era o velho quebrantado e tremulo, parando a meio caminho da ladeira que subia, a fitar o céo, como se d'antemão procurasse decifrar o problema que em breve teria de resolver; o mancebo, inquieto e pensativo, de aspirações ardentes e subidas e em tão alto gráo que no empenho de as realisar lhe falleceram as forças e no forte da lucta sentia-se succumbir; a virgem, meiga e melancolica, como uma das mais ideaes creações ossianicas, errante por entre as arvores seculares ou pendida á borda das correntes, escondendo uma lagrima ou simulando um sorriso, manifestações diversas na apparencia e ambas denunciadoras tantas vezes d'uma grande tristeza interior; a mãe joven e doente, em torno á qual brincava um bando de creanças alegres e cheias de vida, ignorando, os innocentes, que todo o seu destino, que as suas alegrias ou as suas dores no futuro dependiam agora d'aquellas arvores, onde se balanceavam risonhas, d'aquellas virações que lhes açoutavam os cabellos soltos e annelados.
Assim pois o luctar da vida e da morte era o que por toda a parte se via. Contrastes de esperança e de desalento, antitheses de sorrisos e de lagrimas formavam a feição mais caracteristica do quadro.»
Esta devia de ser a realidade do seu poetico ideal, ideal dizemos, se bem que as almas privilegiadas pelo talento possuam a excepcional intuição de lerem atravez do futuro os caracteres do seu mesmo destino...
Em maio d'esse anno, regressou Gomes Coelho da ilha da Madeira, posto que bastante enfermo, relativamente muito melhor. Conservou-se no Porto, tomando parte nos trabalhos escholares, e nos principios d'outubro partiu para Lisboa, sahindo para a ilha no dia 15 do mesmo mez. Regressou em maio do anno seguinte (1870) e nos primeiros dias d'outubro tornou a embarcar para a Madeira, voltando á patria em maio de 1871.
Cumpre notar que em 1870 sahiram em volume, editados pela casa Moré, e sob o titulo de Serões da provincia, os quatro romancezinhos—Apprehensões de uma mãe,—O espolio do senhor Cypriano,—Os novellos da tia Philomella, e—Uma flor d'entre o gelo.
Durante as tres epochas que demorou na ilha foi que{31} Julio Diniz escreveu o seu ultimo romance—Os fidalgos da casa mourisca,—posto que das duas ultimas alternasse os trabalhos de redacção com estudos de economia politica. Em maio, como já dissemos, regressou ao Porto, gravemente doente, atacado, além dos seus padecimentos chronicos e fataes, d'uma dor sciatica.
Então devia já ter-se feito noite n'aquelle grande espirito, e a ideia da morte havia de interpor-se, cada vez mais intensa e melancolica, entre o presente e o futuro.
Declinava o sol; o occaso estava proximo.
Que dolorosos pungimentos de saudade lhe não havia de dar a cada momento a memoria,—aquella vivaz e fiel memoria dos phtysicos,—ao recordar-se dos tranquillos dias da sua mocidade, das suas excursões a Aveiro, a Felgueiras, a Leiria, sempre rodeado d'amigos, sempre querido d'elles, agora que, por uma barreira invencivel, se via, e para sempre, distanciado d'um amigo que sinceramente o estimava,—o publico!
Em Gomes Coelho tão identificados andavam o homem e o litterato, que não havia surprehendel-os na menor contradicção. O mesmo é lêr os seus versos, os seus romances sobretudo, e descortinar para logo a limpidez, a tranquillidade, a nobreza d'aquella alma. Os quadros que devemos á sua penna são placidos, azues e luminosos, e estes serenos esplendores que lhes davam animação partiam directamente, sem jámais atravessarem um meio viciado, do foco intimo e puro,—do seu grande e nobilissimo espirito.
Eu folgo muitas vezes de, seguindo o rumo da critica moderna, estudar o eu subjectivo no homem material e nas suas mil relações com a sociedade. É um trabalho duplamente interessante, e tão curioso estudo em{32} ninguem mais dará tão promptos e satisfactorios resultados como em Gomes Coelho.
Julio Cesar Machado, escrevendo ha pouco tempo ainda do popularissimo doutor Thomaz de Carvalho, perguntava singela e intencionalmente:
Conhecem o quarto? Gabinete de estudo, e museu de amador, tanto mais interessante que reflecte por alguma maneira o caracter, habitos, genero de predilecções de quem o constituiu com o gosto e cuidado inseparaveis de sua indole. Ha alli muito da sua individualidade; é tudo d'elle e por elle alli; uma especie de transfiguração de sua pessoa; como que o sobretudo d'aquelle espirito multiplice e fecundo. Ao mesmo tempo, quarto modesto e reservado—como convem para o estudo, não tendo sequer a indiscrição de olhar para as ruas.
Ora eu lembro-me de ter em 1868 visitado Gomes Coelho na casa em que então morava no largo de S. João Novo. Entrei para o seu quarto, modestamente mobilado, e pela elegante singeleza que reinava alli, pela regularidade systematica, e pela graciosa disposição dos seus papeis e dos seus livros recordava-se a gente subitamente dos romances de Julio Diniz.
Devia de ser traiçoeiro aquelle quarto para os que não soubessem que o mesmo homem absorvia as duas individualidades...
Coração d'ouro, affectuoso, impressionavel, caracter honesto, justo, incapaz d'uma ligeira offensa, a si mesmo se daguerreotypa involuntariamente nos seus romances, nos seus personagens admiraveis de candura e pureza, porque em todos elles havia alguma coisa da sua alma. «Eu encarno-me nos meus personagens—dizia elle a alguem da sua familia—antes de os desenhar. Supponho-me elles, faço-os pensar o que a mim me parece que pensaria em tal caso, obrigo-os a dizer o que eu diria por ventura em identidade de circumstancias.»
Outros escriptores terão colorido mais vivo, mais pittoresco até; poucos lograrão vencel-o na observação escrupulosa, na moralidade dos quadros, na doçura dos assumptos, e finalmente no desenvolvimento dramatico da acção, circumstancia importantissima, porque o romance{33} é simultaneamente narração e drama, dialogo e descripção, como observou Pelletan.
Realista, porque elle o era em litteratura, jamais se occupou em reproduzir os quadros negros da sociedade, as paixões revoltas e baixas, as enormidades do crime, os typos ridiculos ou hediondos.
Suppondo mesmo que o não sabiamos, facilmente conheceriamos que o espirito de Gomes Coelho fôra educado na leitura do romance inglez. Os seus personagens, pelo menos em alguns dos seus livros, se não são tão humildes, se não professam officios mechanicos, como os de George Elliot, são typos escolhidos na galeria rustica do campo.
As suas novellas são chronicas d'aldeia, como elle mesmo as denominava. Nos Fidalgos da casa mourisca está completamente photographada a indole do romance moderno que os inglezes adjectivam de sociologico. Qual é o fim d'este romance? Que problema se propõe resolver? O professor Buchner, da faculdade de lettras de Caen, escolheu ha pouco tempo para assumpto d'uma conferencia interessantissima a nova direcção que a litteratura britanica tem dado ao romance depois de Dickens e Thackeray, «os heroes da satyra e do bom humor», como elle mesmo lhes chama. Não bastavam as zombarias humoristicas d'estes dois romancistas, as suas verberações violentas á burguezia e á nobreza para implantarem a nova reforma social. Era preciso mais alguma cousa do que censurar o mal;—era preciso apontal-o, sondal-o, e cauterisal-o. D'esta missão humanitaria e prestimosa se encarregou o romance sociologico, occupando-se primeiro que tudo da educação nacional, como fez Bulwer no Pelham, e passando da familia, onde as creanças lhe merecem sérias attenções, a combater na sociedade os velhos preconceitos, os monopolios escandalosos, as tradições classicas, antigas inimigas da verdadeira liberdade. Tudo isso se presente nos primeiros romances de Julio Diniz, nas Pupillas do senhor reitor, por exemplo, onde a medicina moderna, representada em Daniel, tem de fazer rosto á velha sciencia hyppocratica de João Semana, e tudo isso se manifesta claramente{34} nos Fidalgos da casa mourisca, onde a aristocracia, ciosa dos seus pergaminhos, lucta e porfia com a nobreza do trabalho, onde a civilisação antiga digladia com a sociedade moderna, n'um combate proficuo á humanidade.
Os romances de Julio Diniz resentem-se portanto da sua educação litteraria e, a meu vêr, compartilham das virtudes e dos defeitos do romance sociologico inglez. Reflectidamente accusa o professor Buchner os modernos romancistas da Inglaterra de descurarem um pouco a fórma por attenderem demasiadamente á materia; finalmente de uma exuberancia extrema de pormenores, e até de personagens, exuberancia esta que por mais d'uma vez abafa o centro de gravidade, o verdadeiro heroe do romance.
De resto não ha ahi litteratura mais doce, mais consoladora, mais orvalhada de lagrimas refrigerantes para os que na lucta ficam vencidos, e mais cheia de serenas alegrias para os que, vencedores, recolhem os louros do triumpho.
Na esphera do realismo, visto esta palavra andar hoje em voga, Gomes Coelho está no polo opposto ao dos irmãos Goncourts, Zola, Gaboriau, Feydeau, e muitos outros. Nós, «entendendo realismo do unico modo por que póde admittil-o a consciencia e confessal-o a razão, julguemol-o só observador consciencioso, reproductor discreto» para nos servirmos das palavras de Mendes Leal, e veneremos em Gomes Coelho, no amavel moralista, como lhe chama o mesmo escriptor, essas qualidades que elle possuia em grau eminentissimo.
Não é nosso intento, nem o comportam as exiguas dimensões d'um esboço biographico, fazermos uma critica especial sobre cada livro de Julio Diniz. Propozemo-nos simplesmente estudar-lhe a maneira, fazer sentir a sua individualidade exclusivista, e com isso nos contentamos.
Céo limpido, atmosphera pura, montanhas vagamente esbatidas no horizonte, campinas cobertas de flores e esmaltadas por aguas scintillantes e suspirosas, a amenidade da aldeia n'uma palavra, a natureza rude mas{35} casta,—n'isto se resumia a mise-en-scene dos seus dramas. Os seus personagens não eram os pastores anachronicos de Gessner ou Virgilio, os pegureiros ignorantes das alturas de Barroso. Eram, como já deixamos vêr, os corações formosamente singelos, como as flores d'entre as serras, o reitor, o herbanario, o camponez abastado, o cirurgião, o fidalgo, e as mulheres cujos corações desabrochavam para florir na primavera perpetua do bem. A mulher! oh! essa nobilitava-a elle sempre, modelando-a pelo seu ideal de formosura e bondade, pondo-lhe no coração balsamos para todas as chagas, conforto e ensinamento para todos os obcecados pela paixão infrene. Destacam-se sobre um horizonte azul, como a vela branca na amplidão das aguas dormentes, os seus incomparaveis typos de mulher, ou estudemos a Margarida das Pupillas do senhor reitor, ou a Jenny da Familia ingleza, a Magdalena da Morgadinha dos canaviaes e a Bertha dos Fidalgos da casa mourisca. Sempre a mesma doçura, a mesma bondade intelligente, a mesma elevação, a mesma pureza de ideias e sentimentos!
Notaremos de passagem uma circumstancia muito para significar até onde ia a magnanimidade de Gomes Coelho.
Aproveitando o typo do velho cirurgião, mais experiente do que instruido, com maior peculio de anecdotas do que de conhecimentos scientificos, dando-nos aquelle interessante e completo João Semana das Pupillas do senhor reitor, não foi para fazer d'elle a caricatura do proto-medicato, um personagem grotesco e risivel, senão para nos obrigar a estimarmol-o e a respeitarmos a sciencia antiga apresentada n'um homem de nobilissimo coração. O mesmo não aconteceu a Silva Gaio, escriptor eminente é certo, mas critico incisivo e quasi sempre apaixonado, mormente em assumptos historicos, que fez do João Marques, do Mario, a caricatura cruelmente verdadeira do charlatanismo medico.
Os romances de Julio Diniz foram profusamente apreciados pela imprensa. Além do seu valor real offereciam certa novidade para o publico portuguez,—nacionalisavam{36} o moderno romance britanico, desconhecido em Portugal. Na vanguarda dos admiradores de Gomes Coelho collocou-se espontaneamente o snr. Alexandre Herculano e, após elle, muitos talentos distinctos da nossa terra sahiram a festejar o modesto romancista portuense, para quem a justa gloria que lhe outorgavam era mais um gravame pesado de que um galardão para a consciencia.
Obriga-nos a nossa qualidade de chronista a consignar um senão apontado pela critica mais illustrada, sempre respeitosa e enthusiasta, especialmente pelo snr. J. M. de Andrade Ferreira, na Gazeta litteraria do Porto—era que Julio Diniz falseava a cada passo a linguagem dos seus personagens, recrutados na população dos campos, quando esta linguagem devia ser singela, chan e rude para soar verdadeira e natural aos ouvidos menos exigentes.
Pouco é o que do romancista temos dito, mas n'esta rapida apreciação, assim exigida pela natureza d'um esboço biographico, concentramos as nossas opiniões, que por menos contrahidas, não se alterariam n'um estudo de mais latas dimensões.
Em junho de 1871 annuiu Gomes Coelho a retirar-se com a familia de seu primo, o snr. José Joaquim Pinto Coelho, para a rua do Costa Cabral, na enganadora esperança, que alimentavam os seus, de que a proximidade benefica dos campos seria obstaculo à marcha, cada vez mais accelerada da molestia.
Levou comsigo alguns livros, especialmente inglezes, a cuja leitura se entregava com interesse. Não obstante os extremos carinhos da familia que o rodeava, e{37} a solicita assistencia dos seus intimos amigos, o primeiro mez foi de continuo definhar, sendo-lhe já motivo d'aborrecimento, muitas vezes, o rever as provas dos Fidalgos da casa mourisca, que se estava imprimindo, apesar de auxiliado n'este trabalho por seu primo, e podemos dizer enfermeiro, o snr. Pinto Coelho.
Assim foi declinando a vida de Gomes Coelho, até que á uma hora da madrugada do dia 12 de setembro, tendo passado a noite com seu primo, e o seu intimo amigo o snr. Custodio José de Passos, sem denunciar tão proximo desenlace, exhalou o derradeiro alento, depois d'uma longa agonia de tres quartos d'hora.
O Jornal do Porto, que fôra o primeiro a festejal-o, foi tambem a primeira folha do paiz que divulgou a triste noticia do seu passamento, n'estas sentidas palavras escriptas pelo meu amigo Sousa Viterbo, então colaborador effectivo do mesmo jornal:
Aproximam-se as tristezas do outomno e ás tristezas da natureza ajuntam-se as melancholias do coração.
O paiz e as boas lettras acabam de perder um dos seus mais estimaveis talentos. Joaquim Guilherme Gomes Coelho expirou esta madrugada á uma hora.
Mais que a nenhum outro jornal do paiz, ao Jornal do Porto cabe-lhe o dever de derramar uma lagrima de saudade sobre o tumulo do grande romancista. Foi nas columnas do nosso diario que o author das Pupillas do senhor reitor principiou a sua brilhante carreira litteraria.
Era com a maior avidez que os nossos leitores seguiam os folhetins do Jornal do Porto, quando esses folhetins publicavam as perolas da nossa litteratura, que se denominam—as Pupillas do senhor reitor, Uma familia ingleza, e a Morgadinha dos canaviaes.
A Providencia não quiz conceder a Gomes Coelho mais um momento de vida para rever as ultimas provas do seu derradeiro romance—Os fidalgos da casa mourisca. Que saudades que não levaria elle do seu livro!
Gomes Coelho não era sómente romancista: era tambem um homem de sciencia. Tres vezes concorreu ás cadeiras da Eschola-Medica e de tres vezes o seu talento robusto deixou um rasto fulgurante. Todos o reconheciam como uma das primeiras capacidades d'aquelle estabelecimento scientifico.
Como Soares de Passos, de quem foi amigo, Gomes Coelho deixa uma lacuna difficil de preencher na nossa litteratura. A sua carreira litteraria estava por completar ainda. A sua imaginação estava ainda fresca como um dia de primavera. Que de{38} flores que se não perderam; que de fructos esmagados sob a lousa d'um tumulo!
Gomes Coelho deixou retratado o seu espirito nas paginas suaves, doces, innocentes dos seus romances. Era uma alma singela como as scenas que tão delicadamente nos descrevia. Observador profundo, enamorava-se do que havia de bello na alma popular e deixava no escuro as miserias que ennegrecem a vida. Comprehendia que a litteratura tinha uma sacrosanta missão e nunca manchou a sua penna nas torpezas da comedia humana.
Gomes Coelho ha muito que se debatia com as agonias da doença. O seu espirito de gigante debalde luctava com a debilidade do corpo. Os seus profundos estudos, a sua assiduidade no trabalho deviam-lhe minar forçosamente a existencia. Debalde procurou na ilha da Madeira allivio aos seus padecimentos. Os amigos que o viram partir da ultima vez ficaram nutrindo a esperança de que os ares purificados da perola do oceano lhe dariam novo alento. A esperança foi illudida.
Durante a sua estada na ilha da Madeira, Gomes Coelho conviveu com um talento privilegiado, a quem o Jornal do Porto deveu tambem os thesouros opulentos da sua penna. Mais feliz que Francisco de Paula Mendes, Gomes Coelho veio morrer ao solo natal, entre os amigos que o queriam e a familia que tanto o estremecia.
Entre os membros d'essa familia conta-se um confrade nosso (era o snr. J. J. Pinto Coelho, então nosso redactor) que a estas horas verga ao pêso d'uma dor excruciante. Enviamos ao confrade amigo e aos seus o testimunho da nossa profunda magua.
Na typographia estava-se compondo o segundo volume do seu romance, quando a noticia da morte de Gomes Coelho corria de bocca em bocca, despertando geral commoção. Mezes depois, em janeiro de 1872 sahiam a lume os Fidalgos da casa mourisca. E todavia, áquella hora em que a triste nova circulava de praça em praça, de casa em casa, restava apenas do grande talento de Gomes Coelho um cadaver preparado para o sepulchro, ao sopé d'um Christo alumiado pela luz arquejante dos cirios.
O Jornal do Porto, fazendo-se cargo de acompanhar á ultima morada os despojos mortaes do escriptor cuja gloria primeiro prophetisara, escrevia no dia seguinte:
Baixou hontem á terra o cadaver do chorado e talentoso escriptor, cuja morte prematura noticiamos na nossa folha de terça-feira.
Os responsos de sepultura foram rezados na velha Igreja de{39} Cedofeita. Era grande o numero das pessoas que assistiram a este acto funebre: entre ellas o corpo docente da Eschola-Medica, de que o finado fazia parte, e alguns professores de outras corporações scientificas e litterarias.
Pegaram ás azas do caixão seis dos antigos condiscipulos do snr. Gomes Coelho, a quem elle tinha na conta de seus mais caros amigos. Foram os snrs.: Ernesto Pinto d'Almeida, Augusto Luso da Silva, Eduardo Augusto Falcão, José Augusto da Silva, Miguel Teixeira Pinto e José de Macedo Araujo Junior.
A chave do caixão foi depositada nas mãos d'um dos mais intimos do fallecido, o irmão do grande poeta que escreveu a Visão do Resgate. No rosto do snr. Custodio de Passos desenhava-se a dor do triste sacrificio que lhe impunha a amizade.
Entrou no seio da natureza o corpo d'aquelle que tão bem a tinha sabido representar nos seus quadros de poesia campestre. O seu espirito, porém, ficou encarnado nos seus livros e viverá entre nós emquanto se souber prezar a belleza das grandes obras d'arte.
O nome de Gomes Coelho não é d'estes nomes ephemeros que se gravam em lettras douradas no marmore d'um tumulo luxuoso.
Eu, profundamente impressionado pela morte de Gomes Coelho e obrigado a sahir do Porto, por motivos extranhos á minha vontade, no dia do seu enterro, fui dos primeiros a depôr uma flôr de saudade no tumulo havia pouco cerrado, porque era realmente um dos seus mais sinceros admiradores. Nas ultimas paginas do livro—Esboços e episodios—escrevia eu emboscado n'umas paragens sombrias do concelho de Sinfães:
D'esta vez já cá não encontrei as andorinhas. Sahi do Porto dias depois d'ellas partirem, e mais uma vez averiguei que sempre com ellas emigra para mais lucidas espheras a alma d'um poeta que succumbe á melancolia do outomno. Este anno as andorinhas e a alma de Julio Diniz partiram ao mesmo tempo. Estava a natureza de lucto, e a litteratura tambem.
Era um dia triste, pesado, chuvoso.
As andorinhas poisaram em bando nas cornijas musgosas da igreja de Cedofeita. Estavam a discutir provavelmente a necessidade de emigrar, a combinar talvez a hora da partida.
Michelet no seu formoso livro denominado—L'Oiseau—cita um exemplo eloquente d'estas discussões animadas das andorinhas momentos antes da partida. As pobrezinhas sacudíam, tremendo, os pingos d'agua que lhes emperlavam as pennas. Estavam amedrontadas da neblina. Deviam partir. De repente reboam os echos do campanario com uma toada lugubre. Era a{40} voz do sino que annunciava o passamento de Gomes Coelho. Não pensaram mais um momento, não reflectiram siquer.[2]
Partiram em direcção ao mar, atravessando os campos.
Pobre scismador, que sentia dentro do craneo a chamma dos predestinados para a gloria e no peito a urna embalsamada d'um coração sem macula, com que inexplicavel melancolia, e porque longas horas de dilacerante angustia, não veria elle destacarem-se, nos campos visinhos, sobre o céo pardacento do outomno, os troncos das arvores cada vez mais despidos e solitarios! Era aquelle um sentir-se resvalar para o tumulo, dia a dia, um despedir-se lentamente das suas affeições, dos seus romances que resumiam horas de enlevo e melancolia, e do seu ultimo livro, especialmente do seu ultimo livro, folha, que, ao voar do recinto da familia para a officina typographica, fôra talvez rociada pelas lagrimas furtivas d'um presentimento pungente.
Era que tinha de ser a ultima d'uma primavera que, em pleno esplendor de suas galas, via enovelar-se ao longe, avançando sempre, a nuvem negra do simoun que levaria após si folhas e flores para abysmar umas e outras nos despenhadeiros do sepulchro.
E a nuvem aproximou-se, e o simoun passou, e tudo o que estava ainda enthesourado nos cofres opulentos da primavera perdeu-se, mas a folha verde dos intimos vergeis tinha já voado, nas brisas suavissimas da gloria, a enastrar-se n'uma corôa entretecida por outras, suas irmãs, porque da mesma seiva se nutriram, e que pairava a uma altura superior ás impetuosas correntes que impellem o homem desde a vida inconsciente do berço até aos abysmos insondaveis da eternidade.
De Gomes Coelho só morrera o homem; o escriptor ficara.
FIM
[1] A Caldeira de Pero Botelho, romance, pag. 200.
[2] N'esta ruim profissão das lettras, tão escassa de rendosos benesses, é licito orgulhar-se a gente de certos galardões espontaneos que lhe dão á alma um momento de conforto. Por tal razão se transcrevem as palavras que nos enviava o snr. D. Antonio da Costa com relação ao artigo transcripto:
«Mando-lhe um abraço pelo sentido artigo biographico que escreveu a respeito do pobre Juio Diniz. Li-o, e muito gostei d'elle.»
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