The Project Gutenberg EBook of Estrellas Funestas, by Camilo Castelo Branco

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: Estrellas Funestas

Author: Camilo Castelo Branco

Release Date: March 18, 2010 [EBook #31694]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ESTRELLAS FUNESTAS ***




Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
produced from scanned images of public domain material
from the Google Print project.)






 

OBRAS

DE

CAMILLO CASTELLO BRANCO

EDIÇÃO POPULAR

L

ESTRELLAS FUNESTAS

 

 

 

 

 

VOLUMES PUBLICADOS

N.º 1—Coisas espantosas.
N.º 2—As tres irmans.
N.º 3—A engeitada.
N.º 4—Doze casamentos felizes.
N.º 5—O esqueleto.
N.º 6—O bem e o mal.
N.º 7—O senhor do Paço de Ninães.
N.º 8—Anathema.
N.º 9—A mulher fatal.
N.º 10—Cavar em ruinas.
N.os 11 e 12—Correspondencia epistolar
N.º 13—Divindade de Jesus.
N.º 14—A doida do Candal.
N.º 15—Duas horas de leitura.
N.º 16—Fanny.
N.os 17, 18 e 19—Novellas do Minho.
N.os 20 e 21—Horas de paz.
N.º 22—Agulha em palheiro.
N.º 23—O olho de vidro.
N.º 24—Annos de prosa.
N.º 25—Os brilhantes do brasileiro.
N.º 26—A bruxa do Monte-Cordova.
N.º 27—Carlota Angela.
N.º 28—Quatro horas innocentes.
N.º 29—As virtudes antigas—Um poeta portuguez... rico!
N.º 30—A filha do Doutor Negro.
N.º 31—Estrellas propicias.
N.º 32—A filha do regicida.
N.os 33 e 34—O demonio do ouro.
N.º 35—O regicida.
N.º 36—A filha do arcediago.
N.º 37—A neta do arcediago.
N.º 38—Delictos da Mocidade.
N.º 39—Onde está a felicidade?
N.º 40—Um homem de brios.
N.º 41—Memorias de Guilherme do Amaral.
N.os 42, 43 e 44—Mysterios de Lisboa.
N.os 45 e 46—Livro negro de padre Diniz.
N.os 47 e 48—O judeu.
N.º 49—Duas épocas da vida.
N.º 50—Estrellas funestas.

 

 

CAMILLO CASTELLO BRANCO

ESTRELLAS

FUNESTAS

 

 

 

QUINTA EDIÇÃO

 

 

1906
PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
Livraria editora e Officinas Typographica e de Encadernação
Movidas a electricidade
Rua Augusta—44 a 54
LISBOA

{4}

 

 

 

 


1906
OFFICINAS TYPOGRAPHICA E DE ENCADERNAÇÃO
Movidas a electricidade
Da Parceria Antonio Maria Pereira
Rua Augusta, 44, 46 e 48, 1.º andar
LISBOA {5}

 

A QUEM LER

Venho já a declarar que me desgosta o titulo d'este meu romance; mas não é esta a primeira vez que meus actos, invenções e palavras me desgostam, embora extranhos applaudam uns e outras.

Tem uma certa graça, mixto de luz e escuridade, aquelle titulo: o que não tem é verdade, verdade moral, acommodada á minha philosophia.

No romance que publiquei, intitulado AS TRES IRMÃS, rematei dizendo que não ha bons nem maus destinos, como se dissesse que o homem é o responsavel, o agente, o motor arbitrario de suas acções, das quaes lhe advém o socego ou a inquietação, a dita ou a desdita, a publica estima ou a desprezadora abominação.

Quem tal crê e disse, rejeita e desadora estrellas propicias ou funestas, como cousa de agouros, de crendices, de poetas, e de vulgar superstição.

O titulo, pois, tem muito com a fórma, e pouquissimo ou nada com a substancia d'esta novella. Quem não quizer chamar-lhe ESTRELLAS FUNESTAS, emende para os MAUS CAMINHOS DA DESGRAÇA, ou outro titulo{6} de seu sabor, que eu de tudo me contento, se o não denominarem INVENÇÕES DO AUCTOR.

Historia mais verdadeira nunca eu a escrevi. Por verdadeira de mais, estiveram os apontamentos d'ella a olvidarem-se-me na escuridade para onde os afastaram deferencias, appellidos e pessoas, umas que se prezam em si, outras, menos em si, e muito em seus antepassados.

Deliberei, depois de censurado por pessoa que, a meu instar, me cedera as notas, a dar á estampa successos, que a bem merecem, por serem de lição a infelizes, caidos em abysmos por suas proprias mãos abertos. Para me expôr á somenos tacha de indiscreto, mudei nomes, sentindo não poder mudar localidades, que então lá se ia abaixo, na rampa das chamadas conveniencias, o timbre da verdade historica, a côr, a essencia, o melhor das obras de arte.

Se, mesmo assim, muitos leitores, maiores de cincoenta annos, levantarem o sendal com que lhes quiz encobrir algumas feições da verdade, e as divulgarem a seus amigos, d'aqui me despeno da coima de linguareiro, offensor de cinzas illustres, e assoprador d'ellas aos olhos de quem os fecha para não ver os peccados de seus avós, contentando-se com ve'-los retratados na lona, e ennobrecidos nos bens herdados.

Dou-me pressa em destruir prevenções. Varram de sua idéa a perspectiva de que eu vá quebrar lages e carneiros por essas egrejas e capellas, chamando a juizo de homens as ossadas que, de muito, se ficaram esperando{7} a volta do espirito para o supremo dia. Longe d'isso. Tenho escassamente uma pobre penna de historiador; são leveiras de mais as minhas mãos para sustentarem a balança dos julgamentos, cujo fiel, para obedecer ao ouro fio, releva que penda em dedos, menos encodeados na cenosidade dos vicios.

Aquietem, pois, seus escrupulos os fieis á religião dos tumulos. Hão de ir comigo ao longo de um salão, em cujas paredes, sob profundos tectos de castanho armorejados, pende uma galeria de retratos, uns carrancudos como a philaucía, outros sorrindo ironicos, como em desprezo da nossa contemplação. As arrogantes effigies, ao cabo de contas, ficarão rindo; e nós bem póde ser que passemos chorando, porque somos de uma geração que não póde, nem quer, fazer riso da desgraça.

Esta historia é innocente. Podem le'-la senhoras de imaginação impressionavel, e os moços descontentes da vida incolor e monotona que a sociedade lhes prescreve. O auctor, quando era capaz, não enganou alguem escrevendo: ahi estão uns trinta volumes a defende'-lo da calumnia, se alguem o argue de romancista corruptor. Agora, que está velho, dobrada obrigação lhe corre de desvanecer preconceitos, que disparam em desordem da vida, e sacrificam os thesouros da paz ao pobre do coração, que tão mal os paga, por não ter cousa boa que dar por elles.

Crê o auctor que ha, no caminho da vida, muitas paragens alegres, se o caminheiro as sabe ver com os olhos já cançados de perseguir as fugitivas visões. Nem{8} podia deixar de ser assim, a menos que a verdade, filha do céo, não fosse um mal. E a verdade, para uns temporã, e serôdea para outros, a final, a todos allumia, como o sol do Senhor, que primeiro doura a colmada choça do montanhez, e depois desce os flancos da serra, doura e lustra os zimborios dos palacios, e verte do seu zenith um raio nas cavernas onde a formiga passeia por entre as unhas do leão.

Aquellas paragens verdadeiras do caminho da vida são hospedagem commum; todavia, os mais dilectos do anjo bom, que alli recebe os peregrinos, são os mais infelizes, os mais quebrantados da jornada, os que subiram até lá o desfiladeiro das illusões, e bem mereceram a graça do anjo, rebaptisados na agua de suas lagrimas.

Sentado n'uma d'essas paragens é que eu conto esta historia ás pessoas que a quizerem ouvir por complacencia com a minha velhice, e porque eu lhe assevero que este e todos os meus romances, olham a prevenir o leitor contra os infortunios procedentes da mentira do coração.{9}

ESTRELLAS FUNESTAS

PRIMEIRA PARTE

I

Alardeava em Lisboa suas pompas, liberalidades e desperdicios de rico morgado da provincia, Gonçalo Malafaya, primogenito e unico de uma das tres nobilissimas e mais opulentas casas do Porto.

Ha muitos annos foi isto. Ahi por 1778 é que o fidalgo portuense dava invejas aos da côrte, e a muitos namorados se atravessava, tentando a constancia das damas, e saíndo com a victoria, de que elle se lograva por mera ostentação, e nada mais que mareasse seu pundonor, ou o d'ellas.

Algumas d'essas damas levavam-lhe vantagem em pureza de sangue, e pouco o desegualavam em bens de fortuna. Admiravam-se os amigos de Gonçalo Malafaya que elle rejeitasse allianças de bom partido, vistas as condições das donas. Respondia elle que, desde menino,{10} estava o seu casamento pactuado com D. Maria das Dôres, sua prima carnal, tambem filha unica, e successora de grandes vinculos nas provincias do norte.

D. Maria das Dôres, menina de treze annos, saíra do convento de Arouca, onde fôra educada com suas tias, e vestira o magestoso habito de aia da santa rainha Mafalda, costumeira já esquecida n'aquelle mosteiro, fundado por uma rainha portugueza d'aquelle nome.

A joven aia saíu do mosteiro, com os seus bellos olhos menos levantados ao céo que inclinados ao espelho, e viu-se bonita, por comparação com as feias. Achou-se, ao mesmo tempo, na primavera da vida e na do anno.

Parece que a natureza inteira lhe estava dando uma festa. Recordar-se do seu quarto sombrio do convento, e das rabugentas admoestações e querellas de suas tias, era-lhe um retrospecto enjoativo. Seus paes andavam como a amostra'-la de casa em casa, maravilhados do juizo da morgadinha. O juizo de Maria das Dôres, a olhos extranhos, teria antes nome de mau genio, pois não era mais que uma desmesurada vaidade de sua pessoa, e altivez com que tratava mordomos, caseiros, creados, e ainda pessoas independentes de sua casa, que a não hombreavam em fidalguia. Esta prenda lhe incutiram as tias, freiras que passavam por boas, e santas mesmo seriam; mas muitas vezes estariam a pique de perderem suas almas, pela peccaminosa soberba com que disputavam primazias de linhagem com as suas conventuaes. Na cella das duas senhoras ou se falava de milagres ou de fidalguia; e era ordinario passarem da{11} linguagem, edificativa de sua visionaria crença em milagres, ao vanglorioso discurso de sua arvore genealogica, em demerito de alguma illustre religiosa bernarda, que, por sua parte, mofava da philaucía das nossas velhas senhoras, a quem Deus terá perdoado a fragilidade, por ser a mais inoffensiva de quantas ha.

O maior mal, proveniente d'isso, foi a vaidade da sobrinha; se, porém, seus paes gostavam d'ella assim, póde dizer-se que a educação de Maria fôra perfeita, á vontade dos paes.

Soberba com os fidalgos, que a requestavam, é que ella não era, nem os seus quatorze annos extranhavam a linguagem galanteadora. Já lá no convento a aia de Santa Mafalda ouvira falar muito de coração ás religiosas que o traziam exteriormente amortalhado no habito; presenceára por lá muitas borrascas passageiras de ciumes; ouvia conversações pouco recatadas das freiras com as noviças ácerca de certos primos que alli vinham de longes terras a estiarem saudades nas grades, e banquetearem-se do refeitorio monastico. Era tudo ísto de si tão trivial n'aquelles tempos, que um pae, impondo a suas filhas a profissão, tacitamente lhes dava a partido poderem ellas violar o voto pela mesma razão que elles lhes violavam as propensões. E, portanto, nenhuma religiosa, em annos desculpaveis, se pejava de tratar questões de amor, quando ia para o côro, ou voltava do côro, mixturando os psalmos de penitencia com os alambicados conceitos em que, por via de regra, começavam e findavam aquelles amores. E como ninguem se escandalisava{12} de tal, quer-me parecer que o peccado seria insignificante.

Como disse, concorreram desde logo á mão da herdeira os mais nobres appellidos d'estas provincias, uns tendo-a visto, outros não a vendo nunca; uns amando-a de repente, outros aborrecendo-lhe as maneiras, e mesmo a boca defeituosa. Maria das Dôres lá tinha no seu patrimonio tempero com que adubar-se para todos os paladares; ella porém dizia a suas amigas, empenhadas a favor de irmãos ou parentes, que o seu casamento estava justo desde o berço com o primo Gonçalo Malafaya.

N'aquelle tempo, semelhantes contractos entre duas familias, cujos contrahentes eram dois meninos no berço, eram inquebrantaveis. As creanças, aos sete annos, já se conheciam como esposos futuros; e, conforme iam crescendo e ouvindo falar do casamento, não tinham mesmo tempo de córar um do outro, quando, aos quatorze annos nupciaes, a esposada arrumava as bonecas para cuidar do marido. Raras vezes acontecia rebellarem-se os filhos compromettidos, contra a vontade dos paes. Se se amavam, era uma fortuna, tambem rara; se não se amavam, o que fariam era mutilar o coração, atrophia'-lo á custa de lhe abafar as pulsações, e deixa'-lo para ahi estar no peito, em lethargia, cujo despertar, já fóra de tempo, trazia ás vezes grandes desgraças e inuteis lições.

A esta regra usual, quiz o acaso contrapôr uma excepção, incutindo no animo de Gonçalo Malafaya extraordinarios{13} affectos a uma dama lisbonense, e no de Maria das Dôres imperiosa inclinação a um cavalheiro de Amarante.

Pediu Gonçalo aos paes licença para casar com a menina, mandando-lhes um traslado da arvore genealogica da sua amada. Os velhos responderam-lhe negativamente, com muitas razões, sendo a primeira razão do casamento evitar a demanda por causa dos vinculos de Freijoim e Aguas Santas; segunda razão, andarem ligadas as duas familias, através de nove gerações desde 1530; terceira razão, a palavra dada, entre fidalgos que a tinham em maior valia que a propria vida. Seguiam-se outras razões, rematadas por esta paternal caricia: Se desobedeceres á honra, aos paes e aos deveres a que teus appellidos te obrigam, conta com a nossa maldição.

Gonçalo abafou os respiradouros do coração, e saíu de Lisboa, caminho de sua casa. Muito sizo teve elle em conhecer o nenhum remedio do seu mau destino, e fugir á presença da senhora, expediente unico de salvar-se, e salva'-la de maiores dôres. Salvaria?...

Alem de quê, o mancebo, para distrair saudades na jornada, ia pensando em sua prima, que elle vira galantinha, aos oito annos, e acompanhára a Arouca, tendo elle doze. Lembrava-se de lhe ter dado flores, e recebido, nas festas do anno, umas bocetas de murcellas muito enfeitadas, com trama de papel dourado, e as iniciaes da prima floreadas e entrelaçadas nas suas. Depois, uns versos, que ella lhe mandára para Lisboa, escriptos naturalmente{14} pelo capellão de Arouca, frade bernardo, que apanhára as musas de surpresa.

Com estas e outras imaginações, conseguira Gonçalo empanar o retrato da fidalga da côrte, visão teimosa que ainda a revezes lhe apparecia n'algum relance poetico da jornada, onde assombreavam arvores, ou herveciam prados, ou murmuravam fontes. A saudade é a poesia de todo o homem. O que melhores poetas teem dito, melhor o teem sentido pessoas que nunca fizeram versos. Onde virdes um homem recolhido com a sua saudade, ahi está um poeta, porque a poesia não quer dizer senão «enlevo doloroso».

Entretanto Maria das Dôres, sobejamente senhora de seus olhos e palavras, ia alimentando esperanças ao morgado de Amarante, e nutrindo as suas á sombra da ostensiva indifferença dos paes. Estes, porém, avisados ou surprehendidos, atalharam o pendor da filha, dizendo-lhe que bem sabiam que o seu galanteio era um brinquedo; mas convinha pôr-lhe termo, porque estava a chegar de Lisboa o primo Gonçalo. Maria, acostumada a dizer desassombradamente seus pensamentos, declarou que antes queria casar com o de Amarante, a quem amava. Rebateram-lhe os paes a frivola razão, com outras eguaes na substancia e na fórma ás que demoveram Gonçalo, mas Maria, menos reflexiva ou mais animada, replicou com um secco e desabrido «não quero», ousadia que deu em resultado ser a menina ameaçada de entrar outra vez no mosteiro de Arouca, e esperar lá que o juizo viesse.{15}

Maria, mediante os carinhosos conselhos da mãe, cedeu á vontade do pae; e afastou-se do solarengo do Tamega, o qual, prezando-se de cavalheiro tambem se retirou aos seus senhorios, respeitando a convenção feita entre as duas familias sobre o consorcio dos seus representantes.

Chegou Gonçalo de Malafaya, no remate d'este episodio.

Viu sua prima, e reparou logo n'uma verruga que ella tinha a um canto da bocca, e no desaire que lhe dava aos beiços. Achou-a mal ageitada de corpo, desgraciosa nos meneios, rustica nas palavras, e com manifestas tendencias a medrar muito em largura, e a não espigar mais. Assim devera ser. Se elle vinha affeito ás gentilezas das damas da côrte, d'aquellas tantas que elle amára, todas bem fallantes, discretas, esbeltas, apertadas de cinta, arrastando soberanos donaires com muito garbo, dízendo tudo como quem canta, extendendo aquelles gemebundos ans, como cauda das palavras, geito tão antigo em Lisboa, que já, em 1650, D. Francisco Manuel, faz riso d'essas modulações esquisitas, de que o nosso fidalgo portuense tinha tantas saudades! Em summa, Gonçalo não gostou da prima.

Ora Maria das Dôres, á primeira vista, achou que o primo Gonçalo vestia uma casaca muito bonita de seda azul com bordados muito casquilhos nas portinholas, e que tinha um pé pequenissimo, quasi todo coberto por uma fivella de ouro rendilhado em galantes feitios. Ouviu-o falar com grande encarecimento das fidalgas{16} de Lisboa, especialmente de uma que era filha do conde de Miranda, a qual, para ser amada, o falar era sobejo, que, mostrando-se, cego devia ser quem a não adorasse. O pobre mancebo parece que assim estava desabafando a sua paixão, ou refrigerando a saudade, que mais se assanhára, comparando a senhora de Lisboa com a prima do Porto. Naturalmente, Maria das Dôres, resentiu-se dos gabos indelicados ás meninas de Lisboa, e com intencional preferencia a uma filha do conde, cujo nome Gonçalo pronunciava, suspirando, como pessoas beatas suspiram proferindo o nome do santo ou santa de sua devoção. Desde ahi, a fidalguinha começou a amuar-se, e a metter á galhofa o primo, ora arremedando-lhe a cantoria do palavreado á lisboeta, ora tomando posturas comicas de pernas e de braços, imitando-lhe as attitudes palacianas, que bem póde ser Gonçalo as exaggerasse um pouco. O que certissimamente aconteceu foi Maria das Dôres não gostar de seu primo.

Aqui temos, pois, os dois noivos, face a face, quando o enxoval da esposada está prompto, e o palacete do moço se preparava, e os primos de longe teem já convite para dia designado.

Maria das Dôres teve a innocente coragem de dizer a seus paes que aborrecia o primo Gonçalo.

—És tola!—disse-lhe o pae.

—És uma creança!—accrescentou a mãe.

E continuaram a azafama, para que tudo sobejasse nos festejos nupciaes, excepto a alegria dos desposados. Gonçalo Malafaya ousou ainda contrariar a vontade paternal,{17} dizendo a medo, que um casamento assim não promettia senão desgraças. O velho rebateu victoriosamente a frioleira do filho, contando-lhe em miudos a historia do seu casamento, e do casamento de seu pae, e de seu avô. Eram tres historias, que o leitor dispensa saber, e tem razão. A moralidade de todas era que tanto elle, como seus illustres pae e avô, tinham casado com primas, sem amor nem vontade, e com muita repugnancia; e, apesar de tudo, tinham vivido felizes, ou pelo menos resignados, visto que, ajuntava o velho, o coração pouco tem que ver com o casamento, e casamento será tudo quanto ha mau, mas escravidão de certo não é. E a este proposito, discorreu o velho Malafaya alguns despropositos, que iam mal a seus cabellos brancos, e bem podiam chamar-se o prefacio desmoralisador de um casamento. Porém, como estas causas, postas em balança com a indisposição matrimonial do filho, inclinassem para o peor lado o fiel, o velho cuidou equilibrar os pratos lançando no mais leve os vinculos litigaveis de Freijoim e Aguas Santas, os quaes rendiam seis mil cruzados, e estavam na casa com mui duvidosa legalidade.

Na ante-vespera do casamento, as duas familias, lavradas as escripturas para segurança dos bens livres, foram de passeio, Douro acima, á Pedra Salgada, onde um dos contrahentes tinha uma quinta.

Era pelo tempo do savel. Os pescadores de Valbom carregavam nos barcos as redadas da sua pescaria, Maria das Dôres entretinha-se a contemplar a labutação dos{18} pescadores, e as rimas de peixe extendidas no areal. Aguilhoada pelo appetite, exclamou:

—Ó minha mãe! tenho vontade de comer savel; mande comprar um, que eu tenho vontade de savel assado!

Toda a gente riu urbanamente do appetite da menina, excepto Gonçalo que, em sua consciencia, classificou de grosseirismo o desejo, e muito boçal a maneira de o exprimir. Então, para seu maior flagello, lhe acudiu á idéa a recordação de uma merenda a que assistira em Cintra com a filha do conde; na qual merenda de indelevel saudade, a perfumada e espiritual menina escassamente comeu um terço da aza de pombo, um olho de alface, e dois gomos de laranja, e, ainda assim, a pedido do amantissimo Gonçalo; que, se elle não insta, áquella compleição angelica bastaria o cheiro da madresilva. Se ao menos, Maria das Dôres tivesse cobiça de savel, e o não comesse!... Seria um gosto pueril, sem o desagradavel espectaculo da deglutição, em que ella era de todo o ponto natural, sem ter na menor conta os preceitos da cerimonia, que mandam engulir tão subtilmente que nos não ouçam o rumor do mastigar. Maria das Dôres mastigava o savel com a presteza de mandibulas egual á impaciencia do seu appetite. Comeu, antes de jantar, na presença do noivo e dos numerosos parentes, duas grossas postas do pescado, como a filha do conde de Lisboa, em identicas circumstancias, ouviria em delicias, duas odes anacreonticas, recitadas pelo noivo á sombra dos arvoredos da sua Cintra.{19}

Ora eu que, até certo ponto, não estabeleço estremas entre as mulheres, e as julgo eguaes perante a lei do amor honesto, opponho-me á distincção, que Gonçalo fazia entre as duas senhoras. O meu parecer é que se Maria das Dôres amasse o primo, comeria apenas o terço da aza do pombo, e o olho da alface, e os dois gomos de laranja; e que a filha do conde, se não amasse Gonçalo, comeria as postas do savel fresco, se o tivesse em Cintra. A sciencia ha de andar sempre ás aranhas n'estes mysterios do coração relacionados com o funccionalismo do estomago.

Depois do jantar, durante o qual a morgada demonstrou que o sável fôra um prologo curto de um grande livro, Gonçalo retirou-se com a sua dôr a um recanto da quinta, onde havia um tanque, em que nadavam patos, á sombra de copados chorões. Indo Maria das Dôres vêr rebanharem-se os seus patos, deu de rosto com o primo, que estava lendo umas cartas, já avincadas do muito uso.

—Estavas aqui?!—disse ella, em ar de retroceder.

—Vem cá, prima Maria das Dôres—disse elle emmassando as cartas na carteira de marroquim.—Senta-te ao pé de mim.

A menina foi sentar-se ao pé d'elle, atirando migalhas de cavacas de Arouca aos patos.

—Gosto tanto destas aves!—disse ella. Creei-as no convento, e trouxe-as comigo. Olha como ellas me conhecem!...

—Hei-de mandar vir de Lisboa—disse Gonçalo—um{20} casal de patos reaes, para te dar, prima, que são muito lindos.

—Eu gosto mais d'estes—atalhou ella.

—Mas, se eu te der outros, tambem has-de gostar d'elles, prima Maria das Dôres?

—Tambem, mas estes fui eu que os creei, e os outros já de lá vem creados pela filha do conde provavelmente...

Fez Gonçalo um gesto de espanto, e de zanga, vendo a ironia mais expressiva no rosto que nas palavras da prima.

—A que veiu aqui a filha do conde!?—disse elle com azedume.

—É que tu estás sempre, a proposito de tudo, com a filha do conde ás voltas. Ninguem veste, nem fala, nem anda como ella. Se a prima Peixoto faz um rico vestido, a filha do conde tem um mais rico. Se eu compro um collar de granadas, a filha do conde tinha um de esmeraldas. Se a prima de Simães vem á cidade vestida de campo, como se vestem na França as damas da côrte, a filha do conde é que sabia vestir-se a preceito, quando cavalgava por Cintra, com admiração de toda a gente. É sempre a filha do conde para tudo! Por isso é que pensei que os patos reaes tambem eram da filha do conde.

Gonçalo Malafaya ficou atordoado, já pela affronta feita á mulher cujas cartas apaixonadas estivera lendo, já pela extranheza que lhe causou o desembaraço da menina, que, até áquella hora, simulára completa indifferença,{21} ouvindo-o falar da filha do conde de Miranda. Fez-se, porém, uma instantanea mudança no espirito do noivo, saudavel mudança que lhe lisongeou a vaidade. Julgou elle que Maria o accusava de desleal, e de puro ciume rompia n'aquella insolita ironia contra a lisbonense. Isto, que parece nada, foi grande parte na quietação de Gonçalo. O ciume da mulher, de quem se não espera nem pede amor, é uma revelação agradavel, ainda mesmo que valha pouco para a felicidade do coração.

Depois de alguns instantes de silencio durante os quaes Maria continuava a esmigalhar cavacas aos seus dilectos patos, disse Gonçalo:

—Eu tenho falado na filha do conde de Miranda por que ella é o ornamento da côrte e o modélo das fidalgas.

—Deixa'-la ser...—atalhou Maria—Que tenho eu com isso? Eu cá, visto, e ando, e falo como sei, ou como me ensinaram; e ella faz o mesmo; se o faz melhor, seu proveito. Por que não casaste com ella, primo?

—Por que nossos paes querem que eu case comtigo. E tu por que não casaste com o Magalhães de Amarante?

Maria córou, e deu graças ao seu anjo da guarda, quando viu entre as arvores proximas um rancho de senhoras e homens que andavam em busca dos noivos.

Gonçalo apenas teve tempo de lhe dizer:

—Não te parece que a nossa união será uma grande desgraça?

A prima não respondeu; levantou-se de golpe, e foi de{22} corrida ao encontro das senhoras que traziam abadas de rosas para espalharem sobre a noiva e Gonçalo que recebeu friamente a graça.

Seria ajuizado conjecturarmos que, depois d'aquelle desamoravel colloquio dos primos, um ou ambos rompessem abertamente contra a submissão, fugindo ao abysmo, que para elles nem sequer já se escondia debaixo de flores. Ambos o estavam vendo em toda a sua profundeza. Nenhum d'elles fiava de sua indole a resignação precisa para não blasphemar contra Deus ao despedaçarem-se na queda. Nenhum acceitava a corôa do martyrio como necessaria. Maria se recusasse formalmente, seria castigada com o convento. Quem não ha-de chamar paraizo terreal a um convento, se o compara com as infernaes torturas da vida intima em união indissoluvel? Gonçalo, desobedecendo a seu pae, que punição podia temer? Dissabores domesticos, privações de recursos, a venda de seus cavallos, um guarda-roupa menos recheado de sedas e velludos, prohibição de ir a Lisboa, reclusão em alguma das quintas do Douro. Mas que monta isto, em confronto da liberdade de gastar á larga, e chamar seu ao ouro que se atira por entre as grades de um captiveiro? Que tem que a peçonha seja bebida por vaso de relevante preço? E a peçonha das uniões odiosas e odientas, tragada gotta a gotta, ha ahi morrer de mais lentas e espantosas dores, quando as victimas se não buscam refrigerio na desvergonha e no crime?

A estas perguntas a razão do homem oscilla, e cae{23} em abusões injudiciosas. Então me lembra o destino, a fatalidade e as estrellas funestas. Mas é tão avesso á minha razão dar de barato ao nada a explicação dos mysterios da vida humana, que antes quero acreditar que alguns paes infelicitam os filhos, por se acostumarem á infelicidade propria; e alguns filhos, olhando de longe para o infortunio, rebordam o ponto negro, que lá está, das cores variegadas e formosas que a imaginação nova lhes empresta. Nos primeiros annos da vida, a idéa da desgraça formamo'-la imperfeitamente. Tantos são os vagos bens que anhelamos, a tantas miragens do deserto nos fogem os olhos namorados, que nunca o absoluto infortunio, as plagas infinitas sem fonte de agua, nos parecem possiveis, nem experimentadas pelos mais famosos infelizes. Os romances dão-nos espectáculos de maxima desventura; as tragedias ensanguentam a pagina onde vertemos lagrimas; a voz publica relata supplicios da vida particular denunciados pelo gemido ou pelo escandalo. Que vale isso para imaginações juvenis? Ninguem se crê talhado para o molde das miserias excepcionaes. Além de que, tal homem que a sociedade considera desgraçado na vida intima, com sua esposa, vem ao mundo, e sorri, e folga, e aporfia em prazeres com os mais felizes! tal esposa que tem fama de martyr ou de algoz de seu marido, vem ao mundo e rejubila, e captiva os olhares, que principiam piedosos e acabam por se desviarem descrentes de um martyrio, que deixa sorrir a martyr, ou de uma crueza que tinge de amavel brandura o semblante do algoz.{24}

E assim é que a penetração de ler em almas, e ver no sorriso as lagrimas, e no gesto meigo o arremesso do tigre, só póde da'-la muita experiencia de dores proprias, muito estudar-se cada um em suas chagas e na industria com que as escondeu de alheios reparos. Isto não o faz a mocidade, não o podia fazer Gonçalo Malafaya, nem D. Maria das Dôres. No instante em que um ao outro tacitamente se disseram ou podiam dizer: «ahi estão os pulsos para as algemas; mas o coração é livre»—n'esse momento o anjo da desgraça matizou-lhe de flores a garganta do despenhadeiro, e elles acintosamente se cegaram, pedindo cada um á sua imaginação o segredo de desatar as algemas do pulso e acorrentar com ellas as dos deveres.{25}

II

Casaram. As exterioridades, promptas sempre a mascarar hypocritas ou a desmentir infelizes, esmeraram-se no esplendor do cortejo, nas festas incansaveis de um mez, que apenas chegou a satisfazer a ancia de folias. Era numerosa a parentella, derramada em tres provincias. Viera toda a felicitar os noivos, e nenhuma voz amorosa lhes disse em que preceito assentava a felicidade conjugal. Os emboras fundavam na certeza de se unirem duas familias, que continuavam uma varonia ininterrupta de cinco seculos. Diriam mais que já não havia medo que algum intruso viesse enxertar-se no tronco illustre dos Malafayas e Azinheiros. Os velhos iam á sala dos retratos, e affirmavam que o bispo de Leiria Lopo Azinheiro, e a Dona abbadessa de Lorvão Mafalda Azinheiro, e o governador de Mombaça Heytor Malafaya se estavam sorrindo de contestes com tal casamento. E os outros parentes iam ver a alegria dos retratos, e os retratos em verdade pareciam sorrir da inepcia da sua posteridade; porque o bispo fora um virtuoso prelado:{26} a abbadessa morrera em cheiro de santidade; e o governador de Mombaça, se não morreu santo—que o governar na India era pouco azado molde para santos—era pelo menos esperto, consoante as chronicas o descrevem.

Não se persuada o leitor que lhe está imminente uma trovoada de escandalos e offensas á moral. O infortunio da vida intima de dois casados existe sem delictos, sem vergonhas nem aggravos, que resaltam em injurias ou insultos á dignidade humana, das janellas para a rua. O marido póde ser desditoso, sem deslustre de sua honra; a mulher póde ser má e intoleravel, sem enlamear sua fama para sacudir o stigma á face do marido.

Ha umas mulheres que D. Francisco Manuel, na sua preciosa CARTA DE GUIA DE CASADOS, denomina bravas. É este o termo que friza a primor em D. Maria. Das bravas, como a representante dos Azinheiros, diz assim o citado philosopho:

«Cuidam com falso discurso, algumas mulheres, que como ellas guardem a lei devida á honra de seus maridos, em tudo o mais lhes devem elles de soffrer quanto ellas quizerem que lhes soffram.»

E accrescenta:

«É este um mero engano, por duas razões; a primeira porque nada se lhes deve ás honradas de guardarem a obrigação, em que Deus, a natureza, o mundo e o medo as tem posto... A segunda...»

A segunda razão desconcerta com o nosso proposito. Abaste-nos saber que Maria das Dôres, ou porque não{27} sentia o coração, ou porque lhe comprimia os impetos com a sua indole soberba, ou finalmente porque se revia e estimava na pureza de sua consciencia, é de todo o ponto averiguado que sobre sua memoria podem os panegyristas afoutamente encarecer-lhe a lealdade sem macula.

O mesmo quizera eu dizer de Gonçalo Malafaya; mas estão aqui ao meu lado os apontamentos protestando contra as demasias da minha caridade, sendo certo que as piedosas fraudes tamanha censura merecem no romance como na historia.

Gonçalo era um homem amavel, cortezão, audacioso, e mestre em astucias, aprendidas «heroicamente» na côrte, que era ainda, com pequenas cambiantes, a mesma côrte de D. José I, successora da outra do nosso Luiz XIV. A piedade de D. Maria I influira nas festas de egreja, nas pompas do culto, e apenas se fizera reflectir na vida das salas. O impulso estava dado; a religiosidade da soberana seria inefficaz a empecer-lhe o passo, ainda mesmo que a sentinella inquisitorial não tivesse adormecido na sua guarita, de embriagada que estava de sangue.

Nenhum outro fidalgo portuense rivalisava em merito palaciano com Gonçalo Malafaya. Amavam-n'o as mulheres pelas graças e chistes da sua conversação, moldada sempre ás leis da cortezia e da elegante selecção das finezas. Prezavam-n'o os mancebos, dado que o invejassem, pelas lições de phrase, e de attitudes, e das mil insignificancias que n'uma sala completam o homem{28} de primor. Os velhos fidalgos, que, em Lisboa, tinham visto os Marialvas e os Vimiosos, diziam que o Porto seria assombro da côrte, se os seus mancebos fidalgos fossem fadados de indole tão prestante, como a de Gonçalo, para se affeiçoar aos grandes e raros modelos, que, na capital, mantinham as tradições do bom seculo. O bom seculo dos velhos é sempre o seculo em que elles foram rapazes, amados e requestados das meninas coevas, as quaes, ao mesmo tempo, estão lamentando, do alto dos seus setenta annos, a baixa condição em que a humanidade se vae degenerando.

No entanto, quem visse o festival cavalheiro nas salas do Porto, nas de Lamego, nas de Amarante, amando, gracejando, planeando caçadas, bailes e folguedos, quem diria as amarguras escondidas n'aquella alma? Sobre a ferida da infinita saudade d'aquella filha do conde, suspirosa sempre d'elle e votada ao claustro por seu amor, que travo de fel D. Maria das Dôres lhe espremia! Hora de paz uma só lhe não dava em casa a esposa. Não era o coração alanceado por ciumes, que sacudia a farpa; era já a phantasia engrandecendo o ultrage para dar vulto ás queixas. Na vida intima, desvelava-se o desamor da esposa; mas para materia da accusação tudo lhe vinha a talho, quer o marido revelasse tristeza taciturna, quer se expandisse em simuladas alegrias. Se melancolico, era o fastio d'ella que o entristecia; se alegre, eram as noticias da filha do conde que tinham chegado. Se o acompanhava aos bailes, afeiava o aspecto de tão má sombra, que, por contagio, diffundia tristeza em todas{29} as physionomias, e mandava tirar a sege, quando o marido se mostrava mais empenhado no jogo, na dança ou na conversação. Em casa, compendiava os artigos do libello accusatorio, em que muitas vezes eram calumniadas senhoras innocentes, e intenções de mera cortezia. Explicações eram exasperar-lhe a sanha; o silencio era confirmação de suspeitas; um sorriso em resposta era redobrar o ultrage pelo escarneo; um gesto desabrido, uma ameaça á justiça do queixume. Quando os pretextos se demoravam na phantasia fatigada de crea'-los, Maria das Dôres lançava mão de creancices. Deixava cair de proposito uma porcellana, e gritava contra o marido que a tinha mudado do seu local costumado. Gonçalo tinha dois partidos a seguir; ou confirmava com o silencio a falsidade, e então o despeito recrescia com o supposto desprezo; ou a contestava com acrimonia, e então sobrevinham altercações, que por parte d'ella, terminavam em syncopes de raiva.

Gonçalo recolhia regularmente á meia noite, e achava a esposa a passear na antecamara, assoprando ás mãos, se fazia frio, e fingindo que tiritava. Perguntava-lhe mansamente o marido porque não se tinha deitado. A resposta era um descomposto aranzel de invectivas contra elle e contra as familias que lhe tomavam o marido para lhe divertirem as noites de inverno. Deixou Gonçalo de ir aos saraus. Maria das Dôres, á terceira noite de dolorosa abstenção, perguntou-lhe se elle ficava em casa para dormir ao fogão, e se casára com ella para lhe ensinar a brincar com as tenazes. Tornou-se Gonçalo{30} aos habitos antigos, e conformou-se com a dura pena de adormecer embalado pelos convicios revelhos e repisados, os mesmos sempre na phrase e na toada, a monotonia nos queixumes, a mais horrivel de quantas ha!

Este viver durou um anno, cinco annos, dez annos, vinte e quatro annos.

N'esse longo e penivel discorrer de dias concatenados, vejamos se algum incidente nos convida a variar de linguagem e a descançarmos o espirito em algum ameno remanso.

Decorridos dois annos, nasceu uma menina, que foi chamada Maria Henriqueta. Ácerca do nome, renhiram quinze dias os esposos, e sete mezes já tinham disputado, antes d'ella nascer. Claro é que argumentaram em hypothese até ao nascimento. Sendo menino queria ella que se chamasse Ruy, á semelhança de seu vigesimo segundo avô; sendo menina, Maria, porque nos ultimos quatro seculos, todas as senhoras morgadas da familia se chamavam Marias. Gonçalo desejava que fosse Heitor, sendo rapaz, e Beatriz, ou Mafalda, na outra hypothese.

Venceu a mãe, e chamou-se a menina Maria Henriqueta.

As formosuras que deu aos anjos a escola christã, vertendo á tela as côres e os feitios desenhados de bello ideal, todas tinha Maria, aos oitos annos de edade. Quem a via tão linda, e ao mesmo tempo melancolica e meiga, sem abrir nos labios infantis o sorriso de seus annos, cuidava que, alguma hora, as azas de anjo lhe{31} implumariam as espádoas, e ella as desferiria em vôo para Deus, que a mandára á terra a mostrar que bellezas povoam a bemaventurança, e como as almas lá andam vestidas.

Bem pudéra aquella pomba depôr no regaço maternal um raminho de oliveira, e alumiar n'aquella casa o primeiro dia de paz. Por ventura, a tristeza do anjo seria a magua de não ter o condão de conciliar seus paes. Póde ser que as caricias fossem poucas no berço, e á mingua d'ellas, a menina crescesse como orphanada de coração, e sedenta das meiguices, que ella andava mendigando a troco das suas.

Quantas vezes a pequenina acordava alvoroçada aos gritos de sua mãe, e ás estrondosas disputações dos dois, em competencia de phrenesis! Quantas vezes a sua ama de leite fugiu com ella para lhe reconciliar o somno, afugentado pelo medo dos berros e das visagens da mãe!

Raras vezes Gonçalo se entretinha com a filha, porque Maria das Dôres, á falta de outros peguilhos, até das muitas caricias do pae á menina tirava assumpto para bravezas de genio. Umas vezes por aperta'-la de mais; outras, por atordoa'-la com os balanços; outras, porque a fazia chorar; outras vezes, porque as cocegas a faziam rir, em risco de rebentar uma veia. O pae, afinal, largava de enfadado a creança, e saía de casa com os dentes e punhos cerrados, como se assim afogasse a serpente que lhe empeçonhava os mais innocentes gosos.

O amor de Maria das Dôres á filha tinha accessos de doudice. Acontecia arrancar-lh'a dos braços a ama, quando{32} receava que os boléos e tombos, em que a mãe a trazia do seio para o regaço, lhe tolhessem a creança. A menina ganhára á mãe uns medos taes, que dava a fugir, quando lhe podia cortar as voltas. Estes passos, algumas vezes, lhe custavam castigos, que tornavam a innocente cada vez mais assustadiça. Com o pae era differente o apego de Maria. Mal lhe ouvia a voz, corria-lhe aos braços, e saltava-lhe n'elles, como se quizesse librar-se no ar, e ir-se alando, de nuvem em nuvem, até esconder-se no céo! Se Deus te désse então as tuas azas! D'este amor ao pae, eram mais que muito frequentes os reparos de Maria das Dôres, que desfechavam em disparates de louco ciume, e declamações contra a Providencia, que nem sequer lhe deixava os afagos de sua filha. Gonçalo respondia acarinhando mais a creança, talvez com malicioso prazer; mas cara lhe saía a malicia, que ouvia improperios sem conta nem medida, e a muito custo salvava a menina da vingança da mãe, fula de raiva.

Fez Maria nove annos, e já sobejavam luzes de razão para ver sua mãe, e compara'-la, sem poder confundi'-la, com as outras senhoras. Sentia já uns toques de compaixão, quando via o pae injustamente accusado, e devorado de impaciencias, tanto mais dilacerantes quanto a prudencia as afoga nas lagrimas intimas. Alguma vez ousou a menina pedir á mãe que cessasse de mortificar o pae e humildemente offerecia o rosto á bofetada que lhe vinha em retorno da supplica. E nem assim Maria se queixava ao extremoso pae. Escondia-se a{33} chorar no seio da sua ama, a quem ella muito de alma chamava mãe e pedia amparo nas occasiões em que a irritabilidade de Maria das Dôres recrudescia contra quanto a rodeava, ou lhe fugia ás sanhas.

Avisado miudamente pela ama, que afinal fôra expulsa, determinou Gonçalo Malafaya mandar educar sua filha n'um collegio inglez em Lisboa, não tanto para prende'-la, como para subtrai'-la á mãe. Fôra plano d'elle chamar mestres a casa, uns nacionaes, e outros extrangeiros, que era esse o usual systema da fidalguia d'estes reinos; mas o pobre homem, levando a filha ao collegio, sobre aparta'-la dos rigores da mãe, poupava-se a augmentar em casa as testemunhas do seu desgraçado viver, que seriam tantas quantos fossem os mestres, e estes deviam ser muitos, se andassem á caprichosa escolha de sua mulher. Disse elle timidamente o seu intento a Maria das Dôres. Ocioso é dizer que foi contrariado com estirados e repetidos discursos. Tal motivo deu fonte caudal para querellas de algumas semanas. Gonçalo, feito o seu proposito, cogitou em machinar traças para tirar a menina; mas nenhuma lhe dava azo a saír-se bem com o seu louvavel intento. O que elle queria evitar era o ruido do facto, e a precisão de explicar, em abono seu, os precedentes que o motivaram.

A sociedade apenas desconfiava dos desgostos surdos de Gonçalo; e este por vaidade ou por interesse de cousas menos louvaveis da sua vida exterior punha todo o seu cuidado em desmentir ou affrouxar a curiosidade{34} publica, sempre em ancias de escandalos, para dessedentar-se das sequidões da vida quotidiana.

Um successo, apparentemente casual, proporcionou o afanoso desejo de Gonçalo. Os paes de Maria das Dôres tinham ido a vindimas ao Alto-Douro, e ali adoeceu mortalmente a mãe. Vieram apressados portadores com liteira a buscar a filha, por quem a moribunda chamava com incessantes brados. A tempo isto foi que Maria Henriqueta estava de cama com leve mas febril doença. Sua mãe ainda tentou leva'-la, se bem que não desconfiada da alegria occulta no animo do marido; mas os medicos contravieram ao desarrasoado desejo. Saíu Maria das Dôres a assistir á agonia de sua mãe, que foi demorada, e por lá se deteve até ás honras da sepultura, uns trinta dias.

Entretanto, a menina convalesceu, parece que só da alegria de se ver convalescer nos braços do pae, com a ama querida ao seu lado. Gonçalo fizera chamar a ama para ser no collegio a aia da filha. Deu-se pressa na partida para Lisboa, e deixou aos paes o encargo de aquietar as iras da esposa, quando ella voltasse do Douro.

Então contou Gonçalo a seu pae as miudas scenas de sua desgraça. Carecia este de sensibilidade para receber a revelação como castigo. Chegada a sua vez de falar, o velho contou ao filho a longa historia de seus proprios infortunios, soffridos uns com desprezo, outros com paciencia, e todos na certeza de que não ha ninguem feliz. Caíu-lhe a proposito contar uma arrastada historia{35} de um rei poderoso da Asia que mandára chamar ao fim do mundo um philosopho para que este lhe resuscitasse um amigo, e que o philosopho promettera dar vida ao morto, tirando a concerto que o rei mandaria escrever no tumulo o nome de um homem de trinta annos que nunca soffresse um desgosto. Mandou o rei procurar tal homem em todo o mundo; e como o não achassem os enviados, o morto continuou a dormir o seu somno eterno, e o rei mandou o philosopho para a sua terra.

Ouviu Gonçalo o conto, e despediu-se do pae, promettendo dar a sua filha a felicidade que perdera por obediencia, podendo ser ditoso com a mulher, que a sua alma escolhera.

—E os vinculos de Freijoim e Aguas Santas!—replicou triumphantemente o velho.{36}

{37}

III

Estava ainda no Douro Maria das Dôres, quando recebeu o inesperado golpe em uma carta muito amoravel, que sua filha lhe escreveu do collegio, e outra, não menos humilde, e mais reflectiva do marido. Então comprehendeu ella o silencio de Gonçalo, tendo-lhe ella escripto para o Porto duas cartas, uma queixando-se de passar mal as noites, e desejando que a mãe, a ter de morrer, abreviasse os paroxismos; outra, raivosa, por ter escripto duas, sem receber, sequer, resposta da primeira. Aquelle sequer denota que a snr.ª D. Maria das Dôres queria receber resposta da segunda carta que estava escrevendo. E onde póde chegar o mau genio!

Esteve a senhora algumas horas arquejante de cólera sem saber que deliberação tomar. Rompeu, depois, em queixas contra o pae que, a despeito da vontade d'ella, a casára com o primo. O velho ouviu os clamores, e disse:—«Se tua mãe vivesse, essa santa poderia contar-te o que me soffreu a mim. Deus sabe com que remorsos eu cá fico chorando n'este mundo!... Eu casei{38} por honra da familia, e para me forrar a questões de vinculos e direitos de successão, que meu sogro podia disputar-me vantajosamente. A casa ficou solida, e para ti foi, minha filha. Soffri e fiz soffrer; mas quem é que não soffre n'este valle de lagrimas, Maria?»

Não sei se Christovão Azinheiro tambem sabia a historia do rei que mandou chamar o philosopho; se a sabia, dispensou a filha de ouvi'-la, e esta, sem lhe dar trela a dictames e conselhos, despediu-se, dizendo que a paciencia tinha limites e a desgraça a tinha emancipado. Mal a entendeu o velho; mas sempre lhe disse afinal:—«Lembra-te que és minha filha, e que tens dois santos na familia, o snr. bispo de Leiria, e a snr.ª dona abbadessa de Lorvão.»

Maria das Dôres, sem mesmo se encommendar aos santos familiares, torceu a estrada a meio-caminho, e foi direita a Arouca, em cujo mosteiro ainda tinha vivas suas tias, occupadas em deslindar as bastardias genealogicas das conventuaes, e os ultimos milagres operados por algumas freiras que tinham apparecido inteiras na claustra, depois de vinte annos de sepultura.

Abriram-se as portarias á bem-vinda aia da santa rainha Mafalda, e todas as religiosas a acharam mais bella, mais gorda e mais encantadora.

—Vieste ver-nos, pomba;—disseram as tias, convulsivas de jubilo e de velhice.

—Vim ve'-las, e pedir-lhes a minha antiga cella.

—Como assim? Tu queres tornar para o convento?

—Sim, minhas senhoras; tornar para o convento, e{39} morrer n'elle, se me deixarem. Meu marido fugiu-me para Lisboa, roubando-me a minha filhinha, a luz dos meus olhos, o meu coração, a minha alegria, tudo o que eu tinha n'este mundo. Casaram-me á força, e agora querem á força matar-me. Pois sim, morrerei; mas hade ser aqui, onde vivi os annos felizes da minha infancia, e á sombra de minhas tias, que me não tolheram a felicidade. Não tenho, nem quero ter mais ninguem. Sou rica; mas da minha riqueza tirarei sómente os alimentos necessarios. Sou rica do que é meu; se o não fosse, pediria a minhas tias um quinhão da sua tença.

—Oh! filha! exclamou a mais escorreita das velhas—Isto não sei o que me parece! Em quanto a mim, essa veneta, que te deu, é desesperação de ciume!... Olha lá, porque vens tu vestida de dó? Morreu-nos algum primo? Seria o monsenhor da patriarchal D. Joaquim que deve estar muito velhinho? Seria o sr. bispo da Guarda, que é nosso primo pela linha lateral dos Azeredos Pita-Rellas?

—Foi minha mãe que morreu—atalhou Maria das Dôres limpando uma lagrima espremida pela raiva no afôgo declamatorio.

Ouvida a infausta nova, as senhoras Moscosos Azeredos, que eram tias da mãe de Maria, compuzeram um duo de alaridos roufenhos, que alarmou o mosteiro. Confluiram todas as religiosas á cella, e cada uma garganteou o mais plangente que poude uma escala chromatica de gemidos. As duas freiras anojadas declararam-se em lucto rigoroso, e sentaram-se nas suas cadeiras de{40} solla, a receber os pesames e as visitas nocturnas.

Maria mal podia esconder a sua zanga. O que ella queria era desabafar, gritando e gesticulando; mas o silencio funeral, que pedia o caso, não se compadecia com o seu desafôgo. Já arrependida de entrar no mosteiro, e incapaz de reflectir no disparate da sahida abrupta, a desarvorada senhora, no dia seguinte ao da entrada, mandou metter os machos á liteira e partiu para o Porto, deixando confirmada a fama, que tinha de douda, no conceito de umas senhoras, e a conjectura de que a perda da mãe a enlouquecera, na opinião de outras. Em quanto ás venerandas Moscosos Azeredos, essas, com quanto estivessem pasmadas, não se moveram das suas cadeiras, onde lhes impunha a praxe esperarem a pé quedo que os tres dias do nojo expirassem.

Na correnteza d'estes acontecimentos, estava Gonçalo Malafaya provando-a, sobre todas, mais dorida porção da sua vida. Tentaram-n'o saudades a ir ao mosteiro de Odivellas, onde sete annos antes professára Beatriz, filha do conde de Miranda. Enganára-se com o seu coração o sensivel fidalgo, cuidando que podia ver impunemente a mulher unica do seu amor, a recordação agridoce de sua mocidade. Bem sabia elle que havia de chorar; mas esperava com as lagrimas apagar o incendio, se as cinzas escondessem alguma faúla da antiga chamma.

Foi a Odivellas, e chamou ao locutorio soror Beatriz dos Anjos. Acudiu ao chamamento a esposa do Senhor, a pallida virgem, com as suas vestes magestosas e tristes;{41} mas tristes a olhos mortaes, que mais bellas não as podiam inventar homens para as noivas do céo.

Era ainda formosa, ou mais formosa era então a chorada Beatriz dos salões da côrte, dos esplendorosos saráos, das invejas dos moços, e das mil brilhantes esperanças, apagadas todas n'uma hora. Deus a chamára a si, dotando-a com a perpetuidade da juvenil belleza. Tomou-lhe do coração os dons, que mal soubera merecer-lhe o homem amado; e, em cambio d'elles bafejou-lhe de eterno maio as flores da face e a juventude do espirito.

Maravilhou-se Gonçalo de a ver tão gentil: e ella, mal recobrada da torvação da surpresa, espantou-se da mudança do galhardo moço que ella amára.

Quizera a religiosa fugir; mas o coração ia attraído para a doce voz, que era a mesma em ternura, e para os olhos marejados das antigas lagrimas.

—A que veiu aqui?!—perguntou Beatriz, com os olhos postos sobre o escapulario.

—Vim atormentar-me—respondeu Gonçalo—Vim procurar as torturas, que faltavam ao meu martyrio.

E contou Gonçalo com pueril sinceridade a historia da sua vida, como filho amimado conta a sua mãe desgraças, que se vão consolando ao refrigerio dos prantos d'elles.

De instante a instante embargavam-lhe os suspiros a voz, e os vágados lhe annuveavam as idéas. Com rosto socegado ouviu Beatriz as lastimas, os remorsos, e as confessadas cobardias do seu arrebatado{42} interlocutor; e, com immutavel rosto, respondeu por estas memoraveis palavras:

—Eu tambem tinha pae e mãe que me amavam muito, e cavalheiros que muito me queriam. Fui pedida para esposa, e meus paes mandavam ao meu coração que respondesse. Amei-o, senhor; e, se por si me perdera, Deus sabe que eu só de mim havia de queixar-me. Preferi-o, e com a cega preferencia, que lhe dei, esperei-o até á hora em que m'o disseram morto para mim. Se morreu tambem para a felicidade, amargamente o sinto. Quem me dera ver toda a gente feliz, os meus inimigos mesmo, se acaso os tenho! Depois é que eu lhe poderia dar um grande exemplo de coragem; mas... para que? De sobejo me contento com ser exemplo de infortunio. Meus paes não me queriam religiosa; meus parentes conspiraram todos contra mim; e comtudo... sou religiosa, amortalhei-me, sepultei-me, e fiz da chamma do meu amor a luz, que alumia sepulturas, e nem sequer aquece a lampada que a encerra. Separados para sempre, sr. Gonçalo Malafaya! Não temos que esperar um do outro, senão narrativas de lagrimas, que recrudescem a amargura, e nada remedeiam. Peço-lhe pelo amor, que lhe tive, me não procure mais, nem me desassocegue inutilmente. Eu achei aqui a paz, depois de muito a pedir a Deus. Peça tambem; rogue, e faça da sua paciencia um direito á misericordia divina. Viva para sua filha, se outra imagem não tem no coração. Adeus.

Beatriz dos Anjos, inclinando de relance a vista embaciada{43} ao locutorio, sumiu-se na escuridade dos corredores, que vão da portaria para o interior do mosteiro. Gonçalo tartamudeára palavras, sem sentido, e quedára-se estupefacto, com os olhos fitos na lamina crivada do palratorio.

Voltou a Lisboa o allucinado fidalgo, e de tamanha tristeza se entranhou, que nem as caricias da filha o despenavam. Errou com a escandecida mente por quantas absurdezas se offerecem ao desatino da paixão. Roubar ao mosteiro a religiosa, e fugirem para remotos climas não foi o maior nem o mais original dislate da sua phantasia. Rebelde aos preceitos recebidos, escreveu primeira e segunda carta a Beatriz, e recebeu-as abertas, com a terceira fechada. Um frade capellão ou confessor de Odivellas, lh'as entregou, e quiz asserenar-lhe os transportes com os mais justos dictames, e piedosas reflexões que suggeria o caso.

Ouviu Gonçalo, uma hora, o apostolico varão, e sentiu despontarem-se os espinhos de sua dôr, amollecidos pelos prantos a que o forçava suavemente a compungitiva linguagem do monge. Não levantou mão d'elle o enviado de Beatriz. Buscava-o a miudo na sua soledade, e cada dia lhe ministrava lenimentos novos, hauridos da inexhaurivel fonte do Evangelho.

Com o decurso de algumas semanas, Gonçalo Malafaya conformou-se com a desgraça irremediavel, e habituou-se a invocar o auxilio do céo, se vergava, alguma hora, ao confrangimento de desesperada saudade.

Maria Henriqueta conheceu nos primeiros dias de collegio{44} os mais saborosos instantes de sua infancia, senão os primeiros. Tinha muitas meninas a ama'-la, as mestras á competencia de meiguices, muitas creadas a servi'-la, e a sua ama querida a inventar-lhe sempre as innocentes delicias, que a pobre menina desconhecera sob o olhar severo e glacial de sua mãe.

Custou-lhe lagrimas o adeus do pae; mas foram as primeiras e ultimas que chorou alli.

Depois de sessenta dias de ausencia, entrou Gonçalo em sua casa no Porto. Avisára elle de antemão os paes para lá o esperarem, temendo o primeiro encontro com a mulher. Recebeu-o a mãe nos braços, e disse-lhe ao ouvido:

—Olha que Maria das Dôres está douda furiosa.

Achegou-se o pae da outra orelha, e disse-lhe:

—Talvez seja preciso amarra'-la.

Gonçalo encarou em ambos, e respondeu:

—É a felicidade que lhes devo, meus carinhosos paes.

A mãe entendeu, sem merecer creditos de esperta, a ironia, e replicou mansamente:

—Tens razão, meu filho! tens razão...

E o pae accrescentou em outro tom:

—Ás vezes dois puxões de orelhas curam estas doudices.

Maria das Dôres, com o seu feio costume de escutar, ouvira as palavras do sogro e exclamára:

—Dois puxões de orelhas!... Quero vêr se ha mão que se atreva a isso!{45}

—Cala-te ahi!—bradou o velho.—Se fosses minha mulher, havia de... esganar-te! Fizeste desgraçar meu filho, que é um anjo, todos o respeitam e amam, menos tu que és uma vibora peçonhenta! Gonçalo, deixa tudo!—exclamou, voltado ao filho—deixa tudo a essa mulher, e vem para nossa casa. Poupa os teus dias; foge a esta diabolica creatura, e o mundo saberá da minha bocca a razão porque lhe foges.

Maria das Dôres tinha de ordinario uns deliquios de reserva para as crises em que a palavra era menos significativa de sua consternação ou raiva. Occasionou-se-lhe ensejo optimo para um. Desmaiou, caindo com toda a segurança da sua pessoa n'um bufete da sala de espera.

Gonçalo sentou-se extenuado em frente de sua mulher; pendeu a cabeça para o seio, e, com as mãos na cabeça, parecia recurvar as unhas sobre o craneo.

—Que inferno!—exclamou elle.—Que inferno este, meu pae! Que vida tão escura a minha, agora, e sempre! Estou no vigor dos annos, e é forçoso que os acabe por minhas mãos, ou que me deixe despedaçar hora a hora por esta mulher! Tinha uma filha, que podia ser-me allivio, e fui obrigado a separa'-la de mim para a furtar á influencia nefasta d'esta senhora, que nem boa mãe é! Nem mãe, santo Deus! Nem a virtude das feras coube em partilha a esta que me deram por esposa!

Chorava a mãe de Gonçalo, e o velho estava passado menos da dôr, que do arrebatamento do filho.{46}

Maria das Dôres ouvira tudo, e provavelmente descerrára as palpebras para observar a gesticulação do marido. Abriu de todo os olhos esgazeados; affastou da fronte os cabellos, como fazem nas tragedias as doudas, ou as arriscadas a isso; levantou-se cambaleando, segundo a arte, e tirou-se do salão, assoprando como serpente ferida na cauda.

Vacilou Gonçalo entre ficar ou recolher-se á residencia de seus paes. A mãe instava pela saída, conformando-se á primeira vontade do marido; este, porém, reflectindo um pouco, disse que mais acertado seria o filho, depois de liquidar contas com os caseiros e conhecer a fundo o estado de sua casa, cuidar em separar-se judicialmente, allegando com o depoimento dos servos o genio intractavel da mulher.

—Fez-me o casamento, pae,—disse Gonçalo—e quer desfazer-m'o agora!... Assim devia ser; mas o peior é eu hei de ser até á morte um escravo d'ella, ou da ignominia da minha situação. A separação dá causa a juizos vilipendiosos, meu pae; e eu, sobre todas as calamidades, não quero affrontas. Já agora hei de soffrer e morrer aqui. Hão de regosijar-se da sua obra... Quero que sintam o remorso de me acabarem lentamente a vida, que tão feliz se me antolhava; matassem-me antes! antes a morte, que assim, ao menos, poupar-me-iam a ser testemunha da outra infeliz, que tambem mataram! Ó alma do céo, perdoa-me tu, pelas dores com que aqui estou expiando a minha fraqueza!...

Os velhos não entenderam cabalmente a apostrophe,{47} e de si para si ficaram em que o filho estava menos escorreito e são de seu juizo.

Recolheu Gonçalo á sua camara, e n'ella passou alguns dias encerrado, sem ver a mulher. Ahi recebia as visitas, que, prevenidas pelo velho Malafaya, evitavam perguntar-lhe pela prima Maria das Dôres.

Esta, encerrada tambem no seu quarto, apenas recebia a visita do medico, e a do capellão, santo homem, que á mingua de eloquencia christã, se estava sempre benzendo, sem dar a razão de tamanha prodigalidade do signal da cruz.

N'este critico intervallo, Maria das Dôres absteve-se de governar a casa, e de transmittir suas ordens aos creados. Os negocios do governo culinario corriam sob a fiscalisação do padre, que mostrou sua especial vocação no desempenho d'elles. Almoço, jantar e ceia, ás horas, nunca faltou, bemdito seja o Senhor!

Passados dias, foi o medico portador de uma carta de Maria das Dôres a seu marido. Dizia em resumo o escripto que ella imperiosamente queria recolher-se a casa de sua familia, por já não poder supportar o flagello, que seu pae lhe apparelhara. Mais dizia, que se voltára do Douro alli, fôra causa d'essa imprudencia querer ella entregar a seu marido as chaves de suas gavetas, e as preciosidades, que elle trouxera dos seus. Posto isto, rematava dizendo que fôra sempre uma esposa digna e sem mancha; ao passo que seu marido era um homem de costumes estragados, merecedor de outra mulher, capaz de vingar-se, pagando affronta com affronta.{48}

Gonçalo leu a carta e respondeu verbalmente ao doutor:

—Que faça o que quizer. Que vá para o pae se lhe apraz; que se deixe estar, se está bem; na certeza de que, lá ou aqui, a nossa separação está resolvida para sempre.

Maria das Dôres ouviu a resposta, pediu ao medico o favor de retirar-se, saltou fóra do leito, vestiu-se em grutesco desalinho, e entrou, com furial aspecto, no quarto do marido.

Sentou-se Gonçalo no leito, como attonito da improvisa apparição.

—Que quer, prima?—gaguejou elle.

—Quero ouvi'-lo; quero ouvir da sua bocca as palavras que me disse o doutor.

—Se lh'as elle disse... que mais quer?

—Diz-me o primo que vá para meu pae?

—Se quizer.

—Não quero!

—Pois não vá.

—Eu não ando ás suas ordens! Sou sua mulher. Entendeu?

—Entendi.

—E então?

—Então o quê! Que é que me diz?

—Que não saio d'esta casa que é minha.

—Deixe-se estar.

—Mas o senhor que disse mais?

—Que a nossa separação está resolvida para sempre.{49}

—Isso é se eu quizer.

—Quer queira, quer não.

—Eu allegarei as minhas razões em justiça.

—Não temos que ver com a justiça. A prima Maria das Dôres tem os seus aposentos n'esta casa, e eu tenho os meus. É n'este sentido que eu entendo a separação.

—Não quero!—exclamou ella, batendo com o pé rijamente no tapete.

—Em tal caso, obriga-me a sair d'esta casa.

—E eu vou procura'-lo onde estiver.

—A prima é uma senhora. Fio da sua nobreza que se poupará e me poupará a vergonhosos alardes.

—Qual nobreza, nem qual vergonha? Sou sua mulher! não é mais que dizer—não me serves—e acabou-se tudo! Recorro ás leis. Quero saber porque sou abandonada. Fui-lhe infiel, primo Gonçalo? Atraiçoei-o? Faltei aos meus sagrados deveres de esposa?

—Nunca o suspeitei.

—E o primo faltou? Responda.

—Não tem resposta.

—Tem. Tem resposta. O senhor é que não tem alma nem vergonha. Quer ir viver com outra? Diga-o francamente, que eu n'esse caso vou-lhe fazer presente das joias, já que o senhor a faz proprietaria dos meus direitos. Escusa de sair: póde traze'-la para aqui. Veja lá primo... se precisa de aia a dama, estou eu aqui que lhe sirvo.

—Cale-se, senhora!—bradou Gonçalo.—O despejo da{50} phrase offende tanto como o despejo da acção. Estão ahi as suas creadas a ouvi'-la. Felizmente que não está aqui uma menina de onze annos para lhe decorar essas palavras, aprendidas não sei onde, nem com quem. Prima Maria das Dôres! attenda-me com o seu silencio, se póde. Este viver é impossivel. A senhora apurou-me a paciencia até ao extremo. Soffri-a emquanto o facto da separação me pareceu desairoso. Sacrifiquei-me á dignidade, que foi sempre o melhor timbre de nossas familias. Baldei as dores surdas que padeci. Ninguem me compensa, nem a sua indole se chegou a condoer de mim. Mudei, prima, mudei completamente. Quer saber a minha deliberação final? Digo-lh'a livre de medo que m'a embarace. Em ultimo recurso, fujo de Portugal, e deixo-a. Irei onde me não conheçam, nem me denunciem á sua perseguição. Felizmente sou rico. Bom é que eu alguma vez conheça as vantagens de ser rico. O que é meu basta e sobeja. Posso ainda viver alguns annos tranquillos; em toda a parte hei de achar amigos.

—E amigas...—atalhou ella.

—E amigas, diz bem a prima; porque não.

—Basta!—vociferou Maria das Dôres perfilando o dedo indicador com o nariz.—Basta! não se envergonha agora que o estejam escutando as creadas? Faça o que quizer. Abandone-me; mate-me; sacrifique-me aos seus caprichos, primo, que eu deixo a minha causa á Providencia, e a sua alma ao remorso.

Gonçalo sorriu, e Maria das Dôres, atirando para o{51} pescoço uma aba do gabão de castorina, saíu com toda a magestade d'uma rainha colerica.

O padre capellão, que tambem tinha o vêzo de escutar, já se tinha benzido vezes sem conta com ambas as mãos.{52}

{53}

IV

Poude muito comsigo Maria das Dôres, enfreando o genio; mas desmedrou a olhos vistos. Ao cabo de tres semanas estava magra, secca e quebrada de espirito, que era um pasmar das creadas. Sustentou Gonçalo dois mezes a sua palavra. Saía por portas remotas do repartimento em que sua prima vivia. Jantava raras vezes em casa, e sempre em separado. Seroava por salas de amigos e parentes até noite alta. Recolhia a tempo que sua mulher dormia; e, finalmente, recebia as visitas em salas distinctas das frequentadas pelas senhoras.

Este divorcio domestico teve longe soada, e deu ansa a muitas calumnias, umas gravosas para a fama da senhora, outras a taxarem de cru e barbaro o marido. O velho Azinheiro commentava o facto em abono da filha; o velho Malafaya andava solicitando a canonisação de seu filho martyr. Deu-se a feliz conjuncção de se encontrarem os dois velhos em casa de uma familia, empenhada na reconciliação dos casados. Deram ambos amigavelmente as causas da desordem, cederam-se mutuamente{54} as sem-razões de parte a parte, e vieram ás boas, pactuando o afervorarem a harmonia, na vespera do Natal, á mesa do amigo e parente commum, que lhes proporcionára o encontro.

Assim se fez.

Gonçalo acceitou o convite, sem presumir o fim; Maria das Dôres, instada pelo pae, accedeu tambem. A surpreza foi de ambos, quando se viram na mesma sala da ceia. Achava-se presente o deão da Sé, sujeito de grandes lettras, e abalisada prenda de bom-falador. Foi elle o encarregado do discurso, quinze dias antes. Não foi discurso o que saíu da uberrima e caudal veia do prebendado: foi uma homilia, como os santos padres a quereriam ter feito. Se lhe mondarmos a exhuberancia dos textos latinos, á mixtura com os versos gentilicos, era uma peça litteraria com que eu faria os meus creditos, se a podesse reproduzir, e o leitor m'a attribuisse ao meu corcovado engenho. Corcova-se o engenho, como a espinha dorsal, leitor amigo, quando frigidas e geadas de infortunio regelam e abatem as altivezas do genio. Não assim ao conspicuo deão da Sé portuense, que vivera cincoenta annos de vida folgada e de côro, rindo com os vivos, cantando pelos mortos, e compondo, nas horas feriadas, discursos attinentes a restabelecer a ordem perturbada nas familias, em cujas casas jantava, uma vez por dia, ou duas, se caía a talho de fouce.

Ia em meio o discurso, quando as senhoras edosas, lavadas em lagrimas como punhos, começavam a perder o appetite das rabanadas e dos ovos de fio. Os velhos{55} fidalgos, para em tudo attingirem o sublime dos conceitos, até com acenos de cabeça confirmavam o bem cabido e apropositado dos textos latinos, cousa de todo o ponto indigesta ás capacidades d'elles. Rematou o discurso por este memorando periodo:

«... Finalmente, é chegada a hora, a propicia hora de dois corações se approximarem, quaes carinhosos e gemebundos rolos, que nos esgalhos de longiquas arvores, se estão suspirosos namorando! Abra o mais forte os doces braços, e cinja em meigo amplexo a fragil e quebradiça creatura, que senão fôra toda amor, seria toda divindade. Toto Dea, tota pulchra, tota vel amor. (Entre parenthesis: supponho que o latim era arranjo do imaginoso deão: não me occorre ter lido cousa tão delambida na antiguidade). Finalmente, tornou elle—se dois são os culpados, o reciproco perdão abra-se já em perfumes de reciproco amor. Para enxugar as lagrimas, beijos; para delir injurias, sorrisos; para cicatrizar chagas do peito, abraços. Vamos, felizes esposos; renasça a paixão, o ardor da chamma antiga, veteris flammæ, n'esta hora em que renasce para o amor e para a fé da humanidade o redemptor da culpa, o redemptor das paixões más, aquelle que disse: a carne da minha carne, o osso do meu osso: caro ex carne mea, os ex ossibus meis.» Disse.

Heytor Azinheiro tomou a filha pela mão; Christovão Malafaya abarcou pela cintura o filho, e deram alguns passos a encontrarem-se.

Gonçalo beijou a esposa na fronte; Maria das Dôres{56} cingiu o braço ao collo do esposo, e ficou em duvida se devia desmaiar.

Não teve tempo. Moviam-se e vozeavam todos a um tempo. O deão conservava ainda a face escarlate do rescaldo da inspiração. Houve ahi fidalgo enthusiasta da facundia, que beijou a face do orador, a face em que, uma hora depois, cuidaria Sileno achar o espelho.

Foi noite cheia, noite que vae contando, na chronica das familias, ás provindouras proles, delicias nunca mais repetidas.

Mas nos labios de Gonçalo não avoejára um riso em toda a noitada, que prendeu com o dia; nem os de Maria das Dôres se abriram com palavra carinhosa ao esposo.

Voltaram de braço dado a casa; almoçaram juntos, e falaram de Maria Henriqueta, elle choroso, e ella melancolica. Ao jantar falaram ainda da menina, e combinaram em irem proximamente visita'-la a Lisboa.

Decorreram dias serenos, se não felizes em comparação dos passados. Maria queixava-se, mas com brandura: Gonçalo ia confessando suas demasias de impaciencia; mas sem vontade nem consciencia de as ter dito. O padre capellão continuava a benzer-se, mas já era de pasmado da mudança que o Senhor fizera nos casados, mediante as orações d'elle. Modesta piedade!

Foram a Lisboa, e fizeram contentes a jornada. Tiveram comsigo a filha em Cintra, e visitaram os arrabaldes pittorescos da formosa Lisboa.

Maria Henriqueta estava adiantada em cravo, dançava{57} com muito garbo e limpeza o minuete, arrastava com gracioso despejo a cauda do vestido, e levava o toucado a maravilhosa altura, sem desluzir a graça. No tocante a linguagem, em poucos mezes, todos a julgariam pura lisboeta. Um dizer morbido, preguiçoso e indolente, como cortado de gemidos, cousa mais de enfeitiçar ouvidos nunca Maria das Dôres imaginou que pudesse ouvir dos mellicos labios de sua filha.

No ponto de belleza, não ha ahi cousa que mais diga. Alteára-se, desempenára-se, alargára de espádoas, mingoára de cintura, pisava tão geitosa de mimo e movimentos, que parecia librar-se toda em cadencioso bater de translucidas azas. Facil era divisar assomos de vaidade no olhar da mãe. Já ella entre si dizia que mais amavel e perfeita fôra, se seus paes a tivessem mandado educar á côrte, em vez de a soterrarem n'um brutificador convento, onde as mulheres eram todas umas, e ridiculissimas as gaifonas monasticas, sem graça nem calor. Cohibia-se Maria de communicar ao primo estes seus pensares, com medo de relembrar-lhe cousas em que elle muitas vezes cogitaria, com desfalque dos taes quaes merecimentos d'ella.

Detiveram-se em Lisboa quatro mezes. Raras palavras enfadosas se trocaram, e essas mesmas eram contendas por amor da menina, que a mãe quizera levar comsigo para o Porto, desejo inepto que o marido impugnava, dizendo que a educação da filha estava em principio.

Na ante-vespera da partida, senhoreou-se do espirito de Maria o entojo de vêr o mosteiro de Odivellas. Sabia{58} ella que farte da profissão da filha do conde, e anciava por ve'-la, curiosidade por vezes mui fatal a mulheres, que não sabem o que fazem nem o que desejam. Recusou-se, primeiro, Gonçalo; meditando, porém, que só uma casualidade traria ás janellas gradeadas do mosteiro Beatriz dos Anjos, condescendeu. Fôra, porém, tão prompta a condescendencia, que D. Maria fez pé atraz, e demudou do intento, resmuneando palavras ciosas, que fizeram lembrar a esposa, antes de regenerada pelo discurso do deão, que santa gloria haja.

Azedou-se o marido da versatilidade da mulher e então iam pegando em permutação de remoques, mui dispostos a despregarem em formal descompostura. Espalharam-se as nuvens da imminente borrasca, e o azul sereno do provisorio céo cobriu mais alguns dias de bonança.

Ficou Maria Henriqueta em delicias, por se vêr livre do suborno da mãe, que a induzia a pedir ao pae a saída do collegio. Se alguma vez por temor ou respeito o fez, de tal geito relanceava os olhos ao pae, que o mesmo era implorar-lhe piedade. Por de sobejo lhe adivinhava Gonçalo a vontade; e, dilatando a resposta, foi ganhando tempo, e dispondo a saída, com promessas de lá voltarem.

Quando chegaram ao Porto, tangiam a finados os sinos da Sé. Estava sobre a terra o sapientissimo deão. Ruim agouro!

Aquelle dobre funeral, annunciando o trespasse do eloquente conciliador, era o presagio de futuras discordias.{59}

V

A educação seria alguma cousa no genio de D. Maria; mas o temperamento era tudo. Derrancava-se-lhe o sangue, se não girava desempedido, e resfolegava pelas valvulas da altercação, da teima e do conflicto. Renhir era o principio vital da sua compleição. Carecia de contrariar-se, quando não topava estorvos a desafia'-la á disputa. Uma sua intima dizia que Maria das Dôres, em dias mal humorados, chegava a beliscar-se para se irritar contra si propria. Isto será de mais; cumpre, porém, duvidar em cousas mais disparatadas. A mulher, em geral, é um complexo de bons e maus prodigios. Releva que tenhamos sempre apontada a admiração ás multiplices fórmas de espirito, em que a mulher se transfigura, segundo os varios incidentes de seu modo de ver e julgar.

Gonçalo, capacitado da milagrosa reforma de sua consorte, ia relaxando o proposito de emenda, que fizera, no tocante a certas culpas, de que D. Maria estava mais que muito sabedora, para nunca as esquecer.{60}

Durante o largo espaço do divorcio, represára ella enchentes de fel, que ameaçavam com seu natural pendor romper os diques, logo que mão extranha desconjunctasse uma pedrinha da levada, ou uma nova gotta cogulasse e desbordasse a represa insoffrida.

O indiscreto galã occasionou o desmancho da ordem, que se tinha, para o assim dizer, em frageis arames. Constou a D. Maria que seu marido andava enviscado de uma cantarina italiana, mulher de perigosas manhas e infernal seducção, que trazia na sua carteira inscriptos em catalogo os homens que á sua chamma fatidica se tinham abrazado, pagando com o ouro e com a honra, e alguns com o futuro bem de suas familias, a gloria de morrerem á ponta de um florete extranho, ou á bocca da propria pistola.

A denuncia fôra vestida com o maravilhoso costumado por quem relata historias d'esta natureza. A actriz era uma vulgar mulher, carecida mesmo da singularidade da belleza, que, a meu ver, é singularidade de pouco momento, quando alguma tragedia lhe não dá o relevo. Tragedias na vida da cantora havia apenas as do libreto, em que ella mesmo assim figurava na parte inoffensiva dos comparsas, e tinha sempre a cargo lamentar a prima-dona, que morria ás mãos do tyranno, ou o galã que lhe pedia por grande mercê um pouco de verdete para se matar, como traído ou desamado pela ama d'ella.

Pobre Persini! (chamava-se ella Persini) se Deus te julgasse pelo depoimento dos homens, em que caldeiras de bitume iriam ferver teus ossos!{61}

Ossos é que ella tinha muito acotovellados por aquelle corpo acima, se havemos de acreditar os oculos de alguns coevos. Concordam, porém, todos em ter sido Gonçalo Malafaya um apaixonado idolatra de Persini, e um dos poucos amadores que saíram vivos dos paços encantados d'aquella Armida.

Como quer que fosse, D. Maria das Dôres estourou, conflagrou-se, reaccendeu o antigo inferno, e constituiu-se o natural dragão da sua obra. Extranhou Gonçalo as arremettidas, que o descostume tornára novas. Desaffeito de soffre'-las, rebateu-as com virulencia, como corrido d'aquella docilidade com que n'outr'ora ia aparando as frechas no escudo da paciencia, e fugindo. Agora, adargou-se com uns modos despejados de impudor; e, no que dizia, dava a pensar que a sua vontade era soberana, e os seus caprichos inviolaveis.

D. Maria, bemfadada de acrisolada virtude conjugal, dado que os annos orçassem já pelos trinta e dois, houve pejo de redarguir com indecorosas ameaças, e até cuspiu a tentação de as dizer á cara do demonio tentador, que está sempre de espia em conflictos d'esta especie.

Gonçalo recalcitrou no vicioso amor á artista, e D. Maria na explosão dos ciumes, se eram ciumes, que eu não me atino bem a dar-lhe o nome. Ciosas temos nós visto esposas desamoraveis, e teimamos em denominar ciume o que é, em boa definição, vaidade. Vaidade seja, ou, se quizerem, ciume a indomavel raiva de D. Maria, o saír deshonrada em busca d'elle, o aldrabar á porta da cantora, se lá farejava o marido, o alliciar{62} lacaios para a espancarem á saída do theatro, o induzir-lhe a creada a ministrar-lhe uns pós de ratos, que, de fracos e revelhos, já as ratazanas do palacete os digeriam sem o menor symptoma de dyspepsia.

A guerra caseira chegou a termos de se ameaçarem no calor da refrega. Até alli nunca o marido exorbitára das leis da delicadeza prescriptas a homem que se estima em si e em sua esposa; mas, tanto ella lhe acrisolára a impaciencia, que o desvariado Gonçalo chegou a abrir e vibrar a mão em direitura ás faces intactas da mulher. Maria das Dôres correu a tirar pela gaveta de um toucador de ebano, e saíu de lá com um punhal luzente, temeroso pela afouteza com que a mão viril o brandia.

Gonçalo riu; mas, a falar a verdade, o riso era fingido. Sobejava-lhe colera, e medo tambem. Como quem pede treguas, o cavalheiro, pasmado do arrojo, cruzou os braços, e disse:

—Mulher de faca! pasmosa cousa!

—Um cavalheiro de mão erguida para sua mulher! vergonhosa cousa!—replicou D. Maria, imitando-lhe o sorriso, com vantagem de graça para ella, e de mofa para elle.

—Está, pois, demonstrado—redarguiu o pallido Malafaya—que estou aqui á mercê do punhal da prima Maria das Dôres!... Extranho destino o meu! Não basta matarem-me o coração, e o futuro?... estará escripto que o meu corpo morra ás mãos mimosas da minha esposa?{63}

—Não!—bradou ella—não em quanto o senhor, me respeitar como senhora, se me não quizer respeitar como esposa. Convença-se porém de que as affrontas de mãos hão de ser repellidas como as affrontas de palavras.

—Que quer de mim, prima Maria das Dôres?

—Quero que me respeite para que o mundo me respeite.

—A senhora é que se enxovalha, dando indecorosas scenas em publico.

—Forçada pelas suas devassidões, sr. Gonçalo! Basta de vexames! Temos cada qual seu caminho a seguir.

—Que quer dizer?

—Que o abomino, que o desprezo, que acceito hoje o divorcio, proposto ha dois annos; mas um divorcio de casal, de familia, de futuro e de tudo. Maria Henriqueta... quero-a comigo.

—A lei não lh'a concede.

—Ha de conceder-m'a! Eu provarei aos juizes que Maria Henriqueta não deve ser entregue a um pae, que não sabe ser marido. Veremos quem triumpha, sr. Gonçalo! Veremos se uma mãe sabe advogar os interesses e a moralidade de sua filha.

Cedeu Gonçalo o campo e saío pensativo, a aconselhar-se. Aquietaram-lhe o alvoroço os letrados, assegurando-lhe que a menina não podia ser disputada ao patrio poder com allegações extranhas á moralisação d'ella.

Quando n'essa noite voltou a casa, achou Gonçalo{64} signaes de grande reboliço, e deparou-se-lhe o capellão benzendo-se, e tartamudeando a nova da saída da fidalga, com os seus bahus para casa de seu pae. Suspeitoso de um attentado maior, tramou Gonçalo vigilante espionagem aos passos e designios da prima. Logo, na tarde do seguinte dia, soube que D. Maria das Dôres ia a Lisboa, com o projecto de tirar a filha do collegio.

N'essa mesma noite partiu Gonçalo para a côrte, petrechado de boas recommendações para debellar quaesquer ardis judiciarios da consorte, favorecida pelos valiosos amigos de Heytor Azinheiro.

Então se viu quanto sobreleva amor de pae a todas as affeições mesquinhas, que muitas vezes armam ciladas e quedas mortaes, d'onde não ha ahi erguer-se um homem para a honra.

Esqueceu-lhe, n'um momento, a Persini, que o esperava com a ceia, lardeada de convivas de sua estofa, e cavalheiros da tempera de Gonçalo. Nem chispa de saudade lhe vislumbrou na longa e fadigosa jornada. Anceava-se em Lisboa, e ante si não via senão a angelical figura de Maria Henriqueta extendendo-lhe os braços, como a pedir-lhe resgate do captiveiro que a mãe lhe queria infligir. Mal apeou do tressuado cavallo, que devorára leguas ao sabor do amo, foi Gonçalo cuidar de requerer intimação judicial á directora do collegio para não entregar a menina a sua mãe, sob qualquer pretexto, e com qualquer auctorisação. Conseguido isto, em que cifrava tudo, o carinhoso pae desfadigou-se em aturadas conversações com Maria Henriqueta, a qual viçava{65} em formosura á competencia com os dons do espirito.

N'um d'aquelles dias, Gonçalo Malafaya, passando diante do palacio do conde de Miranda, recordou as noites venturosas que alli passára, e recolheu-se triste. Tristezas de coração, aos quarenta annos, se procedem de saudades da bemaventurança dos vinte, são golpes que rasgam fundo, e curam em falso, por não fecharem, digamo'-lo assim, cauterisados pelo ardor das lagrimas.

Ao outro dia, Gonçalo acordava com a imagem de Beatriz dos Anjos a esvaecer-se nos vapores de um sonho. Moribunda a tinha elle visto, e vozes de perdão lhe colhera dos labios balbuciantes em crispações da agonia; mas agonia de santa fôra a sua.

Deu-se pressa no caminho de Odivellas, e parou indeciso no pateo do convento, remirando as janellas onde entreviu rostos mimosos de buliçosas noviças, enquadrados na touca do habito. A madre porteira chamou o estarrecido cavalheiro, e perguntou-lhe se procurava alguem.

—Alguem desejava ver, minha senhora.

—Quem?

—Uma religiosa... Beatriz dos Anjos.

—Com os anjos está—disse a porteira.

—Morta?!—exclamou Gonçalo.

—Viva, eternamente viva para Deus... Era sua parenta, senhor?

Gonçalo apoiára-se no rebordo da parede, contiguo á roda, e, encostando a testa á pedra, chorou.{66}

A freira compadecida aventurou-se a espreitar por uma fresta da meia-porta, e disse-lhe:

—Se quer descançar, eu peço ao sr. capellão que lhe dê um quarto na residencia.

—Agradecido, minha senhora. Eu vou-me já embora. Queira dizer-me: Beatriz morreu ha muitos mezes?

—Ha dezoito.

—Eu vi-a ha dois annos, e pareceu-me saudavel.

—Seria o senhor um cavalheiro que aqui veio ha dois annos?

—Fui, minha senhora.

—É do Porto?

—Sou do Porto.

—Pois vá com a Virgem; e peça a Deus que lhe perdôe o mal que veiu fazer á nossa desgraçada menina. Com sua licença.

A madre fechou hermeticamente as portadas, e Gonçalo, a passo incerto e vagaroso, saíu da alameda.

A dor era sincera, porque necessitava confessar-se, e carpir-se.

Lembrou-se da filha. Ai d'aquelles que soffrem e dizem: «Não ha quem me veja as lagrimas!»

Esporeou o cavallo, e descavalgou no collegio. Ia subindo as escadas, e ouviu grande alarido de vozes. Parou no primeiro patamar, encostado ao mainel. A mais aspera e aguda d'aquellas vozes era a de D. Maria das Dôres.

—Em que momento, meu Deus!—exclamou Gonçalo,{67} com tamanha dor, como se o peito se abrisse para romper fóra o brado.

Em que momento! digamos nós. Ei'-lo a buscar um coração que lhe entenda as lagrimas vertidas por outro coração que a dor matára. E a mão terrivel da mysteriosa Providencia, conduz-lhe aos olhos, tumidos de lagrimas, a mulher que, n'aquelle instante, mais odiosa devia ser-lhe!{68}

{69}

VI

Se bem que desalentado para a lucta, Gonçalo Malafaya subiu ao terceiro andar do predio, em que altercavam as vozes. Assomando á porta de uma sala, onde estavam muitas meninas e algumas senhoras, fez-se um subito silencio. Do grupo das senhoras apartou-se Maria Henriqueta, em transporte de jubilo, aos braços do pae. Maria das Dôres tremia de ira como de frio, e mudou de côres até permanecer n'um amarello de greda, que era a sua usual expressão de extremo phrenesi.

—Que vem a ser isto?—disse Gonçalo serenamente.

A directora respondeu:

—Vem a ser que a sr.ª D. Maria das Dôres quer levar a menina, e a menina recusa ir. Eu disse á senhora que v. ex.ª estava em Lisboa e me não prevenira da saída da sr.ª D. Maria Henriqueta, razão porque me opporia, ainda mesmo que a menina quizesse saír. A senhora irritou-se contra mim, dizendo-me insultos, que eu nunca ouvi, nem cuidei que fidalgas os soubessem dizer. Estava agora s. ex.ª dizendo que ia buscar uma{70} ordem regia, para levar a menina; e eu respondi-lhe que sem aqui vir o pae, não dava por ordens regias, nem queria saber de mais nada. Felizmente que v. ex.ª veio a tempo: agora resolvam o que quizerem.

—Tenho resolvido—disse Gonçalo.—Minha filha continúa a estar aqui. A prima Maria das Dôres é uma creatura sem alma, nem sombra de juizo. Envergonhe-me e envergonhe-se á sua vontade; mas saiba que Maria Henriqueta ha de ficar no collegio, apesar das suas imaginarias ordens regias.

—Visto isto, eu nada valho?—disse Maria das Dôres em tom commovente.—Cuidei que perdendo o marido, podia ao menos ser mãe; mas, a final, perdi mocidade, ventura, dignidade, marido, filha e tudo, não é verdade? Muito bem. Ir-me-hei embora. Adeus, Maria Henriqueta, sê feliz. Primo Gonçalo, folgue de me ter esmagado o coração até me lá não deixar nem sequer a imagem de minha filha. É forçoso que eu viva em odio de todo o mundo, e que todo o mundo me seja odioso. Faça-se a vontade de Deus. Eu verei se posso odiar-te, Maria Henriqueta: ha de custar-me muitas lagrimas; mas n'este mundo miseravel tudo que é mau e infame se consegue com a força de vontade. Adeus, minha filha. Deixa-me olhar bem para ti; que é esta a ultima vez que te vejo. Tu amarás a minha memoria, quando souberes que tua mãe podia ser boa, se alguem houvesse misericordia das dores que lhe causa.

Maria Henriqueta foi espontaneamente ao pé de sua mãe, e beijou-lhe a mão, commovida. Apertou-a ao ceio{71} com insolito estremecimento a mãe, e teve-a assim, até que as lagrimas saíram aos olhos de ambas. Quebraram-se os animos das senhoras hostis a Maria das Dôres. Movia o trance d'aquelle adeus. Era mãe e filha; e o só titulo de mãe quer-se respeitado, que é santo, salvo se o cunho sacratissimo d'elle foi delido com execrandas torpezas, que só de pensa'-las se doe e peja o coração. Que ha ahi lances nas familias que seriam vilipendio do Creador, se a creatura, despojada de religião, descaída de dignidade, atolada em abominações, que desconhecem feras, não fosse a ultima, a espantosa hediondez da materia, desaçamada em sua estupida fereza! Oh! quão triste é então o dizer-se «aquella mulher é mãe! Aquella innocente menina foi levada ao eterno desdouro, e eterno perdimento por aquell'outra mulher, que se diz sua mãe!» Ó leôa da Hyrcania, que emancipas tua filha, quando lhe sondaste a força das garras, e da tua prêa já lhe fortaleceste as unhas frageis, quão mais benigna tu és!...

Maria Henriqueta, do seio materno, voltou o rosto ao semblante commovido do pae. Que dizia ella no mavioso rogar de seus olhos? Pedia-lhe compadecimento para sua mãe. Dizia mais que o discurso do defunto deão. Tirava por elle com impulso celestial; como se Deus o estivesse mandando á beira da mãe a esposa consternada, com mansas palavras, com perdões e amor.

Gonçalo obedeceu ao impulso e acercou-se de sua mulher, a passo lento, mas resoluto. Compreendeu-o{72} Maria Henriqueta, e chegou das d'elle a mão submissa de sua mãe. Foi silenciosa a scena, menos de suspiros e soluços, que durez de alma seria se os circumstantes não se enternecessem.

—Prima Maria das Dôres—disse Gonçalo—seja este anjo que nos reconcilie. Queres tu a minha amizade? Queres a filha e o pae? Podes tu amar-me por amor d'ella, e dar-nos a ambos a felicidade que só de nós pódes gosar?

Maria apertou a mão do esposo, e estreitou-se mais com o seio da filha.

Radiou por todas as meninas e mestras um fulgor subitaneo de alegria. Aos olhos de todas já Maria era esposa e mãe respeitavel. A reconciliação rehabilitou-a, e o marido como que se prezou mais na dignidade de sua mulher.

Saíu Gonçalo Malafaya a procurar hospedagem condigna para mulher, filha, e estado de servos e carruagens. De commum accordo com a esposa, resolveu residir na corte. Estimou ella o alvitre; para desviar o marido da Persini, que, áquella hora, se estaria lembrando de Gonçalo como de um amante, cujos traços physionomicos, a custo, distinguia das feições dos successores. Chamava-lhe tragica a opinião publica; e a pobre Persini não era senão a comedia humana real e pessoalissima.

Pelo que respeita a Maria das Dôres, o seu esquivo anjo de condição benigna voltára a visita'-la, em quanto o demonio da travessura se ia em passeio ás suas inflammadas{73} cavernas a pedir conselho ao chefe das legiões, infernaes, que enxameavam d'antes nas varas dos cevados da Judéa, e que nos nossos tempos fazem seu atascadeiro no seio das familias.

Correram dois annos de serena paz, arrevezada por dissabores de pouca monta. Maria entrou na roda das fidalgas de Lisboa, e modelou-se, quanto seu natural lhe permittiu, aos geitos agradaveis das senhoras estremadas em educação. Muito lhe valeu isto para passatempo, e diversão de cuidados. O grande mal da sua condição estava no scismar sósinha, e devanear por desconfianças e zelos, quasi nunca injustos, diga-se a verdade secca e breve.

Gonçalo, tambem por este lado, fatal quebra de seus bons costumes, estava melhorado pela edade, e talvez por influxo do golpe que recebeu em Odivellas. Sangrára pelas lagrimas o orgão que lhe era um aleijão sensivel, e a causa efficiente dos seus maiores desgostos domesticos. Quero pensar que Malafaya teria sido menos trabalhado de angustias, se fosse mais fiel marido, e menos insoffrido nos acommettimentos da ciosa esposa.

Ao fim de dois annos, imprevista borrasca lhe ia sossobrando a fragil taboa da sua felicidade. É um caso que podia sobejar a um romance especial, que eu vou dar pela summa.

Beatriz de Noronha, acceitando o namoramento de Malafaya, regeitou os galanteios de um fidalgo, que presumia ter-lhe merecido preferencias. O fidalgo ferido da imaginada perfidia, quiz provocar a desafio o portuense;{74} lembrou-se, porém, d'este galhardo despique, a tempo que Malafaya vinha em jornada para o Porto.

Desembaraçado do rival, o cavalheiro que tinha appellido Athayde, cuidou em merecer de novo o affecto de Beatriz, contentando-se já com um coração alanceado pelo despeito, embora contaminado pela saudade.

Beatriz esquivou-se mais que nunca. Impunha-lh'o a paixão, a saude, e por ventura a esperança. A pertinacia de Athayde era digna de premio; mas, em geral, as mulheres, quando não ganham asco a quem as solicita importunamente, são umas voluntarias doudas que se gosam no aviltamento dos logrados, e se lastimam do assedio que soffrem.

A filha do conde de Miranda nem se queixava da teima de Athayde, nem o repellia da sua estima. Antes quiz a santa simplicidade!—attrahi'-lo a confidenciosas relações. Contou-lhe o quilate de seu amor, e o plano de professar, se Gonçalo não voltasse.

E Gonçalo não voltou, nem o tempo desfez o que a paixão allucinada n'uma hora designára.

Decorridos dois annos, e publicada a nova do casamento de Malafaya, Beatriz entrou em Odivellas; e, treze annos depois, como sabem, morreu.

Athayde, perdidas as esperanças, exulara no extrangeiro, onde, muitas vezes resolveu vestir o habito, e morrer ignorado. Passados vinte annos, e quasi extinctos os fogos sob o gêlo dos quarenta e dois annos, voltou á patria o fidalgo, e concentrou-se no seu quarto, golpeando{75} sempre a chaga de saudade como quem não queria morrer de outra.

Acaso soubera elle que residia em Lisboa Gonçalo Malafaya, ao qual as freiras de Odivellas arguiam de causa principal da breve morte de Beatriz dos Anjos. Quer fosse effeito de um desvario, procedente da concentração, quer de velho odio, Athayde phantasiou que Beatriz o encarregava de vinga'-la. N'este presupposto, saíu á luz do dia o encanecido homem, que raros amigos tinham visto. Indagou da residencia do fidalgo provinciano, e subiu afoutamente as escadas em busca do inimigo para immola'-lo aos manes de Beatriz. Arrojo digno da edade média! Relance de melodrama, que seria muito de vêr no palco! Em 1799 era ja um desconcerto de juizo a tragica façanha!

Gonçalo recebeu o incognito. Conhecera um gentil cavalheiro, chamado D. Francisco de Athayde; mas aquelle que se dera tal nome era um velho de barbas brancas, posto que nos meneios denunciava virilidade robusta.

—Francisco de Athayde, justamente—replicou o vingador ás delicadas duvidas do portuense.—Sou o Francisco de Athayde que tinha em 1778 vinte e tres annos.

—Muito folgo de encontrar um amigo da mocidade—redarguiu Gonçalo.

—Amigo, não. Esse titulo affronta-me. Inimigo implacavel, hade dizer.

—Duvidarei te'-lo em tão extranha conta, emquanto{76} v. ex.ª me não disser que fiz eu para merecer-lhe tamanho odio.

—Matou Beatriz dos Anjos.

Gonçalo empallideceu, e como á luz de um sinistro relampago, viu aquelle homem enxugando as lagrimas, ao lado de Beatriz de Noronha, debaixo de uma arvore de Cintra.

—O seu silencio quer dizer que se preza e gloria de ter assassinado a mais formosa e digna creatura da nossa mocidade, sr. Malafaya?

Gonçalo balbuciou:

—Eu era indigno d'aquelle anjo. Deus a desviou de mim, porque a escolhera para sua esposa, e a chamou ao céo, quando já bastava como conforto a desgraçadas, o exemplo que ella dera.

—Palavras, senhor! Não vim a ouvir palavras. Que tem v. ex.ª padecido por expiação d'aquella morte?

—Muito, sr. D. Francisco de Athayde.

—Não o parece. Vejo-o vigoroso, o seu olhar ainda tem a luz da mocidade, o timbre da sua voz é sonoro como nos tempos em que jurava paixões que cavavam sepulturas. Tudo me diz que v. ex.ª vive para si, para sua esposa, para sua filha, para as glorias do tempo e para uma velhice agradavel e tranquilla.

—Erra v. ex.ª o seu juizo. Tenho sido muito desgraçado, sou, e se'-lo-hei sempre. A minha expiação é a vida. Mas quer-me parecer extranha a intenção com que v. ex.ª me procura. Posso, em breves termos, saber a sua missão?{77}

—Simples. Beatriz de Noronha não tem um irmão que lhe vingue a morte. Resta-lhe no mundo um amigo, com pouca vida, mas com uma vaga recordação das suas armas, e um braço, que póde com ellas.

—Vem portanto, v. ex.ª desafiar-me?

—Sim, senhor.

—É uma pendencia melindrosa. Peço a v. ex.ª que medite tres dias.

—Medito-a ha vinte e dois annos.

—E crê que o derramamento do nosso sangue será agradavel á doce alma de Beatriz dos Anjos?

—É.

—V. ex.ª está influenciado por uma visão. Beatriz dos Anjos perdoou-me.

—Eu não perdôo. A mim me vingo, se ella não quer vingar-se.

—Isso é outro ponto. Muda de rosto a questão. V. ex.ª vem desafiar o seu antigo rival. Esqueçamos, pois, o nome da senhora morta. O nosso duello serve para mostrar que o ferido ou o morto era o mais digno ou indigno d'ella?

—Mostrará o que fôr de sua vontade.

—Pois bem: queira nomear-me os cavalheiros de seu lado, para eu lhe enviar os meus juizes e testemunhas.

—Formalidades vans! Testemunhas, a honra. Juizes, a espada, o faim, a arma de sua escolha.

—Rejeito as condições e a escolha da arma. Duvido da regularidade do seu juizo.

—Ultraja-me?—bradou o Athayde em tremuras.{78}

—Não quero ultraja'-lo, senhor. Propõe-me v. ex.ª um homicidio a occultas de quem possa dar conta ao mundo da nossa carniceira inimisade. Preciso de duas pessoas que me assegurem o bom juizo de v. ex.ª, na causa do desafio, e nas condições propostas.

—Em summa, não quer bater-se.

—Entenda-o assim, se lhe apraz.

—E sabe que desforra me fica?

—A do insulto publico.

—Estamos entendidos. Ver-nos-emos.

—Quando v. ex.ª queira.

Saíu D. Francisco de Athayde, e afadigou-se pouco em busca de Gonçalo Malafaya. Encontraram-se, e tiraram dos fains em presença de um numeroso publico, que saía da egreja dos Martyres. A pontada de Athayde vinha certeira ao coração de Malafaya, e resvalou ao longo da lamina do seu florete. Repetidos tiros de enfurecido ataque a sua mesma desordem os inutilisou. Athayde foi segurado por pessoas que o julgaram furioso no ataque. Gonçalo Malafaya, conhecido de alguns transeuntes, foi rodeado de povo, que se acotovellava para escutar as razões da extranha briga de dois fidalgos, como em seu exterior se mostravam. O portuense, ás reiteradas perguntas de conhecidos e desconhecidos, respondia com inuteis esforços para desentalar-se da multidão. Prosperou-lhe a ventura passar o corregedor do bairro do Rocio, seu amigo, de quem tomou o braço, e por amor de quem o povoléo lhe deu passagem.

Este successo turvou profundamente a paz que o pae{79} de Maria Henriqueta se estava saboreando entre a indulgente emenda da esposa e as caricias da filha.

Fôra grande na capital a soada do acontecimento, e explicada pelos coevos dos amores que levaram Beatriz á campa, e D. Francisco de Athayde á enfermaria dos loucos.

Este final e logico desastre do amador infeliz succedeu poucos dias depois. Athayde saíu da sua modorra em accessos de furia pedindo uma victima para a sepultura de Beatriz de Noronha.

Racionalmente, sua familia inferiu dos precedentes a demencia do lastimavel cavalheiro. Quizeram medica'-lo em casa; mas a sciencia rehabilitadora das razões degeneradas estava no hospital de S. José, onde foi recolhido D. Francisco, d'onde saíu seis mezes adiante, para o jazigo de seus maiores.

Se aquella apaixonada e perdida alma se recobrou pela morte, quererá Deus que ella contemple no paraizo a bemaventurada Beatriz? Sublimes arcanos que os sublimes poetas, em seus malogrados arrobos, ousam descortinar! Permittisse o grande do céo e da terra que alguma vez a poesia d'este baixo lodo se elevasse á verdade eterna pelo raio da inspiração de cima!{80}

{81}

VII

Alquebrado de espirito, e suspeitoso da malquerença da sociedade,—a quem apiedaram as desventuras de Athayde, e erritára o proceder do amante ditoso de D. Beatriz—saíu de Lisboa Gonçalo Malafaya e sua mulher, com destino ao Porto.

Ficou no collegio Maria Henriqueta, estudando a lingua franceza, rara prenda na educação das senhoras d'aquelle tempo. Prometteu o mestre dá'-la prompta no prazo de um anno; fiado na forte vontade e talento da discipula. Maria das Dôres combateu a cedencia do marido, allegando a inutilidade de falar francez n'uma terra onde ninguem sabia semelhante lingua. Gonçalo, porém, que se prezava de a saber, contradictou a esposa com victoriosas razões.

São pouco dignas de chronica as tempestades conjugaes decorridas no anno seguinte. O fidalgo tinha envelhecido nos ultimos seis mezes da capital. Velleidades de coração, antigo pomo de discordia, essas não voltaram mais. Da triste sombra do amargurado homem, até{82} os convidativos prazeres do vicio iam fugindo. Os abysmos só se cavam aos pés de quem os anda palpando. Amores de alta sociedade, amores de capricho, apavoram-se das cans, e querem pugnar com robustos corações, e atrevidos emprehendedores, capazes de abrilhantarem o escandalo. Ora, Gonçalo era a viva expiação do passado, a sombra baça do palaciano, que vencia os rivaes com o só desprezo das praças em conquista. Viam aquelle homem extenuado passar abstraído hombro a hombro das suas glorias de outro tempo, e não as conhecer. O pasmo d'estas metamorphoses dura um dia; segue-o a indifferença, e bem póde ser que a derradeira phase seja a irrisão. Esqueceu, pois, Gonçalo Malafaya, o querido das damas, o mestre dos mancebos, o «perfeito-fidalgo», epitheto antonomastico, e geralmente aceite, que lhe deram as fidalgas edosas, que tinham visto a côrte de D. João V.

Fechára-se, portanto, um respiradouro da contenciosa indole da sr.ª D. Maria das Dôres. Os outros eram menos turbulentos, ou a tolerante apathia do marido os supprimira temporariamente.

Começou Gonçalo a frequentar conventos, e a palestrear com frades. O guardião dos franciscanos era um sabio: os oratorianos eram-n'o todos; a erudição do padre Theodoro de Almeida ficára largo tempo disseminada nos espiritos dos congregados. Por estas casas, e pela benedictina das freiras e dos monges, é que o transfigurado fidalgo matava o tempo, e armazenava pharmacopêa religiosa para, no inverno da vida, se medicar em{83} enfermidades geradas nos desvarios da primavera. Com freiras era menos assiduo, mas muito estimado e desejado. Denominavam-n'o as mysticas benedictinas «o fidalgo do milagre». Vinha a ser o milagre a mudança que faz o tempo e a desgraça no homem, que em si mesmo abrange mais milagres que todos os sabidos e contados nos credulos mosteiros d'aquella época.

N'aquelle redil do Senhor tinha o patriarcha S. Bento mui formosas filhas ao começo d'este seculo. Vinham ellas algumas vezes á grade cumprimentar o fidalgo do milagre, e ouvi'-lo discorrer em cousas do céo e da terra, ditas com tanta unção e graça que nenhuma noviça ou freira nova as ouviu, que se não sentisse mais conformada com a religião. E, tanto era assim, que já soltava a intriga suas rasteiras serpes por entre as florinhas d'aquelles innocentes affectos. Se o fidalgo chamava umas religiosas e esquecia outras, glosava-se o successo com extranhos inventos, mas perdoaveis todos como desvios de espiritos frivolos dentro dos limites da candura monastica.

Recebia Gonçalo amiudados presentes de S. Bento, gulosinas fabricadas ou enfeitadas por mãos de anjos.

D. Maria das Dôres, quando esta novidade freiratica lhe entrou por casa em bandejas de prata, não fez d'ella grande cabedal para altercar; mas, com a repetição dos mimos, e a certeza de que seu marido, em vez de entrar no convento dos congregados, torcia para o pateo das freiras bentas, bafejou-lhe o seu demonio meridiano, e ahi começou ella a averiguar quem fosse a freira perturbadora{84} da sua paz. Deram em resultado as averiguações que eram todas, excepto as entrevadas, as religiosas bemquistas de seu marido, desde a garrula noviça até á gottosa abbadessa.

Soou a temerosa trombeta da discordia, assoprada innocentemente pela communidade benedictina.

—Que andas tu a fazer por S. Bento, Gonçalo?! Deste agora em freiratico?—perguntou entre grave e ironica a sr.ª D. Maria das Dôres.

—Vou por alli espairecer algumas horas. Como sabes tenho alli parentas e velhas amigas. Na mocidade não as visitava, senão de longe a longe; agora que somos velhos todos, bom é que nos vamos despedindo na ante-camara da sepultura.

—E só procuras as velhas, primo?

—Não, prima Maria das Dôres. Ha por lá umas senhoras novas filhas de amigos velhos, que me fazem a honra de me visitar na grade.

—Coitadinhas! e são umas santas: não é verdade?

—Deus sabe se ellas são santas: eu sei apenas que são excellentes creaturas.

—Tu gostaste sempre muito das excellentes creaturas!...

E n'este ponto, a sr.ª D. Maria das Dôres fez uma longa resenha de senhoras que seu marido achára excellentes creaturas; depois, fechado o catalogo não breve nem de todo imaginativo, espirrou uma risada aspera, que feriu desagradavelmente o tympano do marido.{85}

Ergueu-se Gonçalo e saíu murmurando:—Amplius, amplius, domine! que em linguagem quer dizer: Ainda mais, ainda mais, Senhor! como quem dizia que viesse do céo mais fel para o seu calix, pequeno para tamanhas culpas.

N'aquella tarde foi o fidalgo conversar com o guardião dos franciscanos, politico de vasto alcance, e propheta da proxima invasão franceza. Tinha o santo varão a gazeta de Lisboa que, em suas apreciações, era a epigraphe de sumarentos discursos ácerca da liberdade, da politica europêa e de Napoleão. Escutava-o Gonçalo aprazivelmente e maravilhava-se de tanta sciencia sob tão humilde habito.

Recolhendo a casa, alheado em combinações de politica fradesca, encontrou sua mulher amuada e colorida de certa amarellidão, presagio infallivel de tormenta. Uma palavra azada bastou para se conflagrar em relampagos e coriscos de colera, espectaculo em que a paciencia do pobre homem se empedrou de susto. Fugiu para o seu quarto, e de lá fitava o ouvido á trovoada que reboava fóra.

Deixou de ir a S. Bento o «fidalgo do milagre». As senhoras escreviam-lhe a miudo, ou mandavam os capellães cumprimenta'-lo. Em uma das cartas de saudação assignavam-se cinco freiras exemplarissimas. Foi Maria das Dôres, quem, ausente o marido, abriu, por acinte, a carta. Leu-a, e escreveu debaixo das assignaturas:

«Não sejam tolas. Vão rezar. Tenham juizo. E, se{86} não teem que fazer, façam camisas para os pobres, que é isso o que faziam as antigas congregações de monjas benedictinas.»

E devolveu a carta.

As santas senhoras, quando tal viram, choraram muitas lagrimas; mas não me consta que fizessem camisas aos pobres, cousa que me parece desnecessaria á salvação.

Alguma das cinco signatarias, menos paciente, ou amiga de deslindar meadas em que andava embelinhada a sua fama, escreveu a Gonçalo contando o succedido. Foi-lhe a carta entregue na rua por uma servente do mosteiro.

Ficou tranzido o fidalgo; mas, reparando com mais tento na escripta de sua prima, mal pôde suster o riso provocado pelo conselho de fazerem camisas para os pobres. É muito bom ter graça ás vezes. Gonçalo perdoou a imprudencia á mulher pelo pico de sal que achou. E, continuando a meditar no successo, quiz-lhe parecer que andára menos evangelicamente a freira denunciante da indiscrição de sua mulher.

Certa a esposa de que seu primo deixára de frequentar grades, e vendo que lhe faltava pedra onde mordessem os arpéos da sua indole, deixou-se ir em mar de leite, afagando, a seu modo, as tristezas do marido e ralhando com os servos para entreter o vicio, e com o capellão que continuava a benzer-se.

Passou o anno aprazado para a vinda de Maria Henriqueta. Alvoroçou-se o pae em preparativos de jornada,{87} e D. Maria quiz acompanhá-lo, e foi, vencida curta resistencia.

Já a menina traduzia correntemente o idioma francez, e o pronunciava mais correcto que o pae. Pediu ella com muito encarecimento que a deixasse ficar mais um anno para estudar o inglez. Foi este o primeiro caso em que as opiniões dos paes se harmonisaram, negando a licença. Chorou a menina como quem fazia consistir a sua felicidade na lingua ingleza; Gonçalo, porém, tão caprichosas achou as lagrimas, que nem sequer curou de enxuga'-las com caricias.

Maria das Dôres, de si pouco fagueira, consolou-lh'as com estas e outras asperezas:

—Não se envergonha de chorar uma senhora de dezenove annos! Estás bem aviada comigo, se tens assim as lagrimas á bica para qualquer contrariedade! Ahi está o que vem a ser educação de collegio! Muito mimo, um pouco de cravo, a lingua franceza, bordar a matiz, e chorar por dá cá aquella palha! Bonita educação, não tem duvida!

—Está bom!—disse Gonçalo com mansidão.—Excedes-te nas grandes e nas pequenas cousas. Não queremos que Maria Henriqueta estude inglez: está dito tudo.

—Então achas bonita aquella choradeira!

—É uma creancice que não merece discussão. D'aqui a dias já ella se não lembra de inglez, nem mesmo sabe para que aprendeu o francez. Em summa, Maria Henriqueta, precisamos de ti, e tu hoje precisas mais de nós{88} que de mestres. Se tua mãe quizer iremos no anno que vem, se as guerras tiverem acabado, visitar as capitaes de França e de Hespanha. Estudaste nos livros; agora é bom que estudes nas magnificencias da arte e do engenho humano. Gostas do meu plano?

—Gosto do que quizerem que eu goste—respondeu carrancuda Maria Henriqueta.

O pae encarou n'ella com tristeza, e disse no mais recondito de sua alma: «Vê-se que foi creada sem mãe, mãe pelo carinho, e pelo castigo. Emquanto a teve, observou os conflictos das desordens de todas as horas, e ganhou o contagio das asperezas de genio. Depois, seguiu-se o apartamento dos naturaes afagos e das censuras mesmo doces quando castigam. Tem gosado sempre louvores mercenarios, e extranha que a contrariem seus paes...»

Em quanto Gonçalo cogitava n'estas e n'outras razões, Maria das Dôres discorria pelo theor das suas iracundas apostrophes. A filha fugiu de encara'-la, e torcia os alamares do roupão, com simulada impaciencia. Interveio, segunda vez, o pae nas desmedidas invectivas da mulher, e ficou Maria Henriqueta como vexada de se baldarem suas lagrimas, e como aterrada do seu futuro.

Do seu futuro! Mal sabia ella que infinito de lances se encerra na palavra futuro!

Gonçalo Malafaya, a sós, com as suas previsões sinistras, dizia assim no esconderijo do seu quarto e de sua consciencia:{89}

—A minha desgraça está em meio caminho. Envelheci a soffrer quando minha filha começa a viver para me prolongar o martyrio até á decrepidez! Alli está uma filha de Maria das Dôres! Deixei-a sósinha com a natureza, não pude corrigir-lhe as propensões: hei-de agora luctar com o genio de ambas, azedado pela discordia em que vão viver. Como hei-de ser justo, se forem ambas injustas? O que fará a raiva e o desespero no coração insoffrido de minha filha? Porque é, meu Deus, que eu fiava o bem-estar da minha velhice dos carinhos de Maria Henriqueta?

Proseguiam as meditações de Gonçalo, quando sua mulher lhe entrou de golpe no quarto, e disse com sobresalto:

—Não sabes, primo Gonçalo?

—O quê?

—Estou espantada!

—Que é? Fala...

—Cheguei casualmente a uma janella, e vi... Santo Deus!

—Que viste?!—exclamou Gonçalo, erguendo-se.

—Vi Maria Henriqueta na janella do seu quarto...

—Isso que tem de extraordinario?!

—Tem muito! Não me interrompas! Vi-a lançar á rua uma carta, e vi um militar apanha'-la.

Gonçalo sentou-se como desfallecido. Levou as mãos á fronte, que previa suor de afflicção. Ouviu longo tempo os commentarios de sua mulher, e com grande esforço, disse:{90}

—Peço-te encarecidamente que te cales, Maria! Nem uma palavra a tal respeito. Faz de conta que não viste nada. Sê prudente, se me desejas vida a mim, e honestidade a tua filha...

Maria das Dôres murmurou apenas:

—Entendam lá o que diz elle na sua!... Boa maneira de velar a honestidade de uma filha!...

FIM DA PRIMEIRA PARTE

{91}

SEGUNDA PARTE

I

Não fôra o anhelo de saber linguas que ensinára a Maria Henriqueta a fagueira eloquencia com que venceu o pae, e conseguiu estudar francez. Deus sabe com que repugnancia ella decorava as declinações e os verbos, e com que enfados velava as noites para dar lições diarias, com applauso do mestre. Cuidava a educanda que, fazendo prodigios no conhecimento do francez conseguiria do pae licença para deter-se mais um anno em Lisboa, com o ensino de outro idioma.

Vamos á explicação natural d'estas maravilhas de estudo e sede de saber.

Desde os seus quinze annos que Maria se inclinára aos sorrisos de um cadete de cavallaria, galhardo mancebo de cabellos louros, cintura fabulosa, e maneiras de summa elegancia.{92}

Era o cadete da provincia de Traz-os-Montes, filho segundo de uma nobre casa de Mirandella, aparentado com illustes familias de Entre-Douro e Minho e chamava-se elle Filippe Osorio Guedes da Fonseca. Abundavam ao moço as sobras de sua mezada, e converteu-as todas ao seu noviciado de amor. Primeiro alliciou a creada do collegio para receber as cartas da mão do creado, alliciado tambem. A educanda correspondeu á fogosa e sincera declaração do amante, com os mais apaixonados termos, que lhe ensinou uma companheira mais velha e já experimentada nas excellencias do estylo epistolar.

O cadete, não satisfeito plenamente com as cartas, alugou, na visinhança do collegio, um andar de casas, que tinham saguão commum e janellas fronteiras. Maria, sabedora do expediente amoroso do moço querido, classificou o feito de suprema prova de amor, e deliciou-se em embriaguez de ternura n'aquelles vagos anceios dos dezeseis annos, que tanto levantam a mulher a foros de anjo, como dão com ella em razo, desenfeitada de todos os prestigios.

Não era para isso o amor de Filippe Osorio. Amavam-se como duas creanças pela innocencia do seu amor, e como dois noivos pelo alcance de suas esperanças. Era o enlevo a subi'-los ao céo, e o instincto a baixa'-los á terra. Mas que instinctos tão humanos, tão legaes, tão christãos! Casarem-se! Companheiros de uma longa vida, começada em duas formosas e explendidissimas primaveras! Que bonitos amores, e quem nos dera a todos nós amar assim vinte vezes na vida!{93}

Deu fé a directora do collegio do namoro. Admoestou suavemente Maria Henriqueta, e a candida menina respondeu-lhe;

—Olhe, minha senhora, leia as cartas de Filippe; eu lh'as leio todas, se quer!...

A directora montou os oculos, e leu, com admiravel pronuncia e conhecimento de toada dramatica, um massete de cartas, que era um coração em prosa!

Em uma das primeiras dizia elle quem era, o seu nome, o nome de seus avós, os seus parentes, o seu destino, os seus anhelos á gloria, a sua gloria de ser amado. Vinha portanto Filippe Osorio a ser um dos primeiros nobres de uma provincia, e um dos mais finos amantes do globo.

A directora dobrou as fartas hastes dos oculos, embocetou-os, escutou o oraculo de uma pitada de esturrinho, e disse;

—Mas seu pae não a mandou para aqui com o intento de a menina arranjar marido. Concordo nas boas intenções do seu joven namorado; mas é necessario que seu pae concorde n'ellas.

—Mas que precisão tem meu pae de ser chamado já para isto, que é um brinquedo? Se algum dia eu me resolver a ser esposa de Filippe, então consultaremos meu pae, e eu farei o que elle ordenar.

Ouviu a directora um amigo antigo da casa, homem maduro e previdente. O consultado respondeu:

—Deixe divertir-se a pequena, minha senhora. Namorar n'aquella edade é como abrirem-se as flores em{94} abril. (Sobre ser amigo da casa, era o sujeito o poeta dos annos da familia). Se avisam o pae, sabe o que acontece? É elle tira'-la de cá, e a senhora perde trezentos mil réis annuaes que recebe, afora os presentes dos presuntos, dos chouriços, dos paios e das murcellas de Arouca: Minha senhora! tome o meu conselho. Emquanto a janella do visinho não atravessar o saguão, e se lhe metter em casa, deixe-os conversar, deixe-os perfumar os ares com a recendencia dos seus innocentes amores.

Silvou uma pitada a matrona, e disse:

—Tambem me parece... a janella cá não entra, sem ser por arte magica.

—Tambem me parece—redarguio o amigo da casa—e a magia é uma mentira...

—Isso é conforme, meu caro amigo! A gente tem visto cousas!...

E ficaram n'isto, porque um e outro tinham visto cousas admiraveis em magia no theatro do Bairro Alto, no da rua dos Condes, e mesmo fóra do theatro.

Continuaram os doces colloquios. Nunca tão immaculada paixão se nutriu de puros desejos através de dois, tres, quatro, cinco annos.

Filippe, no decurso d'este tempo, foi promovido a alferes e já ostentava as divisas de tenente de cavallaria, quando D. Maria das Dôres o viu levantar a carta.

Tudo o mais que eu dissesse para esclarecer o mysterioso desejo de linguas, que Maria Henriqueta exprimia com lagrimas, seria uma impertinencia.{95}

Agora sabem o porquê d'aquelles prantos, e digam-me se ella não tinha rasão, amante cinco annos, cinco annos embalada pela esperança de cada noite, ditosa pela realidade querida de cada dia, afeita áquelles olhos negros, áquelles cabellos louros, áquella melodia de palavras, que pareciam cantadas a um arpejo de anjos! Nunca ninguem chorou com mais amargura intima, penso eu!

Se ella dissesse ao pae que amava Filippe!... Porque lh'o não disse? Porque se não confessou em tão innocente culpa?

Não o saberei eu bem dizer. Um instincto adivinhador do animo paterno? Não. Foi uma razão menos nebulosa. É que o pae lhe havia dito um anno antes: «Eu medito em te casar com um dos primeiros titulares da provincia; é um conde, minha filha, não mais nobre que nós, mas egualmente antigo, e... conde! Com que legitima soberba te verei condessa, minha filha!...

Maria Henriqueta ouviu em alvoroço, e disfarçava a dôr da lançada com um sorriso. Notou o pae que ella se purpureava; e disse entre si: «como o pudor é lindo!»

A carta expedida pela janella, devia ser um partir-se o coração de lê'-la. Despedia-se Maria de Filippe Osorio, emprazando-o para encontrar-se com ella no céo, a não querer elle commetter algum desesperado arrojo que a salvasse.

Houve-se com ella de modo o pae, que nem uma só palavra equivoca lhe disse. D. Maria das Dôres, incapaz de reprimir-se, alguns remoques aventurou, provocando-a{96} a revelações que ella não fez. Como a casual chegada da mãe á janella lhe foi despercebida, Maria Henriqueta deu pouco valor a umas ironias, que de leve lhe apalpavam o seu segredo.

Triste como a saudade sem desafogo, entrou Maria no sombrio palacio de seu pae. Em redor de si eram tudo cortezãos enjoativos, fidalgos de muita edade, perguntando-lhe se vira D. Carlota Joaquina, e meninas de sua edade, que se agrupavam a um lado ciciando segredinhos, allusivos ao ar enfatuado de Maria, com o que, de puro respeito, se estavam sorrindo.

Concorria tudo, pois, a exasperar a tristeza da morgadinha. As mesmas caricias do pae a enfastiavam; o semblante aspero da mãe recordava-lhe os repellões que soffrera em menina, e os annos dourados que deixára no collegio. Saltavam-lhe involuntarias as lagrimas dos olhos, em presença das familias que a visitaram, em todas as noites da primeira semana. Fugia das salas, encerrava-se no seu quarto, e rompia em gritos, em que a irritabilidade nervosa tinha maior acção. As noites desvelava-as a lêr as cartas de Filippe, escriptas em cinco annos. Estas leituras, longe de socegar-lhe o animo, aguilhoavam-n'a a impetuosos transportes do leito para as janellas, sorvendo a anciados haustos o ar da noite. Sentava-se constrangida á mesa, e raro alimento aceitava da mão carinhosa do pae. Pedia frequentes licenças para levantar-se, e buscava, em secreto, o seio de sua ama, para chorar com desafogo, falando em Filippe.

Em nome da ama vinham as cartas d'elle. Digno de{97} tanto amor nenhum outro homem o seria mais. Atrevia-se de frente com as difficuldades, e promettia-lhe a redempção, se ella permanecesse constante. O seu primeiro triumpho consistia em conseguir passagem do seu regimento para a guarnição do Porto. Era concessão difficil, n'aquelle tempo em que o prospecto de proxima guerra punha em sobresalto conselheiros da corôa, que só curavam de organisar o exercito. Venceu o moço, com o patrocinio de poderosos amigos de seu pae, os obstaculos da transferencia, e avisou Maria Henriqueta, marcando-lhe o dia de sua chegada ao Porto.

Cobrou animo a menina, já enferma, e apostada a morrer. A vida do coração radiou a todos os órgãos exanimes e desconcertados. Nem mesmo o estomago foi extranho áquella festa das visceras.

Maravilhou-se da mudança o pae; e Maria das Dôres ficou de sobreaviso para espionar o motivo de tão breve como extranha conformidade.

Gonçalo, menos atilado ou malicioso que sua mulher, attribuiu a mutação á ordem natural das cousas e das pessoas. «Maria Henriqueta esqueceu-se—dizia elle á consorte suspeitosa e incredula.—São assim as mulheres em geral e o coração gasta-se como tudo que é susceptivel de consumpção.» O philosophico entono com que o aphorismo foi atirado á circulação das idéas, não impressionou vivamente D. Maria, que era uma senhora de mean habilidade para digerir a sciencia occulta dos aphorismos.

No dia anterior ao da chegada de Filippe Osorio, annunciou{98} Gonçalo a sua filha a visita do conde de Monção, inquerindo ella a causa do grande reboliço que ia em casa com a innovação de tapetes, de cortinados, e de moveis, chegados da capital.

—Vem ser nosso hospede alguns dias;—accrescentou o pae—Cuida tu, minha filha, em tirar dos bahús os teus melhores vestidos e enfeites para que elle, n'um relance de olhos, conheça em ti uma senhora educada na côrte. Pódes falar-lhe em francez, que elle viveu em Pariz. Verás que homem de côrte, que ar de quem tratou face a face com Luiz XVI e com Maria Antoinette! Feliz serias se, como creio que ha-de succeder, lhe tocasses o coração!

—Eu!... disse Maria com tregeito de espantada.

—Tu, sim, minha filha!—respondeu o pae, cuidando que o espanto era a natural expressão de quem se julgava indigna de tão egregio esposo—Não te disse eu, ha um anno, que projectava casar-te com um conde?

—Disse, meu pae.

—Então, já vês que me não esqueci da promessa. Favor, em ligar-se á nossa estirpe, não me faz nenhum. A sua origem foi a nossa. Todos viemos da Cantabria; procedemos todos dos heroes de Covadonga, capitaneados por Pelagio. Alli se ajuntaram as reliquias dos reis godos, e d'essas são oriundas as nossas familias, posto que seus avós fossem meros fidalgos acantoados em seus solares quando de Hespanha veio a infeliz rainha Ignez de Castro, de um ramo da commum arvore que bracejou mui honradas e nobilissimas frondes por Castella.{99}

Maria Henriqueta não ouvia nada d'estas maravilhas. Estava como morta nos sentidos exteriores.

Gonçalo exclamou com affectuosa vehemencia:

—Tu descóras, Maria!? Que tens? Desagrada-te o meu plano!? Responde...

Não respondeu, nem desmaiou.

Sacudiu-a com brandura o pae, tomando-a para o seio, e osculando-a na fronte.

—Fala, minha filha! Que sentes tu?

Maria pôde falar, quando os soluços lhe desembargaram a voz, e disse:

—Lembre-se, meu pae, do seu casamento. Queira a minha felicidade...

—Pois não quero, filha? Que maior prova posso dar-te que esta? Cuidar em fazer-te condessa de Monção!...

—Não posso acceitar tal marido, meu pae...

—Não pódes?!—atalhou, em tom menos suave.

—Não posso ama'-lo... e não amar um esposo deve ser a maior das desgraças...

Maria das Dôres entrou n'este momento, e ouviu as ultimas palavras da filha, que tremeu ao ve'-la.

—E como sabes tu que não hasde amar o conde, se o não viste ainda?!—replicou o pae.

—Sei que me é impossivel ama'-lo... Póde ser um anjo do céo, que eu não o amarei... Casar sem affecto, meu pae, sacrificar-me por toda a minha vida, estando eu tão nova, deve ser muito triste. Antes um mosteiro; eu de boa vontade professo, e me irei esconder{100} e penar como filha desobediente; mas não me obriguem a casar, que eu tenho animo para me matar no dia seguinte.

—Tens razão, filha!—exclamou Maria das Dôres—Tens razão! Casamentos á força, em quanto eu fôr viva, não os tolero na minha casa. O homem vem ahi ámanhã. Se gostares d'elle, e elle gostar de ti, casem-se; se não, passe por lá muito bem o snr. conde, e tu deixa-te estar, que estás bem na tua casa.

—Que conselhos maternaes são esses, prima Maria das Dôres!—interrompeu Gonçalo.

—São conselhos, que minha mãe me não deu, primo Gonçalo. Repito: Maria Henriqueta não hade casar obrigada. Minha mãe, á hora da morte, pediu-me perdão de me ter obrigado a casar; e eu não quero nem heide pedir o mesmo perdão a minha filha.

—Temos uma grande lucta, Maria das Dôres!—exclamou o marido.

—Pois luctaremos—respondeu ella, esgrimindo com os braços e com a cabeça.—Maria Henriqueta! tu tens por ti a razão, e tua mãe... Veremos de quem é a victoria.

—Eu não queria que meus paes se indispozessem por minha causa—atalhou a menina—O que peço a ambos é que me queiram na sua companhia, e me deixem gosar o resto da minha mocidade. Sinto-me aqui feliz; para que heide eu ir procurar a felicidade onde eu sei que ella não está?

—Maria!—tornou severamente Gonçalo—Eu sei que{101} saíste de Lisboa apaixonada. Calei-me, cuidando que o teu brinquedo ficaria por lá esquecido com os devaneios da mocidade; e calei-me porque um pae deve fingir-se extranho a creancices sem resultado. Agora vejo que é grave o teu desvario, e aceito a obrigação de t'o corrigir. Vamos a perguntas, que te devia ter feito. Quem é o militar, que levantou da calçada uma carta lançada por ti?

Respondeu Maria passando da pallidez ao escarlate, e vibrando toda n'uma convulsão afflictiva.

—Responda, senhora!—repetiu o pae com o aspecto mal assombrado.

—Responde, Maria Henriqueta, diz a verdade—ajuntou a mãe, em tom de mansidão, e modos protectores.

Maria murmurou:

—Era um tenente de cavallaria... Chama-se Filippe Osorio Guedes da Fonseca... É de Mirandella, e é fidalgo...

Gonçalo expediu uma casquinada de riso, e disse:

—Fidalgo!... tenente de cavallaria!... fidalgo de Mirandella!—quem são n'este mundo os Fonsecas de Mirandella?... Hei de perguntar por isso ao meu mordomo de Lamego, que é de Mirandella, e chama-se Melchior Fonseca. Precisamente é tio do sr. Filippe, tenente de cavallaria!...

E deu segunda casquinada, com uns tregeitos mal cabidos nos seus nobres ademanes.

Maria das Dôres não ria; nem via com bons olhos os sarcasmos do marido. Por espirito de contradicção, ou{102} por pena da filha, tomou-a pelo braço, e disse-lhe:

—Vem d'ahi, Maria Henriqueta.

—Onde a leva? disse irritado o marido.

—Onde hei de eu leval'-a?—redarguiu a esposa na mesma entonação.

—Quero que ella me responda!

—Pois faça-lhe as perguntas com geito e modos. Que quer perguntar-lhe? Vamos, ella aqui está para responder. Diga lá.

—Tudo que tenho a dizer—retorquiu Gonçalo Malafaya exasperado contra mãe e filha—é que eu defendo a honra dos meus, e deixo de ser pae, quando é necessario ser juiz.

—Não quer mais nada?—concluiu D. Maria das Dôres.—Anda d'ahi, menina!

E saíram. Maria Henriqueta, com os olhos turvos de lagrimas, mal via o chão que pisava.

Gonçalo atirou-se sobre um canapé, e exclamou:

—Castigado até ao fim! Nem a submissão d'esta filha que eu amo tanto!... É de mais, ó meu Deus!

Entraram os creados a pedir ordens para a localisação das alfayas vindas da capital. Gonçalo saltou enfurecido do canapé com as mãos enclavinhadas nos cabellos, e exclamou:

—Peguem incendio a esta casa, e morra eu dentro della!

Os servos fizeram pé atraz e encontraram, ao saírem espavoridos, o capellão, que se estava persignando, com os olhos postos no tecto, á mingua de céo.{103}

II

Era aquelle o dia em que devia entrar no Porto o conde de Monção. As carruagens da fidalguia, convidada por Malafaya a esperar o seu illustre hospede, estacionaram á porta do palacio, condemnado ás chammas, esperando que o dono descesse. Gonçalo, quando a parentella ia entrando, compoz o semblante, vestiu-se a primor, e saíu a entrar na sua melhor equipagem. Era tarde para sacudir a carga, que tão vaidosa e jubilosamente tomára.

O conde vinha pela estrada de Coimbra, onde passára alguns dias, visitando quintas suas nos arrabaldes d'aquella cidade. A comitiva chegou aos Carvalhos e esperou.

Era o conde de Monção um fidalgo creado em côrtes, e conhecido nas extrangeiras; mas, em todas, o mais graduado titulo de sua recommendação era a tolice, o dom de engranzar parvoiçadas, que relevavam de chiste por serem ditas n'uma algaravia de linguas, só perceptiveis por alguns vocabulos irrisoriamente pronunciados. Fôra menos exacto, ou nimiamente credulo Gonçalo{104} Malafaya, dizendo que o conde de Monção sabia falar francez, por ter estado em França. O conde era refractario aos idiomas, e com o seu, propriamente, andava tão desavindo, que os fidalgos de Lisboa não o entendiam melhor que os de Pariz. A visinhança de Galliza, que defronta com Monção, introduzira na linguagem familiar do conde muitos termos espurios, cuja versão fiel só os aguadeiros de Lisboa podiam faze'-la competentemente. Galhofavam d'elle muito na côrte as damas e os moços intolerantes. A mim me quer parecer que a pecha de agallegados, que os de Lisboa gratuitamente nos põem, data das visitas do conde áquella cultivissima terra, que tem lá tambem os seus dizeres ridiculos, mas no proferi'-los vae tanta graça e tal affectação que não ha ahi cousa que mais diga!

Saía o conde de Coimbra em direitura ao Porto, quando ouviu tropel de cavallos que o seguiam. Olhou, e viu um cavalheiro com insignias militares, acompanhado de seu lacaio. Ao perpassar por elle o açodado cavalleiro, perguntou-lhe o conde:

—Vae para o Porto?

—Sim, senhor.

—Então podemos ir de camaradas.

—Com o maior prazer, se o cavalheiro esporear o seu bello alazão.

—Se não é mais do que isso, ahi vamos—disse o conde, atirando o acicate aos ilhaes do cavallo.

Filippe Osorio riu-se d'aquelle verbo—vamos, se é que Filippe Osorio podia rir.{105}

Praticaram largamente n'aquelle dia de jornada, sobre diversos assumptos. As damas tiveram grande parte, como de direito deviam ter, nas palestras dos cavalleiros. Dizia o conde que as francezas tinham grande pancada na mola, e as inglezas costumavam cheirar os homens de longe, antes de lhes apertarem a mão. O tenente de cavallaria aventou logo que falava com um inepto, e cavou solicitamente na materia em que elle mais necedades dizia. Se alguma vez o conde revelou intervallo lucido de sensatez, foi quando disse que as senhoras do Porto eram muito formosas. Mencionou as que conhecia, e ajuntou que ia hospedar-se em casa de uma, cujo retrato possuia em marfim, e que era a mais linda mulher que seus olhos enxergaram na Europa. Proseguiu no mesmo theor esperando que o seu companheiro lhe perguntasse quem era a mulher mais linda da Europa; mas Filippe tão abstraído ia que nem a curiosidade o espertou.

—O meu nobre amigo, disse o conde arrebentando por dizer o nome da dama, talvez tenha ouvido falar na familia dos Malafayas...

—Tenho...—disse Filippe, empertigando-se na sella, como se uma barra de ferro lhe batesse no peito.

—Tem? pois a menina de que lhe falo é d'esta familia.

—Conheço um fidalgo chamado Gonçalo Malafaya.

—Sem tirar nem pôr. É o pae d'ella.

—Pae d'ella!... Como veio ás suas mãos o retrato de...{106}

Susteve-se Filippe tão bruscamente, que só o conde de Monção deixaria de notar as perturbadas perguntas de companheiro.

—O retrato d'ella mostrou-m'o o pae, aqui ha um anno, quando veio de Lisboa, onde a mandou pintar. De mais a mais, a menina foi lá ensinada n'um collegio, e fala o francez perfeitamente.

Filippe, com quanto alvoroçado, estava longe de presentir o desfecho de taes revelações, e proseguia no inquirimento d'ellas para se recrear falando de Maria, quando mais não fosse.

—Mas,—insistiu elle—com que fim o sr. Gonçalo Malafaya mostrou ao meu amigo o retrato d'essa menina?

—Isso são contos largos; mas lá vae a historia. Em primeiro logar, o senhor não me conhece?

—Não tenho a honra...

—Eu sou o conde de Monção.

Filippe, d'esta feita, devia de sentir duas barras de ferro, uma ao peito, e outra nas costas, porque ficou hirto e rijo sobre o selim.

—Nunca ouviu falar de mim?—tornou o conde, notando a nenhuma reverencia com que o militar ouvira o seu nome.

—Ouvi, sim, senhor.

—Agora, se lhe não custa, diga-me o senhor quem é.

—Sou um official de patente; mas os meus appellidos são populares, e escuso de os dizer a v. ex.ª como recommendação.{107}

—Isso que tem? Se não é fidalgo ainda o póde ser, que d'essa massa se fazem. Armas ou lettras, diz lá o ditado dos velhos. De cá se vae a lá. Meus avós tambem foram da militança, e eu ainda conheci na minha casa tres generaes velhos como a Sé de Braga.

—Mas vamos á historia, se lhe não custa—disse Filippe com simulado e affectuoso sorriso.

—Vamos á historia... Vinha-lhe eu dizendo que sou conde; mas, a falar-lhe a verdade, com as viagens estraguei um pouquito a minha casa, porque lá por fóra era umas mãos rotas. Aquellas francezas foram os meus peccados, meu caro senhor! Dei lá jantares a duquezas que era um pasmar! E olhe que em Pariz um jantar, que faz pasmo, já ha de ser de um tal tamanho!... Como lhe vinha contando, quando voltei a Portugal, e vi o empenho em que estava a minha casa, resolvi tomar estado com menina rica, ainda que me ficasse a perder de vista em fidalguia. Não póde ser tudo, meu amigo! Aquelle maldito pombal deu-nos cresta ás regalias, e fez com que o dinheiro se espalhasse por todas as mãos. No inferno esteja elle, e mais as suas leis!... Andava eu a cogitar n'isto, quando o negocio me saíu mesmo ao pintar, ainda melhor do que eu queria! Botei as minhas vistas ás ricas herdeiras da provincia, e soube que o melhor morgadio era o de Gonçalo Malafaya, por ter só uma filha. Fui até ao Porto, ha tres annos, assim como quem não quer a cousa, e fiz por me encontrar com o Malafaya. Comecei a tirar nabos do pucaro, como o outro que diz, e deixei-me dizer que me{108} não desconviria ligar á minha casa uma menina que fosse tão nobre e tão boa herdeira como a filha d'elle. Não arranjei bem o palavreado?

—Perfeitamente—disse Filippe ancioso pelo remate, como se o não tivesse adivinhado, desde que soube que falava com um conde, que tantas lagrimas custára a Maria Henriqueta:

Continuou o conde:

—O Malafaya esteve a conversar muito tempo comigo, levou-me a casa, deu-me um bom jantar, e disse-me ao outro dia:—Deixemos completar a educação de minha filha, e depois falaremos.—Passados quasi dois annos, recebi em Monsão uma carta do Malafaya com o retrato da menina. Ó meu amigo! confesso-lhe que fiquei de bocca aberta! Era a cousa mais perfeita que cobre a roda do sol! Sabe o senhor o que é apaixonar-se um homem, não atinar mais com a cabeça? Foi o que me aconteceu a mim! Vim logo ao Porto, e disse a meu futuro sogro! «Eu quero a sua filha, mesmo sem nada, se é possivel!» Elle entrou a rir, e disse-me: «A minha filha, além da riqueza e da formosura, tem o melhor coração que Deus formou em peito de mulher.» Nunca me esqueceram estas palavras!...

Andei com o negocio de afogadilho para que o casamento se fizesse logo: mas metteram-se umas desordens tamanhas entre elle e a mulher—que é o diabo de saias segundo ouço—de modo que foram para Lisboa um por cada vez, e por lá se deixaram estar até ha pouco, que vieram para o Porto. Ha de haver quinze dias que o{109} Gonçalo me escreveu, dizendo-me que era chegado o tempo de eu ser apresentado á minha noiva, e effectuar-se o casamento. Ora aqui tem a historia com todos os pontos e virgulas. Vou casar-me. Acabam-se as rapaziadas e as viagens; mas fico senhor de uma grande casa e da mulher mais bonita da Europa... Que diz o senhor a isto?

—Digo que faz muito bem; mas se me dá licença—continuou Felippe com a mais destra e bem fingida serenidade—farei uma advertencia.

—Diga lá sem cerimonia.

—Tem o senhor conde a certeza de ser amado pela sr.ª D... Chama-se ella?

—É Maria.

—Pela sr.ª D. Maria?

—Se tenho certeza de ser amado? Eu sei cá! Ella ainda me não viu.

—Pois por isso mesmo. Que certeza tem v. ex.ª de que ella o ame, vendo-o?

—O senhor está muito enganado comigo. Saiba que todas as mulheres gostam de mim. Ponto é que eu as metta á bulha! Diziam lá os meus caseiros, quando eu fazia em rapaz muitas travessuras, que eu tinha o besouro diabolico. Em França, onde eu estivesse, conhecia-se logo. Olhe que estive para me bater muitas vezes por causa de namoros muito serios com as açafatas da côrte.

—Tudo creio, porque reconheço em v. ex.ª meritos para tudo; mas supponha por um momento que D. Maria o não ama?{110}

—Porque não ha de amar-me? Essa é fina!

—Supponha que ella ama outro homem?

—Se ama outro homem, faz de conta que nunca o viu.

—E v. ex.ª tambem faz de conta que o não sabe.

—Está claro.

—E se ella dér a esse homem a preferencia para casar com elle? Queira desculpar esta pergunta.

—Diz o senhor que ella póde rejeitar-me para casar com outro?

—É uma supposição...

—Ora deixe-se d'isso!... Nem o pae a deixava, nem eu era homem para essas brincadeiras. Ou eu ou elle.

—Iria v. ex.ª disputar a vida ao sujeito que D. Maria amasse?

—Se elle fosse fidalgo ia; senão, mandava-o varrer do meu caminho pelos meus lacaios.

Filippe, se outro fosse o interlocutor, tinha-se denunciado, quando soltou uma franca e estridula risada. O conde, afeito a provocar o riso, entendeu que a sua ameaça afidalgada dos lacaios tivera muito chiste. E riu tambem, em prova de que sabia avaliar o quilate do seu espirito.

Nunca mais o tenente de cavallaria pôde encarar no seu companheiro de jornada. Respondia-lhe sem fita'-lo; e de proposito se retardava ou adiantava para não emparelhar com elle.

Pernoitaram em Albergaria. Cada qual recolheu ao seu quarto depois da ceia, durante a qual o conde esteve em ferias de palavreado. Filippe chamou á meia{111} noite o seu lacaio, e mandou arrear os cavallos. Cavalgou, e partiu para o Porto, deixando o conde no seu primeiro somno, o somno da felicidade estupida que lhe derramára nas palpebras as suas narcoticas urnas, e lhe instillava, talvez, na alma as dulcissimas visões de um noivo da mais formosa mulher da Europa.

Quando, pois, as carruagens dos fidalgos subiam a encosta de Gaya, descia a trote Filippe Osorio. De longe, conheceu que a primeira carruagem era de Malafaya, por ser das mais luxuosas que se ostentavam em Lisboa. Conheceu-lhe os creados da libré, tudo reconheceu, porque em tudo se atavam recordações de Maria Henriqueta. Desviou-se da estrada larga para uma travessa marginal, e deixou passar o prestito. Desempedida a estrada, ganhou o Porto em poucos minutos, apeou, e subiu a procurar o palacio de Malafaya. Parou diante do portão indicado, e ousou entra'-lo, e perguntar ao guarda, revestido de rica libré, se podia falar a uma mulher chamada Eugenia.

Eugenia era a ama de Maria Henriqueta. Nenhuma duvida lhe estorvou falar com a creada no seu proprio aposento, que distava muito das camaras das senhoras. A ama fez apavoradas visagens de espanto; mas ouviu-o. Urgia elle, lançando-lhe dinheiro em ouro ao regaço, que Maria alli viesse. Da negativa passou Eugenia á hesitação e d'ahi, movida pela angustia do moço—angustia com liga de ouro—foi disfarçadamente procurar a menina.

E a menina entrou no quarto da ama, e a ama com ella.{112}

{113}

III

Maria Henriqueta ouvira a confidencia sobresaltada de sua ama, e ficou como estupida de alegria. Eugenia, temendo que D. Maria das Dôres a encontrasse n'aquelle extranho transporte, accelerou a ida, recommendando-lhe curta demora.

Á entrada do quarto, a menina, encarando em Filippe, soltou um grito, como se fosse inadvertida, e por surpresa, a apparição. O melhor recosto para um vágado era certamente o dos braços, que se abriram a recebe'-la: mas o accidente foi instantaneo: o coração predominou o espasmo nervoso.

Estava Eugenia, a um lado, contemplando com aguados olhos a scena pathetica; porém, o medo tinha-a tolhida. Apenas o prefacio de suspiros e lagrimas iria em meio, quando a ama acudiu pedindo que dissessem depressa o que tinham a dizer, antes que a senhora perguntasse pela menina.

—Não tenhas medo, disse Maria Henriqueta, que a mãe está dirigindo o arranjo dos aposentos do conde—E,{114} voltando-se a Filippe, continuou:—Já podes imaginar quem é este infernal conde, que se espera...

Em breves termos contou o tenente as passagens que o leitor já teve a complacencia de ouvir; mas eu contei-lh'as a sorrir, e elle disse-as com tormenta desfeita de lagrimas a Maria Henriqueta.

Respondeu ella, relatando a lucta, que tivera com o pae, suavisada por ter captado em seu favor a mãe, cuja vontade era mais efficaz e prestante que a d'elle.

Passaram a combinações de futuro, prevendo hypotheses desgraçadas, como violencias de convento, maus tratos, divorcio de familia, que tudo era de antever, arvoradas as bandeiras hostis na casa.

Disse Maria que fiava muito de sua mãe, mas muito mais de si propria.

«Se a perseguição fôr tal, que me não deixem respirar—disse a menina—em tal extremo, fujo para ti, e depois... Deus se compadeça de nós, e da grandeza do nosso amor. Iremos ajoelhar a um padre para que abençoe a nossa eterna união, e assim unidos, sem vergonha do mundo, arrostaremos com todos os revéses.»

Filippe ouviu de joelhos esta celestial musica dos labios de Maria, e julgou-se superior a homem na felicidade que o embriagava. Para cumular o contentamento do coração da amada, contou-lhe que seu pae o protegia declaradamente com todo o dinheiro preciso para affectuar o seu casamento; e ajuntou que, sendo mister fugirem para o estrangeiro, em toda a parte encontrariam a abundancia para que a sua ventura fosse perfeita.{115}

Maria Henriqueta deu insignificante valor a esta ninharia da abundancia no extrangeiro. Amor, amor, é que ella anhelava, como as aves do céo que avoejavam de horisonte a horisonte, e dobram as serras, e cortam a cupula dos mares, sem cuidarem de pedir á terra ou ás aguas um poucochinho de alimento.

Estas cousas, de si tão simples, ditas por amantes, embeberam duas rapidas horas, que pareceram annos á timorata Eugenia. Já D. Maria procurava a filha, quando Filippe Osorio descia ao pateo, seguido da ama, que lhe chamou sobrinho, ao despedir-se, na presença do guarda-portão.

Reparou a mãe no rubor febril da menina, e inquietou-se na supposição de que ella adoecesse, por effeito do susto em que a deixára o pae.

—Maria Henriqueta—disse D. Maria das Dôres—eu quero-te mais animada. Já te disse que á força não te casa teu pae. Conta commigo, e verás que tudo ha de ir por onde deve ir. Com isto não te quero dizer que cases com o militar; mas, mal por mal, antes d'elle que de um marido detestado.

Maria abraçou a mãe com tanta effusão de reconhecimento, que, para assim dizer, foi esta a primeira vez que Maria das Dôres sentiu arfar o coração de sua filha, e tão estranha e dôce lhe fôra a sensação, que poude n'esse instante ajuizar da ternura maternal.

Noite fechada, ouviu-se o estrepito das carruagens, passando sob o arco de Nossa Senhora de Vandoma. Maria tremeu e fugiu para o seu quarto, pedindo á{116} mãe que a desculpasse de ir á sala por estar doente.

—Quero que vás á sala;—disse Maria das Dôres—Escusam-se fingimentos, quando as contas estão lançadas, eu sou por ti com a minha vontade de ferro.

Gonçalo Malafaya entrára carrancudo. Já elle presumia que o tenente de cavallos estivesse no Porto, ouvindo a relação que o pasmado conde fizera do militar, que o deixára a dormir em Albergaria despedindo-se em latim. Instou Malafaya em meudas averiguações, ás quaes o conde respondera sinceramente, dizendo mesmo as duvidas, que elle puzera, no tocante ao amor de Maria Henriqueta.

Isto bastou á desconfiança e penetração de um pae precavido.

O conde foi apresentado a D. Maria das Dôres, e teve o infortunio de acarear desde logo a mais formal das antipathias. A fidalga tinha odio a homens ruivos e baixos: e o conde era baixo e ruivo. Não detestava menos os pés grandes e o simonte; e o conde, sobre ter pés grandes, aspirava com desgraciosa pretenção o aroma do simonte de uma caixa de ouro com um relevo de cupido, a desfechar dardos, de dentro de uma mouta de flôres, sobre umas pastorinhas que teciam grinaldas de rosas. Foi a caixa muito admirada da numerosa turba dos convidados, e passou ás mãos de D. Maria.

—Essa caixa, minha senhora—disse o conde—esteve já nas mãos mais lindas de França. Madame la duchesse de Choiseul honrou-me muitas vezes tomando pitadas da minha caixa.{117}

—Quem?—disse D. Maria.

—A senhora duqueza de Choiseul.

—Tem as mãos muitos lindas?—replicou a fidalga.

—Lindissimas, minha senhora.

—Mas o nariz, se toma tabaco, não póde ser muito lindo... Aqui tem a sua caixinha, com o seu Cupido e as suas pastorinhas, sr. conde. É um traste muito bonito; mas o tabaco dá-lhe ares de um deposito de immundicie com paredes de ouro.

—Que grosseria!—murmurou Gonçalo ao ouvido da senhora.

D. Maria das Dôres olhou de través o marido e disse:

—Temos historia....

Gonçalo, inimigo das historias de sua mulher, voltou-lhe as costas, e prendeu a attenção ás variadas conversações dos fidalgos. D. Maria pediu licença, saíu da sala, e foi ajudar a vestir a filha com o mais roçagante e pomposo vestido de veludo escarlate, que trouxera de Lisboa.

—Quero que te admirem!—dizia ella pregando-lhe as suas melhores joias, e estrellando-lhe o toucado de pedras, e coalhando-lhe o seio de scintillantes colares.

Fez-se um silencio de egreja em festa de paixão, quando Henriqueta assomou ao limiar da sala. Era da etiqueta que os cavalheiros se adiantassem, em meia-lua, a recebe'-la ao centro do recinto; mas o espasmo collára aos tapetes os velhos e os novos fidalgos. O conde, a quem maior obrigação de cumprimento impunha o seu especial logar entre todos, deu alguns passos, como quem rompe um minuete, e acurvou-se com o braço direito{118} afastado do tronco e a mão esquerda sobre o coração, que lhe dava corcovos no peito. Maria baixou ao chão os olhos, inclinou-se um pouco, e esperou que seu pae a conduzisse aos coxins do canapé. A garbosidade com que ella sacudiu a cauda para sentar-se de golpe, fez que muitos velhos puzessem os olhos no céo e os mancebos relanceassem olhares rancorosos sobre o conde. Offereceu Gonçalo ao hospede a cadeira mais nobre das quatro que ladeavam o canapé, e o fidalgo, que tratára duquezas de mano a mano, viu-se em apertos de acanhamento, antes de sentar-se milagrosamente no rebordo, da cadeira baixa, em que a seda do calção, que vestira nos Carvalhos, parecia rebentar pelas costuras repuxadas.

—Tive dois dias de boa jornada, minha senhora,—disse o conde gaguejando.

—Sim?—respondeu Maria—muito estimo que não tivesse incommodo.

—E falei muito a respeito de v. ex.ª com um companheiro de jornada...

—A meu respeito?... Agradecida ao sr. conde por se lembrar de uma pessoa que não conhecia.

—Ora se conhecia!

—A mim? Pensei que nunca me vira...

—Mas vi o retrato que é o mesmo; só não é tão lindo.

Ficou satisfeito de si: cuidou que nos salões de Versailles nunca se dissera fineza mais acrisolada no bom gosto.{119}

—O meu retrato!—redarguiu Maria—Não cuidei que lhe fosse conhecido...

—Aqui o tenho sobre o coração em caixilho de ouro e perolas. Foi seu excellentissimo pae que m'o deu, e não podia dar-me melhor cousa senão o objecto amado de que me deu a copia.

Outra fineza subtil que o poz em admiração de si proprio! No semblante de Maria relampagueou um rubor de ira, que passou, deixando, como vestigio, uma visagem de tedio, que não mais se desfez nas tres horas que durou seu supplicio.

Da sala passaram á casa da ceia.

Maria das Dôres que, por acinte, se assentára ao pé da filha, durante o colloquio da sala, ouviu o conde e condoeu-se entranhadamente d'ella, protestando resgata'-la da continuação do seu inferno n'aquella noite. Estavam os cavalheiros em pé ao redor da mesa, esperando que as senhoras viessem tomar logar, quando D. Maria das Dôres entrou, dizendo que sua filha, além de estar habituada a não cear, sentia um leve incommodo que a privava de vir á mesa, e fazia por isso os seus cumprimentos respeitosos ao sr. conde e mais cavalheiros, recolhendo-se á sua camara.

Gonçalo reclinou a vista á esposa, como quem diz:

—Bem vos percebo, a ti e mais a ella... Quem diria?

O conde de Monção não provou bocado. Vinham-lhe á garganta uns suspiros tão dos seios d'alma, que, reduzidos a verso endecassyllabo, dariam mais sonetos que{120} os de Petrarcha. Desvelava-se em servi'-lo Gonçalo Malafaya, e nem com a mais loura aza de perdiz lhe aguçou o appetite! Os brindes eram todos em honra d'elle, e elle agradecia humedecendo os labios no rebordo do calix, e suspirando como quem dá o que póde na muda eloquencia do coração.

E Maria das Dôres levava o lenço branco aos labios para sorrir; e o padre capellão benzia-se da abstinencia do conde, e benzia-se tambem mentalmente da gulodice de alguns commensaes.

Entrou o conde no seu aposento, e passou a noite em claro, em mudas exclamações ao retrato de Maria. Ergueu-se ao romper d'alva, e correu uma de suas janellas, que se abriam de face com o ridentissimo panorama de Gaya, S. Christovão e Candal, posto que o templo da Sé lhe cortasse um retalho das bellezas. Estava elle de pouco encostado ao peitoril da janella, quando viu assomar na extrema da rua um sujeito de mui boa presença, e logo reconheceu n'elle o companheiro de meia jornada. Esperou que se avisinhasse para lhe falar; mas o tenente que, de longe o vira, cortou para a primeira travessa, contente de a ter topado na má conjunctura de ser conhecido.

Visitou Gonçalo Malafaya o conde na ante-camara, e este, trocadas as saudações do estylo, disse:

—Ora, dou-lhe parte que vi o sujeito, que me deixou em Albergaria!

—Viu?! Está bem certo d'isso? Onde o viu?

—Vinha na direitura d'esta casa; mas metteu alli{121} por outra rua, e não me deu tempo de perguntar-lhe por que diabo me deixou. Em quanto a mim o homem ia para o quartel!

—Aqui, atraz da Sé, não ha quarteis...—disse Gonçalo com meditativa anciedade.

—Em que está v. ex.ª a cogitar? Parece que ficou assim a modo de pensativo!

—Não, sr. conde. Eu tenho estes modos distraídos; mas nada significam.

—Vamos a falar—tornou o conde—a respeito do casamento. Pela minha parte, meu prezado amigo, está o negocio feito. Veja v. ex.ª se quer que eu trate d'isso, para se abreviar, quanto antes. Sua filha é uma deusa. Acredite que ella ha de ser feliz a não poder ser mais. Hei de adora'-la toda a minha vida, e morrer por ella, sendo necessario. O grande caso é saber se ella gosta de mim; mas achei-a que me ouvia com muito agradaveis olhos, e que estava contente ao pé de mim. Depois lá me affligiu que ella não fosse á ceia! Olhe que tinha aqui na garganta um talo, sr. Malafaya! Bem viu que estive sempre a pensar n'ella!

Era sincero o conde. Por onde quer que andou, as mulheres que viu, e a quem deu horas de folgada farça, nenhuma o impressionou. A sua primeira paixão era Maria Henriqueta, paixão que rompeu violenta e inopinada como as irrupções das crateras, como o corisco das calmas de agosto. Desde que a vira, perdeu a consciencia de seus meritos, o que elle denominava o seu besouro diabolico para fascinar mulheres. O suspirar á{122} ceia, e o velar no leito era a duvida, a excruciante duvida, unico besouro infernal e roedor, que se apascenta em coração humano, semelhante ao ciume na peçonha. Tinha trinta e cinco annos o conde de Monção, edade critica, em que os fructos do amor ou vingam, ou apodrecem. Se vingam, a vida futura do homem está definida para sempre; se apodrecem, as particulas corrompidas giram no sangue, gangrenam o coração, segregam rios de lagrimas, e ahi é então o morrerem afogadas todas as esperanças, e o caminhar do homem ao seu fim com o peso, o enormissimo peso de um cadaver moral. E as compleições sem o sexto sentido do ideal, desmelindradas, rusticas, e avessas a toda a poesia, são por igual sujeitas á lei commum do amor, que levanta á gloria, e engolfa nos tremedaes do crime. Terrivel é esta raia que nivella o talento com a estolidez! Parece que está na materia a faisca universal, que pega os grandes incendios: e os poetas—bem hajam elles!—tão aporfiados andam em nos persuadirem da espiritualidade do amor! Deus sabe o que é. O conde de Monsão é que não sabia dizer ao certo que tenazes candentes lhe apertavam no seio os pulmões suspirosos e que unhas de abutre lhe arregaçaram as palpebras veladoras! Então lhe acudiu á memoria, para flagela'-lo, o dialogo com o militar; e vieram apprehensões, e os retraços dos menores gestos do companheiro, e a significação mysteriosa de palavras, então ouvidas desattentamente. Estas combinações cresceram de ponto, quando viu no rosto de Gonçalo signaes de assustadora suspeita, com referencia{123} á apparição do militar. Recolhido em si, engrandeceu o vulto das desconfianças, e enterrando no seio o estilete das peores conjecturas achou lá o pensamento sanguinario de matar seu rival, fosse elle quem fosse.

Quando os nossos rivaes acham isto no peito, é prudente teme'-los.{124}

{125}

IV

Gonçalo disse a Maria das Dôres:

—Tenho quasi a certeza de que está no Porto o tal bigorrilhas de Mirandella.

—Deixá-lo estar. Cada qual póde estar onde quizer.

—Assim é; mas eu receio que elle viesse chamado por Maria Henriqueta. Acompanhou até meio caminho o conde, e já hoje esteve perto d'esta casa.

—Póde muito bem ser. E d'ahi? que queres tu que se lhe faça?

—Quero que se realise com a maior brevidade o casamento de Maria com o conde.

—Pergunta-lh'o a ella, e vamos a isso. Casar é muito simples. Temos aqui o abbade á porta, e a egreja defronte.

—Isso não é responder. Tu já sabes que Maria não quer o conde.

—Pois se o não quer, tambem eu não. Diz ao conde que trate de sua vida.

—Mas a minha palavra está dada.{126}

—Déste o que não podias. Deixa-me a mim o encargo de responder pela tua palavra. Eu falarei com elle.

—É melhor que fales com tua filha, e a convenças.

—Deus me livre d'isso... Eu é que estou convencida de que minha filha iria ser desgraçadissima com o conde, a mais embirrenta creatura que eu tenho visto! Como descobriste tu aquelle palerma? Tens dedo, realmente! Faz vontade de lhe offerecer a cabeça de um macho para enfeitar a corôa de conde!... Cousa assim!... E, sobre tudo, ruivo, pés grandes, anão dos assobios, e tabaqueiro! Deus me defenda de tal genro!

—Tenho entendido...—disse Gonçalo com resignada amargura—Estragaste-me Maria Henriqueta!

—Estraguei-t'a?... Estragado tens tu o juizo!... Eu logo vi que os frades e as freirinhas te davam cabo da razão! Se fosses rapaz, e visses um homem da laia do conde, escarnecia'-lo; como estás a envelhecer, entendes que está alli um marido pintado para a tua filha!... Deixa a menina, deixa-a viver, não lhe tolhas o seu futuro com os teus calculos de a engrandeceres! Dá-lhe alegria, não lhe dês titulos... N'uma palavra, diz tu, ou deixa-me dizer ao homem que Maria Henriqueta não o ama.

—Diz muito embora; mas fica sabendo que ha de entrar n'um convento tua filha.

—Pois sim; o que tu quizeres, que ella tudo acceita menos semelhante marido. Irá para um convento, e póde ser que eu vá com ella. Vês-te assim livre de ambas: e{127} depois vae para as grades entreter-te com as delambidas santinhas, que nós havemos de louvar a Deus o favor de uma cella onde não chegam figurões da laia do teu conde.

E terminou, por esta vez, o ternissimo colloquio.

Maria Henriqueta faltou ao almoço, e foi desculpada por sua mãe, sendo por falta de saude que faltava. O conde, industriado pelo coração, que é um grande mestre de cerimonias, pediu a Gonçalo Malafaya licença para mandar saber directamente da menina, pela creada grave d'ella. Tomou o comprimento D. Maria das Dôres, e voltou, em nome de sua filha, muito penhorada das attenções do illustre hospede. Tinham que vêr e de que rir estas etiquetas pausadas, pautadas e mesuradas como um ritual de officio de defuntos.

Em quanto D. Maria das Dôres, depois do almoço, ficou á mesa conversando com o conde, Gonçalo aproveitou o azo de entrar ao quarto da filha, que por um cabello não foi surprehendida a escrever a oitava pagina de uma carta a Filippe Osorio. Compuzera-se o pae de boa sombra, e proposito de melhores palavras. Simulou acreditar nas queixas que a privaram de ir á mesa, e d'ahi derivou a mostrar que as inquietações do espirito eram muito nas molestias do corpo. Fez o elogio da paz, e da voluntaria deixação das velleidades do animo as quaes vinham a ser liberalmente compensadas com os doces cuidados domesticos, sob os olhos carinhosos de um marido, que, ao mesmo tempo, abrange a ternura de pae, e a profunda estima de irmão. D'aqui saltou,{128} pouco methodico, para os gabos enthusiastas, que o bondoso conde lhe estivera fazendo da formosura d'ella. Deteve-se n'este assumpto, sem adivinhar a duplicante nausea com que a filha o estava ouvindo. Era logico o repisar de novo na materia odiosa do casamento. Vestiu com quantos enfeites soube de sentenças e moralidades as suas intenções. Realçou os brilhos de uma alta posição na sociedade, e de uma corôa de condessa. Matizou-lhe as delicias da côrte, para onde o conde resolvia mudar sua residencia, e assumir no paço as brilhantes occupações de seu pae e avós, podendo sua esposa considerar-se desde logo primeira dama da rainha, afóra a vantagem e gloria de educar e elevar seus filhos á sombra de reaes telhas.

Ouviu Maria a estirada parlenda em silencio, silencio agro de represadas lagrimas, ancias de lançar-se de joelhos aos pés do pae e abrir-lhe a alma, e deixar lá ver a imagem do homem, que para todo sempre a maniatara ao seu destino.

—Que respondes, Maria Henriqueta? Não conseguiu teu pae mover-te? Resistes aos rogos que te faz o teu bom e sempre extremoso amigo?

Maria respirou em pranto, e exclamou quanto os soluços lhe permittiam:

—Não posso, meu pae, não posso... Deus sabe que eu lhe tenho pedido desde hontem a morte!...

—Basta;—disse severamente o pae. Sabes o teu destino? Sabes que has de entrar no mosteiro de Arouca?{129}

—Entrarei, meu pae.

—E que has de lá estar emquanto eu for vivo?

—Estou prompta, se é sua vontade que eu vá.

—Não é vontade: é violencia que fazes ao meu coração. Pensas que eu poderia ver em redor de minha casa o homem de Mirandella? Cuidas que o rosto de um pae é insensivel ás ignominias do coração de sua filha? Não coras de tal namoro; mas coro eu por ti, coram em ti meus avós, uma série de senhoras soberbas de seu nascimento, que casaram com eguaes por não poderem elevar-se mais alto. Sei que está no Porto esse aventureiro. Toda a minha prudencia será necessaria para o não mandar chibatar pelos meus creados. Não o farei, porque eu arrisco muito no escandalo, arrisco a tua dignidade, que é a minha.

E, baixando a voz, continuou com resguardo:

—Contas com a protecção de tua mãe? Estás bem aviada! Verás por que estradas ella te conduz á desgraça. Ia a aborrecer-te, com pejo o digo, e fugiste d'ella para o meu coração, que te acceitou. Agora foges de mim para ella. Deixa-te ir. Cavae ambas o abysmo da minha vida e da tua felicidade.

Saindo em direitura á sala do almoço, onde a fidalga ficára conversando com o hospede, parou Gonçalo para ouvir o que diziam, temendo que sua mulher estivesse aniquilando as esperanças do noivo. Desconfiou com acerto. Eis aqui a parte do dialogo que elle ouviu:

—São cousas muito melindrosas, sr. conde—Dizia D. Maria das Dôres respondendo ao titular.—O amor não{130} vem depois, se não tem já vindo antes do casamento. Está v. ex.ª enganado pela inexperiencia. Os experimentados é que sabem o que é casar na esperança de alcançarem do tempo o milagre, que não fez o coração. Tão infeliz seria v. ex.ª como a minha filha. O desagrado de uma situação contra vontade, é que faz as impaciencias do genio, as irritações que são o fel de quem o dá aos outros. Meu marido casou violentado comigo; e eu fui violentada a casar com elle. O resultado poderia elle dizer-lh'o, sr. conde, se não houvessem uns certos infortunios, que os maridos se pejam de confessar, ao mesmo tempo que se mostram de todo despreoccupados de outros infortunios, que são as verdadeiras vergonhas. Se sou infeliz porque fui casada á força, ou por obediencia, que culpa tenho eu de o ser? Porque não hei de eu dizer bem alto que o sou, a fim de ser exemplo aos paes, e torna'-los brandos, se as filhas, n'este ponto do casamento, lhes não obedecerem cegamente? A desgraça ha de ser util a alguem, penso eu, sr. conde; e por isso bom é que a minha desgraça seja util a minha filha, e a v. ex.ª. Renuncie á idéa de casar com Maria Henriqueta. O conde de Monção ha de achar uma digna mulher onde a desejar, formosa, rica, e nobilissima.

Esteve o conde pensativo alguns segundos, e respondeu desempenadamente:

—Não póde ser.

—Não póde ser o quê?!—redarguiu D. Maria, com a fronte avincada.{131}

—Hei de casar com a menina, porque a vontade do sr. Gonçalo Malafaya é que ella case comigo.

Era muito affrontosa para Maria das Dôres esta brutal saída. Levantou-se ella de um salto e exclamou:

—Não casará, sr. conde, porque é vontade minha que Maria Henriqueta faça a sua vontade.

—V. ex.ª tem um genio dos meus peccados!—atalhou o conde com um comedimento que, em outro individuo, parecera zombaria.—Ora queira sentar-se, minha senhora... Isto não vae a ralhar.

—Sr. conde, eu tenho ordens a dar no governo da minha casa. Vou mandar-lhe meu marido, e peço desculpa.

Gonçalo estava como a querer esconder-se de si proprio, no escuro de um corredor, onde as palavras sonoras da prima lhe iam apertar a alma. O homem tinha pejo de mostrar-se ao conde, e repugnancia em confirmar o que sua prima tinha asseverado. Era, porém, improrogavel a demora, desde que o hospede ficou sósinho, sentado á mesa, a contar os palitos de rama, que crivavam um javali de prata, imagem do coração d'elle, na analogia dos espinhos, e talvez na brava natureza da alimaria.

Entrou Gonçalo com aspecto de réo, se não era antes o exterior de grande amargura.

—Pelo que vejo—disse o conde—sua senhora oppõe-se ao casamento! V. ex.ª fez mal em m'o propôr antes de saber, se era vontade...

—Minha prima—respondeu urbanamente o fidalgo—verdadeiramente{132} não se oppõe; é que sentiu, melhor que eu, a indisposição de Maria Henriqueta para o casamento, e...

—Então é a menina que me rejeita?

—Não o rejeita, sr. conde; recusa casar por emquanto.

—E v. ex.ª porque m'o não disse ha mais tempo?! Eu fui chamado para isso; e só agora é que sua filha acha cedo para casar?! Entre homens da nossa qualidade, estas cousas tratam-se mais pontualmente.

—Recebo com humildade as censuras, que v. ex.ª me fez—tornou Gonçalo, ferido nos seus brios; mas soffrendo a offensa, em castigo da leveza com que decidira do destino da filha—Pensei que Maria Henriqueta via o mundo pelos meus olhos e sentia pelo meu coração. Enganou-me o amor de pae, e o desejo de lhe dar esposo superior aos seus merecimentos d'ella. Minha filha vae entrar n'um mosteiro; é a satisfação que eu posso unicamente dar a v. ex.ª.

—Deixe-se d'isso!—atalhou o conde—Nada de mosteiros! Se a duvida do casamento está na vontade da menina, deixe-a ao tempo, que ella mudará de idéas a meu respeito. Ponto é que fale com ella, e lhe vá ganhando o coração pouco e pouco. Pois se a menina só me viu uma vez, hontem á noite, como ha-de ella já gostar de mim?! Deixe-me conversar com sua filha mais algumas vezes, sr. Malafaya, e o resto cá fica por minha conta.

—Da melhor vontade, sr. conde. Agora mesmo eu{133} dou ordem a minha filha para ir á sala. Queira v. ex.ª vir lá espera'-la.

Quando Gonçalo voltava de acompanhar o conde á sala, saíu-lhe a esposa ao encontro, e disse-lhe:

—És tolo, meu querido primo! Desconheço o teu antigo entendimento e desembaraço!

—Que queres dizer n'isso?

—Quero dizer que reduzes tua filha a achar-se a si mesma ridicula! Que vae ella a fazer á sala? Que tem ella que dizer a esse homem, que eu não lhe dissesse já?

—Que o despersuada ella mesma.

—Se ella o não persuadiu de cousa nenhuma, com que razão a forças a ir despersuadil'-o? Tu desces da tua posição, e obrigas a descer tua filha!...

Gonçalo sacudia vertiginosamente os braços, de enraivecido contra si proprio, e de angustiado na cinta de ferro, que lhe tolhia todos os expedientes.

Maria das Dôres condoeu-se do marido, e ajuntou:

—Maria irá á sala, se assim o queres; mas hei de eu ordenar-lhe que vá, e tu has de confirmar o que ella disser com o teu silencio. D'esta irrisoria situação só a franqueza nos póde salvar depressa.

Annuiu Gonçalo, indo para o seu quarto, e fechando-se para poder chorar sem testemunhas.

Foi Maria das Dôres ao quarto da filha, onde se deteve alguns minutos. O conde acabava de encanellar os bofes do peitilho ao alteroso espelho do tremó dourado, quando Maria Henriqueta entrou de rosto alto e o afogueamento de uma colera expansiva no rosto.{134}

Sentou-se, e esperou que falasse o conde.

—Está melhor, minha querida senhora?—disse elle titubiando.

—Estou boa, sr. conde, e v. ex.ª parece-me excelentemente saudavel.

—Não dormi cinco minutos, com o cuidado que me deu o seu incommodo de hontem á noite.

—Mal empregado cuidado!... mas muito mais por isso lhe agradeço a prova de estima.

—E de amor apaixonado, minha senhora.

—Esse sentimento é que eu de todo desmereço, por que não lh'o posso retribuir. Devo dizer a v. ex.ª que vou entrar n'um mosteiro, em satisfação á vontade de meu pae. É aprazivel para mim satisfaze'-lo de um modo, quando me é de todo impossivel satisfaze'-lo por outro. Meu pae deve merecer a benevolencia do sr. conde pelos esforços que empregou em convencer-me a ser esposa de v. ex.ª. Resisti, por que não posso. A dignidade de meu pae está salva; e eu salva me considero da responsabilidade de fazer desgraçado o sr. conde, por condescendencia com a vontade de meu pae.

—Ahi ha outra cousa, minha senhora...—atalhou o fidalgo.

—Que póde haver?

—V. ex.ª ama outro homem.

—Amo.

—Ah!... diga-me isso... Provavelmente é mais rico e mais fidalgo que eu?

—É um homem. Que lucra v. ex.ª em saber-lhe as{135} qualidades, que o meu coração não discute? É um homem, que eu amo, ha cinco annos, e que amarei até á morte.

—Isso ha-de passar com a reflexão, minha senhora. Póde ser que elle não seja tão digno de v. ex.ª como eu, nem a ame com tanto fogo.

—Será minha a infelicidade; basta-me, porém, ser amada como sou.

—Pois eu queria ter o gosto de conhecer o meu ditoso rival...

—Com que fim?

—Queria ver-lhe a cara... Desconfio que elle seja um militar que...

—Que o acompanhou algumas leguas? É esse de certo.

—Está bom; fico sciente... Escolheu bem, a senhora, não tem duvida... É um homem sem nascimento, um militar de fortuna pelos modos...

—É um militar que começou por onde começam os generaes mais nobres. Quando eu o conheci e amei era cadete; e os cadetes teem nascimento; não o pódem ser sem justificarem a nobreza de quatro avós. E de mais, sr. conde, são cousas escusadas estas. Eu retiro-me agradecida ao sentimento que lhe causou a minha pouca valia, e desejo que v. ex.ª encontre n'outra esposa a fortuna que eu de certo não posso dar-lhe.

Levantou-se, fez uma mesura de espavento, como era estylo, e saíu magestosa, afastando a cauda com garbosa arrogancia, cujas tradições ainda se vislumbram{136} nas grandes tragicas sobre o tablado, em que a vida, e a mulher, e os ademanes se conservam nos sublimes moldes dos antigos tempos.

Vae agora o mundo tão deslavado e peco, a dignidade senhoril está pautada por esquadria tão arrazada, que, em caso identico, a menina mandada a uma sala entender-se com um conde ácerca da impossibilidade de ser d'elle, ou não ia lá, ou era necessario ir lá busca'-la desmaiada n'um insulto flatulento.{137}

V

N'essa mesma hora, o conde de Monção, digno de si e de seus avoengos, mandou fechar as malas, e carregar a bagagem; vestiu-se apressadamente de jornada e saíu da camara á sala para despedir-se de Gonçalo Malafaya, e das duas senhoras. Soube o fidalgo, ainda encerrado no quarto, os aprestos de partida do hospede, e nem animo teve de lh'os estorvar: tamanha era sua vergonha que já o consolava a saída do conde, vexado por elle. Tanto, porém, crescia o sentimento do seu despundonor, quanto, augmentava o da aversão á mãe e á filha.

Chamado segunda vez, foi Gonçalo receber as despedidas do hospede de vinte e quatro horas incompletas. Já encontrou na sala a prima, com prazenteiro sorriso, e a filha de tranquilla apparencia, recebendo os agradecimentos do infeliz fidalgo, que movia mais á piedade que á irrisão.

Á piedade!... Quereria o conde, por ventura, a piedade de alguem? Os amores desditosos só acareiam dó{138} para as victimas resignadas. Umas ha que de antemão se desopprimem em traças de vingança, e essas mais são para incutir malquerença que pena.

O adeus de Gonçalo Malafaya foi um aperto de mão convulso. O conde, para mostrar-lhe intelligencia de muda expressão, disse com sombra de riso:

—Não tem duvida, sr. Malafaya... O mundo dá suas voltas; veremos onde isto pára!...

Teria o repudiado noivo caminhado uma legua na direcção do seu solar no Alto-Minho, quando o coração lhe transmittiu ao pulso esquerdo raivoso impeto de sustar as redeas, e revirar a cabeça do cavallo para o Porto. Os dois mochilas deram praça ao galope desapoderado do ginete, e seguiram, notando mais uma das extravagancias do amo.

Foi o conde apear n'uma estalagem, e d'alli avisou um fidalgo, seu primo, que lhe preparasse aposentadoria em sua casa. Este successo, na pequena roda dos fidalgos do pequeno Porto de então, fez grande ruido, e chegou aos ouvidos de Malafaya como se por elles entrasse um dardo a ferí-lo em seu pundonor. Inexgotavel calix o do atormentado fidalgo! Nem esposa, nem filha, nem a sociedade! Todos e tudo conjurado a levá-lo ao apuro da desesperação!

Ao outro dia, contavam umas ás outras as familias nobres que os Malafayas tinham vexado o conde de Monção, despedindo-o na ante-vespera do seu projectado e decidido casamento com Maria Henriqueta. Vingou a geral opinião de que o conde fôra indignamente ultrajado,{139} e Gonçalo um baixo offensor para tão alto personagem. Ninguem inquiria, nem queria saber se Maria Henriqueta rejeitára o marido. Era pormenor, que humilhava e desauctorava os paes diante de suas filhas, uma semelhante causa. Buscaram-se, inventaram-se outras, todas falsas, e em menoscabo de Gonçalo e de D. Maria das Dôres.

Resolveu o fidalgo saír do Porto com sua familia a residir temporariamente em uma quinta do Douro, e de lá enviar a filha ao convento de Arouca.

Empeceu Maria das Dôres o plano, contradizendo-o com a precisão de mostrar aos seus detractores que alli estavam a pé quedo recebendo os tiros da calumnia; ajuntava ella que o mundo, vendo-os fugir, diria que elles tinham ido esconder a sua indignidade na provincia. E rematou d'este theor:

—Se te julgas bem condemnado pela opinião dos nossos amigos e parentes, vae tu para o Douro. Eu e Maria Henriqueta não damos o campo á inveja diffamadora. Ficaremos; e quando elles se calarem, iremos para onde quizeres. Em quanto á ida de tua filha para Arouca, esse é o desejo d'ella; mas é preciso que penses se a honra de Maria Henriqueta será mordida na sombra por estes rafeiros e rafeiras, dando tu a isso occasião, com encerrá-la por castigo n'um convento. Castigá-la, porquê? perguntará o mundo; e, se tu disseres que a encarceras por rejeitar a mão do conde, o mundo fará os seus commentarios de modo que o tal desdouro caia sobre ella como sobre ti. Pensa, Gonçalo, e não precipites{140} uma resolução, em que temos muito a perder; e a ganhar não sei o quê. Um convento é uma casa com umas portas muito grossas; mas as portas abrem-se de par em par quando as pessoas, que não fizeram votos de lá estar, querem sair.

A força moral de Gonçalo estava exhaurida. O homem, desvirtuado ante si mesmo, deixava-se já ir no pendor da fatalidade. Não contrariou a mulher: não quiz mesmo ser ouvido em nada; prohibiu até que ao seu quarto entrasse o som dos boatos affrontosos, que avultava de dia para dia.

O conde de Monção não voltára ao Porto para deshonrar Gonçalo nem assoalhar o seu desdouro.

Procurou de saber em que quartel ou casa encontraria um tenente de cavallos, vindo de Lisboa tres dias antes. As pessoas, empenhadas n'esta averiguação, disseram-lhe que, no troço de cavallaria 6, destacado no Porto, entrára um tenente transferido de Lisboa, moço nobre de Traz-os-Montes. Deram-lhe o nome, a residencia e as miudezas desnecessarias.

Filippe Osorio descia as escadas do seu quartel, e viu o conde em attitude de entrar no pateo.

—O sr. conde!—disse Filippe com amigo sorriso.

—É verdade, meu caro sr. tenente; sou eu mesmo em pessoa que venho contar-lhe o resto da historia, se é que a não sabe.

Peço ao leitor que marque á margem do livro, com uma cruz, este dizer do conde, porque não acha outro, que valha a nota.{141}

—O resto da historia?!... Refere-se v. ex.ª áquelle casamento, que fez favor de me contar ha dias?

—Pois então!

—Ah! agradeço extremamente a confidencia. Queira subir.

—Não subo.

—Como lhe aprouver, meu caro sr. conde de Monção. Não teimo, porque a minha casa é uma barraca de campanha, e tenho cadeira e meia como ornato. Se o não molesta a minha companhia, vamos andando e conversando até ao quartel, que tenho obrigações a cumprir.

O conde encarou-o com arremesso e disse:

—O senhor está certo de eu lhe dizer, quando o senhor me falou n'um amante da filha de Gonçalo Malafaya, que ou eu ou elle?

—Lembra-me d'isso, nem era possivel esquecer-me cousa de tanto porte, dita por v. ex.ª.

—Não esteja a brincar comigo, sr. tenente! Parece-me que zomba!

—Eu!... O sr. conde é exquisito! Zombar eu de cousa que não merece a zombaria!

—O senhor é o homem que D. Maria Henriqueta ama. Não o negue, que, m'o disse ella.

—Mesmo sem lh'o ella dizer, eu não o negaria. Adiante.

—Adiante o que?

—Vamos ao fim da historia, que eu tenho urgencia do tempo.{142}

A historia acabou-se. Agora venho dizer-lhe que não será minha nem sua Maria Henriqueta. Juro-lh'o pelo meu sangue e pelo meu nome. Um de nós ha-de morrer.

—E o que viver póde casar com ella, não é assim? Eu cuidei que v. ex.ª tratava de a matar a ella, o que seria muito mais feio e triste. Em quanto a mim, sr. conde, posto que me sinta um pouco amante da vida, se fôr sua vontade arrisca'-la-hei contra a sua espada, por lhe dar gosto. V. ex.ª já fez favor de me dizer que teve em França muitos duellos, e eu sinceramente lhe digo que não tive ainda nenhum. Todas as vantagens são do meu contedor. Estou ás ordens, depois de cumpridas as do meu regimento. Está satisfeito?

—Os seus fóros?

—Os meus fóros de fidalgo, pergunta?

—Sim.

—Quer v. ex.ª saber se me ha de matar como fidalgo ou como peão?

—Não me meço com peões.

—Isso agora é uma impertinencia, sr. conde! Afflige-me esse seu zelo de gentil-homem, e por lhe conhecer a boa vontade que me tem, usarei a immodestia de lhe dizer que v. ex.ª sabe quem eu sou, nem eu creio que denegue fé á dama, que lhe disse meu nascimento e educação. Agora é minha vez de lhe perguntar pelos seus fóros, sr. conde de Monsão.

—Os meus... fóros? pergunta-me o senhor a mim...

—Pelos seus fóros de honra, os fóros da sua dignidade,{143} os fóros da sua vergonha. Pergunto a um homem vil com que direito me vem pedir contas a mim do desprezo com que foi recebido por Maria Henriqueta. Pergunto ao desprezivel conde de Monção, se é mais estupido que abjecto, vindo provocar a duello um homem, que mal conhece, por que me vê entre si e uma senhora, que lhe repelle a philaucia e as grosseiras tentativas de a fazer perjura. A tal provocador é natural que eu pergunte pelos seus fóros de honra, de dignidade, e de vergonha. Se me elle responder com o espadim, hei de sacudir-lh'o das mãos e deshonrar-lh'o debaixo dos pés. Sr. conde, um miseravel da sua qualidade não péde contas a homens de bem; mata-se, e vae da'-las a Deus, quando a ignominia do mundo lhe pesa no vacuo da cabeça. Agora, meu fidalgo, deixe-me ir trabalhar no meu cargo, porque eu sirvo o rei, sirvo a patria, e poderei dar ámanhã o sangue por ella, em quanto v. ex.ª, cevando na inercia os seus estupidos orgulhos, quer desenfadar-se brincando com o credito e com o socego de uma senhora, que eu prezo como irmã, e v. ex.ª deseja como mulher, para desempenhar a sua casa destruida em dissipações. Nem este supremo desaire lhe falta! Até á vista!

O conde de Monção estava pertencendo ao dominio da farça. Olhos arregalados e queixo pendido é a maxima expressão do espanto. No conde era pavor a ridiculissima compostura ou descompostura de feições. A cada palavra da crescente apostrophe, os brios de duellista europeu derretiam-se em frigido sangue que lhe arripiava{144} as arterias. Tinha razão o homem, que os olhos de Filippe Osorio afuzilavam raios, e os labios tremiam em crispações, que pareciam ascuas de lume. O conde ignorava que as idéas se podessem expressar d'aquelle modo, em bocca de um simples tenente. Ante si nunca elle vira um inimigo, jogando contra elle as armas do escarneo, e amostrando ao mesmo tempo outras, capazes de servirem á ferocidade. «Isto é um assassino!» dizia no fôro da sua consciencia o conde para cohonestar a cobardia do silencio. Cobardia não é o termo proprio. Cobardes são aquelles que sossobram na defeza de sua justiça. Outros, que atacam direitos d'outrem, e fogem aos aggredidos, que lhes fazem rosto, esses são apenas infames na aggressão; e, quando fogem, prestam involuntaria homenagem á justiça. Pode-se jurar que o conde de Monção não meditava n'estas distincções, ao retirar-se do local em que o deixára petrificado Filippe Osorio. Circumvagou os olhos, como a certificar-se de que ninguem presenceára o insulto, e foi seu caminho murmurando por entre os dentes cerrados:

—Tu m'as pagarás, ou eu não seja quem sou!{145}

VI

Correspondiam-se, diariamente Maria Henriqueta e Filippe. Bafejava-os a fortuna na pessoa de Eugenia, que a certa hora da noite dava e recebia as cartas pelo muro do jardim. Eram felizes porque amavam, esperavam, e confiavam nos milagres da sua constancia.

O pae de Filippe era pessoa de grandes relações com a fidalguia transmontana. Os mais superciliosos cavalheiros prezavam-se de o chamarem primo. Todos se lhe prestavam a cooperar para persuadir a Gonçalo Malafaya o acerto do casamento com um moço tão bem prosperado em sua carreira militar, e de nascimento assaz illustre para emparelhar, sem desaire, com os mais qualificados no reino.

A fidalguia empenhada acertou de chamar a si os parentes de D. Maria das Dôres, que eram tambem os de Gonçalo; mas preponderavam n'ella mais. Confluiram á mãe de Henriqueta cartas de muitas senhoras suas amigas da mocidade, e das suas mais intimas no mosteiro de Arouca. Uma açafata de D. Carlota Joaquina escreveu-lhe{146} em nome de sua ama. É onde podia chegar a influencia do fidalgo de Mirandella, mais por amor do filho que da riqueza da noiva.

Maria das Dôres inclinou-se a favor de Filippe, e mostrou ao marido a petição da açafata. Gonçalo Malafaya, quando tal viu, soffreu um accesso de vertigem furiosa, e rasgou a carta entre os dentes. D. Maria teve medo dos arremessos do marido, e deixou-o bravejar e urrar contra a conjuração dos seus matadores.

Maria Henriqueta, amoravel com seu pae por que tinha a trasbordar o amor do peito, affrontou-se com o medo, e foi supplicante aquietar-lhe os impetos. O velho repelliu-a com arrebatada virulencia.

Velho lhe chamei eu pela primeira vez: estava-o deveras; sem um cabello negro, e não tinha ainda quarenta e oito annos! Fibra no rosto uma só não tinha lisa do arar do fogo interior. Abaixo do rebordo das orbitas parece que o absyntho das lagrimas lhe calcinára a pelle. Inclinava-se já para o chão, como a pedir á terra que o acolhesse e escondesse do seu mau anjo! Nas horas de solidão, poderiam ouvi'-lo exclamar muitas vezes: «Ó Beatriz de Noronha! tira-me este calix dos labios, ou verte-m'o de uma vez no coração, para que eu morra de uma só agonia!»

Que flagello de vida no seio da riqueza! que inferno n'aquelle palacio, arreado de sedas, de librés, de equipagens, de tudo que morde a inveja, e conjura a pobreza contra a caprichosa partilha de Deus!

Ergueu-se um dia Gonçalo Malafaya, ao cabo de uma{147} noite infinita de calculos dilacerantes. Alumiava-lhe o rosto o clarão sinistro da demencia. Viram-n'o esposa e filha, e gelaram de medo. Era a horas de almoço, ao qual desde muito o fidalgo não assistia. Entrou inesperado, cruzou os braços, e exclamou com energica vehemencia:

—É ámanhã!

—Ámanhã o quê, primo Gonçalo?

—Que a má filha ha de entrar no convento de Arouca, senão hei de dar-te um punhal para que m'o enterres no peito.

—Irei, meu pae, irei hoje mesmo, se v. ex.ª o determina.

—É ámanhã—bradou elle.—Eu morrerei depois de ámanhã. Quando eu estiver sobre terra, sáe do convento, cospe na minha cara, e levanta-te com a herança da casa de teus avós e com a minha maldição.

Maria Henriqueta encostou o peito ao bordo da mesa, e cobriu o rosto com as mãos. Chorava; e o pae sentiu-se mais desopprimido com as lagrimas da filha. Deu alguns passos até defrontar com ella, e disse:

—Essas são as menos amargas que tu choras. Outras virão... tenho aqui na alma o presagio de outras, que has de verter sobre o cadaver do homem que me aponta ao peito o ferro, com o braço guiado pela mão de minha mulher.

—Penso que enlouqueceste, primo!—disse Maria das Dôres.

—Emmudece, serpente!—exclamou em furia o transfigurado{148} velho.—Enroscaste-te á minha mocidade, mataste aquella creatura divina, mataste a minha alegria, empeçonhaste o coração de tua filha, e estás agora minando-me a sepultura para esconderes de ti este phantasma de remorsos!...

A syncope, em que desfechou a desarrazoada apostrophe, delatava que os receios da loucura não eram de todo panicos. N'aquellas accusações era manifesta a injustiça.

Bem viram que Maria das Dôres foi de todo alheia ás desventuras de Beatriz de Noronha, sobre ser obrigada a acceitar o marido, proposto desde a sua infancia. O leitor póde negar sua sympathia ao caracter de Maria das Dôres; mas, se a punir com o seu odio, é injusto. Pender, em bem da filha, contra a imposição do casamento, é virtude para muitos louvores. Se o fez por animo contradictorio, feliz culpa a sua; se por experiencia de sua desgraça, abençoada defesa da pobre menina, e abençoada sempre, embora estes infelizes todos se venham a abismar guiados por suas estrellas funestas.

—Vae para o convento, Maria—disse a fidalga á filha.—Fia de mim que pouco tempo lá estarás. Eu hei de vencer teu pae, com habilidade e paciencia. Vou fazer, por teu amor, o sacrificio da humildade. Mas agora é preciso que vás. Se teu pae morre, tens de soffrer remorsos, e remorsos que hão de assaltar-te os dias todos da vida, embora os goses com o homem que amas. Com tempo, serás esposa d'elle; mas faz muito pelo seres com a consciencia tranquilla.{149}

Maria Henriqueta rompeu em choro nos braços de sua mãe, e foi d'alli escrever a Filippe, contando-lhe o seu destino, e as promessas da mãe. O tão apaixonado como generoso moço incitou-lhe a coragem do sacrificio, pedindo-lhe que o offerecesse a Deus como merecimento para ambos lhe merecerem mais tarde a sua benção.

Ao outro día, Maria entrou n'uma liteira com sua mãe, seguidas do simples prestito do capellão, a ama, creadas e lacaios.

Maria das Dôres, a antiga aia da Santa rainha Mafalda, entrou no seu quarto de infancia, e no de suas defuntas tias; e os dias de então, e só esses do seu passado, lhe vieram á memoria e amolleceram o coração até ás lagrimas.

A reclusa menina, ao ver-se alli, no calado dos claustros, debaixo dos profundos firmamentos, n'um dia em que os sinos dobravam á agonia de uma religiosa, e quando outra recebia as ultimas honras da sepultura, Maria Henriqueta pensou que ia morrer, e assim o disse na primeira carta, enviada a Filippe.

Demorou-se a mãe alguns dias no mosteiro, e apressou a saída, quando receou pelos dias de Maria Henriqueta. Foi o seu proposito, ao retirar-se, mover o pae a consentir no casamento, ou romper abertamente com elle e com o mundo, protegendo a fuga da filha, se outro expediente não viesse em redempção d'ella.

Ausente a mãe, augmentaram os terrores de Maria, e as lastimas nas cartas escriptas a Filippe. Em algumas,{150} pedia-lhe ella que a salvasse, pelo muito que ella o amára, e pelas muitas dôres com que quizera merecel'-o. Salval'-a era arrebata'-la do convento, fugir com ella, cumprir o juramento que lhe tinha feito, quando a chamou ao quarto da ama. Ao mesmo tempo, contava-lhe as nenhumas esperanças que a mãe lhe dava, e as diligencias que o pae fazia, para o remover para o ultramar, e tirar-lhes a possibilidade de se cartearem. D'isto lhe déra aviso a mãe, assegurando-lhe que as cartas de Filippe, apesar do suborno tentado no correio, haviam de chegar-lhe sempre á mão.

Enganára-se Maria das Dôres com as promessas do empregado na transmissão das cartas. Maria Henriqueta, ao fim de tres afflictivas semanas, enviou um proprio a Filippe, perguntando-lhe a razão porque a desamparára.

O tenente de cavallaria tinha de marchar n'aquelle dia com o regimento para Lisboa, onde se estava resenhando o exercito para começar a lucta com a França, cujos generaes se avisinhavam das fronteiras.

Pediu licença o tenente por dois dias: foi-lhe negada. Empenhou por si os seus amigos, senhores do segredo da sua vida; baldaram-se as solicitações. Filippe Osorio, á ultima hora, quando os clarins já tocavam a reunir á porta do quartel, viu a imagem de Maria Henriqueta, e ouviu um como gemido de moribunda, e um falar assim de quem se despede: «Vae, e volta alguma vez á minha sepultura!»

O tenente tomou as redeas do cavallo que o auxiliar{151} lhe offerecia, passou por diante dos clarins que o chamavam, viu ao longe, no occidente das esperanças da gloria, sumir-se a sua estrella, e fitou os olhos n'outra, que o chamava sobre um leito de agonia.

Desertou.

A mancha era negra; mas o disco resplendoroso, que lhe alumiava o coração e o ar em que ia aspirando a liberdade louca de amante, não lhe deixava ver a negridão da deshonra militar.

Na primeira terra em que pôde escrever liberalisou estipendio a um portador que levasse uma carta a Mirandella. Era um aviso a seu pae. Noticiava-lhe a deserção e o intento de roubar Maria ao convento e á morte. Pedia-lhe que estivesse um clerigo prestes a recebe'-los, logo que alli chegassem, e o dinheiro necessario para se refugiarem em Hespanha ás penas militares, e á perseguição de Gonçalo Malafaya.

Apeou em Arouca, e procurou Maria. Nenhum impedimento lhe estorvou falar-lhe. Acolheram-no na aposentadoria monacal, como primo da fidalga, que as religiosas amavam pelo muito que a viam padecer. Deu ella o plano da fuga, não facil, nem talvez exequivel. Maria devia transpor um muro, que seria morte certa, se o pé lhe resvalasse de um galho de arvore, em que fiava o apoio para segundo salto á estrada. Impugnou-lhe o plano o susto de Filippe; e ella, para aquieta'-lo, prometteu pensar em menos perigosa evasiva; mas pediu-lhe que tivesse os cavallos arreados na seguinte noite.

A lua banhava de livido alvor as paredes do templo.{152} O derradeiro nocturno tinha soado no campanario, alteroso vigia, como posto alli em guarda das esposas do Senhor. As paixões e as virtudes dormiam ou pareciam dormir lá dentro do mesmo somno. Cá fóra ramalhavam os arvoredos, e o norte assobiava nos agulheiros das torres.

Maria Henriqueta occupava um quarto sem rexas nem rotulos, logar privilegiado das reclusas, que inspiravam á prelada inteira confiança. O salto á cerca era facil e seguro, com o poderoso auxilio de um telhado de ermida contigua á parede. D'este ao jardim, só mulher que não amasse acharia perigoso o descer. Maria nem de leve sentiu o baque. Ficou sentada na relva, e ergueu-se logo, correndo para o muro, e procurando, entre as gabellas de varas podadas das videiras, uma escada de mão, que encostou á parede. Escalando o muro, tremeu da altura exterior, e viu que se enganára na distancia da arvore, que devia ajuda'-la na descida. Fincou os joelhos ao cume da parede, e foi-se arrastando até ao ponto da arvore, que o vento sacudia. Este inesperado incidente desalentou-a; só estando queda a arvore ella poderia aferrar-se aos ramos mais robustos, e verga'-los até tomar pé no galho chapotado. Estava ella assim aterrada e immovel com a vista desarmada a um e outro lado, quando, d'entre as arvores da outra orla do caminho, surgiu um vulto, que a gelára de medo, se a voz o não denunciasse ao mesmo tempo.

—Eu esperava isto...—disse Filippe.

—Já tenho animo!—exclamou ella.{153}

—Espera!

Filippe, tirando o manto e a farda, que lhe empeciam os movimentos, marinhou pelo tronco da arvore até fincar o pé no rebento que dava sobejo e seguro apoio a maior peso. Depois cingiu com o braço esquerdo o tronco, e disse a Maria que se pendurasse no ramo mais forte, e eminente á cabeça d'elle. Maria correu as mãos mimosas por sobre as asperezas da ramagem, e recurvou os dedos no mais afastado e grosso ramo que poude. Deixou o corpo ao seu natural pendor, impellindo-se com o pé fóra do muro. O despenho seria infallivel, se Filippe a não repuxasse a si, apertando-a ao peito com o braço direito.

Maria Henriqueta ria n'esta situação, e dizia:

—E se caímos abraçados?!

—Firma-te!—disse serenamente Filippe.—Apega-te ao tronco da arvore, que eu vou descer. Passa os teus pés devagar para o logar dos meus... Assim... Agora, larga-me, e segura-te... Bem... espera um pouco.

Disse, e saltou ao caminho; mas não se susteve em pé porque era grande o salto. Maria sobresaltou-se, e quiz resvalar agarrada ao tronco; mas Filippe já estava erguido, rindo da sua queda para serenar Maria.

Encostou-se á arvore, e disse:

—Desce, até encontrares os meus hombros com os pés. Depois, sem largar o tronco, deixa-te descer conforme eu me fôr abaixando, e salta quando eu te disser.

A execução da facil manobra foi feliz. Elles ahi vão,{154} embrulhados no mesmo manto. Maria está vestida de branco, e Filippe receia que o ar picante da noite a moleste. Coração em labaredas levam elles; mas o fogo intimo não basta a retemperar a temperatura da atmosphera. Os catarrhos são pensão de amadores nocturnos.

Estão os cavallos arreados na aldeia proxima, á mão do velho e leal creado de Filippe. Maria vê o velho, e chora pela sua ama, a quem não deu o ultimo abraço para a não ver morrer. Filippe quer consola'-la, mas não sabe. O creado velho sabe a razão das lagrimas, e diz:

—Quando chegarmos a terra segura, eu volto a buscar a velha. Arranja-se tudo; a morte é que não tem remedio.

Maria consolou-se.

Cavalgaram, e partiram. Ao dobrarem o primeiro outeirinho, Maria apontou para a torre do mosteiro, e disse:

—Que medo me faz aquillo! parece um phantasma! Que horriveis horas aquelle sino marcou na minha vida, ó Filippe!

—Deixa-o agora marcar annos de felicidade, minha esposa.

—Quantos marcará, ó Filippe?!!...

Soaram tres badaladas.

—Só?!—exclamou ella com supersticioso terror.

—Não sejas creança, Maria! disse Filippe.—Aquillo quer dizer que são tres horas.

Caminharam.{155}

O frio da manhã golpeava o rosto de Maria, e as redeas caíam-lhe dos dedos entrezilhados.

Filippe sentou-a sobre as capas dos coldres, apertou-a ao seio, e aqueceu-lhe as mãos no acolchoado da farda. E assim caminharam, até que o sol dourou o melhor dia d'aquellas duas existencias.{156}

{157}

VII

Entraram ao romper d'alva em Mirandella, a hora em que os irmãos de Filippe, desconfiados da demora do irmão, saíam a procura'-lo no caminho de Arouca. Ás dez horas da manhã d'esse dia, celebrou-se o casamento na capella da casa, por ministerio de um abbade parente do noivo, homem que não lera no Evangelho o preceito do consentimento paterno para a validade do sacramento. Foram testemunhas os irmãos do esposado, e padrinhos os paes.

Ao outro dia chegou a Mirandella a ditosa Eugenia, que o fiel creado fôra buscar, deixando em Amarante os amos. Contou ella que na tarde d'aquelle dia da fuga chegaram a Arouca alguns soldados de cavallaria, com um commandante, pedindo novas de um tenente, que desertára; e que n'essa mesma tarde tinham saído para outros sitios.

Comprehendeu Filippe o perigo da sua situação, e quiz fugir, antes que a Bragança, quartel do seu regimento, chegassem ordens para a sua captura. A parentella{158} votou unanime pela resistencia, confiada no poderio que exercia sobre o povo. Filippe combateu o denodo inopportuno, por amor de sua esposa, a quem tristes festas de nupcias seria uma briga sanguinaria do povo com a tropa.

Muniu-se o desertor de basto dinheiro para dois annos de desterro, e internou-se em Hespanha, com os dois velhos creados, que entre si se queriam por terem sido, em seis annos, os confidentes dos infelizes amores de seus amos, já agora unidos sagradamente para sempre.

Deixemo'-los em Hespanha procurar o remançoso eden de seus anhelos. Irão a Sevilha? a Granada? a Cordova? Irão a toda a parte, hão de encontrar as delicias reflectidas do céo que levam na alma.

Deixa'-los, que é delicadeza não irmos de pós elles. A suprema felicidade de dois noivos tem o seu pudor, que se quer resguardado de olhos alheios.

Vamos ao Porto, e entremos em casa de Gonçalo Malafaya.

Ao amanhecer do dia immediato ao da fuga, chegou de Arouca o enviado da má nova. O fidalgo, que já sabia da deserção do tenente, e incitára a saída do destacamento para captura'-lo em Arouca, nem por isso ficou menos surprehendido. Correu ao quarto de Maria das Dôres, e exclamou:

—Maria Henriqueta fugiu do convento!

—Estás a sonhar, ou sou eu que sonho?!—disse a esposa.

—Alli está o portador de Arouca! Fugiu sua filha,{159} senhora! Ahi tem a sua obra! Faltava-me esta deshonra: devo-lh'a, senhora, devo-lh'a, como ultimo golpe, que me ha de matar!

Disse, e refugiu para o seu quarto, tropeçando nos corredores, não aclarados ainda pela luz da manhã. Pouco depois, voltou á camara da esposa, e bradou:

—A senhora está na cama?! Levante-se que é preciso protestar contra a ignominia que pesa sobre nós! Levante-se, que d'aqui a pouco seremos insultados pela canalha! Vista-se de lucto, e quero que todos os meus brazões de armas, em todas as minhas casas e quintas, sejam cobertos de negro! Maldita seja a mãe que perdeu sua filha!

D. Maria agitou com força a campainha, e disse ao marido:

—Queira retirar-se, que vem as creadas vestir-me.

Entraram as creadas de baldão, quantas havia na casa, e a senhora disse a uma d'ellas:

—Vae dizer ao capellão que procure os primos Mellos e os primos Peixotos, e lhes diga que venham cá ter mão no sr. Gonçalo que foi atacado de um accesso de demencia.

Foi a creada dar o recado. O capellão ouviu-o, e benzeu-se com a mão direita; saíu do quarto e benzeu-se com a esquerda; e ao transmittir a infausta noticia a Mellos e Peixotos, benzia-se com ambas as mãos.

Acudiram os primos e Gonçalo recusou-se a recebe'-los, cuidando que vinham ao cêvo do escandalo para ultraja'-lo com fingidas caramunhas. Ouviram a prima{160} Maria, e convieram em que a fuga de Maria Henriqueta para casar com Filippe Osorio Vaz Guedes da Fonseca, tão fidalgo como ella, não merecia tamanhos alvorotos, nem a loucura do primo Gonçalo, por tal motivo, captivaria a compaixão publica.

Repellidos do quarto do velho, segunda e terceira vez, os fidalgos saíram a divulgar o caso sem o classificarem de deshonra, imputando, porém, a culpa d'ella, se culpa havia, ao pyrronismo de Gonçalo Malafaya, que sonhava com enxertar um conde na familia, ainda que o conde fosse um tolo e um perdulario.

Ao meio dia estava Gonçalo vestido de rigoroso lucto, e os lacaios de lucto tambem.

D. Maria das Dôres vestia de azul claro e ordenava ás suas creadas que se escusassem de completar a irrisão da casa.

Entrou o fidalgo na sua carruagem, e foi a casa de todos os magistrados do crime pedir justiça. Acolheram-n'o com respeitosa compaixão, e prometteram precatorias para os fugitivos serem presos, onde quer que a policia os descobrisse. Gonçalo a todos disse que dava os seus haveres pela captura de Filippe, e a si proprio se venderia para pagar os ultimos ceitis aos esbirros.

As cartas precatorias saíram desde logo para differentes pontos do reino, e algumas para Hespanha. E, ao mesmo tempo, as justiças militares tiravam summario despacho para a captura do desertor.

Maria das Dôres, sciente dos mandados judiciarios, enviou pessoa de sua confiança a Mirandella, avisando{161} o pae de Filippe Osorio, e escrevendo a sua filha uma carta mais de indulgencia que de recriminação. «O mal está feito,—dizia-lhe ella—mas em parte considero-o sanado pelo casamento. Escondei-vos cautellosamente, em quanto a tempestade ameaça fulminar-vos com a vergonha de uma prisão. Não entreis em Portugal sem que eu vo'-lo diga; nem vos mostreis em Hespanha, porque as ordens hão de lá chegar, em mãos de quem primeiro as encheu de ouro nos cofres de teu pae, etc.»

A carta foi dar ás mãos de Maria Henriqueta, que a essa hora trajava de homem, e se chamava em Hespanha D. Luiz de Castro, irmão de D. Pedro de Castro, nomes inscriptos no passaporte de Filippe Osorio.

Estavam então em Sevilha, e tão descuidados, tão ebrios de seu amor, que nem a carta os alvoroçou. «N'esse tempo (dizem os apontamentos que tenho á vista) figurando ella de lindissimo moço, deu-lhe que fazer o amor das hespanholas, que morriam por elle; e D. Luiz de Castro sustentava os namoros, para rir com o marido, mas sem saber que saída a final lhes daria.»

Pernoitavam os ditosos esposos em Segovia, onde os anteciparam cartas da capital da provincia, recommendando os dois Castros, cavalheiros portuguezes. Convidou-os o alcaide para uma tertulia, e banqueteou-os no dia seguinte, a pedido das filhas, que eram duas, e cada qual se apaixonára do seu Castro. Praticaram-se cousas de Portugal, e caíu a proposito perguntar o alcaide aos{162} seus hospedes se conheciam um Filippe Osorio Vaz Guedes da Fonseca, desertor de cavallaria 6, que havia roubado de um mosteiro a filha de um fidalgo de linhagem, solarengo no Porto.

Disse D. Pedro de Castro que sobejamente conhecia o desertor. Contou miudamente a historia triste dos seus amores com a filha do fidalgo, e tão a enternecer o disse que as sensiveis hespanholas choraram de ouvi'-la, e o alcaide jurou que rasgaria a ordem, que tinha, de prende'-los se alguma vez reconhecesse os sympathicos fugitivos no seu districto. A intimidade cresceu tanto entre a auctoridade e os hospedes, que, decorridos alguns dias, Luiz de Castro appareceu vestido de Maria Henriqueta ao alcaide e ás filhas, que ouviram d'ella a historia, repetida com mais graça e affectuosa tristeza, dos seus amores com Filippe Osorio.

Desde essa hora, o magistrado hespanhol não velaria com mais zelo a segurança de seus filhos. Onde quer que iam, lá os antecipava a influencia do alcaide, de modo que se viam em toda a parte festejados os dois cavalheiros portuguezes, e requestados de quantas damas os abrasavam com os olhos e com o chocolate.

Segovia era o logar onde iam a desfadigar-se das excursões ás provincias, e onde as cartas do reino iam dar com elles.

Na casa do alcaide deu á luz Maria Henriqueta uma menina, findo o primeiro anno de casada. E então acabaram as excursões, e retiraram-se a uma quinta dos arrabaldes para, a salvo de suspeitas, se despirem das{163} ficções, e viverem em toda a ingenuidade de esposos e paes. Lá lhes eram assidua companhia as duas filhas do generoso hespanhol, proprietario da quinta. Alli vieram os irmãos de Mirandella visitar o irmão, e dar-lhe a boa nova de quasi esquecimento em que estava sua deserção. N'este ensejo foram elles portadores de carta de D. Maria das Dôres, que, em resumo, dizia: estarem mais benignos os ares; mais brando o coração do pae, tendo já dito que antes queria ver a filha e perdoar-lhe, que receber a noticia da morte d'ella. Accrescentava que este dizer não a auctorisava a chamar a filha; porque o pae tinha intercadencias de prostração, quando perdoava, e de cólera quando pedia vingança aos céos, e insultava os magistrados como inertes. Terminava, recommendando-lhe que se tivesse sempre em guarda, e se fiasse só de sua mãe, quando a chamasse.

Decorreram seis mezes. Sempre o céo claro sem nevoa; sempre a ventura candida e pura como o sorriso da creancinha, que dissereis vinda do céo a completar o grupo da suprema bemaventurança na terra. Para cumulo de felicidade, chegou a Segovia uma carta de D. Maria das Dôres, dizendo á filha:

«Vem, agora sem receio. Venci teu pae, com as armas da humildade. Só por amor de ti as empregaria. Perdoa-te, recebe-vos, quer-vos para filhos. Sabe que tem uma neta. Disse-lh'o eu, quando o vi tão bom! Perguntou-me estupefacto como eu o sabia. Occultei-lhe os promenores; disse-lhe em suma, que eu fôra sempre mãe. Fitou-me de um certo modo, que me incutiu{164} receios de me ter enganado: mas, em seguida, voltou á sua segunda natureza compadecida. O peor, filha, será o crime de teu marido, que o força a livrar-se, e agora as leis militares inglezas creio que são severas para desertores. Se vês que teu marido tem grandes trabalhos a vencer, antes o desterro com a liberdade; e mais ao diante valeremos mais com as leis se teu pae quizer protege'-lo etc.»

Ao mesmo tempo, o fidalgo de Mirandella dizia a seu filho que andava dispondo as cousas para elle ser julgado e absolvido. Que alcançára promessas favoraveis, e esperava em breve manda'-lo recolher á patria, com a certeza da absolvição.

Que luz tão formosa as estrellas funestas irradiam ás vezes! Como a desgraça negaceia com as suas victimas dilectas! Que pena me faz ir d'aqui através cincoenta annos, e por entre o pó de uma geração dispersa no ar, áquella quinta suburbana de Segovia, e contemplar aquelles dois esposos com a filhinha entre os peitos de ambos, arrobados de alegria, dando-se os parabens da sua final victoria, e saudando as alegrias da patria, só inferiores ás alegrias de dois corações triumphantes sem infamia, felizes sem remorsos! Com que vontade eu quebraria aqui a penna, se tenho de tirar d'ella paginas negras da vida dos dois tão dignos, tão abençoados, tão bemquistos da leitora que amou ou ama, do pae que perdoou ou tem de perdoar um dia, do mundo que sentenceia, ou já sentenciou paixões, que exorbitam do estadio commum! Ai! eu antes queria inventar, antes{165} mentir, antes lançar de mim com asco estes apontamentos!

Eu sei como a vida podia ter lances de contentar a phantasia. Quantas vezes, em historias imaginadas, eu levo posto o fito n'uma caverna onde os meus personagens vão caír; e já perto, já com elles á borda do despenhadeiro, sustenho-me, chamo-os, acaricio-os, salvo-os, e dou-lhes a gloria, em vez do inferno que lhes fôra talhado! Como eu fico então contente de mim, e o leitor contente d'elles! Só n'estes conflictos é que eu avalio os thesouros da imaginação, e o segundo fiat de mundos moraes que a magnanimidade divina concede aos romancistas.

N'esta historia queria, e não posso. Estou coacto e maniatado ás gramalheiras da noticia, que me foi ministrada por pessoa, que me obrigou o juramento de não falsear a verdade.

E, de mais, se eu conseguir levar ao tumulo dos meus infelizes uma lagrima da leitora; se alguma hora, subir da terra um pensamento ao céo dos martyres, não será esse favor da piedade um bem tão consolativo para elles? A quem hão de elles agradecer o pensamento e a lagrima se não a mim, que lhes contei os infortunios, e, em vez de um epitaphio, lhes colloquei uma urna para os que lá quizessem chorar, e a mais triste pagina d'este livro para quem quizer consolar-se das suas nas desventuras alheias?

FIM DA SEGUNDA PARTE

{166}

{167}

TERCEIRA PARTE

I

Vieram os esposos acompanhados até á fronteira pelo alcaide e suas filhas. Ahi se despediram com muitas saudades e esperanças de se encontrarem, passados dois annos, no Porto. O cavalheiroso hespanhol disse a Filippe Osorio e á consorte: «Se alguma vez fordes desgraçados na patria, lembrae-vos do céo de Hespanha, e do vosso segundo pae, e de vossas irmãs. Em nossa casa sois familia nossa; e já sabeis que em toda a Castella sois como bons filhos da nossa boa terra. Seja a nossa amizade um modelo do que deviam ser os irmãos da peninsula, os que se apartaram eternamente odientos em Aljubarrota e Montes-Claros. Se fordes felizes, nem por isso nos esqueçaes.»

Chegaram a Mirandella. D'ahi escreveu Maria Henriqueta a sua mãe perguntando-lhe se podia ir para o Porto confiada no perdão do pae. A resposta carecia de{168} inteira affirmativa; mas accedia ao desejo da filha. «Teu pae, ponderava D. Maria—diz e desdiz; ora condemna, ora perdôa; todavia, eu conto comigo e tu com a tua filhinha. Por mais mal que te faça, serão só palavras: e palavras o vento as leva, e outras te dirá depois que te compensem algum dissabor. Em todo o caso, vem, que eu vou dar o ultimo assalto, e segurar o lanço.

Escripta esta carta, D. Maria das Dôres convidou o marido a passar duas horas em seu quarto, antes de recolher-se. Gonçalo accedeu ao geito blandicioso da esquiva prima, raras vezes meiga. A soledade, a tristeza, a velhice, e o quasi desamparo em que o deixaram amigos e parentes, crearam n'elle a precisão dos carinhos.

Foi Gonçalo ao quarto de sua mulher, e encontrou-a lendo a carta de sua filha.

—Quem te escreveu, prima?—disse elle.

—Foi a nossa pobre Maria Henriqueta.

—Tem fome por lá? O amante abandonou-a?

—Não digas «amante», primo. Marido é o nome que tem.

—Marido, sem o meu consentimento! As leis não me dispensam de ser ouvido.

—Dispensa-te a lei de Deus, meu Gonçalo. Estão casados, e eternamente casados.

—Pois que sejam felizes.

—A nossa filha só póde ser feliz com o teu perdão.

—Tu ahi tornas!...

—E tornarei sempre; quer Deus que eu seja a sua voz ao teu bom coração. Perdoa-lhe, primo!{169}

—Foi para isto que me chamaste?! Eu logo vi que era demencia esperar allivios... Se ella tem fome, manda-lhe dinheiro; se está abandonada, diz-lhe que torne para o convento, e lá terá abundancia.

—Nem fome, nem abandono, Gonçalo! Parece que dás mui baixo preço a tua filha! Aquella menina tão linda e prendada, haveria homem que a abandonasse?

—Linda era a outra que...

—A outra qual?

—Nada...—disse Gonçalo, sacudindo a visão de Beatriz de Noronha.

—Ignoras tu—proseguiu D. Maria—que o pae de Filippe é rico, e extremoso pelo filho? Eu sei que os esposos viveram em Hespanha com todas as commodidades, e nunca Maria me pediu a menor cousa, nem as suas joias, nem os seus vestidos. O que ella pede é a estima de seu pae, e quer pedir-te perdão pela bocca de sua filhinha, que tem sete mezes. Não se te alegra o coração com a esperança de teres nos braços uma creancinha, filha de nossa filha?

—Que fatalidade!... Mais uma mulher!...—exclamou elle com entonação pouco abonatoria do seu bom siso.—Então isto é uma cadeia de desgraças? Melhor lhe fôra á mãe desobediente esmagar a filha no berço, para não crear ao seio a vibora que me ha de vingar!

—Cala-te, meu primo, meu querido Gonçalo! Que sombrios vaticinios os teus! Quando te alumiará a Providencia Divina essa escuridade em que vives?

—Ha de alumiar-m'a a lampada da sepultura. Isto{170} em mim é o horror das trevas eternas, sem mais luz nem esperança!

—Ora, vem cá, filho!—tornou com extrema maviosidade a esposa, tomando-lhe as mãos, e aconchegando-as do peito—Não desprezes a luz que o céo te manda nos olhos carinhosos da tua netinha. Verás que vida nova se nos faz na velhice. Has de sentir o que é consolar-se a alma perdoando. Sabes tu quantas penas terá curtido nossa filha, desterrada, por terras extranhas, mudando de nome para não sacrificar o marido...

—O marido! atalhou em voz soturna Gonçalo—O marido! Se ella podesse convencer-me de que não casou... perdoava-lhe!

—Não digas tal, primo, por dignidade nossa e d'ella! Pois tu negas perdão á esposa, e da'-lo-ias á concubina?! Cala-te, que desvarias; a tua razão e coração devem contradizer esse desatino, que é uma doença do teu espirito. Eu sou mulher, e mãe, e não perdoaria á filha, que, contra nossos conselhos, se tivesse sacrificado a um infame seductor. Torna em ti, meu primo, e convence-me de que estás bem com a tua consciencia, perdoando o mal, que te fez a desgraçada, que só por amor invencivel poude desobedecer-te. Aqui tens a carta que me ella escreve de Mirandella; olha estas expressões: Ás vezes penso que meu pae ha de amar muito esta creancinha, que tem já no rosto signaes de vir a ser muito parecida com elle. Se eu podesse mandar este anjo adiante de mim, seria elle quem me abrisse as portas do paraizo de minha familia: Vês tu? É a tua Maria{171} Henriqueta que fala assim ao teu coração. Tu já lhe perdoaste, não é verdade?—continuou a esposa com transporte, beijando-lhe as mãos e o rosto—Posso dizer-lhe que venha afouta beijar estas mãos, que eu beijo tão reconhecida como ella?

Gonçalo caíu sobre a cadeira d'onde, momentos antes, se levantára na tenção de fugir do quarto. Escondeu o rosto no seio, e passados anciosos instantes, murmurou:

—Que venha; mas que eu a não veja.

Saiu Maria das Dôres vaidosa do seu triumpho. As ultimas palavras do marido equivaliam ao perdão. Não querer ve'-la seria a transição para ve'-la, e ama'-la. N'este presupposto, deu como rehabilitada a filha e participou ufana aos seus parentes e visitas o ter ella congraçado Gonçalo com seu genro. Os parentes, alegres com a nova, iam da sala ao quarto do fidalgo felicita'-lo, com grandes louvores de seu juizo e nobreza d'alma, censurando ao mesmo tempo, que tardiamente o fizesse. Estes emboras irritaram o velho, por partirem de pessoas, que elle tinha em odio á conta de lhe molestarem os brios, chasqueando-o agramente por ter querido, á fina força, casar a filha com o conde de Monção.

—Eu não disse ainda que perdoava!—redarguia o fidalgo irado—A prima Maria das Dôres está brincando com a minha decrepitude. Não me arrependo do que fiz; hei-de ter brios até ao fim da vida, e muito desprezo para quem duvidar se eu os tenho.

Isto era pungentemente allusivo.

Os primos iam ter com a fidalga, e diziam-lhe que{172} acautelasse a filha dos primeiros impetos do pae, cuja alma estava ainda muito crúa, e a soberba muito inflamada.

Debaixo da má impressão dos parabens, que elle imaginou ironicos e offensivos, saíu Gonçalo Malafaya a prevenir o chanceller, o regedor das justiças, e o juiz do crime de que sua filha estava em Mirandella com direcção ao Porto, e que vinha com ella o desertor. Os magistrados responderam-lhe que os crimes militares não entendiam com elles, executores da justiça civil. No que tocava a Maria Henriqueta, ajuntaram que, estando ella legitimamente casada, a lei lhes vedava aceitarem a intempestiva querella de pae.

—Mas eu hei de provar a nullidade do casamento—redarguia Gonçalo.

—É possivel—replicavam os magistrados—mas a prisão não póde antecipar-se á prova que v. ex.ª quer dar.

Mallogrado o mau intento voltou-se aquelle espirito enfermo para melhor paragem. Foi ao governador militar e denunciou estar no reino o desertor tenente de cavallaria Filippe Osorio. Disse-lhe o governador militar que já sabia da sua vinda com o proposito de responder e ser julgado; mas—accrescentou—admiro que a denuncia me seja feita pelo pae da esposa de Filippe Osorio! Que outrem o delatasse!... mas v. ex.ª denunciante de seu genro, que perdeu a carreira por amor de sua filha, que hoje é mulher d'elle e já mãe de uma menina!... É espantosa aberração!{173}

—Eu hei de provar a nullidade do casamento de minha filha!—redarguiu Gonçalo Malafaya.

—Prove v. ex.ª tudo; mas abstenha-se de provar que todas as vinganças desairosas lhe servem. Eu conheci Filippe cadete do regimento em que eu era major, ha sete annos. Tive-o sempre no preço mais avantajado da intelligencia e decoro militar. Se eu fosse principe, dera-lhe a minha unica filha; e, sendo Gonçalo Malafaya, dera-lhe a filha, o coração, e o sangue todo de meus avós por um abraço.

Gonçalo abafava de raiva, e saíu convulsivo de ameaças de furia. Entrou em casa, e rompeu em alaridos descompostos contra Maria das Dôres, contra a filha, contra a justiça, e contra Deus. A mulher, fallecida de paciencia, perguntou ao capellão se seria prudente segurar o marido no seu quarto, antes que elle passasse a espancar a gente da casa.

Benzeu-se tres vezes o padre e disse:

—Seria bom segura'-lo antes que elle espancasse a gente da casa; mas eu não me metto n'isso, porque diz lá o ditado, com doudos nem para o céo, senhora fidalga!

Passados dois dias, chegaram ao Porto Filippe Osorio, Maria Henriqueta, a filhinha nos braços da ama, e os dois velhos creados.

Maria Henriqueta escreveu da hospedaria a sua mãe, noticiando-lhe a chegada. «Em que má hora!—dizia a mãe na resposta.—Está mais furioso que nunca teu pae. Ha dois dias que sae a mover contra teu marido os{174} poucos amigos, que se condoem d'elle. Esteve tudo muito bem disposto; mas agora me consta que teu marido tem de responder da prisão pelo crime; e teu pae, aconselhado por vis letrados, que o exploram, vae intentar uma acção de nullidade de casamento. A tua vinda para aqui é imprudentissima.

Temos que combater um mentecapto em furias. Parecia-me que o melhor seria entrares no recolhimento de S. Lazaro, em quanto se não decide o julgamento de teu marido. A outra demanda póde levar tempo a decidir; mas o resultado ha de ser o que nós desejamos, se com effeito o teu casamento está legal, como cuido. Pensa n'isto, e dá-me resposta para meu governo. Se convieres em te recolheres a S. Lazaro, desarmarás d'esse modo a colera de teu pae, e terás meio caminho andado para a reconciliação.»

Lida esta desconsoladora carta, Filippe bebeu as lagrimas da esposa, e empenhou as mais seductoras ficções de seu espirito em persuadi'-la a recolher-se a S. Lazaro, em quanto elle respondia ao conselho de guerra.

—Apartar-me de ti!—exclamava ella.

—Por alguns dias, dias derradeiros da nossa tormenta de oito annos, sacrificio necessario para ganharmos a quietação, que virá mais cedo do que podemos espera'-la com a nossa desconfiança de infelizes. Escreve a tua mãe, que eu vou apresentar-me ao governo militar.

Filippe deixou sua mulher estupefacta, e escondeu-se a chorar. Se elle succumbisse, quem daria alentos á pobre{175} esposa e mãe? Se o coração fosse sincero n'aquella hora, quantas torturas inuteis para ambos!

E Maria Henriqueta, como se voluptuosamente se estivesse dilacerando os seis d'alma, dizia entre si:

—A serenidade com que Filippe se aparta de mim! A frieza dos seus conselhos! Ó meu Deus! serei eu já aborrecida! Estará elle arrependido de se ter lançado na carreira da desgraça por minha causa, deixando a outra que tantas venturas lhe promettia! Mas, se me não ama, poderá despedir-se d'este anjinho com os olhos seccos?!

E abraçava com arrebatada ternura a menina.

Filippe apresentou-se ao governador militar. Foi esta a branda e animadora linguagem da auctoridade:

—É forçoso que se recolha ao castello da Foz. Escuso dizer-lhe que será absolvido, porque a Regencia quer que o seja. Espero que em menos de tres mezes esteja livre. Sua esposa tem licença para viver comsigo no castello.

—Não póde ser.

—Porque não póde ser?

—Meu sogro vae litigar a validade do meu casamento, as leis mandam que minha mulher seja judicialmente depositada, até á decisão. Por conselho de minha sogra, e meu, vae minha mulher entrar no recolhimento de S. Lazaro. Ámanhã vou entregar-me á prisão.

Voltou com risonho vulto o preso a casa, e disse a Maria que estavam unidos, passados tres mezes.

D. Maria das Dôres saltou de sua carruagem á porta{176} da hospedaria, abraçou a filha e o genro, chorou de ternura beijando a neta, emprestou da sua instantanea alegria á contristada familia, e disse que o marido era contente com a resolução da filha, e fôra elle pessoalmente falar ao provedor da Misericordia para se mobilarem os melhores aposentos do recolhimento para ella. De tudo, inferia Maria das Dôres que as pazes se fariam brevemente, os desgostos a passar seriam curtos, em comparação dos futuros contentamentos.

Maria Henriqueta reanimou-se, e mais ainda quando encontrou o marido, em secreto, enxugando as lagrimas. A mulher que ama precisa ver chorar, para crear alentos. A coragem do homem que se despede parece uma offensa, ainda que o não seja; simula desamor, ainda mesmo que as lagrimas saiam do coração como gottas de ferro candente, e se derramem nas chagas do peito antes de chegarem aos olhos. A mulher amante quer, ao separar-se, levar a certeza de que deixa uma saudade, bastante a matar o coração que a ama. Isso é que lhe dá força para luctar e soffrer. A suprema desgraça é o desalento da duvida, quando a infeliz já por si não tem, contra o mundo e contra a desgraça, senão a certeza de ser amada. Por isso, Maria Henriqueta achou em si a antiga força, quando surprehendeu Filippe a chorar.

Na seguinte manhã, o preso ajoelhou aos pés de sua mulher, e disse-lhe:

—Não te peço amor, minha esposa; peço-te coragem, mulher. Aqui te deixo minha filha: fala-lhe de mim, e ella será o anjo mensageiro das minhas atribulações.{177} Quanta mais força tiveres, mais digna serás do teu esposo. Mulher que tanto soffreu, e a tanto se arrostou, não póde fraquear agora em tres mezes de ausencia. Maria, eu não me engano com a tua alma, não? Has de viver e luctar com os desgostos por amor do teu Filippe, que ainda se não julga desgraçado?

Não lhe respondeu Maria. Lançou-se-lhe soluçante aos braços, e arquejou em convulsões sobre o peito em que lavrava um fogo occulto de morte, ao qual parece que as lagrimas da mulher amada se reseccam.

Tomou Filippe a filhinha dos braços da ama. Contemplou-a, e deteve-se até que a mãe lh'a tirou dos braços. É que da face d'elle se esvaíra lentamente a côr; o brilho dos olhos apagára-se subito; um tremor lhe correra os braços; o corpo ia inclinando, e a menina resvalava-lhe das mãos.

—Filippe! exclamou Maria—essa é a tua força, Filippe! Por Deus, reanima-te, que me tiras a coragem!

Sorriu-se o marido, beijou-a na face, e murmurou:

—Parecia-me que era a ultima vez que via nossa filha... O amor de pae tem estas visões passageiras. Deus me defenda de as ter a teu respeito semelhantes, minha esposa!{178}

{179}

II

Maria Henriqueta, aceitando o recolhimento de S. Lazaro, mal sabia a grandeza e o travor do calix que punha aos labios! Tantos mosteiros havia ahi no Porto, com tanta liberdade e regalias, e senhoras boas para amigas, e preladas menos austeras com as dores do coração, e mais contrictas, por isso mesmo, das suas!

Era o recolhimento de S. Lazaro um vasto recinto sem ar nem luz, um congresso de meninas pobres, que reflectiam a sua miseria, e castigos, e forçadas penitencias, nas pensionistas abastadas, e alli reclusas pela violencia paternal. Não se abria um sorriso nos labios de nenhuma. As pobres anhelavam a sua indigencia ao ar livre, as ricas estorciam-se nos phrenesis da sua irremediavel reclusão. As de boa indole que para alli entravam, espicaçadas pela severidade rude das regentes, tornavam-se iracundas, e umas contra outras se enraiveciam, a ponto de ser rara a convivencia de duas pensionistas ricas. Era o desespero que as fazia de condição bravia e intractavel. Maria, apenas teria uma hora de convento, que maldisse a sua cedencia á vontade da{180} mãe, e aos conselhos do esposo. Perguntou logo indiscretamente se podia mudar-se para outro deposito, e a regente respondeu que ella não era senhora sua, em quanto se não provasse que estava legitimamente casada; que a seu pae incumbia romove'-la, por que fôra elle quem apresentára ao senhor provedor o mandado do deposito.

Esta resposta, seccamente dada, foi motivo a que Maria Henriqueta ganhasse profunda aversão á regente.

Era-lhe licito escrever a seu marido. N'esse respiro gastava ella as horas do dia e muitas da noite; mas pequena consolação é essa, quando as cartas são como cauterio á chaga, sem o beneficio da cura. Respondia-lhe Filippe, fingindo animo, e inventando lenitivos de paciencia, sendo unicamente sincero nos da esperança. Baldado intento! A saudade e a desesperação recrudesciam. Tomava a filhinha nos braços, como taboa de naufragado, e nem assim, nem á luz dos olhos d'ella via ao longe a redempção.

Uma só menina das orphãs pobres ella chamára á sua intimidade: era Rita de Cassia, illustre de nascimento, mas desamparada de pae e mãe, que a lançaram de si como vergonhoso testemunho de a trazerem á vida n'uma epoca de desdourados amores. Affrontaram o escandalo, e fugiram affrontados ao dever!

O pae, que escondia o titulo, para livrar-se d'ella, e salvar o nome de sua mãe, calou a consciencia entregando-a á caridade da Santa Casa, e para isso declarou que a menina não tinha pae nem mãe. Antes elle falasse{181} a verdade, e o genero humano teria de menos um estygma.

Rita era commensal de Maria Henriqueta, e consolação de muitas agonias, se o chorar com quem chora é consolar. Que provas a orphã deu, passados mezes, do seu reconhecimento e cega amisade á fidalga e infeliz!

Depois de um mez de reclusão, Rosalinda, a filhinha de Maria Henriqueta, adoeceu de garrotilho, e expirou no termo de quarenta e oito horas. Durante o curto prazo da doença e da agonia, era geral no recolhimento o receio de que a mãe enlouquecesse, morrendo a creancinha. Nos braços d'ella passou a menina os paroxismos, aquella estortorosa respiração, que é uma lenta asphyxia, e acaba por agudissimo arranco. Tiraram dos braços de Maria o inanimado corpo, o envoltorio macerado do anjo. A mãe correu ao longo dos corredores, soltando gritos, sem destino, sem paragem, fechando os ouvidos, quando lhe falavam, arrancando-se enfurecida dos braços, que a detinham. Poderam Eugenia e Ritta de Cassia leva'-la ao seu quarto, e excita'-la a chorar, como remedio unico. Uma e outra lhe falavam de Filippe; e, como lhe dissessem que o marido morreria, sabendo a morte da filha, já Maria Henriqueta, aterrada de dôr maior, pediu forças a Deus para mitigar com rogos de conformidade a consternação do esposo.

Lembrou-se então do desmaio do marido ao abraçar a menina, e das palavras com que explicou o seu desalento: «Parecia-me que era a ultima vez que via a nossa filha.»{182}

Os apontamentos de uma senhora, que foi coeva de Maria Henriqueta no recolhimento[1], dizem singelamente:

«A sua consolação unica lhe foi roubada; morreu-lhe a adorada filhinha. Andava Maria Henriqueta de noite em gritos pelos dormitorios. Todas choravam com ella, e eu tambem, com quanto então tivesse nove annos.—Falta-me um pedaço de minha alma!—gritava a pobre mãe. Que formosa era a menina! Teria um anno. Foi enterrada em Santo Ildefonso. Veiu alli busca'-la o abbade n'uma locomotiva que era como os carrinhos de agora, pouco mais ou menos. Dizia-se que ella ajoelhára ao pé da filhinha, quando lh'a tiraram ultimamente, já amortalhada, e dissera:—Vae pedir ao Senhor a liberdade de teu pae, meu anjinho!»

Ao outro dia, tinha ella de responder á carta do marido, que parecia esquecer-se de sua situação, para falar da menina. «Dá-me cuidado—dizia elle—a doença de nossa filha; mas espero que Deus nos poupe ao golpe de a perder. Não merecemos tamanha dor, Maria; a bondade divina, a querer levar para si o anjo, esperaria que estivessemos unidos para valermos um ao outro.»

E havia de responder a esta carta a pobre mãe, quando a filha já estava sepultada! Qual outro coração{183} se abriria a recolher-lhe as lagrimas? Como havia de fingir ella uma linguagem socegada? Como abafar sua paixão, em quanto escrevia a resposta? Que dôres a vida tem!

E respondeu; mas, sem determinar a nova causa de sua afflicção, obedeceu ao impulso do desespero, amaldiçoando o pae, o destino, e Deus. As blasphemias era a carta do marido que lh'as incitava, no periodo trasladado. Deus lhe levára a filha, no momento em que o carcere, a separação do marido, e a solidão, alguma vez teriam desafogo, nos afagos da creança. A misericordia do céo lhe descontaria na balança das impiedades o punhal agudissimo, que lh'as faria resaltar do coração, e jámais da consciencia. Na carta, falando da filha, apenas disse: «Se ella hoje fosse do céo, pediria ao Senhor a tua liberdade.»

Porém, o silencio de Maria Henriqueta conseguiu apenas retardar algumas horas a infausta nova.

Estavam no Porto os irmãos de Filippe Osorio, e esses lh'a levaram.

Succumbiu aquella forte alma, e pensou em aniquilar-se. A sinistra idéa cedeu ao primeiro accesso de febre.

Faltaram a Maria Henriqueta as cartas em dois dias. Mandou ella directamente ao castello da Foz, e soube que o marido estava perigosamente enfermo. Fez-se uma terrivel explosão no animo varonil de Maria. Tremeu a regente da investida vertiginosa, que ella lhe fez no quarto, exigindo que lhe abrissem as portas. Diz a minudenciosa{184} noticia d'estes successos, dada pela indicada senhora, que mais alguma vez citarei: «Nas crises de maior exasperação Maria Henriqueta parecia possessa. Com todas se travava de razões, e trazia na mão uma chibata de junco, que vergava, e sacudia, em ar ameaçador, principalmente entrando na cella da regente; e a regente tremia d'ella, e da chibata, por amor á sua pelle, que já tinha então oitenta e um annos, e era estimavel pelle por ser de dura.» No final d'este faceto periodo se denota a má vontade que a minha illustre informadora ainda conserva á sua regente de ha cincoenta annos!

Estava pois, a octogenaria regente alapada no seu cubiculo, quando Maria Henriqueta lhe surgiu de sobresalto no limiar da porta, com a chibata em punho, ordenando que se lhe facultasse a saída, para visitar seu marido, que estava doente. Cuidou morrer de pasmo a velhinha; mas recobrou animo, quando viu a sub-regente, a sachristã, e outras funccionarias da casa deliberadas a defende'-la. Com suaves maneiras, conseguiram todas que Maria Henriqueta espaçasse até ao dia seguinte a saída, para se legalisar o facto com a licença do provedor da Santa Casa.

A fidalga não insistia muito tempo n'uma mesma idéa. Andava a baldões de sua afflicção, ora abraçada a Eugenia, ora a Rita de Cassia, ora repellindo-as ambas desabridamente.

Foi aquella noite de tormenta no recolhimento. Maria declamou, chorou, delirou em corridas de uma a outra extrema{185} da casa. Na seguinte madrugada, mandou a regente informar o provedor, e este á frente da mesa da Santa Casa, foi a S. Lazaro, e chamou ao locutorio Maria Henriqueta, com o intento de reprehender-lhe as impaciencias, e conforta'-la com palavras esperançosas de breve saída. Veiu a enclausurada, cuidando que ia receber a licença; mas, ouvidas as primeiras palavras, azedou-se-lhe tanto a dôr e a colera que o provedor suava de ouvi'-la, e os da mesa estavam como que passados de tamanha ousadia, affronta original n'aquella casa de humillimas victimas.

Fatigada de exprobrar a tyrannia do pae e a impiedade dos verdugos, que lhe mataram a filha e queriam matar o marido, Maria Henriqueta deixou-os na grade, entrou na cella esbofada e arquejante, chegou ao ouvido de Rita, e disse-lhe com a seriedade de um proposito de demente:

—Havemos de fugir hoje d'aqui: tu vaes comigo, Rita, se tiveres coragem.

A orphã temeu que a sua infeliz amiga estivesse louca; mas, para se confirmar em suas suspeitas, ainda lhe disse:

—Por onde fugiremos nós, minha senhora?!

—Cala-te, que eu sei por onde se póde fugir. Queres ir?

—Vou, vou, mas diga-me por onde, que me parece um sonho podermos fugir d'estas paredes, que nem janellas teem.

Dito isto, Maria recebeu uma carta de Filippe, escripta{186} por extranho pulso, e assignada por elle. Era animadora; a razão estava normal; a filhinha pedira por seu pae a Deus; elle mesmo se deleitava n'esta doce persuasão; e os irmãos, que o rodeavam, queriam salva'-lo com ella.

Aquietou-se algum tempo o espirito da esposa; e ao voltar a intermittencia do desespero vinha já menos descomposta. O plano da fuga prevaleceu ás melhoradas novas.

De tarde, saiu sósinha Maria e foi orar para o côro; depois disse que queria descer á egreja para resar de perto aos altares, e teve a licença, com grande aprazimento da regente, que tirou do devoto acto bons auspicios. Foi á egreja, e quiz estar a sós com Deus. Relanceou os olhos a todos os lados, esperou que saíssem do côro algumas orphãs que a observavam, e deteve-se a reparar n'um postigo chamado a ministra, por onde as recolhidas recebiam a communhão, espaço com dois palmos de largo sobre palmo e meio de altura. Feito o rapido exame, saíu da egreja, e recolheu-se á sua cella com semblante socegado, e um brilho de extranha alegria nos olhos. Contou a Eugenia a sua tenção. Chorava a pobre mulher, ouvindo-a, e contrapunha-lhe muitos obstaculos, aos quaes Maria respondia sempre vencedora.

Vamos ver os prodigios de elasticidade, obrados pelo coração sobre o corpo de Maria Henriqueta.{187}

III

É parte d'este capitulo trasladado dos apontamentos. Quem presenceou o successo mais fielmente lhe dará as côres:

«A porta da egreja era costume deixa'-la fechada por dentro, e a chave ficava na porta, ficando a cargo da escrivã abri'-la de madrugada.

«A porta do commungatorio ficava aberta, porque parecia cousa impraticavel o poder alguem, que não fosse puro espirito, evadir-se pela ministra.

«Escolheram para a fugida a hora em que a communidade, depois do côro, se ajuntava no refeitorio.

«A primeira que saíu foi a fidalga, mas, segundo eu depois soube, passou torturas para enfiar os largos hombros por entre o estreito postigo; e do ultimo e já desesperado repuxão, que fez, foi bater com a face nos degraus do altar-mór, e feriu-se grandemente na testa.

«A orphã, como era muito delgadinha, saíu com menos custo.

«Depois, Maria Henriqueta, limpando o sangue da ferida, abriu a porta da egreja, e saíram.{188}

«Ás dez horas da noite, conforme o costume, foi a sachristã temperar a lampada do Santissimo Sacramento, e viu aberta a porta do commungatorio, e as portinholas da ministra tambem abertas.

«Antes de mais averiguações, começou a gritar a sachritã. Desceram algumas pensionistas á egreja e viram a porta da egreja cerrada.

«Todas, a uma voz, disseram que Maria Henriqueta fugira. Foram ao quarto d'ella procura'-la, e d'ahi passaram ao de Rita de Cassia.

«Deu-se então no recolhimento de S. Lazaro uma amostra do dia de juizo. A regente, com as mais senhoras da governança, ajuntaram-se em consistorio, para deliberarem.

«As meninas já de razão e juizo andavam afflictas: eu, porém, e as outras de minha edade nunca nos divertimos tanto; porque andavamos ás ondas por entre as velhas, fingindo que estavamos assombradas do geral terror.

«Ás onze horas da noite foi chamado meu pae,[2] e reprehendeu severamente as auctoridades da casa, porque deixaram aberta a porta do commungatorio.

«As providencias foram dadas com tão desgraçado acerto que, ao outro dia, seriam onze horas...»

Suspendemos a copia, que nos não dá n'este ponto os promenores da fuga, vencidas as principaes difficuldades, que n'este infausto caso, foram as menores.{189}

Caminharam as fugitivas na direcção das Fontainhas. Maria Henriqueta não sabia um passo da cidade, e Rita de Cassia, reclusa desde menina, era egualmente ignorante. Foram á ventura até encontrarem uma rampa de pedregulho que descia da rua do Sol.

No alto da rampa viram dois vultos quietos; tomaram-lhes medo, e sem se consultarem fugiram. Os dois vultos eram os «nocturnos» que faziam a policia, e obedeciam a apertadas ordens, n'aquelles tempos revoltos de jacobinos, e malfeitores, que os pretextavam para rebuçarem sua malvadez.

Os nocturnos correram sobre as duas fugitivas, e travaram d'ellas como quem aferra duas amazonas das que antigamente espostejavam exercitos de barbados persas. Interrogaram-as com a brandura de nocturnos. Maria Henriqueta declarou ser creada de servir, e a respeito do seu destino disse que ia para a Foz, onde tinha seus patrões. Rita, para não inventar outra profissão e destino, disse que era tambem creada de servir, e que ia para a Foz.

Interrogadas ácerca dos nomes dos amos, e outras miudezas, responderam disparates, que infundiram suspeitas, se não de jacobinas, ao menos de pessoas que se serviam da noite para obras pouco louvaveis, como fuga de casa, ladroeira, ou alguma das mil hypotheses, que cabiam na cabeça dos dois nocturnos.

—Vocemecês—disse um d'elles, amoldando o tratamento aos trajos limpos das presas—hão de vir ao almotacé, e lá dirão quem são, e o destino que levam.{190}

Rita, para confirmar suspeitas, levantou um choro, que valeu muito a prejudica'-las no conceito dos policias. Maria Henriqueta, mandando-a calar, via menos carregado o futuro, que a esperava em casa do almotacé.

Foram, e entraram á presença do funccionario, que fez um tregeito de espantadiço quando viu a formosa cara de Maria. Repetiu as perguntas, e inferiu as mesmas suspeitas dos nocturnos, que eram emanações da alma d'elle, e recebiam todas as mesmas impressões no mesmo orgão sensorio.

Cuidou a incauta Maria Henriqueta que a verdade a podia salvar d'aquelle passo difficil. Disse quem era, proferiu o nome de seu pae, e de seu marido. O almotacé curvou a cabeça inflexivel á illustre dama; disse-lhe, porém, que a obrigação d'elle era rete'-las até dar aviso; e, em obsequio ao sr. Gonçalo Malafaya, as teria em sua casa até ser dia.

Conformou-se Maria, pedindo papel para escrever a sua mãe; e escreveu uma carta de que foi portador o proprio funccionario.

Estava já recolhida D. Maria das Dôres; perguntou o almotacé se lhe era permittido falar para negocio urgentissimo com o fidalgo.

Malafaya não tinha ainda recolhido de casa dos primos Mellos, e para lá se dirigiu o portador da missiva. Contou elle ao velho o acontecimento, dando-lhe a carta, que ia endereçada a D. Maria das Dôres. Gonçalo leu-a com agitado aspecto, e disse colerico:

—Conserve essa desgraçada em sua casa até ámanhã.{191} Eu me encarrego de entregar a carta a minha mulher. Tenha-me todo o cuidado em minha filha.

Voltou o almotacé a dar conta da sua commissão, e produziu em Maria Henriqueta um insulto de nervos.

—Foi entregar a carta ao algoz!—exclamava ella:—Agora é que eu vou ser mais desgraçada! Deixe-me saír, que eu não espero as ordens de meu pae!

—Não tem remedio senão espera'-las—Disse friamente o aguazil-mór.

—Não tenho remedio?!—bradou Maria—Tenho o remedio que dá a desesperação! Conduza-me já á rua, quando não, grito que me querem matar!

O homem, por piedade ou por medo de passar uma noite turbulenta, esgotou os recursos da persuasão para conter a fidalga, promettendo-lhe obstar a que seu pae lhe fizesse alguma violencia. Para ser coadjuvado nos seus ordeiros discursos, fez levantar as senhoras da familia, e trouxe-as á sala, onde estavam as retidas. As senhoras eram ternas, e compadeceram-se da atribulada esposa, que chorava esposo e filha. Uma dellas encarregou-se de fazer pessoalmente entregar de manhã uma carta á fidalga mãe. Confortada com esta esperança, Maria Henriqueta socegou, e conseguiu aplacar as vertigens da pobre Rita, que era fraca e timida como quem, desde a infancia, andou sempre sovada aos pés da desgraça.

De manhã, saiu uma creada do almotacé a entregar a carta, recommendando-se como enviada da sr.ª D. Maria Henriqueta, e bem ensaiada por esta. Quizera o{192} guarda-portão impedir-lhe o accesso, antes das nove horas; mas a destra portadora rompeu escada acima, chamando a fidalga a altas vozes.

Conduzida ao quarto da senhora, entrou a um tempo com ella Gonçalo Malafaya, querendo arrancar-lhe a carta das mãos. D. Maria saltou assanhada do leito, e levou o marido a empurrões para fóra do quarto.

Leu anciosa a carta, vestiu-se acceleradamente, e saíu com o seu capellão a encontrar-se com a filha.

A primeira victima de sua ira foi o almotacé a quem ella chamou os nomes, que dava aos seus infimos creados. Pensava o inviolavel funccionario em autua'-la; mas pareceu-lhe mais prudente desarmar-lhe a cólera, porque receava ser demittido do officio no dia seguinte. O principal artigo de accusação da fidalga era ter o vil esbirro (amabilidade que muito offendeu o almotacé) era ter elle entregue ao pae a carta, que ia para a mãe. Graças á pacifica eloquencia do capellão, a fidalga desceu-se da sua raiva, e entrou em pensamentos mais moderados, tendentes a salvar a filha das garras, que o pae estava aguçando.

Tardias combinações! Tinham soado dez horas, quando á porta do almotacé, pararam duas cadeirinhas e seis soldados nocturnos, e um alcaide com ordem de reconduzir ao recolhimento de S. Lazaro as fugitivas.

D. Maria das Dôres, quando tal ouviu, teve um vágado, que os impetos de raiva não deixaram durar muito. Ao recobrar-se das convulsões, abraçou-se á filha, exclamando:{193}

—De hoje em diante serei mais que tua mãe, Maria! Serei tua cumplice, se és criminosa! Eu é que te hei de entregar a teu marido. Vae! Soffre mais alguns dias. Eu vou consolar teu esposo; vou trabalhar a favor d'elle, serei mesmo a sua enfermeira; e, de volta da Foz, irei falar-te ao recolhimento. Conta comigo, Maria. Leva a certeza de que os teus tormentos acabam d'aqui a poucos dias, se a minha vida não acabar antes!

Maria reanimou-se, que eram para dar muita alma as promessas da energica e vindicativa senhora.

Agora, prosegue o traslado dos apontamentos:

«Entraram duas cadeirinhas na portaria do recolhimento, escoltadas por seis soldados nocturnos. Vinha em uma a fidalga: e na outra a sua amiga.

«A todos pareceu escandalo a barbaridade que o pae escolhesse tal hora, para reconduzir duas senhoras a uma casa de educação, cercadas de tropa, e rodeadas de populaça!

«Meu pae appareceu logo na portaria, e auctorisou a regente a castigar asperamente a fidalga, como pensionista; e Rita como orphã pobre. Á primeira decretou o tronco de cima, e á segunda o chamado tronco de baixo.

«O tronco de cima era uma cella, sem differença sensivel das outras, a não ser que a luz se coava de uma fresta muito alta, e era fechada com duas portas, cujas chaves tinha a regente, e recebia os alimentos por um postigo. O maior castigo era a privação de falar com outras meninas.{194}

«O tronco de baixo era um subterraneo, sem minima claridade. Continha um leito de ferro, que hoje é moda, e era então ignominia. Fôra construida, alguns annos antes, esta caverna para castigo de uma menina, que havia fugido, e lá esteve em paroxismos, até que a deixaram sair e morrer com a pouca mais luz da sua cella. Eu tal horror lhe tinha, que só de passar sobre o alçapão da masmorra, me sentia tremer. Este era o supplicio destinado a Rita de Cassia.

«Condoeu-se meu pae da fidalga, posto que ella não solicitasse compaixão de ninguem. Dizia ella á regente que o vexame de ser trazida entre soldados lhe era bastante expiação. A pobre Rita, porém, que não tinha pae nem pão, senão o da caridade, foi a victima expiatoria, para exemplo das outras, dizia a senhora regente, que Deus tem. Ainda assim, houveram com ella piedade, mandando-a para o tronco de cima.

«Ao outro dia, quando lhe levaram os primeiros alimentos, acharam-na sem sentidos e banhada em sangue. Pensaram que ella se teria rasgado alguma veia; mas o sangue era lançado pela bocca. Julgaram-na morta, e era geral a consternação na casa. A angustia de D. Henriqueta sobrelevava a de todas; mas á orphã castigada era-lhe prohibido ver a sua amiga, a amiga por quem morria ou estava morta.

«Deu signaes de vida.

«Estavam no recolhimento duas meninas muito ricas e por isso muito respeitadas: eram D. Innocencia Pereira de Castilho, e D. Gertrudes Pereira de Castilho.[3]{195} Foram estas duas irmãs lavadas em lagrimas, pedir á regente, que as deixasse tomar á sua custa o tratamento da orphã, na sua cella. A regente era de cêra aos desejos das ricas pensionistas. Cedeu-lhes a doente moribunda. Tantos foram os carinhos, os medicamentos, e os desvelos, que a menina chegou a restaurar-se. Depois das melhoras, solicitaram as Castilhos o perdão da menina, e conseguiram-o.

«D. Maria esteve tambem doentissima n'esta epoca, mas de muito menor cuidado, e prompto restabelecimento. Para lhe não faltar afflicção alguma, até lhe prohibiram á dedicada Rita ver a fidalga que, apesar dos soffrimentos passados, ella amava com o coração de um anjo.»

Ninguem infira dos successos descriptos, em desabono da caridade e humanidade do recolhimento de S. Lazaro, ha cincoenta annos, o que hoje possa ser aquelle pio estabelecimento. Nenhuma analogia approxima os costumes de então com os de hoje. O raio benefico do facho civilisador lá foi alumiar tambem aquelle recinto; os homens que o fiscalisam, são os filhos d'este seculo, os que sabem irmanar com a doutrina do bem uma prudente severidade. Se alguma vez, em nossos dias, sairam arguições em desfavor do regimen d'aquella casa de caridade para meninas orphãs, e de educação{196} social e religiosa para pensionistas, convém que se descontem n'essas arguições causas deshonestas, e portanto injustas, que a promoveram. Não sabemos que haja outro recolhimento no paiz mais dignamente mantido sobre bases de piedade, morigeração e ensinamento de prendas, com que d'alli sáem adornadas muitas donzellas, que as mostram na sociedade, como esposas e mestras de seus filhos. Sirvam estas linhas de anteparo á censura irreflectida de alguem, que folgue de afiar no auctor os dentes da calumnia.

D. Maria das Dôres cumprira integralmente sua palavra. Foi ao castello da Foz: contou a Filippe Osorio a parte menos pungitiva da aventura de sua filha. Egualou-o na consolação das promessas e das esperanças. Chamou-lhe filho com toda a effusão da sinceridade. Chorou com elle ao falarem de Rosalinda, e d'ali voltou ao recolhimento a aviventar a filha.

N'esse mesmo dia, sobre tarde, recebeu a regente ordem do provedor para impedir que Maria Henriqueta falasse com sua mãe. Quando esta, ao outro dia, apeou no pateo, saiu-lhe á portaria a regente, mostrando lacrimosa a ordem, que recebera. D. Maria das Dôres recolheu-se a casa, esperou que o marido entrasse, lançou-se a elle de insultos e improperios tão novos, que o velho cuidou ganhar a bemaventurança fechando-se no seu quarto. No dia seguinte, o mordomo da casa, creatura particular da fidalga, partia para Lisboa a ganhar horas, com uma carta a um dos membros do governo; e nove dias depois, depunha em mãos de sua{197} ama, uma ordem da regencia, para que as portas do recolhimento de S. Lazaro se abrissem a D. Maria das Dôres, a qualquer hora do dia que ella quizesse visitar sua filha.

Gonçalo Malafaya, quando tal soube, soffreu o primeiro ataque de paralysia n'uma perna.{198}

{199}

IV

A convalescença de Maria foi velada por sua mãe. Passava a fidalga os dias, e grande parte das noites, no recolhimento. Abriam-se e fechavam-se portas com grande escandalo dos mesarios, a horas em que era dos estatutos o silencio obrigatorio.

D. Maria das Dôres levou, a pouco e pouco, o que tinha em casa, pertencente ao guarda-roupa de sua filha. As suas mesmas joias lhe deu, receando morrer a tempo de as não poder confiar do marido como legado á filha. Quando não estava no convento passava grande parte do dia com o genro, pactuando com elle a fuga de ambos, logo que o conselho de guerra o restituisse á liberdade.

Fugir para quê, se estavam legitimamente unidos, se deviam vencer o cerebrino pleito instaurado por Gonçalo Malafaya?

Assim o parece: mas do que é ao que deve ser, corre uma distancia infinita.

Provar a nullidade do casamento era impossivel, mas{200} dilatar a prova com os estorvos, que a justiça faculta aos que a emmascaram e trazem em ludibrio por sentinas douradas, é cousa de todo o ponto facil. Contra a legalidade do matrimonio de sua filha allegava Gonçalo a negação do consentimento, e a falsidade da certidão, em que o ministro do sacramento era tio do contrahente e as testemunhas sobrinhos do abbade, e irmãos de Filippe. Absurdos argumentos que tentavam a rir a justiça, porém, um sacerdote d'ella, em primeira instancia, por odio inveterado á familia de Mirandella, lavrara uma sentença iniquissima, fundada... nos alicerces de ouro, em que levantou poste de vilipendio á sua integridade.

Subiu o processo á relação do Porto. Andou o indecoroso auctor captando a piedade dos desembargadores com lagrimas que o não lavavam das manchas. Os juizes, para honrarem o pae, e a filha, estabeleceram a legalidade canonica e civil do casamento, censurando o ignaro juiz, que inventára a deshonra como remedio aos despeitos de um pae. Faltava o recurso de superiores instancias. Foram para a supplicação os feitos, sem esperanças de bom exito para Malafaya: mas, na delonga da sentença final empenhára o fidalgo os cabedaes e os amigos, para com os amigos dos cabedaes:—desculpem a safada elegancia d'este trocadilho.

Claro é, pois, que o deposito da esposa tinha de ser prorogado até á final sentença, que, sem milagre, podia ser empecida dois annos na supplicação e baixar de lá com alguma nullidade ao tribunal onde principiára. Assim{201} se explica a premeditação de Maria das Dôres na fuga da filha, logo que Filippe Osorio saísse do castello da Foz.

Antes de completo segundo mez de prisão, foi o desertor julgado e absolvido, com grande assombro de Gonçalo Malafaya. Repetiu-se então o ataque de paralysia, ramificando-se ao braço direito. Era a peçonha do rancor que o ia matando, pedaço a pedaço.

Apresentou-se Filippe ao provedor da Misericordia, o doutor João Pedro, velho que vivera, até envelhecer, vida de rapaz, e fizera do seu palacete o berço da civilisação dos costumes, má civilisação, que é o synonymo de extrema liberdade, a qual muito tarde será adulta no Porto. Quem hoje passa no Reimão diante do palacete que pertence ao sr. Joaquim de Sousa Guimarães, póde, se quizer, imaginar que alli, durante os ultimos trinta annos do seu antigo proprietario, se fizeram romances praticos de alta moralidade, os quaes é muito de esperar que eu venha a dar em livro. Uma das scenas lá passadas, a mais simples de todas é a seguinte:

Entrou Filippe Osorio, procurando o doutor Pedro, que saíu a recebe-lo na primeira sala. Disse o visitante quem era, e o doutor sentiu-se incommodado do coração, que parece ser o orgão do amor e do medo.

Feita a apresentação, com militar seccura, ajuntou o apresentante que era marido legitimo de D. Maria Henriqueta.

Tossiu o doutor uma tosse peculiar de susto quando não é de velhacaria. No doutor era susto; e o susto não{202} deshonra ninguem, mórmente quando o assustado se defronta com os trinta annos de um homem de grandes barbas e possante estatura.

Estas declarações eram o proemio a uma outra, sobre todas, inquietadora para o doutor.

—Quero ver minha mulher—disse Filippe.

—Parece-me que a lei se oppõe—disse o doutor—em quanto v. s.ª tiver pendente das decisões juridico-canonicas a validade do seu casamento.

—Não venho perguntar a v. s.ª se a lei faculta, se nega: o que eu lhe digo é que quero ver minha legitima esposa, agora, logo, ámanhã, sempre.

—Então queira requerer a juiz competente.

—Não venho pedir conselhos. Entenda-me, senhor provedor; é ao provedor da Misericordia que eu reclamo auctorisação para ser recebido na grade do recolhimento por minha mulher.

—Isso é impossivel, senhor!

—Que são impossiveis, senhor doutor? Talvez que a v. s.ª pareça impossivel haver um homem que lhe corte uma orelha; e, comtudo, affirmo-lhe que poucas cousas haverá tão faceis!...

Isto fôra dito com um sorriso de cortar a orelha sem auxilio de ferro. O doutor abriu a bocca e regougou:

—Oh!

Mas este oh foi surdo como um rugido intestinal.

Filippe cruzou os braços, e disse:

—No que fica?

O provedor refez-se de animo, e respondeu:{203}

—Com que então v. s.ª vem ameaçar um velho?

—O látego da tyrannia deve ser arrancado das mãos dos velhos como dos novos. Os annos não santificam a prepotencia, senhor doutor. Nada de maximas. Eu não posso demorar-me.

—E v. s.ª é de certo legitimamente casado á face de Deus?

—Veja esta certidão.

João Pedro leu attentamente, e disse:

—Parece-me legal. Como se explica, em tal caso, a guerra que lhe faz o meu nobre amigo Gonçalo Malafaya?

—Não sei, senhor. É um odio injusto: é um pae que diffama sua virtuosa filha.

—Pois bem, sr. Filippe Osorio, eu vou consultar a mesa, e depois lhe darei a resposta.

—Consulte a sua consciencia, e deixe a mesa para mais importantes consultas. Eu quero já d'aqui ir em direitura ao recolhimento. Uma ordem de v. s.ª basta.

Entrou o doutor João Pedro no seu escriptorio; e, mais levado da consciencia que do medo, dado que um pouco de tudo o impellisse á obra meritoria, escreveu a ordem, auctorisando a regente.

Filippe saiu com mudado semblante de affectuosa gratidão, e entrou no portico do recolhimento. Chamou a regente, passou-lhe a ordem pela roda, e esperou impaciente a resposta.

Mandaram-n'o entrar n'uma grade, onde já estavam D. Maria das Dôres e a filha, esperando-o. A esposa{204} enfiou por entre as rêxas os braços, que difficilmente passavam.

—Que mudada estás!—exclamou Filippe.—Que maceração de rosto, minha pobre Maria! O que tens penado n'estes dois mezes!

Era pungente ver chorar aquelle homem, na contemplação da magreza cadaverica de sua mulher!

Nem um riso de contentamento n'aquelle primeiro encontro!

—Falta-me a filhinha!—dizia Filippe—Onde está o nosso anjo, ó Maria! Porque nos privou o céo da nossa filha, que devia n'este momento sorrir-nos a bonança, e accusar estas lagrimas como ingratidão aos beneficios de Deus?

Retirou Maria das Dôres ao anoitecer, e Filippe passeou até altas horas, defronte, e em roda do carcere da esposa.

A fidalga velha, confiada no valimento que tinha com a marqueza de Angêja, senhora que a movera a favor de Filippe Osorio, mandou a Lisboa o seu fiel mordomo a solicitar uma ordem de levantamento de deposito da filha em contravenção das leis. Foi a ordem arrancada de subito ao ministro competente, por engenho da marqueza. Correu com ella o portador; Maria das Dôres nunca se levantou a tão alto na presumpção de sua valia! Mas Gonçalo Malafaya tinha amigos e cabedaes em Lisboa. Horas depois de passada a ordem, fôra revogada, a requerimento do procurador do auctor; e outro emissario vinha ao Porto embargar o effeito da primeira. Copiemos{205} dos apontamentos o facto, presenceado pela educanda a que os devo:

«Logo ao amanhecer vinha Filippe para a grade, e Maria Henriqueta já lá o estava esperando. Por mais que extendessem os braços, era-lhes impossivel apertarem as mãos. Alli almoçavam juntos, e ficavam até ao meio dia. Elle saía, quando as portas se fechavam, e ella ia para a sua cella chorar. Ás duas horas voltava o infeliz, e jantavam. Havia de grade a grade um carrinho com duas roldanas lateraes em que ella lhe passava os pratos.[4]

«Ao anoitecer separavam-se. N'esta mixtura de alegrias e amarguras, viveram algum tempo, até que de Lisboa chegou ordem para ella sair do recolhimento. Já elle a estava esperando com uma sege na portaria; já ella tinha pedido ás mestras para nos darem sueto n'esse dia; despedia-se já de todas. Que formosa ella estava então! Como um instante de felicidade a transfigurara! Vestia de setim branco, e sapato da mesma droga. Nos olhos e no rosto resplandecia-lhe o clarão da alma. Não sei que possa imaginar melhor um anjo! Fomos todos com ella á portaria. Já estava a porta franca, e o marido com os braços abertos para a receber e um sorriso{206} de alegria desvairada nos labios. Eis que todo afadigado entra na portaria um mensageiro do inferno, com uma contra-ordem á regente! O desespero dos dois desgraçados não sei eu palavras que o exprimam! Filippe Osorio rompeu em imprecações. Maria Henriqueta fez-se primeiro escarlate, depois da côr do vestido, marmore na frialdade, e caíu sem sentidos nos braços da regente e da porteira. Choravamos todas; até as mais novas se commoveram áquella scena, cujo alcance mal podiamos compreender. Então é que ella adoeceu perigosamente, e cuidámos que não vencia o ultimo golpe. A mãe era incansavel de amor e de consolações ao lado d'ella. As cartas do marido foram talvez a principal medicina do seu restabelecimento. Passado um mez tornou á grade Maria Henriqueta: parecia desenterrada; e Filippe, que tão galhardo mancebo era, pouco tinha já que o distinguisse de um homem de cincoenta annos.»

Renasceu em toda a força da ira o plano da fuga, maquinada por D. Maria das Dôres. Frequentes vezes se encontrava com Filippe na grade, a fazerem combinações, que concertavam todas n'um arrojo de desespero, cuja responsabilidade a fidalga tomava sobre si.

Vejamo'-lo descripto pela companheira de Maria Henriqueta:

«Um dia de tarde chegou D. Maria das Dôres á grade com o genro, e ahi se demoraram até ás quatro horas. Mandou a fidalga dizer á regente que precisava de ir ao quarto de sua filha. Foi-lhe aberta a porta sem a menor hesitação. Entrou D. Maria das Dôres, e Filippe ficou{207} na portaria, como esperando a sogra. Disse a mãe á filha que precisava de arejar-lhe os vestidos. Começaram a sair taboleiros de riquissimos velludos, setins, e sedas de differentes côres, e debaixo do chale escondeu a fidalga um cofre de joias, em que estavam as da filha, e as suas, que eram muitas e de subido quilate. Afóra isto, passou D. Maria das Dôres para as mãos do genro um outro cofre muito pesado, que continha, segundo disseram, dinheiro em ouro. A regente estava desconfiada, e mais desconfiou, quando a fidalga velha lhe disse: «V. s.ª ha de permittir que minha filha dê um abraço em seu marido.» A regente respondeu: «V. ex.ª não me faça alguma, sr.ª D. Maria das Dôres!...» Tornou a fidalga: «Ha nada mais licito que uma senhora abraçar seu marido?» Disseram-me algumas meninas que a regente cedera ao terror, porque vira nas mãos de Maria Henriqueta, sumidas no chale, luzir o marfim do cabo de um punhal.

«Mandou a regente á porteira que abrisse a porta. Saíu D. Maria das Dôres, e postou-se á porta principal da portaria. Chegou o marido a abraçar a esposa, e tal abraço foi que a levou como arrebatada nos braços, e Eugenia seguiu a ama. Porteira e regente emparveceram a olhar uma para a outra; e a creada, que fôra alumiar, de tal riso se tomou que deixou caír o castiçal.

«Occorreram outras scenas que muito nos alegraram, sobre o geral jubilo de vermos Maria Henriqueta livre de ferros.

«Passados os momentos da estupefacção, quiz a regente{208} ir pessoalmente a casa do provedor contar o succedido.

—Saír eu de oitenta e um annos á rua! exclamava ella.—Que dirá o mundo?—Tinha ella uma creada de dezoito annos, que morria por se ver a passear na rua, e estava contentissima de saír com a ama. Passou acaso um estudante de clerigo, que acudiu ao motim, e mais ainda porque era namoro da porteira, elegante matronaça, que não guardava quanto devia as portas do seu coração. Pensou o estudante que a porteira iria com a regente a casa do provedor, e offereceu-se a acompanha'-las, mas a velhinha, para poupar ás estrellas o escandalo de a verem na atmosphera corrupta do mundo, pediu ao embuçado estudante que fosse elle avisar o provedor, o que elle não fez por commiseração com a fugitiva.»

A curta distancia do recolhimento, estavam tres rijas mulas, e dois creados de cavallo. Maria Henriqueta deu o ultimo abraço em sua mãe, e saltou para as andilhas. Filippe dobrou o joelho beijando a mão da sogra, e cavalgou. Eugenia, a chorar de alegria, nem deu fé de que a encarapitavam os dois creados na terceira cavalgadura. Concertaram-se rapidamente as malas da bagagem, e partiu açodada a cavalgata, caminho de Villa do Conde.

D. Maria das Dôres entrou ovante em sua casa; esperou que o marido recolhesse á meia noite; saíu-lhe ao encontro, com um riso de sarcastica vingança, e disse:{209}

—A regencia não poude vencer o teu ouro; mas uma fraca mulher o venceu. Maria Henriqueta está na companhia de seu marido. Fui eu que lhe abri as portas do carcere, e fiz saír d'alli a pobre victima de tua crueza, que estava sendo tambem um pregão de tua ignominia. Querias que a justiça a infamasse, e eu quero que ella gose os direitos das esposas honradas e virtuosas, porque os tem, e os merece. Diz aos teus amigos de Lisboa, aos canaes de teu dinheiro, que ha um ente que se não corrompe, é uma mãe.

Gonçalo Malafaya caíu prostrado n'um canapé, e bramiu:

—Maldita sejas tu!

—O céo não ouve as vozes do mau amante de Beatriz de Noronha, do mau marido de Maria das Dôres, e do mau pae de Maria Henriqueta! Morre impenitente, homem tres vezes abominavel!{210} {211}

V

Na descripção da desgraça ha engenhos habilissimos. Em pintar a felicidade é grande a penuria de phrases: parece que as linguas são pobres do que é tão pouco e passageiro na humanidade!

Assim é que eu me esquivo a dizer como era a alegria dos fugitivos, com receio de me perder em nevoentas chimeras; ou—di'-lo-hei com quanta sinceridade posso—o descostume de a sentir estragou-me a palheta com cujas tintas, alguma hora, pintei venturas.

Entraram por Hespanha, com destino ao alcaide de Segovia, cujas condolentes cartas Filippe recebera na prisão, e Maria no recolhimento. Da primeira terra de Hespanha escreveram para o amigo, que lhes chamára filhos. Abalaram de Segovia o alcaide e as senhoras a esperarem, em terra muitas leguas distante, os esposos. Em sua casa se hospedaram algumas semanas, e d'alli passaram para a quinta, onde os attraíam saudades do passado, e esperanças de o reviverem mais tranquillo e desassustado.{212}

Encontrou Maria refloridas as flores que plantára, um anno antes. Lá estava a roseira que ella consagrára a sua filha, denominando-a Rosalinda. Ahi orvalharam lagrimas as faces de ambos; mas, seio contra seio, as ancias do coração não podiam ser duradouras.

Queriam-se solitarios os esposos ditosos; porém, seu mesmo infortunio lhes dera uma attrahente celebridade. Concorriam á graciosa vivenda os curiosos de Velha-Castella, e saíam para voltarem amigos dos que outr'ora prenderam corações com os nomes de Luiz e Pedro de Castro. A este proposito, até poemas se escreviam com o chiste das musas castelhanas, e os prelos contaram em commoventes prosas a historia infeliz dos esposos.

Uma noite, caíndo a ponto falar-se na pertinacia boçal do conde de Monção, disse o alcaide o seguinte:

—Traz-me esse nome á memoria um successo, que se deu, depois da vossa ida para Portugal. Fui eu avisado de que dois homens suspeitos tinham chegado a Segovia, e saíam de madrugada a fazer excursões pelos arrabaldes. Mandei-os espionar, e soube que elles estanceavam por estes sitios, indagando dos aldeãos qual terra vós terieis ido habitar. Com esta informação fiz prender os homens. Pedi-lhes os passaportes, e vi que os viandantes eram portuguezes, naturaes de Melgaço, e contractadores de carneiros. Não sei por que instincto, retive-os até me darem abono. Não conheciam ninguem em Segovia; mas deram-se pressa em escrever para Portugal. No entanto, perguntei-lhes o que tinham elles vindo fazer nos arredores d'esta quinta. Responderam{213} que andavam em cata de gado para comprarem. Redobraram as minhas suspeitas. Inquiri que tinham elles com uma familia, que se alojava n'esta quinta. Tartamudearam e confirmaram a certeza de seus máos intentos. Quinze dias depois, recebi ordem do governo madrilense para dar soltura aos presos. Não tinha outro remedio: soltei-os. Escrevi para Madrid, pedindo que se averiguasse na repartição competente quem afiançára aquelles dois presos. Tive em resposta que o ministro recebera directamente uma carta de seu parente, o conde de Monção. De proposito vos occultei este episodio em minhas cartas, cuidando em não vos aggravar as desgraçadas apprehensões. Agora vos digo que isto me fez apprehender muito a mim. Segundo o que Filippe me contou, o aviltado conde, a meu parecer, aprazou a vingança de cobarde. Aquelles homens eram sicarios enviados por elle. Já passou um anno, e naturalmente o conde está esquecido da affronta e da vingança; mas, ainda assim, recommendo-vos toda a cautela, que o mais temivel dos inimigos é aquelle que nos foge. Não me oppuz; porém, não approvo a vossa vinda para logar tão ermo. Antes queria ver-vos na cidade, onde as emboscadas traiçoeiras são menos possiveis, e a minha vigilancia mais apontada.

Filippe Osorio sorriu á prudencia demasiada do alcaide; e Maria Henriqueta estremeceu, e descorou desde que a historia pendeu ao assustador desfecho. Cuidaram damas e cavalheiros em tranquillisa'-la, e, mais que todos, o marido, inventando argumentos falsos a favor{214} de sua segurança. Pediu-lhe a esposa que abandonassem o local, e seguissem sua jornada até aos confins da Hespanha, ou passassem a França ou Italia. Filippe socegou-a com a cedencia á sua vontade, tirando a partido que descançariam mais algum mez entre a sua segunda familia, e velados pela guarda de tantos amigos.

Desde esta noite, eram de instantes os intervallos serenos de Maria Henriqueta. A cada rumor interno ou exterior se alvoroçava; e se ouvia um tiro remoto, não tendo junto de si o marido, soltava um grito, e corria como desatinada a procura'-lo. Então cresciam de fervor os rogos de se afastarem para mais longe; e o marido, que nunca se deixou vergar ao susto, promettia por complacencia abreviar a partida.

As cartas idas de Portugal davam Gonçalo Malafaya a descair rapidamente na formal demencia. D. Maria dizia á filha que se vira obrigada a sair de casa, e estava vivendo com as suas creadas n'um velho palacio de seus paes, com os alimentos, que lhe arbitraram. A razão do divorcio fôra os accessos de furiosa loucura do marido, que, algumas vezes, investira contra ella, armado de um espadim. Passando a miudezas da demencia, dizia que o primo muitas vezes fugia aterrado de uma visão que elle denominava D. Francisco de Athayde, exclamando: Deixa-me, vingador, deixa-me, que Beatriz já me perdoou! N'este estado, dizia a fidalga, o successo da fuga parecia cousa indifferente ao marido; e a julga'-lo, nas horas lucidas, mostrava elle ouvir com dó a vida trabalhosa da filha, e, sem contrariar, a affirmação{215} da legitimidade do casamento. A todos consentia falarem-lhe em Maria Henriqueta, menos á esposa; e contra ella é que mais o acirrava a loucura, a ponto, como disse, de a querer matar.

Esperavam, pois, os Osorios de Mirandella que o infortunio de seu filho e irmão terminasse de todo com a morte de Gonçalo Malafaya.

Um portuense, amigo de Filippe, e seu protector no julgamento, escreveu-lhe para Hespanha. Uma pagina da carta dizia assim:

—Tive occasião de vêr aqui no Porto o conde de Monção, de volta de Lisboa, onde foi procurar uma herdeira rica, e d'onde voltou com a casa mais deteriorada. Falou-se de ti na presença do conde, e elle fez-se roxo. Contaram-se os teus infortunios, e a tua temeridade em arrancar a esposa do convento, e elle mordeu os beiços até espirrarem sangue gothico e suevo. Um dos presentes cavalheiros, sabedor do teu dialogo com elle, porque eu o contei em pleno auditorio, para lhe cravar a garrocha, falou na tua coragem, e de industria derivou o discurso até contar uma historia acontecida entre ti e um dos próceres de Portugal. A historia era exactissimamente a tua com elle. Não tirei os olhos da lorpa faceira do conde, e vi todos os demonios que elle tinha na alma, se tem alma. No estomago juro eu que elle tinha uma legião de espiritos immundos. Palavra não lhe despegou os dentes. Bebeu o calix até ás fezes, e saíu, quando furtivamente poude escapar-se ao imprudente sorriso e ao dos outros. No dia seguinte foi para Monção,{216} d'onde eu sei que elle mandou aqui pessoa de sua confiança averiguar a tua residencia em Hespanha. Eu julgo o conde incapaz de tirar desforra pessoal; vil ia eu jurar que elle a premedita. E, senão, que lhe importa a elle a tua residencia?! Previne-te: confia menos na tua bravura; e veste as armas da prudencia contra os tiros da cobardia insidiosa. Estás em terra onde o sangue salta em espadanas, e ninguem se espanta d'isso. Os assassinos lavam as mãos, quando as lavam, e vão pedir a absolvição aos seus frades. Cautella, meu Filippe. O meu parecer é que vás para Italia, e esperes lá que saia de casa de teu sogro uma tumba, para tu entrares na tua verdadeira paragem dos trabalhos, e dos receios. Só então cuido eu que não chegará a ti o fulgor da tua funesta estrella.

Occultou Filippe esta carta de Maria Henriqueta; mas o que elle mal podia era occultar-lhe a inquietação. Pressurosamente cuidou em retirar-se da quinta, e estabeleceu a sua residencia temporaria em Segovia, com grande aprazimento do alcaide. Queria a presentida esposa que levantassem d'alli a sua barraca de peregrinos, e se avisinhassem da França. Sonhava ella a sua inteira seguridade na Italia; era para lá que a meiga senhora estava sempre impellindo o animo do marido. Tinha elle annuido, quando Maria Henriqueta adoeceu de um movito, procedido dos quotidianos abalos, causados por insignificantes incidentes, que a traziam em permanente sobre-salto.

Reservadamente mostrou Filippe a carta do seu amigo{217} ao alcaide, sem esconder o receio que tal nova, combinada com os precedentes, lhe causava. Providenciou o delicado fidalgo hespanhol as rigorosas vigilancias que a sua amizade e dever lhe impunham. Inuteis foram todas no decurso de dois mezes. Nem uma só pessoa suspeita pernoitou nas estalagens da cidade.

Restaurou-se Maria Henriqueta, e cuidou nos aprestos da jornada; mas metteu-se a rigorosa invernada de 1813, e foi deferida para a seguinte primavera a saida. Além de quê, a assidua espionagem era infructuosa, e as averiguações, destras e insuspeitas do alcaide, deram o conde de Monção no Alem-Tejo tratando de casar-se com uma rica herdeira.

Ao mesmo tempo, o amigo do Porto, dizia o seguinte em resposta a uma carta de Filippe Osorio:

«... Tambem se me vão desvanecendo os receios. O conde passou aqui ha dias com direcção a Estremoz, onde o levam as probabilidades de poder casar com uma opulenta moçoila, cujo bis-avô fazia pucaros do barro da terra, cujo avô foi creado da casa de Bragança em Villa Viçosa, e cujo pae pirateou na Africa, se não mentem as chronicas dos visinhos. Não me parece que caiba odio em coração tão cheio de amor á bis-neta do oleiro. Isto está longe de te dizer que vivas descuidado. Aquella cara do conde é um alçapão do inferno. Lá dentro devem existir

Ferro, veneno, vibora traidora
Cartas da mão de Machivello escriptas,

como diz o Tolentino no soneto.{218}

«Precavém-te sempre, meu Filippe.»

Esta carta achou já banida a desconfiança, e quasi esquecidas as cautelas, afóra as do alcaide, posto que menos solicitas.

Maria, contente das relações que adquirira, e da serenidade do esposo, jámais lhe lembrou o projecto de jornadearem na primavera. Embeberam-se na sua felicidade, e confiaram-se ao seu bom anjo.

No concernente ao estado de Gonçalo, as noticias confirmavam a approximação de sua morte. Acamára por ultimo, e nem já forças tinha para lançar-se fóra do leito.

Maria das Dôres, fiada na inercia do marido, e movida pela compaixão, recolheu á casa conjugal conquistando assim a aura publica, e o bem estar da sua consciencia. Gonçalo acolheu-a com indifferença, e chegou a apertar-lhe a mão, graças aos seraficos esforços de dois franciscanos e um carmelita, que lhe assistiam á doença. Alguma vez, a esposa se aventurou a falar em sua filha na presença dos fradinhos e estes santos varões achavam justo que a menina viesse pedir perdão a seu pae da filial desobediencia. O fidalgo trejeitava negativamente, e os homens evangelicos encolhiam os hombros, e diziam: «Fidalgo, nosso Senhor Jesus Christo perdoou a quem o matou.»

Observava-lhes D. Maria das Dôres que seria mais piedoso, e conforme aos preceitos de Jesus, dizer ao enfermo, que sua filha não praticára crime, comparavel ao dos matadores de Christo, nem a alma do enfermo se{219} salvaria, negando-se a perdoar em desconto dos martyrios, que fizera soffrer a sua filha. Os monges receavam estomagar o fidalgo, e privar os seus conventos da esmola promettida pelo doente.

Na correnteza d'estas lastimaveis miserias da humanidade, as estrellas funestas d'esta familia alumiavam com luz sepulchral a vida dos nossos desditosos de Hespanha.

Já nem o alcaide espreitava que homens pernoitavam ou passeavam em Segovia, quando, a convite de Maria Henriqueta, Filippe Osorio foi passar um dia á quinta dos arrabaldes. A cariciosa esposa tinha sede de solidão com seu marido. Era abril, e queria vêr as Rosas-lindas, o florido monumento de sua filhinha. Vinha-lhe do campo o acre das florestas, e a juvenil Maria, que volvera aos desoito annos, renovado e aquecido o sangue ao calor da felicidade, anceou o campo, as flores, a sombra, os regatos, as paginas de sua vida que em tudo aquillo se liam. Passaram um dia de paraiso terreal. Brincaram como creanças, por entre as murtas e os jasmineiros, e as cilindras. O sol transmontava as serras, quando Maria disse:—Agora, vamos, filho! e agradeçamos a Deus este dia, que foi um dos mais completamente felizes da minha vida.

Filippe sentou-a no selim do cavallo, e beijou-a com o fervor d'aquelle beijo, que lhe dera, n'aquella noite da fugida de Arouca.

Caminharam, conversando. O lacaio seguia-os vagaroso, com discreta distancia.{220}

Recordava Maria os cinco annos de Lisboa, a apparição infernal do conde, as saudades angustiosas de Arouca, as delicias loucas dos seus primeiros mezes de casada, as torturas inexprimiveis do recolhimento, a louca alegria da segunda fuga, o interrogatorio e o desespero em casa do almotacé, a terceira fuga, o delirio com que lhe correu aos braços, as venturas que devia a sua mãe, e os terrores que lhe denegriram a felicidade nos ultimos mezes. Filippe ia com ella ao céo n'estas memorias, e de lá se despenhava no abysmo de outras. Assim lhes voára o tempo, até entrarem n'um carvalhal, que fórma um como anteparo da cidade.

—Este sitio—disse Filippe—tem uma belleza terrivel. Eu gostei sempre muito d'elle; mas nunca passei aqui sem pensar na facilidade com que se póde ser assaltado d'entre estas furnas de arvores.

—Vamos depressa, Filippe, dá de esporas ao cavallo—disse ella vibrando a chibata na anca de ambos os cavallos.

—Assustei-te com as minha apprehensões?—accudiu Filippe—Tolinha, vai devagar, que perdemos esta formosa scena... Olha os rouxinoes como cantam lá em baixo nas margens do rio... São acções de graças Deus. Agradecem comnosco ao Senhor a nossa felicidade!...

Proferidas estas palavras, saíram dois tiros de entre uma moita de arvores. Maria Henriqueta soltou um grito estridulo.

Filippe inclinou o peito sobre o pescoço do cavallo{221} que se ergueu de frente, espavorido pelo estrondo.

—Creio que estou morto!.... disse elle. Maria saltou a terra, deu dois passos para o marido, que fincára os braços no pescoço do cavallo. Extendeu-lhe ella os seus, invocando-o com uma voz que era já um como derradeiro grito. Caíu fulminada a tempo que o cadaver de Filippe resvalava aos braços do lacaio.

Oh! não vos dizia eu, leitores?

Com que vontade eu quebraria a penna, se tenho de tirar d'ella paginas negras da vida dos dois tão dignos, tão abençoados, tão bem quistos da leitora, que amou ou ama, do pae que perdoou, ou tem de perdoar um dia, do mundo que sentenceia ou já sentenceiou paixões, que que exorbitam do estadio commum! Ai! eu antes queria inventar, antes mentir, antes de lançar de mim com asco estes apontamentos.

E os apontamentos dizem com acerba simplicidade:

«Viveram, em Hespanha; mas pouco tempo juntos.

O desgraçado Osorio foi assassinado por um tiro, quando se recolhia de passeio com sua mulher».

Quão pouco sabia dos promenores d'este assassinio a educanda de S. Lazaro! outras informações de mais recordados amigos de Filippe, e papeis que se desfariam nunca lidos na papelleira de um nobre, levaram o meu espirito até á catastrophe sanguinolenta d'esta tragedia.

A catastrophe? Ainda não. A justiça de Deus é uma a justiça do mundo é outra.{222}

{223}

VI

O cadaver de Filippe foi n'uma maca para Segovia. O quasi cadaver de Maria Henriqueta foi transportado em braços.

A viuva não ouviu o dobre dos sinos, nem o psalmear dos clerigos ao levantarem o esquife, nem os responsos na egreja proxima.

Onde estava a alma d'aquella mulher, que não se assignalava nos sentidos externos? Iria acompanhar a do esposo? Ficaria no céo, ou voltaria ao supplicio do corpo?

Quem diria, vendo-a extactica, esgazeados os olhos, ora arrobada, ora risonha, e nunca lagrimosa, quem diria se ella se recordava que tivera um marido, um marido amado, um esteio unico, e para sempre quebrado, na sua vida, alli assassinado ao fechar de um dia que ella dissera o mais completamente feliz da sua vida!

Viram-n'a, ao fim de tres dias, saltar do leito aos braços das senhoras, e exclamar:{224}

—Filippe! Filippe! o seu corpo ao menos, deixem-me ve'-lo uma só vez.

Sabia, pois, que tinha sido morto o seu amado. Agora, se a Providencia lhe não destina alguma missão espantosa, vesti esse cadaver d'uma mortalha, e dae-lhe na campa de seu esposo um logar, dae-lhe as nupcias ditosas do tumulo, piedosas senhoras, que a quereis aviventar com o ardor de vossos beijos e de vossos prantos!

Deixae-a viver, que Deus quer essa vida. Amparae-a nos braços, que ella de per si se erguerá e clamará:

—Estou viva: deixae passar a viuva do assassinado! O sangue que elle derramou, gelou-se em bronze, e pesa-me no coração. Deixae-me e vereis se eu era digna d'elle!

Maria ergueu-se uma noite, e falou de seu marido. As idéas embaralhavam-se desconcertadas; mas eram idéas do passado, do presente e do futuro. Pediu, instantemente, com as mãos erguidas, que a levassem á campa de seu marido.

—Deixem-n'a ir—disse o alcaide—e seja já. Vamos com ella. Quanto mais cedo rebentarem as lagrimas, mais depressa nos voltará a razão da infeliz.

Foi aberta a egreja. Maria ajoelhou sobre a fisga de uma campa, que lhe indicaram. Debruçou-se até collar os labios na lagem. Disse uma palavra, uma só, e nenhuma lagrima verteu.

Palavra tremenda, que o futuro disse depois qual era.

—Mas não chorou!—disseram as consternadas senhoras.{225}

—Ha de chorar—respondeu o pae.

N'essa mesma noite, disse Maria:

—Deixem-me ver a roupa que meu marido vestia quando o mataram.

As senhoras encararam-se indecisas, e o pae murmurou:

—Mostrem-lh'a.

Junto com o casaco de castorina amellada, vinha uma camisa cortada de laivos de sangue. Maria beijou o sangue, e disse:

—É minha: guarda'la-hei.

E enrolou a camisa, e aconchegou-a do seio, sem a menor visagem de demencia.

—Mas não chora!—diziam as meninas, em segredo, a seu pae.

—Se não chora, morre.

No dia seguinte, chegou D. Maria das Dôres, chamada a Segovia por um creado do alcaide, que partira horas depois do assassinio.

A filha deixou-se apertar ao seio arquejante da mãe; viu-a chorar e soluçar; ouviu-lhe as exclamações ora piedosas, ora colericas; tudo viu e ouviu impassivel.

—Iremos ámanhã—disse ella á mãe.

—Se pódes, vamos, minha filha!—respondeu Maria das Dôres, pensando que o afasta'-la d'alli era um passo para salva'-la.

Despediu-se das meninas e do alcaide. A todos, e a cada um disse:

—Até á eternidade!

Entrou n'uma liteira, com sua mãe.{226}

Perguntou-lhe Maria das Dôres que levava ella enrolado debaixo do braço.

—É o sangue de meu marido—respondeu.

Tinha dito o alcaide a D. Maria:

—Excite-lhe as lagrimas, se a quer salvar. Leia-lhe as cartas que um amigo do marido lhe escreveu do Porto. Quer-se um abalo energico, seja qual fôr. Accenda-lhe o furor do odio ao assassino. Para esse eu lhe darei um espectaculo no caminho.

Ao segundo dia de jornada, D. Maria das Dôres ouviu ler as cartas, concludentes para a certeza de ser ordenada a morte pelo conde de Monção.

—Eu já li essas cartas—disse Maria.—Sei tudo.

Entravam na provincia de Valhadolid, quando viram ante si uma escolta de soldados equestres, com dois presos manietados. Parou a escolta n'uma chan, e parou a liteira, embargado o caminho.

Maria via tudo indifferente.

Chegou o alcaide á portinhola da liteira, e disse:

—Sr.ª D. Maria Henriqueta, eu vingo Filippe tanto quanto posso.

Approximou-se do commandante da escolta, e exclamou:

—Póde seguir com os seus soldados. Os presos ficam entregues á minha guarda. Maria olhava e parecia não compreender.

Os cavallarias ladearam a liteira e passaram ávante, dando o passo a soldados de pé, que alinharam em frente da liteira.{227}

—Justiça de Hespanha!—disse o alcaide.—De joelhos, assassinos de Filippe Osorio! Ha-de pesar-vos na consciencia mais o ferro que o ouro do conde de Monção. Depressa, em quanto eu não ponho a tormentos estes infames; depressa, rapazes!

Arderam doze escorvas; o estrondo fez levemente tremer Maria Henriqueta; o vento rijo sacudiu depressa uma nuvem de fumo, e o estertor dos cadaveres passára com o fumo da polvora.

O alcaide avisinhou-se da liteira, e disse com risonho aspecto:

—É incompleta a vingança: mas não está mais em minha mão.

E apertou a de Maria Henriqueta, que respondeu:

—O resto... eu!

Os liteireiros afastaram com o pé os cadaveres do caminho, e o prestito caminhou devagar, esperando que Eugenia recuperasse os sentidos aturdidos pelo incidente.

Ao decimo dia de jornada, chegaram os viajantes ao Porto.

Maria Henriqueta subiu serena as escadas da casa onde nascera. Perguntou por seu pae, e disseram-lhe que estava gravemente enfermo, e sacramentado. Entrou na camara, que já espirava o fetido tábido da morte. Approximou-se do leito, ajoelhou, e disse:

—Venho a tempo de lhe pedir perdão, meu pae.

O velho fez um gesto de indignação.

Maria desenrolou a camisa do marido, e murmurou.{228}

—Em nome d'este sangue lhe peço perdão.

—Sangue!—exclamou o velho.

—Sangue de meu marido, de meu marido assassinado pelo conde. Para nos encontrarmos todos na eternidade, perdoe-me, meu pae. Este sangue era innocente, e pede perdão para o nobre coração que o tinha, e para mim.

Gonçalo quiz sentar-se no leito: esforço vão! Pediu por acenos, que o sentassem. Obedeceram-lhe. Chamou a filha a si, approximou-a do peito, e balbuciou:

—Perdôa-me tu, perdôa-me tu, desgraçada!...

E continuava a querer aperta'-la entre os braços convulsos, quando a face, pendida para o seio, encontrou a cabeça de Maria, e esteve assim instantes. Eram os ultimos. Os braços, ao descaírem, inteiriçaram-se e os dedos recurvaram-se um pouco.

Maria retirou a cabeça humida do sôro que corria dos cantos dos beiços do defunto. Fitou os olhos na face morta de seu pae, e disse:

—Perdôo-lhe, meu Deus! Perdoae-me vós a mim, quando eu fôr á vossa presença!

No dia seguinte, a sociedade illustre do Porto pejava as salas funeraes do palacio de Gonçalo. Ninguem vira Maria Henriqueta. As damas intimas de D. Maria das Dôres poderam apenas saber que a viuva tinha saído á meia noite acompanhada de um lacaio.

Assim fôra; e quizera ella acompanhar-se do lacaio do marido, o fiel creado de vinte annos; mas ninguem dera novas d'elle, desde que entraram no Porto.{229}

D. Maria das Dôres tentou estorvar-lhe o mysterioso designio; mas a filha respondia-lhe:

—Seja piedosa! não me mate! deixe-me, em signal de compaixão das minhas infernaes penas.

Só a violencia podia embargar-lhe a saída. Aconselharam-na á fidalga os familiares e parentes; mas quebrou de animo para tanto.

Maria Henriqueta saíu.

E cinco dias depois anoiteceu-lhe em Lisboa; e no dia seguinte atravessou o Tejo, e foi caminho de Extremoz.

Correm rapidas estas scenas, porque Maria não murmurava mais palavras que as urgentes para o cumprimento de suas ordens ao creado. Os dias eram os mesmos; brida solta em quanto os cavallos podiam; novos cavallos quando caíam de fadiga os outros. Os viandantes que a encontravam entre nuvens de pó, diziam: «Que extravagante mulher! É alguma fidalga, que não sabe como hade consumir o vigor dos annos, espicaçados pela riqueza!»

Outros achavam-lhe um bello rosto alumiado por sinistra auréola, e paravam a comtempla'-la nos curtos intervallos em que pousavam nas estalagens, ou alugavam cavallos nas grandes povoações. Em algumas estalagens, os passageiros curiosos, ao romper do dia, perguntavam ao lacaio: «Que tem sua ama, que soluçou e gemeu no quarto toda a noite?»

A duas leguas áquem de Extremoz, apeou Maria Henriqueta, a esperar que anoitecesse para entrar na cidade.{230}

Ao caír da tarde, entraram na estalagem uns homens vindos da feira de Extremoz, e contaram ao estalajadeiro o seguinte:

«Seriam duas horas da tarde quando saía de se receber n'uma egreja um sr. conde com uma menina, que lá diziam ser a mais rica da provincia. Estava muito povo no adro, e muito fidalgo, que já não cabia na egreja. Saíram os casados já recebidos, e o noivo vinha que parecia um rei, e a noiva era mesmo um palmito, com tantos brilhantes como as estrellas do céo. E vae n'isto, quando o conde ia a dar a mão á noiva para entrar no coche, um homem que eu não cheguei a ver, mas que me disseram que era já avelhado, chega ao pé do conde cara a cara, diz-lhe não sei que, e enterra-lhe tres vezes no peito uma faca!»

Maria Henriqueta expediu um grito que chamou a attenção de todos, para o repartimento do tabique, além do qual estava a saleta, que lhe deram. Movera-se o estalajadeiro a saber o que tinha a fidalga, quando ella abriu a porta, e perguntou:

—E ouviram dizer quem fosse o homem que matou o conde?

—Ninguem lá soube dizer quem era, fidalga!

—Prenderam-no?

—Ora! isso foi como o senhor sol. Lá ficou na cadeia. Eu bem quiz ver-lhe os focinhos; mas era tanto o povo, que ninguem lhe chegava á beira. Uns diziam que era mandado por outro que queria casar com a menina; outros contavam lá a cousa como queriam; o caso é que{231} ao certo ninguem sabe dizer quem é. Ámanhã é que pelas perguntas se ha de saber.

Não se deteve Maria Henriqueta. Chegou a Extremoz, e viu no primeiro palacete as portas cobertas de crepe com franja de prata. Sem perguntar, soube que d'alli havia de sair o cadaver do conde de Monção.

Apeou-se na estalagem, e pediu guia para a cadeia. Como a julgassem curiosa de conhecer o assassino do conde, disseram-lhe que elle estava a perguntas em casa do juiz de fóra. Foi Maria a casa do juiz de fóra, e conseguiu entrar até ao salão de espera. Era prohibido o accesso ao gabinete do ministro, onde estava o interrogado.

Esperou que elle saísse, viu-o, e conheceu o creado de Filippe Osorio, o seu amigo de nove annos. Viu-a tambem elle, e parou, abriu ainda a bocca para exclamar; mas logo viu que a fidalga tinha sobre o nariz o dedo, em gesto de silencio.

Passou o preso, e Maria Henriqueta, escutando os rumores, que vinham do gabinete, ouviu dizer que o assassino do conde confessára quem era, e a causa por que praticára o homicidio, mostrando suprema coragem para morrer, vingado o amo, que ás ordens do conde fôra assassinado.

Decorridos dois dias, Maria Henriqueta vestiu uma velha roupa, alinhavada ao uso do Minho, e pediu ao carcereiro licença para falar com o preso, que era seu irmão. Foi-lhe concedida, como cousa usual. O preso, ao ve'-la, lançou-se-lhe a chorar aos pés, e disse:{232}

—Perdôe-me v. ex.ª...

Maria susteve-o, porque o carcereiro estava ainda perto, e, baixando a voz, disse:

—Entrei aqui como tua irmã, fala baixo... De que me pedes perdão?

—Tirei-lhe a vingança que era de v. ex.ª... mas não pude mais com a minha paixão. Eu adivinhava que a fidalga vinha; e a minha vontade era espera'-la e guia'-la na sua vingança; mas n'aquelle momento em que o maldito saía da egreja, não pude ter mão em mim; cheguei-me ao pé d'elle, e disse-lhe: «Sou o lacaio do sr. Filippe Osorio» e matei-o a facadas. Estou contente, palavra de fiel amigo! Agora, que me enforquem quando tiverem occasião, que eu cá fiz trinta annos á justa ha mais de vinte. Não podia empregar melhor a vida!

—Não has-de ser enforcado, João—disse Maria.

Hei-de salvar-te; irás d'aqui para Hespanha.

—Salvar-me?! Deixe-se d'isso, fidalga; não vale a pena andar a minha ama n'esses arranjos, sem geito nem saída. Vá v. ex.ª para sua casa, e deixe-me cá com a minha consciencia, que estamos de boas avenças, eu e mais ella, assim me Deus salve a minha alma.

—Cala-te, e obedece-me, João. Vê em mim teu amo. Vêr-me-has mais vezes.

Maria voltou ao dia seguinte, e ao outro. O creado que a seguira, já tinha voltado ao Porto, com uma carta a D. Maria das Dôres. Resava assim o periodo final:

 

«Mande-me, pois, quanto possa, quanto v. ex.ª daria{233} para o resgate de sua filha. É a minha vida que salva da forca. As suas joias valiam mil cruzados: dê-m'as, que eu não quero mais nada da herança de meus paes, senão uma mortalha, e um tumulo para os ossos de meu marido e para os meus.»

 

Á quarta visita que Maria Henriqueta fez ao preso, deteve-se a falar com o carcereiro. Era um homem pobrissimo, bondoso, dado com os presos, que o sustentavam. N'um relance da conversação, Maria assumiu o tom natural de senhora, e disse-lhe:

—Dê-me o preso, que matou o conde, e eu dou-lhe por elle quinze mil cruzados. V. mercê recebe os quinze mil cruzados, foge para Hespanha com o preso, e vae viver feliz e na abundancia onde quizer viver fóra de Portugal. Repare que não é a irmã do preso que lhe fala, é uma mulher que lhe dá, passados alguns dias, quinze mil cruzados.

O carcereiro mediu-a de alto a baixo, e murmurou:

—Isso é mangação? Eu não sei com quem falo.

—Que lhe importa saber com quem fala? Resolva-se n'este momento. Aceite a independencia onde a quizer gosar. Que responde?

—Nós falaremos, senhora; mas se me prendem...

—Siga o preso, que elle vae recommendado a pessoa de Hespanha, que dará a ambos completa segurança, e passagem para o exercito francez, se a quizerem.

O carcereiro annuiu, sem grandes oscillações de consciencia. Esperava Maria a resposta de sua mãe com{234} anciedade. Ao fim de sete dias chegou o mordomo, a quem D. Maria das Dôres confiára dinheiro excedente ao valor das joias.

O carcereiro foi chamado á sua presença, e viu o dinheiro.

—Traga por aqui o preso esta noite. Venham de roupas mudadas para não serem conhecidos. Aqui recebe vocemecê o dinheiro, e elle uma carta. Depois, sigam o caminho mais seguro que tiverem.

—Eu sei os atalhos aos palmos até á fronteira—disse o carcereiro.

Ás onze horas da noite d'esse dia, apresentou-se na prisão o carcereiro, dizendo que o juiz de fóra mandava remover da prisão commum o preso matador do conde, e mette'-lo em segredo. Os companheiros lastimaram o destino do infeliz.

Dado este passo, o creado de Filippe Osorio vestiu, na residencia do carcereiro, a roupa que este lhe deu, e passou por deante das sentinellas, que o julgaram amigo ou familiar do carcereiro.

Maria Henriqueta esperava-os no seu quarto da estalagem. Recebeu o creado entre os braços, que se não pejaram de estreitar ao coração o vingador de seu marido. Deu ao homem vendido a quantia estipulada. Deu basto dinheiro ao amigo, e uma carta para o alcaide de Segovia. O servo beijou-lhe as mãos, banhou-lh'as de lagrimas, e partiram.

—Não tenho mais que fazer aqui—disse Maria Henriqueta.{235}

E, n'essa mesma hora, saíram para Lisboa, e seguiram viagem para o Porto.

O sangue da infeliz tinha estuado, arrefecido nas veias. Apagada a flamma da vingança, um leve sopro lhe levaria o espirito vital. No caminho, succumbira muitas vezes ao cançaço, e fizera a jornada de liteira.

Entrou em casa de sua mãe, e disse:

—Agora venho pedir a mortalha.

Rodearam-na as consolações frivolas, e o maravilhoso da vingança que lhe attribuiam os já sabidos na morte tragica do conde.

—O creado fiel—dizia ella á mãe—não me deixou cumprir a promessa que fiz sobre a sepultura de meu marido. VINGAR-TE-HEI, disse eu; mas eram tantos a ama'-lo, que me roubaram a gloria de ver o sangue do algoz! Agora, Deus que me julgue!{236}

{237}

CONCLUSÃO

UMA CARTA

Fiz quanto pude em serviço do seu romance, e obtive o essencial da sua incumbencia, posto que o esquecimento de pessoas desgraçadas é uma das muitas corcundas do aleijado genero humano, se não é antes providencial o esquecimento para que cada homem, cada infeliz, digo, cuide egoistamente de si.

Passo sem mais preambulos, a dar-lhe conta do meu encargo.

Maria Henriqueta Osorio da Fonseca viveu cinco mezes em companhia de D. Maria das Dôres. Disse-me alguem que ella nunca saía do seu quarto, nem recebera n'elle pessoas, senão sua mãe e a ama, que a creára. N'este espaço de cinco mezes, quizera ella chamar ao Porto os ossos de seu marido; porém, o alcaide respondeu que as carnes vestiam ainda os ossos. Não alcancei a rasão por que Maria Henriqueta, no fim d'aquelle{238} tempo, se recolheu a Arouca e ao quarto onde residia, quando Filippe Osorio a foi buscar. Soube que ella, emquanto as forças a deixaram, ia todos os dias ao muro, onde ficava a olhar largo tempo para o galho da arvore a que subira Filippe.

A final faleceram-lhe as forças para estas saidas, e pouco tempo desejou te'-las, porque morreu, dois mezes depois da sua entrada no mosteiro. Jaz enterrada na claustra de Arouca, sem epitaphio, nem data do nascimento ou morte.

D. Maria das Dôres viveu ainda doze annos, se não contente, com apparencias de resignada. Para o fim da vida foi muito devota e esmoler. Jaz no seu jazigo, em uma capellinha da cathedral.

Eugenia morreu em Arouca nos braços de Maria Henriqueta, a quem estava decretado que todos os golpes lhe acertassem no coração já moribundo.

O vingador de Filippe Osorio, com o carcereiro, chegaram sãos e salvos a Segovia; apresentaram-se ao alcaide com a carta de D. Maria Henriqueta, e receberam passaportes até encontrarem o exercito francez, que abandonava as praças hespanholas. O ex-carcereiro lá se estabeleceu por França com os seus quinze mil cruzados, e póde ser que deixasse prole abastada. João, o lacaio, alistou-se no exercito, negociou no commissariado, e appareceu em 1852 no Porto, onde ninguem o conheceu. Como achasse morta sua ama, foi a Segovia, e achou tambem morto o alcaide. Tornou para França, e não chegaram ao meu conhecimento outras memorias d'elle.{239}

Aqui tem o mais que pude esquadrinhar, depois das informações que lhe dei. De umas e outras faça um uso conveniente, conveniente, digo, desejando eu que o seu romance tenda a escarmentar, e avisar.

Reflexionando eu muitas vezes na vida dos desgraçados personagens d'esta esquecida historia, tenho formado um juizo mal seguro ácerca da moralidade d'ella; differentes illações me combatem; mas uma ha que as outras não derribam, e é: que um pae não deve ser o supremo arbitro do coração de sua filha. Illustra'-la, guia'-la, é uma cousa; arrasta'-la pelos cabellos d'um supposto abysmo para despenha'-la n'um abysmo certo, é outra cousa.

Além d'isto reconheci a mão da Providencia carregando sobre Gonçalo Malafaya, que fizera da obediencia filial um pretexto para cobrir sua ambição de haveres. Aquelles vinculos de Freijoim e Aguas-Santas foram a causa efficiente da morte de Beatriz de Noronha, da demencia de D. Francisco de Athayde, e das mil desgraças consecutivas. Não é de desprezar este aspecto de moralidade que offerece o seu romance.

Desculpe os conselhos do seu velho amigo, se os tem n'essa conta: eu quiz apenas dizer-lhe em pouco o muito que tenho pensado nos desastres de uma infeliz familia, em cuja casa tomei chá, quando era menino. Que «FUNESTAS ESTRELLAS

 

FIM

{240}

 

[1] A sr. D. Ermelinda Pinto de Magalhães, filha do dr. João Pedro Gomes de Abreu, então provedor da Misericordia e fiscal do recolhimento de S. Lazaro.

[2] O já citado vice-provedor da Misericordia.

[3] Póde ser que ainda vivam; e a ellas ou a quem as conheça chegue a reminiscencia ou a noticia d'este honroso episodio de sua mocidade.

[4] Confessa o auctor que é dissaborida cousa, em romance, duas pessoas, que se amam, comerem, ás suas horas, como o restante da humanidade. Abjuro os preceitos da arte em reverencia á verdade. Aqui o auctor escreve historia e não o romance.






End of Project Gutenberg's Estrellas Funestas, by Camilo Castelo Branco

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ESTRELLAS FUNESTAS ***

***** This file should be named 31694-h.htm or 31694-h.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        https://www.gutenberg.org/3/1/6/9/31694/

Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
produced from scanned images of public domain material
from the Google Print project.)


Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
https://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.