The Project Gutenberg EBook of Fanny: estudo, by Ernest Feydeau

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: Fanny: estudo

Author: Ernest Feydeau

Translator: Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco

Release Date: December 1, 2009 [EBook #30571]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FANNY: ESTUDO ***




Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
of public domain material from Google Book Search)






 

Notas de transcrição:

No texto impresso o tradutor, ou o impressor, não colocaram as marcas dos capítulos XXXIII e XLIII. Esta tradução foi comparada com o texto original, em francês (Paris, 1859), e as marcas de capítulo colocadas em conformidade com a intenção do autor.

Foram encontrados e corrigidos alguns erros tipográficos evidentes.

 

OBRAS
DE
CAMILLO CASTELLO BRANCO
——
EDIÇÃO PARA BIBLIOPHILOS
——
XVI

FANNY

 

 

 

 

 

VOLUMES PUBLICADOS

I—Coisas espantosas.

II—As tres irmans.

III—A engeitada.

IV—Doze casamentos felizes.

V—O esqueleto.

VI—O bem e o mal.

VII—O senhor do Paço de Ninães.

VIII—Anathema.

IX—A mulher fatal.

X—Cavar em ruinas.

XI, XII—Correspondencia epistolar.

XIII—Divindade de Jesus.

XIV—A doida do Candal.

XV—Duas horas de leitura.

XVI—Fanny.

 

 

FANNY

ESTUDO

POR

ERNESTO FEYDEAU

ROMANCE

TRASLADADO PARA PORTUGUEZ, DA DECIMA OITAVA EDIÇÃO

POR

CAMILLO CASTELLO BRANCO

 

Aquelle, que cavar um fosso, cahirá n'elle; aquelle, que derruir uma muralha, será assalteado por uma serpente.

ECCLESIASTES.

 

 

TERCEIRA EDIÇÃO

 

 

LISBOA
PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
LIVRARIA EDITORA
Rua Augusta, 50, 52 e 54
1903

 

 

 

 


Officinas typographica e de encadernação, movidas a vapor
Rua dos Correeiros, 70 e 72, 1.º
LISBOA
{5}

 

I

A caza está situada de esguêlha, sobre um comoro de areia, á orla da praia, olhando de soslaio o oceano, como desconfiada d'elle. É uma casa baixa, de pavimento plano, com um recinto ao rez do chão, um portal, seis janellas, e uma chaminé de gêsso, meio esburacada, no cume do telhado.

Á primeira vez que de longe a vi, caminhando eu atravez de desertos cabedellos, tinha ella um tão triste aspecto, que eu senti serrar-se-me o coração. Estava inscripto o desamparo nas largas fendas que desconjunctavam as paredes, e nas rachas profundas das telhas desmantelladas. Gemia a porta a cada bulcão do vento que a embatia contra o gonzo unico. Das montanhas aquosas do oceano erguia-se, como um sudario, a nebrina que a envolvia.

Fazia frio. Uma briza cortante sacudia, silvando o dorso das vagas, marulhando-as, revolvendo-as, e espedaçando-as. Rolos de areia, de mistura com entulho, limos e cardos, refluiam até á testada da{6} porta. Do outro lado, á maneira d'uma nodoa verde-escura, crescia a herva, que invadia o antigo jardim.

Uma pobre arvore, vergada sobre a parede, do lado de terra, escassamente sustentava a ramagem que a ventania furiosa atormentava. Junto á raiz, conservava apenas alguns restos de folhas dessecadas. Com lamentavel aspecto, se erguia ella, dentre os sacões do vento, mas a goteira de chumbo, pendida da cornija, e açoitada pelas refegas oppostas, rossando-lhe nas grimpas, desfazia-lh'as a pedaços.

Eu, ao querer desterrar-me da sociedade, lembrei-me d'esta abegoaria, que meu pae me herdára, e era o restante d'um casal, já desbaratado. Vim alli procurar o silencio e a solidão. Mas não reparei o solar da porta, nem fiz cultivar o jardim. Deixei as fendas do tecto, pelas quaes se coava a chuva; deixei as fendas nas paredes, por onde irrompia o asperrimo furacão das noites do outono. Não chumbei o gonzo do portal. Não levantei a goteira de chumbo. Não me amiserei da velha arvore que se estorcia como um crucificado contra o muro, por que a sorte não se amiserára de mim.

Installei-me na salla unica sem alterar nada da sordida mobilia. Um banco de pau foi a minha cadeira; um monte de cisco, revessado pelo mar, foi o meu leito. Nunca na chaminé se accendeu lume. Nutri-me do pão negro e duro dos marujos. Bebi agua empoçada que me dava a cisterna.

E desde o dia que entrei ahi até ao dia em que isto escrevo, nunca mais sahi da casa triste. Prostrado{7} sobre a folhagem dura, sentado no banco estreito, com os joelhos justa-postos, os braços pendidos, as mãos inclavinhadas, a face descaida, deixei correr os dias indifferentemente. Como os bois corpulentos, que eu via, na minha infancia, ajoelhados entre as hervagens dezertas, eu ruminava o pasto amargoso das minhas remeniscencias.

Com tudo, algumas vezes, com o passo vacillante dos ébrios, transpunha eu o limiar da porta, e errava lentamente, e cambaleando, em roda da minha habitação maldita. Á luz gélida e palida das estrellas de novembro, contemplava-a eu, comparando-a a tumulo abandonado, que apodrece debaixo das hervas, e espantava-me sempre de a vêr em pé, gemebunda, sob os açoites do vento que a verberavam.

Nunca, porém, me alonguei d'ella. Fóra d'ahi quem poderia attrahir-me? O oceano, d'um lado, desdobrava suas ondas enfurecidas com clamor monotono e afflictivo; do outro, o areal, mosqueado de manchas verdes, alongava-se a perder de vista; por cima, rolavam as nuvens pesadas e silenciosas. A minha casa era a unica, que recortava o horisonte carrancudo com seu triste perfil; e o promontorio de rochas pardacentas, ante mim, alongava sempre no flanco do mar o seu grande braço minacissimo.{8}

 

II

Se voluntariamente me exilei n'esta horrida solidão, é por que, por desgraça minha, amei, e amo ainda. Não cuideis, porém, que algum terrivel successo me distanciou, a meu pezar, da mulher que amo. Prouvera a Deus!... Poderia ainda abençoal-a!

Desde muito que eu a amava sem ousar dizer-lh'o. Separavam-nos tantos estorvos, que o combatel-os me atemorisava. Tinha eu então vinte e quatro annos, de mais a mais! Eu corava quando nossos olhos se encontravam. Diante d'ella, tremia, commovido pelo extasis. Comprehendeu por fim que eu a amava, e serenamente, como quem se arremeça a transpôr uma barreira, ella mesma, com sua mão gentil, removeu todos os obstaculos.

Oh! era por isso mesmo, sobre tudo, que a eu adorava. E, depois, tão meiga e linda! Aos trinta e cinco annos, conservava toda a frescura e jovialidade da meninice, e a estes encantos alliava um não sei que de serêno que as mulheres adquirem na experiencia e costumes da sociabilidade.

Era alta, elegante, e de leve delgada nas espaduas, breve a cintura, os encontros modestos; e o pizar mesurado denotava na sua firmeza uma alma activa em agil corpo. Por costume, deixava cair os{9} braços de rainha, e nus os ajuntava cruzando as mãos, quando estava em pé: então, as grandes dobras do seu vestido de veludo-granada, caíam-lhe verticaes sobre os pés arqueados, e a cauda firmava-se no chão; e, quando caminhava a passos solemnes, erguia um pouco a formosa cabeça, radiosa sobre colo de cysne, suavemente inclinado.

Sentada, gostava de encostar a face á mão direita, repousando o braço esquerdo sobre o setim brilhante da cadeira que seus dedos afilados como franjas de marfim, rossavam de leve. Tinha cabellos loiros e lustrosos, que desciam em espiraes ao longo das fontes, das faces pallidas, e em redor do colo. Fronte pequena, nariz d'uma exquisita e suave belleza, a barba liza, tudo em harmonia com as sobrancelhas arqueadas, e os labios finos e justa-postos. Os olhos azues, em fim, d'um azul sombrio e meigo, e amplas pupilas negras, languidamente envoltas em palpebras salientes franzidas de cilios espessos, tinham uma expressão de ternura, de candidez, de spasmo, de pureza que me irritava e endoudecia!

Amei-a perdidamente, e assim a amo ainda. E ella... amava-me como sabia amar, com interior reserva, calculadamente. A naturalidade do seu ar acanhava-me. Ainda quando me apertava em seus braços com transporte, parece que me distanciava de si. As rainhas e imperatrizes devem amar assim os seus amantes. Foi por isso que eu, desde o principio, soffri, e vim até este extremo em que me vêdes.

Como eu quizera passar com ella os instantes todos{10} da minha vida, procurava todas as occasiões de encontral-a. Não podia contentar-me com as duas horas que ella me dava de cada semana. Eram tantos os seus encargos domesticos! E eu imprudentemente a perseguia por toda a parte, ficando muitas vezes horas inteiras, com o rosto ao vento e os pés no gêlo, só para vêl-a, passar, graciosamente encapuzada no capuz de sêda côr de rosa, atravez do vidro de sua rapida carruagem. Todas as noites, com o coração angustiado, errava eu, por entre os nevoeiros, debaixo de suas janellas luminosas, ou, rebuçado e confundido com a gentalha, lhe expiava a saida do peristylo do theatro dos italianos; ou, encostado á couceira de uma porta, a esperava longo tempo para vêl-a entrar no baile, com os cabellos enlaçados de flôres, as espadoas nuas até aos seios, e então observa se o «corpinho» de setim branco tremia sobre a pressão anceiada de seu peito, quando me via. Custava-me a não me ajoelhar aos pés d'ella, quando a cortejava respeitosamente.

Ahi, no baile, n'esse ambiente pesado e saturado de acres perfumes, sob os raios deslumbrantes que irradiavam como flechas do coração dos lustres, eu a contemplava movendo-se graciosamente. Seguia-a com os olhos, encostada ao braço d'um ancião cravejado de medalhas, que a denominava affectuosamente pelo seu pronome. Distinguia-se entre todas, quando, de fronte soberana, e pisar magestoso, circulava por entre os grupos. Contemplava-a ainda, quando meio recostada ao espaldar d'uma cadeira ampla, cortez sem frieza, acolhia os preitos dos mancebos graves; ao passo que, unida ao hombro{11} d'um walsador infatigavel, immovel a cabeça e o tronco, redemoinhava em ondas de gaze e rendas, aos accordes melodiosos das flautas e violinos. Coruscavam-lhe então os olhos como estrellas, sob as flôres que se desinastravam das espiraes dos cabellos. Desjunctavam-se os labios para se verem as perolas dos dentes. Purpureavam-se-lhe, como ao contacto dos meus labios, as faces pallidas, e as alvas espadoas.

E a cada rodopio, a ponta do pequenissimo pé, mostrava-se á orla do vestido que a rapidez do movimento fazia recuar. Mas nem as seducções das homenagens, nem as excitações da walsa, nem a minha mesma presença, conseguiram excital-a! Com semblante alegre tudo acolhia com tranquilidade egual de aspecto. Isto, mais que as sollicitações do olhar, turvava e empallidecia aquelles, cujos olhos encontravam os d'ella. Com tudo, nunca lhe surprehendi essas maneiras meio-zombeteiras e seductoras que são a falsa linguagem da lucta de um coração abalado com um espirito indeciso; maneiras que desfarçam e colorem as concessões, e irritam a esperança sem desanimal-a.

Mas como é que a presença do seu amante a não perturbava nunca? Bem podia eu fital-a até cegar na fixidez do olhar, que ella parecia não me vêr nunca.

Era mulher até ás pontas dos cabellos!{12}

 

III

Chegava emfim o dia suspirado! Erguia-me de madrugada, e todo me dava ao infantil prazer de arrumar eu mesmo o meu quarto. Decorava-o de novas flôres; baixava os transparentes de brocatol côr de rosa, enramalhados de flôres, a fim de quebrar com suavidade o brilho da luz, que os coloria magicamente. Refegava artisticamente os cortinados de cassa e alizava com as mãos o tapete de cadarço do meu leito. Regulava o relogio, cujo pendulo tão moroso então me parecia. Sobre um bofete de páo das ilhas, dispunha em bandeijas chinezas, dôce de fructa, pastelaria, e em roda calices de Bohemia, e alguns frascos empoeirados de Marsalla. Mandava o creado passear até á noite, e ficava eu senhor absoluto do meu elegante recinto. Ahi todo me agitava livre como a ave entre ramagem dos bosques desertos, arredondando e brunindo com o peito inquieto o dôce ninho dos seus amores.

Que cuidados me não dava o prevenir os menores desejos da mulher que eu estremecia! com minhas mãos pregava os alfinetes no pregador de veludo. Tirava do estojo de marroquim escarlate o pente de dentes escamosos que ella usava para alisar os cabellos descompostos pela pressão de meus{13} dedos tremulos. Atiçava o dôce fogo que se avermelhava entre as cinzas. Aproximava do fogão a cadeira d'ella; trazia do divan a almofada em que ella punha os pés, e eu os joelhos, na attitude dos devotos contemplando seu idolo. E quando estava assim disposto tudo, quando o ponteiro d'ouro, avisinhando-se do numero escolhido, parecia dizer-me: «Vais ouvir soar a hora de teu prazer,» mais inquieto e agitado que nunca, ia eu pé ante pé, da porta á janella, como vae e vem o cão fiel, atormentado pela impaciencia, adivinhando o andar de seu dono.

E eu dizia comigo: «A esta hora, tambem ella lança a furto os olhos ao seu relogio. Sabe que a espero. Agora, deante do espelho, aperta na barba o broche da capa de veludo. Incaracola os cabellos rebeldes sobre a fronte pura. Involve as espadoas no chalé escuro, e aperta-o sobre o peito com o alfinete de camapheu. Veste as luvas, e irrita-se. Sobre os olhos negros accumula as dobras do véo tambem negro. Atravessa as salas desertas. Passa. Roda a chave. Sae. Desce. Corre cozida com as casas. Vou vêl-a!

E depois, mais nada... Oh! que longo é o tempo quando se espera e desespera! Se algum estorvo sobreviesse! uma visita, o capricho d'um filho! Que desgraçado sou! não virá ella? Já se demora!

E, com tudo, era-me tão dôce recebel-a aqui, uma vez mais, neste quarto tão bem disposto para ella! Tão dôce o recebel-a nos braços, no limiar da porta, e arrebatal-a para escondel-a como um thesouro! Tão bom tocar-lhe as mãos, os cabellos,{14} e vêl-a emfim fitar-me com seus olhos lindos, e ouvil-a dizer: «tu» com aquella voz muzical!

 

IV

Chegava ella emfim! Encostado ao alizar da porta entre-aberta, escutava eu o fremito do seu vestido, e o ranger das botinas sobre o tapete da escada. Entrava ella, roixa de frio, offegante, com as pestanas lagrimosas, e, sem erguer o véo, sem dizer palavra, atirava-se-me toda ao peito, cingia-me o pescoço, e, timorata e assustada como um passarinho, applicando o ouvido, escutava, convulsiva, o menor rumor que se fazia na casa ou na rua.

E, quando emfim os mêdos se aquietavam, e que ella se decidia a transpor o limiar, era uma como visão deslumbrante que alagava em ondas de luz a camara fechada. Os menores objectos, com a presença d'ella, eram-me thesouros inestimaveis. Tudo parecia animar-se então, como, nos primeiros dias da primavera, despertam as florestas que dormiam sombrias e taciturnas.

Algumas vezes, comtudo, festivos raios do sol, coando-se pelas juntas dos cortinados, atravessavam o espaço, e quebravam-se ao fundo da alcova, sobre a superficie polida d'um espelho. As flôres das jarras, postas deante das janellas, desfolhavam{15} uma a uma, juncando o tapete das suas frescas petalas. Segredando, de mãos dadas, palavras incoherentes, contemplava-m'o-nos como arrobados, absorvidos n'uma commoção deliciosa e entranhada que nos adestringia docemente o coração, e nos marejava de lagrimas os olhos. Como nosso amor, como nossa alegria, eram infinitas estas expansões; nossos pensamentos, porém, não ultrapassavam as paredes discretas do quarto silencioso. Para nós o mundo todo estava alli.

E como era aquelle devorar-m'o-nos de caricias! Que suave energia a dos braços! que avidez nos beijos! que febril tremor nos gestos em quanto eu lhe disputava em silencio os vestidos descompostos que ella retinha ás mãos ambas, pallida d'um vago susto! Frenetico, de joelhos, cingia-a pela cintura quebradiça, e ella, oscillante entre os meus braços compressores, tomava-me a face entre as suas mãos, affastava-a com meiguice, encarava-me, e voltava o rosto como se meus olhos a aterrassem.

E eu, como esquecido de minha dignidade, arrastava-me aos pés d'ella, beijando-lh'os nus. Oh! se eu morrêra alli, collados os labios áquelles pés infantinos, brancos e rosados, que ella poisava n'um tapete de plumas de cysne, a tiritar entre seus véos como o anjo da inquietação meio involto na plumagem de suas azas!{16}

 

V

Passado o primeiro momento da vertigem, parecia-lhe a ella coisa natural o estar alli, ao tempo que eu a comprimia com ardor feroz. E então, no explendor de sua desordem, desatadas as tranças, nuas as espaduas, nus os braços, frios e viscosos os labios, mais muda, mais seria, mais enleada que eu mesmo, estava tão senhora sua como se estivesse recostada na cadeira de veludo ao pé do fogão de sua casa. Eu não sei o que ella não fizesse com as mais naturaes e dignas maneiras! Nada a surprehendia nem a molestava.

 

VI

De cada vez, tinhamos sempre que trocar um mundo de pensamentos novos. Recontava-m'o-nos fadigas da espera, tristezas da auzencia, aspirações da esperança, e o quanto era consolativo para amantes separados, o pensar incessante um no outro.{17} Fanny sobre tudo se deixava levar desta união espiritual com toda a expansão d'uma alma juvenil. Recebia as confidencias da minha ternura, como efluvios de incenso, que a immergiam n'uma especie de torpor dulcissimo. Com mudos raptos de gratidão, rosadas as faces, palpitantes as azas nazaes, sorrindo no olhar embaciado, maravilhava-se ella da abundancia de minhas palavras, como imagens graciosas que volitassem dos meus labios. Não a fatigava o ouvir-me.—Mais, mais, ó meu Roger!—dizia ella. E, encostando o cotovelo á almofada, inclinada a fronte na mão, requebrado o corpo, os pés a resvalarem, anediando-me a testa e os cabellos, olhava-me com tanta fixidez, como se quizesse esmirilhar os mais subtis lineamentos da minha alma. Entretanto, eu, de joelhos, com as mãos juntas, sorria de prazer como creança amimada, e cuidava que assim era o identificarem-se nossas almas n'um apertar vago e dôce, com estremecimentos voluptuosos.

 

VII

No instante em que ella ia sahir, era então o irromper minha alma em explosões de amor e angustia. E ella, pensativa, fitava nos meus, com ternura, seus olhos azues e lympidos. Tomava-me affectuosamente{18} as mãos, que eu lhe disputava, voltando-me arrufado. Fazia-me graciosamente sermões maternaes. Acariciava-me com bondade, abraçava-me, ia e vinha para abraçar-me ainda.—Tornarei a vêr-te?—exclamava eu com tristeza.—«Cala-te, Roger,»—respondia-me, abafando a voz n'um beijo. Por fim, comprimia-a longo tempo ao coração; e, quantas vezes, ao apartar-m'o-nos assim, sentiamos calidas lagrimas a cahirem nos labios de ambos!

 

VIII

A minha vida ia com ella. Melancolicamente encostado ao peitoril de minha janella, via-a por entre as fisgas das persianas, passar na rua.

Lá ia vagarosa, simples, tranquilla, bella. As duas fimbrias de seu véo fluctuavam-lhe docemente sobre os hombros, acarinhando-lhe de cada lado a face.

A barra do vestido, relevada de folhos de seda, sussurrava com o movimento. Com ambas as mãos ajustadas sobre a cintura, comprimia as dobras da cachemira que a involvia desde a nuca até ao artelho. Nunca se voltava. Encostava-se ao longo das paredes para evitar o embate dos caminheiros. Emfim, chegando ao angulo da rua, desapparecia; e{19} eu atirava-me sobre o leito, escondia nas mãos o rosto, avocando, hallucinado, todas as minhas remeniscencias esparsas para ainda assim me illudir com possuil-a.

 

IX

A primeira vez que ella ahi veio, não se espantou, mas examinava tudo o que a rodeava, e em tudo bulia, com certo acanhamento. Havia lá espadas de combate dispostas em tropheu. Lembra-me que ella reparou n'isso.

Tambem se deteve diante de um retrato de minha mãe, que tinha sido formosissima, e deante da minha escrivaninha, coberta de livros e de cartas. Mas, com discrição cheia de graça, passou, sorrindo, sem tocar nas cartas.

 

X

Eu era feliz! Desprezava quantos não eram eu, porque ella os não amava! De longe e de cima olhava{20} o mundo. De tudo segregado, tudo via d'alto, mas com indifferença, tumido de orgulho. Parecia-me que sobre mim convergiam os perfumes todos da terra e sorrisos do céo. Nos olhares que se encontravam com os meus, chammejavam os fulgores da inveja; e o murmurar confuso das turbas agitadas, rumorejava aos meus ouvidos como acclamações longinquas.

A imagem de Fanny absorvia-me a memoria, e desprendia-se de meus pensamentos todos. Era, a um tempo, mais irritante que um sonho, e mais consoladora que a esperança. Nunca eu antevera seduções tamanhas em humana creatura, tantas delicadezas n'um coração, tanta graça na reserva, tanto pudôr na renuncia de si!

Mescla de enthusiasmo e arrobamento, de illusões e desalentos, de melancolia e criancice, fôra o bastante a conquistar-lhe o amor. Parecia-me, todavia, pouco esmerada em attenções e cuidados. Tão amada, por certo, tinha sido ella! Bella ainda, mais bella do que talvez se cria, augmentava cada uma das suas graças com o esforço timido que punha em evitar a apathia, que presentia de longe, com a vinda dos novos annos.

Dias tinha ella em que era possivel traduzil-a nos olhos, quando cerrava os labios n'uma expressão de meditar mais affectuoso, quando seus cabellos, fluctuando-lhe sobre as fontes emaciadas, em flacidas spiras, as envolviam com uma especie de suave piedade. Contemplava-lhe eu então as mãos candidissimas, e figuravam-se-me duplicadas, para que suas ultimas caricias fossem mais copiosas e maternas.{21} Escutava ancioso os suspiros que lhe sahiam do peito opprimido: tinha-os como protesto surdo do coração que reagia ainda á indifferença, desejando-a acaso como repouso, e expedia a sua mais bella flamma, antes de retrahir-se em si para morrer.

 

XI

Eu era feliz! Mas a desgraça já vinha perto. Até então com a delicadeza mais de incarecer, Fanny poupara-se sempre a fazer, diante de mim, a menor allusão a seu marido. Com uma pouca de bemquerença, conseguira eu phantasial-a livre e minha, sem partilha. Tão pudicamente se me déra ella! Foi como rainha, sem nada mercanciar do que não podia ser vendido.

Um dia, porém—como isto foi, não sei!—ressoou suavemente nos labios d'ella o nome de um filho seu, e, em seguida, não pôde deixar de fallar-me d'elles.

Adorava-os com tão furioso amor, que me abandonaria se me eu não comprazesse em ouvil-a repetir-me mil cousas pueris, tocantes a seus filhos. Por mim fingia-me vivamente interessado n'esses contos, que ella contava como abundancia extraordinaria de coração; eu, porém, escutava-lhe mais a musica das palavras que as idéas. Eu adorava-lhe a{22} voz magica e melodiosa. E, de mais, eu era um tanto cioso de tudo que ella amava.

Fallava-me, pois, de seus filhos. O mais novo soffrêra d'uma epidemia passageira, e eu quasi que odiei essas criancinhas pelo unico delicto de se aconchegarem comigo no ninho de amor do mesmo coração. O que ella então fez forçou-me a reflectir mui amargamente sobre a affeição que uma mãe póde dar a um homem. Esteve sem me vêr seis semanas. Não desamparou esse berço sobre o qual se estorcia o dôce thesouro vivo, formado do proprio sangue do seu coração. Escreveu-me quatro linhas apenas, admoestando-me a soffrer com ella. Homem orgulhoso que pertendes dominar, unico, sobre o coração d'uma mulher! aos menores vagidos de uma creança, vê que lição te dá a natureza!

Á força de pensar n'esta creança, entrei a pensar no marido de Fanny; e, a meu pesar, d'ahi a pouco, já não pensava senão n'elle. Nunca o tinha visto. A mim que se me dava, n'outro tempo, de vêr o homem que lhe dava o braço, para entrar no baile, e discretamente se sumia na multidão logo que um circulo de admiradores a compelliam a isolar-se d'elle?

A ella amava, a ella sómente eu via, por ella vivia... que me importava o marido d'ella?

Restabelecido o menino, Fanny, mais affectuosa e linda, ao primeiro dia que me vio não percebeu que em mim havia um novo homem; adivinhou, porém, que uma preoccupação secreta me alvoroçava, emquanto eu, silencioso, lhe corria a mão sobre o braço nu. De repente, varada por cruelissima suspeita,{23} repulsa-me, ergue-se, e, voz em grita, jura que eu a atraiçoara.

Sorri com doçura a esta louca arguição; e, tomaado-lhe a mão como convite a sentar-se, simplesmente lhe disse que hesitava em pedir-lhe novo favor, com receio de ser indiscreto.

—Que é?—disse ella, affastada ainda, e cravando-me um olhar de surpreza.

Respondi que as seis semanas de solidão me haviam feito reflectir tristemente sobre a nossa imprevidencia; que sem suspeitarmos que incidente algum podésse apartar-nos, nunca nos cohibiramos de nos aproximarmos. Finalmente, com um embaraço que eu não podia dominar, balbuciei:

—Por que não sou eu admittido em tua casa? Bem sabia ella que eu dissimulava a minha idéa, fallando assim: por que, de subito, resplandeceu de sorrisos, e lançando-me ao pescoço ambos os braços com vehemencia, confessou, córando, que, desde o primeiro dia, anciára sempre o vêr-me em sua casa.

—Por que m'o não dizias? repliquei eu, acariciando-a. Respondeu-me, fazendo gesto pueril de amuada, expediente malicioso das pessoas que querem ser adivinhadas. E eu, doido com os projectos da convivencia, communicava-lh'os aos labios por entre beijos... Vêr... amar os filhos d'ella...

Já Fanny redobrava de elegancia o salão mais intimo em que seus amigos eram unicamente recebidos. Que ventura poder, quasi todos os dias, reunir em volta de si, os objectos todos de sua mais viva affeição! D'ora em diante não seria obrigada{24} a tirar o pensamento de seus filhos, para ir em busca da minha imagem atravez do espaço, trazel-a para o meio d'elles, e fazel-a docemente resplandecer n'esse recinto delicioso, decorado por ella só, a seu bel-prazer. Eu de mim terei d'ora avante um maior logar—não em seu coração que não é possivel—mas em sua vida, e tomarei quinhão immediato em todos os seus jubilos, como em todas as suas maguas. Era um bonito sonho!

 

XII

Concordamos em acceitar eu o convite de uma amiga d'ella, que, todas as semanas convidava a jantar.

—Ahi nunca vae muita gente—disse ella—poderás facilmente ligar-te comnosco.

Comnosco!... Era a primeira vez, que, n'uma só palavra, ella associava comsigo innocentemente o marido, sem dar fé da angustia que esta alliança me causava. Querida Fanny! eu sentia-me empallidecer sob uma oppressão indefinivel, e ella purpureava-se de contentamento. Depois d'aquella palavra, terrivel para mim, e sem valor para ella, ergueu-se. Tinham decorrido as duas horas. Separamo-nos. Com ella foi a confiança; comigo ficou a esperança horrivel.{25}

 

XIII

Sim, esperança horrivel! porque eu não sei exprimir o que reluctava em mim de duvida, anceio, e azedume meditando que ia vêl-a emfim sob os olhos de quem lhe governava a vida.

Tudo isto se misturava em meu coração como venenos e contra-venenos, e d'esta abominavel mistura, fumavam vapores d'um travor tal, que eu me sentia na cabeça latejar o cerebro, e os joelhos vergavam sob mim.

Isto nada era, comparado ao que eu devia experimentar n'essa estreitissima meza, onde á claridade dos globos, nenhum conviva poderia esconder os pensamentos que lhe franzissem a fronte. Ao principio, nada vi, e respondi ao acaso ás perguntas que me fizeram. Comia machinalmente. Esforçava-me por ser attencioso e polido; mas denotava mais inquietação que o assassino que se vê em risco de ser descoberto.

Atordoado pelo tinido dos copos, pelo estrepito da baixella, pelo atrito das porcelanas, pelo reverbero das luzes nas tampas brunidas das terrinas, pelo vai-vem dos creados pressurosos que serviam, sem dizer palavra, e se moviam sem rumor d'um passo, como sombras negras de luva branca; e suffocado pela athmosphera calida da sala impregnada de evaporações penetrantes, misturadas com o odor do vinho e o das flôres, eu não olhava Fanny, nem mesmo a escutava. Tornou-se-me insopportavel a par de mim a presença d'ella: era como um peso que me abafava.

E tambem o não encarava a elle, elle, que eu viera procurar, de tão longe, com o desejo e terror{26} de conhecel-o. Inceguecido por visões funebres, eu não podia vêl-o, com quanto elle estivesse defronte de mim.

De repente recobrei a minha lucidez sentindo um pé de mulher rossar o meu, e comprimil-o brandamente. Era ella a prevenir-me da minha preoccupação visivel de mais. Dirigi-lhe um lanço d'olhos agradecido; e, encostando-me ao espaldar da minha cadeira, contemplei detidamente aquelle que mal sabia que possante interesse ingendrára em mim o estudo da sua pessoa.

 

XIV

Era uma especie de touro com face humana. De estatura mediana.

Quando comia, atirava para diante, as espaduas robustas, e a cadeira gemia sob a gravosa flexão dos seus encontros quadrangulares. Eu via-lhe do meu logar, na testa, os arcos carregados das sobrancelhas hirtas de cabellos grossos, e abaixo fulgurava-lhe um olho pardo e luzidio d'aquelle brilho metalico que reluz na pupila impassivel dos carnivoros.

Comia, ás mãos juntas, mãos carnudas e curtas, e levantava os cotovêlos para melhor pezar sobre a faca brilhante, e sobre o cabo do garfo. Entre{27} cada prato respirava largamente, limpava a boca, e bebia a longos sorvos grandes copos de vinho estreme.

Não tinha má cara, nem vulgar. O aspecto era de força. Todo elle denotava pujança extraordinaria de musculos. A superficie das faces e queixo perfeitamente escanhotado, apparentava regidez marmorea, e a fronte rasgada, limpida, cercada de cabellos negros já betados de russas, revelava um espirito de vontade cheio de rectidão e persistencia.

Era affectuoso o sorrir d'elle, e o olhar desmalicioso, porém claro como cristal. Incarava-vos de face, nos olhos, de um modo tal, que vos julgarieis felizes, evitando esse espelho de aço incommodativo á força de franco. O que elle tinha era dar cascalhadas estridorosas, repuchando em sacões os peitoraes acima da cintura apertada, e descompondo para traz a cara vermelhaça. Era grave e sonora a sua voz; o gesto tranquillo, e um pouco sombrio. Tinha bonitos dentes, unhas rosadas, brilhantes e bem feitas; em fim, dominava n'aquelle todo um ar de inteireza e aceio.

Pareceu-me ter quarenta annos.

Primeiro, ao vêl-o, fiquei como humilhado: corri-me de entrar em rivalidade com natureza tão possante. Involuntariamente me confrontei com elle, eu, a par d'elle tão franzino, como o seriam quasi todos os rapazes da minha idade. O que havia em mim de debilidade nervosa, e fineza de raça, e de elegancia, amesquinhava-se em comparação d'aquella riqueza de sangue, pujança de fórmas, e virilidade{28} fria e pacata. Eu era como um sylpho contemplando, assombrado, a estatua d'um gigante. Ao pé d'elle que homem era eu? Forte e gentil expressão de homem era sómente elle, eu não.

E, mais cruel ainda para commigo mesmo, passava depois a comparação de mim para ella. E, vendo-a sentada ao meu lado, dôce e loura como Eva, candida como uma virgem, com aquella cintura de fada, e aquelle colo requebrado em languor, e todo aquelle ar de timidez que lhe impanava a face adoravel como a sombra d'um vapor... vendo-a assim, e tão delicada no pensar, perguntava-me, eu, phrenetico, como é que ella poderá amar tal homem? Violenta associação de duas naturezas que entre si não tinham um ponto só de contacto! Irmanavam-se com a seda e com o ferro!

Oh! Desdemona!—me dizia eu—que Othello escolheste! Mas mal sabia Fanny que furor raivava ao seu lado! Dirigia-me placidamente a palavra, olhando-me com ar de simples, e affastando com sua mão alvissima os louros anneis que lhe volteavam como plumas sobre a fronte. E fallava-lhe a elle, sem turvação nem embaraço... e dizia-lhe: meu amigo, deante de mim.

E elle, com menos embaraço ainda, lhe respondia, todo attenções e deferencia, com ar, porém, de grande superioridade.

O Hercules via n'ella um ser perigrino, mas absurdo: e por isso o que lhe dizia eram bagatellas, com ar amavel e paternal, como os pais as dizem aos filhinhos curiosos.{29}

 

XV

Terminado o jantar, e passados os convivas á sala grande, e sentados em redor das bancas do whist, avisinhei-me lentamente de Fanny que aquecia os pés ao fogão.

Encostei-me ao rebordo da chaminé; e, com palavras de ternura que lhe dizia a meia voz, intrometti coisas frivolas ditas em voz alta. Deste logar via eu as costas dos jogadores inclinados sobre as bancas em que flammejavam as velas, involtas dos seus quebra-luz, e incravadas em magnificos castiçaes de prata; ouvia o ruido dos tentos de madre-perola, e o murmurio dos equivocos que os parceiros se trocavam. Cuidava eu que estariamos assim a seguro de reparos, com alguma astucia, até porque a dona da casa fôra para o fundo da sala dedilhar no teclado do piano. Novo encanto unido a outros tantos era aquelle dos accordes ondeando o ar, a um tempo que as secretas melodias do amor, mais melodiosas ainda, cantavam em nós. Porém, separando-se do grupo dos jogadores junto ao qual até então estivera de pé, o meu rival dirigiu-se a nós com semblante gracioso, e o mais natural possivel, e perguntou-nos em que fallavamos. Com melindrosa urbanidade, que excluia todas as{30} maneiras familiares e nos distanceava um do outro, mas com serena voz e ares cortezes, entrou elle a dirigir a conversação e eu não pude deixar de acompanhal-o.

Por entre as melodias da muzica, e a ternura das vibrações, de que elle não dava fé, fallou-me de caça, theatros, cavallos, que sei eu! não deixando mesmo de entrar no amago dos assumptos banaes que eu imprudentemente escolhêra, mas que o interlocutor me condemnava a repetir, como se elle os julgasse unicos dignos de mim.

Dei-lhe duas ou tres respostas bastante arguciosas, e elle applaudiu-as com os olhos, honrando-me com um gesto de assentimento.

Assim pois que era eu para elle um instrumento assaz futil com cujas cordas brincava rossando-as com as pontas dos dedos. Se elle soubesse que em meu coração havia uma d'aquellas cordas, cujo som horrivel podia restrugir-lhe nos ouvidos, e insurdecêl-o!

Mais tarde, vi-o assentado ao lado d'ella, na sombra que fluctuava em redor do clarão dos castiçaes. Sem me vêr a mim, nem a outrem, nem a ella, apertava-lhe machinalmente a mão, scismando talvez em não sei que. E eu, contemplava aquillo, como o mais estranho e monstruoso dos espectaculos. Em quanto a ella, fixando os olhos nos meus, estava livida como uma estatua de marfim; mas não ousava balbuciar, nem fallar, e consentia.{31}

 

XVI

Desde essa noite, uma só preoccupação me dominou—dissipar do meu cerebro a imagem do que vira. Quiz, á custa de tudo, esquecer aquillo que me humilhava e esmagava o coração. Como eu me castigava do que fizera! Absurda cubiça de conhecer o que ella tão de siso me escondera, e que eu devia ignorar sempre!

—Oh! não—me dizia eu—nunca mais ouvirei fallar deste homem temivel; nunca mais lhe encontrarei os olhos dominantes; nunca os nossos halitos hão-de encontrar-se na atmosphera da mesma sala; nunca mais, deante de mim, ha-de a mão d'elle apertar a tua, ó mulher serena e docil!

Tres dias depois, quando veio a minha casa, não viu ella em mim mudança alguma. A colera, a pouco e pouco, enchera-me de suas fezes a alma; mas dôr era esta que simulava a quietação da paz.

Com apparencias de socegado, sentia-me ferido de morte. Golpeado no coração, conservava o meu aspecto antigo, como aquelles fructos escarlates cuja pele fina e tenra cobre carne que devora um verme invisivel. E assim, de nada suspeitou Fanny. Todavia, como eu lhe fallava d'ella, de mim, de tudo em summa, excepto do que mais a preoccupava,{32} Fanny parecia esperar anciosa. Por ultimo, no extremo da minha contrafeita eloquencia, propellido pelo anceio de vingar-me d'uma dôr nunca experimentada e cuja causa innocente ella era, lhe disse com amargura:

—Tu queres saber o que eu penso de teu marido, e talvez que te dês por venturosa se o juizo que esperas não lhe fôr desfavoravel. Mas, Fanny, tu nunca has-de saber o sentimento que elle me inspira.

Pareceu-me que, ao ouvir-me estas palavras, todo o sangue do coração lhe refluiu á face. Pobre mulher conciliadora! tanta alegria em chamar-me a sua casa, para me vêr mais a miudo, para me unir a todos os entes doces e queridos que lhe decoravam o coração!...

—D'onde vem essa mudança, Roger?—murmurou ella com penoso esforço.

«D'onde vem?!» exclamei eu infurecido... mas vi-lhe então o rosto innundado de lagrimas; e logo, cahindo a seus pés, abraçando-a pelos joelhos, disse-lhe brandamente:

«É que eu sou horrivelmente desgraçado, Fanny!... É porque me devoram ciumes...

Ergueu-se de subito, como estupefacta, sem me repellir. Reteve-me ajoelhado, pesando-me sobre os hombros com as mãos: eu permanecia de joelhos, sem a comprehender. Fitou-me por largo espaço, profundamente, explorando os intimos arcanos de minha alma inquieta. Depois ergueu ligeiramente os hombros; e, baixando-se para me apertar a face ao seio, exclamou:{33}

«Filho, meu pobre e querido filho!»

E desde ahi, não tornou mais a fallar, por si mesma, neste assumpto.

Eu, porém, pensava n'elle incessante e dolorosamente, sem poder abster-me de o recordar. Affagava-me então ella, e reprehendia-me. «Perdes o tempo»—dizia-me, sorrindo-me, e abraçando-me, se me eu detinha muito na exposição das minhas tristezas. E seus braços se me inroscavam no pescoço com ameigadora volupia, com a fascinação dos olhos me violentava a olhal-a, com graciosa e morbida ternura collava aos meus seus labios. Mas tudo em vão. Já se não franziam meus labios para saborear beijos d'amor; agora era o confrangerem-se soluçando gemidos.

 

XVII

Desde este funesto dia comecei a soffrer grandes torturas. A imagem daquelle homem incrustara-se-me na memoria, e, por mais que eu fizesse, não havia dilil-a de lá. Póde ser que aos olhos de toda a gente fosse elle ridiculo, mas aos meus não cuidei que o fosse. Para mim, era sinistro, terrivel, e, cada noite, espavorido, via-o, em sonhos, trucidar carniceiramente o espectro da minha felicidade.

O feliz era elle, que tudo ignorava. No drama{34} começado por transportes de amor, e agora prolongado a travez de anciedades, terrores, desespêros, não representava elle: tão prudentes tinhamos nós sido!

Atroz mudança de papeis! Era eu que tinha ciumes d'elle! O espoliador soffria da posse pela posse. Não lhe restava mesmo o recurso de excitar as suspeitas do espoliado para o fazer aquinhoar das torturas!

E era-me força desconfiar e occupar-me d'elle!

A meu pesar, para evital-o, cumpria-me ser ardiloso como a lebre. Este papel de fugidiço, de temorato, degradava-me ao livel dos covardes. Meu Deus! se eu a não amasse!...

Em comparação dos males que deviam vir, aquelles nada eram. Principiava a caminhar n'uma senda espinhosa, cavada de abysmos, e não sabia que flagellações me urgia supportar antes de chegar ao termo. Desde então, se deante do fogão, no meu quarto silencioso, eu tentava divertir a alma da dôr presente, levando-a ás memorias de amores passados; ou esporeando á redea solta o meu cavallo, arriscava cem vezes a vida para quebrantar o corpo de fadiga, a fim de reverter sobre elle a fadiga de meu cerebro, ou se pedia á orgia o esquecimento, bebendo a grandes tragos o vinho que nunca me valeu uma gota d'agua do Léthes; ou se, n'um só lanço de azar, expunha os meus haveres para soffrer sequer uma sensação diversa daquella que eu execrava; ou, se emfim, envolvido nos cortinados da minha alcova, eu passava as minhas noites inteiras a lastimar-me, invocando os phantasmas dos{35} seres adorados que perdi: nunca, nem no sonho, nem no perigo, nem na embriaguez, nem no jogo, nem ainda na remeniscencia da minha mãe morta, eu pude conseguir estrangular a serpente que me atassalhava o coração. Comigo, a visão fatal sorria aos meus amores juvenis; comigo, cavalgava ella o meu cavallo espantado; zombeteando, molhava ella os labios palidos no meu copo; no copo do jogo fazia ella o tilintar dos dados; comigo, emfim, meditava ella em minha mãe. Á flôr de minhas recordações todas, scenas incantadoras, affectuosas, terriveis, que eu restaurava com a memoria, do fundo de minha alma, surdiam incessantemente outras lembranças, outras imagens que espancavam aquellas.

E não havia remedio senão acolher aquellas abominaveis lembranças; affrontar de rosto com aquellas funestas imagens, porque era a isso violentado; venciam-me, e eu então, encarava-as!

Havia ahi alguma coisa horrida, humilhadora, e angustiadissima.

Só quem ama póde formar idéa vaga de minhas agonias. Era tudo claro e patente: nenhum refugio para a duvida! E eu me reprezentava a mulher amada, linda, elegantemente vestida, meiga, candida, assentada ao angulo do fogão em sua sala, ou á meza, no logar de honra, em face de seu marido, rodeada de amigos, e filhos. Affavel sempre, com attenções delicadas para todos, attenções que são a magica linguagem da graça do coração. E para o dominador mais carinhoso que para os mais! Era-lhe forçoso prevenir suspeitas de homem tão prespicaz:{36} como não seria ella carinhosa? E, a de mais, entre elles existia a communidade de tantas coisas—interesses, filhos, viverem juntos, a toda a hora, alegres ou tristes, sem nunca se apartarem!... E quantas expansões naturaes!... Era elle o leão dominador daquella adoravel existencia; e eu, o lobo temido, e salteador, de olhar ferino, esbaforido, que, de tempo a tempo, a risco de perigos mil, exposto a humilhações degradantes, a uma bala, o roubava nas trevas, em quanto elle dormia, alguns restos do seu quinhão.

Oh! era isto o que me humilhava muito; mas aqui vereis o que me fazia pedaços o coração. Eu não podia suspender o trabalho indefesso de minhas evocações. Completava-as, ruminando minhas dôres, com satanico prazer. Então se mudava a scena, e figurava-se-me Fanny, por noite, só por só com elle, depois da saida dos filhos, na alcova fechada, onde o chá fumegava nas chavenas, ao suave clarão da lampada, ao pé do lume que docemente crepitava nas cinzas quentes. E ella a olhal-o com aquelles mesmos olhos que eu amava tanto! E a conversar com elle, amavel, facil, fallando pouco para lhe deixar o prazer de fallar, submissa como convém á mulher quando é formosa, e o dominador é forte. E não cuideis que eu ficasse n'estas imagens de seductora intimidade.

Não podia. Continuava-as, exaggerava-as... que sei eu!... ajuntava-lhe outras. Era forçoso que assim fosse, assim devia ser. Era tarde, agonisava a chamma no fogão obscuro, a lampada mortiça abafava os seus lampejos no quebra-luz, callavam-se{37} todos os rumores na casa e na rua; o passo sonoro do caminheiro retardado, marcava a hora do repouso e do prazer. De mais, meninos e creados, tudo estava na cama. Estavam elles sosinhos. E eram esposos!...

 

XVIII

Chegado até este ponto, tornava-me pallido. No mais recondito de minha alma, alguma coisa se estorcia e agonisava em convulções desesperadas. Estas imagens, evocadas cada noite, tornavam-me mais desgraçado, que se eu tivesse visto a mulher adorada cuspida em minha presença. Erguia-me, e via as horas; depois, despregava a rir, como doido, ou, involvendo a cabeça nos braços, lançava-me a chorar sobre o leito.

 

XIX

De madrugada emergia do meu pesadelo, mais quebrantado que o ferido d'um tétano.

E se me arrastava á janella, para aspirar um pouco{38} de ar puro, a mesma pergunta me desabrochava nos labios calcinantes como flôr venenosa:

Por que o amou ella n'outro tempo? Que ella o amou, já m'o disse; foi por elle tirada á familia que a não queria ligar a um homem sem posição e sem riqueza. Enriqueceu depois, por que é energico e paciente. Sabe querer. Mas por que o amou ella? E, depois, por que me ama ella hoje a mim? Somos tão differentes um do outro!

Um dia, finalmente, á força de moer n'esta ideia, e joeirar-lhe no espirito os venenos todos, julguei que ia penetrar o proceder de Fanny. Lembrando-me quanto ella era sensivel ás caricias; figurando-me as scenas mais deleitosas do nosso amor, e comparando-me ao marido, invergonhei-me e alguma coisa mais acre que o desgosto, mais amarga que o despreso, mais peçonhenta que o odio, me subiu do coração aos labios.

—Ora ahi está por que ella me ama hoje—me disse eu sacudindo a cabeça. Veio depois auxiliar-me a analyse mais uma vez, mas para ferir-me covardemente com uma nova punhalada.—Ama-me para variar—disse eu amargurado—para satisfazer, um contrario exagerado, um desejo mais sentimental, mais delicado. A não ser para completar o seu ideal... accrescentei eu sem reflectir na crueldade da supposição.

Mas em tal caso—grito eu com terror indisivel—eu não sou para ella mais que metade d'um homem! Encho apenas metade d'um coração! Fui medido. Acharam-me incompleto. Sou escassamente uma addição! Não passo d'um complemento.{39}

 

XX

Algumas vezes fugia de casa como d'um carcere, e ia espairecer minhas interminaveis meditações na multidão que peja os passeios. Achando-me entre pessoas felizes, indifferentes, occupadas; saboreando, a meu pezar, os primeiros effluvios balsamicos da primavera, cessava de julgar-me tão absolutamente miseravel, e classificava de creancice as mais monstruosas hallucinações—É o ciume—dizia—que me torna absurdo. Encontrando a cada passo tantas mulheres bonitas, elegantes, pelo braço de cavalheiros, os quaes com ar de aborrecidos, volteam os olhos em deredor, e escassamente lhes respondem, accrescentava eu:—Quantas mulheres habitam sob as mesmas telhas com seus maridos, sem repararem n'isso! Ao cabo de quatro annos de intimidade, o marido converte-se em amigo, e nem sempre! É de toda a gente, menos de sua mulher...

Mas logo vinham as duvidas a mortificar-me, cada vez mais pungitivas, e eu debalde a repelil-as de meu espirito. Que farte me conhecia eu para saber que não poderia jámais adquirir o espirito de conformidade com o meu seculo que permitte ao amante d'uma mulher cerrar a mão de seu marido,{40} amigo só que seja! Além d'isso, eu não queria cortejar esse dominador, nem ajustar-me aos seus caprichos, nem tornar-me para elle o homem indispensavel. Eu vaticinava—se as suspeitas alguma vez o molestassem—quantas semsaborias me seria preciso fazer, quantas mentiras engenhar, quantos desgostos e aviltamentos supportar para destruil-as. E para aviltamento já bastava! D'aqui avante não passo—protestava eu—já é de mais o lamaçal do meu caminho.

Mais cançado e inquieto que na sahida, voltava para casa. Os sorrisos da primavera faziam-me vontade de chorar. A mornidão da atmosphera ingravecia-me no cerebro os pensamentos. O espectaculo, e sussurro das multidões ao longe, tornavam ainda mais incomportavel o silencio da minha soledade.

 

XXI

Em troca d'estas dôres, que por serem silenciosas, não eram menos crueis, nenhuma consolação eu recebia. Os meus prazeres eram extinctos. A duvida resequira as novas flôres d'elles com seu impuro sopro.

Apenas meus sentidos se atrophiavam, vinha logo a mão adunca da mysantropia cravar-se-me no hombro. A lembrança d'aquelle que, na logica da{41} minha paixão, eu nomeava meu vival, como spectro de suplicio infindo, vinha interpor-se entre mim e ella, com uma atroz ironia, para empeçonhar nossas caricias.

Eu via os traços d'elle nas palavras, nos gestos e modos e costumes da mulher que eu adorava. N'aquelles braços que me apertavam ao coração, estavam os seus moldes. No sangue que ondeava desordenado nas arterias de Fanny, se infiltrára elle. Via-o na fronte pallida, no rosto contemplativo, nos olhos amortecidos, todo n'ella, abraçando-me, com ella, e suspirando nos seus suspiros... Como eu invejava amigos meus abandonados, que se aturdiam juntos, nas bachanaes, ao tilintar do oiro sobre os panos verdes das mesas do jogo, ás francas gargalhadas das mulheres perdidas! E todos os amantes desdenhados, que, de braços abertos e olhar internecedor, perseguem, sonhando, uma sombra altiva! E ainda todos os amantes separados! Nenhum d'elles—dizia eu lastimosamente—soffreu jámais por seu amor infertil, tanto quanto eu soffro por meu amor partilhado. Zombaria atroz da possessão! quando nos não fatigas, deshonras-nos.

 

XXII

Em fim contristava-me o desapreço que, a meu pesar, soffrêra o idolo em minha alma. Até ahi, era{42} um verdadeiro culto o que eu sentia: a realisação de quanto eu sonhara puro e angelico, era ella: affizera-me a vêr em Fanny alguma coisa sacratissima, impossivel de deperecimento ou macula. Agora, via-a voluntariamente cahida do altar em que a minha piedade a erguêra para manchar seus pés no contacto da terra, e confundir-se no vulgo. Era isso o primeiro e mais cruente effeito do ciume, que principia sempre por nos incutir uma horrivel mescla de adoração, odio, furor, e desprezo.

 

XXIII

Comprehendi logo que estava travado para sempre, entre mim e Fanny, um duelo de morte. Todos os meus pensamentos me vinham do fundo do coração inficionados d'uma certa grosseria. Morrêra o respeito em mim. Dominavam-me ideas brutaes de lucta. Esporeava-me o desejo acerbo de castigar rudemente aquelle ente inoffensivo e graciozo que eu amava pela vida! Eu queria invilecêl-o diante de mim ainda mais do que a sua imagem se invilecêra na minha memoria.

Como pôde ella resolver-se a isto!—exclamava eu inraivecido!—Oh! que execravel zombaria é isso de pureza de mulheres! Parece que os beijos são coizas fugitivas, dos quaes nada lhe fica nos labios logo que os enchugam.{43}

Não podia mais. Fanny entrou na partilha das torturas que até então eu guardava comigo só. Os homens não sabem soffrer longo tempo, sem descarregar covardemente o pezo de suas penas, sobre quem elles mais amam.

 

XXIV

Tu sabias que eu era cazada!

Foi a suprema razão que ella unicamente oppoz, com ar timido, aos meus primeiros queixumes, ainda moderados.

Eu respondi:

«Não sabias tambem tu que eu podia ter uma alma dedicada, e não podias prever, sendo minha, que tormentos me deviam cauzar o teu amor?

E depois, perguntei-lhe, sem preambulo, e violentado:

«Como viveis juntos?

Ella corou: estava offendida.

Não devemos fallar d'isso, Roger—respondeu com frieza.

Mas tão desgraçado me viu, que, por commiseração, fallou, violentando os seus mais castos sentimentos. Era redobrar-me o supplicio.

Ella, porém, não me disse tudo. Aguilhoado pela cruel necessidade de conhecer a extensão da minha{44} desgraça, querendo saber, á custa de tudo, onde ella acabava, instei, ferindo-lhe o pudor. Eu estava enfiado e sem ar. Poz-me a mão na bocca. Ficamos silenciosos. Fanny contemplou-me longo tempo. Chorava, e ella tambem. E, por fim, tragando o calix até á derradeira gota, disse-me que ia responder-me.

Eu, chegado a este extremo, com embaraço imprevisto, com uma hesitação que obscurecia as minhas palavras e abafava na copia d'ellas a froixa luz da intenção que eu tinha; com uma turvação doloroza, que augmentava a angustia do coração animozo; illaqueando o pensamento na rede das divagações e periphrases, como se eu quizesse demorar o momento de conhecer o que eu temia saber—interroguei-a ácerca de mil coisas tendentes a velar de mim a existencia intima d'ella. Respondeu-me com simplicidade, tão embaraçada como eu, vencendo, porém, intrepidamente a vergonha deste estranho interrogatorio, com o fim de mitigar-me as dôres, e dar-me um exemplo de desgostos que póde vencer a mulher que ama, quando é desgraçado quem ella ama.

E deu-se então em mim uma successão monstruoza de caricias e golpes; mistura sem nome de balsamos e venenos; associação horrivel de martyrios e glorificações. O facto execravel, cujo desmentido era impraticavel, permanecia em toda a sua plenitude; porém, quantas consolações podiam modificar-lhe o corrosivo e humilhante, todas ellas carinhosamente me prodigalisou, espiando com sobresalto em meu rosto o effeito das palavras confusas{45} mas comprehensiveis, que pronunciava. A uma derradeira pergunta, mais brutal que as outras, que eu de golpe lhe fiz, deu-se n'ella uma soberba explosão de revolta, que me fez cahir a seus pés, pedindo perdão. Eu devia crêl-a. Muito ávante tinha eu ido nas conjecturas do meu ciume. Fanny repartia-se; mas não pensava sem horror n'essa repartição.

Se eu a amasse menos, decerto me sentiria exaltado pela dolorosa confusão que ella acompanhava de tantas consolações, pelas lagrimas que lhe derivavam na face, quando me descobria a chaga sangrenta da sua vida; eu poderia ficar altivo e grato, ou compungido ao menos d'aquella tamanha dôr e humildade; mas, em meu espirito, havia uma só preocupação, que me alheava de mim mesmo. Fóra d'ella nada comprehendia, não pensava em nada.

Não tive pois palavra boa que lhe dissesse; satisfiz-me mostrando-lhe receios pela sua tranquilidade.

«Teu marido deve suspeitar, vendo-te mudadada; por que tu amaste-o n'outro tempo.

A esta monstruosidade, encolheu os hombros, e não enchugou as lagrimas. Roger! Roger—disse ella—é pena que tu sejas sempre creança. Ouves, e não comprehendes. Pois por ventura os nossos maridos pensam em nós? Que mulher tomaria um amante, se o marido lhe desse o que um amante lhe dá? Já não digo os cuidados, as attenções, os bons modos, a amizade; mas um pouco desse balsamo que é a essencia da nossa vida toda—um pouco d'amor!{46}

 

XXV

Esta penosa discussão avantajou Fanny na minha estima, mas não me consolou. Que me importa a mim para o essencial o modo imperceptivel da intenção! O facto brutal era o mesmo. Não obstante, reprehendi-me da curiosidade do meu ciume, que até me roubava a sombra da duvida que eu, por momentos, affagava ainda.

Não podia, pois, atenuar a minha dôr o effeito das ultimas palavras de Fanny. O que eu queria era vencer o invencivel, por que era oppressiva a mesma angustia.

Eu espiava o olhar de Fanny como querendo calcular-lhe as forças, antes de aggredil-a de novo. Mas os nossos olhos tinham-se encontrado, e não podemos mais tempo resistir a nós mesmos. Fugiu de minha alma a menor idea de lucta; do coração d'ella fugiu o menor desejo de resistencia; e o abraço que nos apertou era tão forte, que, mais uma vez, gostamos um minuto de verdadeira felicidade.{47}

 

XXVI

A confissão, que eu arrancara a Fanny, devia fazel-a soffrer tanto como a mim. Ella, porém, tão pouco se individualisava na offensa, que, desde esse dia, em que eu lhe patenteei as minhas dôres, todas as suas escondeu de mim, e risos me trouxe sempre, como a convidar-me graciosamente a dominar os impetos do meu carater. Pobre mulher, que vinha visitar-me por tempo horrivel, e a sua mais instante preoccupação devia ser o urdir mentiras que legitimassem a sua ausencia de duas horas em cada semana. Apesar d'isso, resistia aos aguaceiros da primavera, como ás nevadas do inverno. Nem mesmo fallava dos incommodos que precisamente devia soffrer para arrancar algumas horas de liberdade ás estreitesas da escravidão da familia. Ria gentilmente dos seus vestidos molhados, despindo a muito custo as luvas, ageitando os cabellos desanelados, e chegando ao fogo a biqueira das botinhas fumegantes. Tinha como brio de se vêr em minha casa depois de haver-se exposto a perigos tamanhos, feliz por a não terem encontrado, contente porque me via menos triste. O vencer obstaculos, a conservação do segredo, manter a estima da sociedade, o cuidar do meu repouso, tudo isso não a deixava sentir o cansaço. Não ha felicidade perfeita—dizia-me{48} ella enternecidamente com um suspiro—ambos pagamos á tristeza o tributo do nosso amor; mas este amor é tão bom que o tributo que a tristeza recebe não me parece uzurario.

Nunca suggeria discussões; nunca foi a primeira a fallar-me dos seus deveres, que muito apreciava, e dos quaes me sacrificara a melhor parte. Com seu maravilhoso instincto de mulher, adivinhava que não podia fallar-me de seus deveres sem me irritar o orgulho, e ella respeitava o meu orgulho, como cauza de soffrimento, quando mesmo o feria. Nunca pude surprehender-lhe sombra de remorsos. Mas têl-os-ia ella?...

Quando eu estava sósinho, pensava assim:—Que cautellas terá ella tomado para dissimular este amor? que invenções! que calculos! que ardis! para se furtar a discussões sobre as suas sahidas! Quantas concessões para não ser descoberta! E tanto que arrisca! Pobre mulher! Tanto tem que perder! E eu tão pouco! Ah! que mau homem sou em atormental-a!

Tratava-me ella por creança, e, com franqueza, eu o merecia bem. Quantas coisas eu sabia do seu viver que ella me occultava, com medo de penalisar-me!

Eu não queria comprehender nunca que havia dias em que lhe era completamente impossivel sahir, e a mais banal visita era bastante a retêl-a em casa. Desconfiava então de abominaveis calculos. Affirmava que ella me mentira. Cuidava que procedia a falta de excitações e fadigas na partilha que ella devia detestar. Odiava-a.{49}

«Fases-me piedade! dizia ella quando eu lhe deixava vêr os horrores do meu infermo espirito.

Todavia, algumas vezes, meio esquecido de minhas magoas pessoaes, para entrar ás profundezas da consciencia, dizia em mim: «Quando a tenho torturado bastante, quando ella d'aqui sae chorando, attribulada, golpeada no coração, perguntando-se se me tornará a vêr em sua vida, que fará ella na rua para disfarçar o tormento que a aperta, e mascarar o rosto com o gesto de habitual tranquilidade, para volver á mulher risonha que eu conheço? Será á custa de carinhos que ella affasta as suspeitas de um marido difficil de enganar? Ah! que lagrimas ella deve chorar com seus filhos! São tantos os esforços dolorosos que elles lhe custam!

E como sei bem que elles adivinham o segredo das lagrimas d'ella! E quão certo é que, semelhantes á mãe, tão bons, tão discretos, com suas mãosinhas lhe enchugam os prantos, sem lh'os trahirem.

Fanny soffria horrivelmente. Via-se-lhe o amarellecer da tristeza.

Eu, sem lh'o dizer, observava o circulo negro que marmoreava a circumferencia de seus olhos elanguecidos, e lhe dava ao olhar estranha expressão de piedade.

Via-lhe contrahidos os labios; e as rugas que subiam da fronte perderem-se sob os cabellos sedosos como symbolos visiveis de dolorosos pensamentos. Consternava-me este ar de desleixo que a definhava.

Diante de mim sómente ella affrouxava a rigidez{50} do seu porte, e eu da melhor vontade lh'o perdoava: devia estar cansadissima de representar de senhora feliz!

Quem lhe dera a ella poder tudo confessar, e viver francamente commigo, sem ignominia!

«Não me deixes—dizia-me ella por vezes—Tu es-me necessario como a luz!»

E outras vezes accrescentava:

«O que me prova que eu te amo, é que eu amo tudo que é teu, o teu dôce egoismo até, até a tua colera, mesmo as tuas sublimes injustiças!

Depois, ficava subitamente callada, como se algum funebre pensamento, que não ousava confessar, a angustiasse sem desabafo.

Eu observava-a, e ella sacudia a cabeça. Depois, retorcendo os dedos, exclamava:

«Trahir! trahir sempre! Eis aqui o horror que tudo me invenena, mesmo a idea da minha felicidade. Eu sou a mais miseravel das creaturas. Deus negou-me força, e, por toda a vida, cumprirei a sentença da minha fraqueza. Tenho vivido sempre diversamente da vida que quizera ter; tenho visto sempre ao pé de mim o que eu quizera fazer. Trahir! meu Deus! como eu me detesto!

Tomava-a então nos meus braços para applacal-a; mas não achava que responder-lhe—De que quer ella fallar?—Perguntava-me eu estupidamente.

Devia de ser do facto da perfidia; mas eu conhecia-a ainda mal, e attribuindo-me as palavras fugidas á consciencia d'ella, sentia-me feliz e orgulhoso.

Isto ás vezes fazia-me chorar, e tomar corajosas resoluções—Guardarei para mim os males todos,{51} e as consolações para ella—propunha eu comigo.

Por compaixão, pois, esquecia eu momentaneamente os meus desgostos; sacudia o cansaço do meu pesado scismar, por me deixar levar dos transportes ardentissimos da paixão. Refazia-me em meiguice e ternura e sujeição, mais affectuoso que o molosso fiel que, apoz longa auzencia, encontra o olhar do dono querido.

Vertia a fluxo nectar dulcissimo da lisonja á mulher estremecida; tornei-me frivolo, fallador, volitando por sobre vinte assumptos a um tempo, rindo desentoadamente, evitando sobre tudo proferir palavra que dissesse respeito directo ao assumpto uzual dos meus tormentos.

Mas esta missão heroica, de que dei má sahida, não a enganava. Olhava-me ella com spasmo. Escutava-me meneando a cabeça. Cuidaria ella, em consciencia, que, extincto o ciume, seria o mesmo extinguir-se o amor?

Estes accessos de heroicidade não podiam durar em mim longo tempo. Suspirando, como pessoa aliviada d'um peso grande, viu ella que eu recobrava o meu aspecto triste.

 

XXVII

Acabei, para grande vergonha minha, por acceitar tacitamente aquella situação. Mas, d'ahi em diante,{52} havia entre nós alguma coisa, que não podia já mais obliterar-se: um pensamento constante e unico, que, mutuamente, nos atormentava os corações. Embora cerrassemos os labios para o não deixar sahir em palavras, no intimo o sentiamos sempre como dôr aguda que, a revezes, nos desentranhava imprecações. Um só grito bastava então para incendiar uma explosão subita, e eu, principalmente, esquecia os protestos de meu orgulho por dar livre curso á tristeza que me devorava. Não queria fallar do meu rival, e fallava d'elle sempre. Era um nome que me alanceava a memoria, e se me estorcia entre os labios, como um aspide. Proferido apenas, mil perguntas incendiarias se embaralhavam tumultuosamente em minha boca. Eu queria conhecel-o melhor ainda. Queria saber tudo o que elle era, tudo que fazia, tudo que dizia. Fanny formalisava-se então; meditava largo tempo antes de responder-me, para não se desmentir, depois dava indicios de impaciencia e carregava o sobr'olho.

Os homens são insaciaveis—dizia ella, com grande espanto meu—Não podes contentar-te com ser amado? Por que te occupas incansavel no que se passa em minha caza?

Apoz estas contendas, separavamo-nos tristes, e, passados oito dias, esperava-a furioso, exasperado pela raiva, com a boca cheia de sarcasmos, decidido a romper brutalmente com ella. Mas só de vêl-a, toda a minha cholera se exhalava como fumo, ajoelhava-me aos pés d'ella, e comprimia-a convulsivamente ao meu coração.

O que muito me espantava e irritava acremente{53} era a docilidade com que ella, sem murmurar, a tudo se submettia. A ausencia, os obstaculos, as difficuldades, não podiam nada com ella. Vêr-me, não me vêr, era tudo o mesmo. Sempre serena aquella phisionomia. Dava-se ares de victima, e não dizia palavra.

«E se eu me matasse?» exclamei eu, um dia.

Fanny encolheu os hombros.

«E se algum incidente imprevisto nos separasse?»

—Que queres que eu te faça!...—disse ella, e em seguida entrou a chorar.

Não podendo viver com ella, eu queria ao menos governar-lhe a vida, de modo que as suas menores inspirações lh'as désse eu. De sobra comprehendia ella a minha intenção, e mostrava-se; mas não me cedia nunca em pontos de delicadeza que ella converteu em pontos de honra. E dizia-me:

«Eu sou obrigada a soffrer a posição que me deu a sorte. Devassar-lhe os segredos, de que monta? Affliges-te se fallo, affliges-te se me callo... Tracta de esquecer as causas dessa tristeza, meu Roger.

Eu de mim esqueço-as sempre que venho aqui.

Outras vezes dizia meio risonha e meio motejadora:

«És muito egoista! Pelos modos eu não devo amar senão a ti!»

Impellido, porém, pela minha idea fixa, e sem admittir que ella anteposesse a sua vontade á minha, astuciava com ella, impetrando-lhe exclusivamente a piedade, e descia, por derradeiro, a tal degrau de baixeza, que, irritado por ser eu só a penar, empregava toda a minha influencia para exigir d'esta{54} desgraçada mulher que seguisse uma norma de proceder deametralmente opposta á que seu marido lhe traçára. Bem sabia, eu, com isto, que a sua casa, até ahi pacifica, ia tornar-se um inferno, e isso queria eu: Durante alguns dias, por cansaço, seguiu ella docilmente os meus conselhos, e assim se viu intallada entre seus dois senhores, como o ferro amollentado pelo fogo entre a incude e o malho. Ambos nós, sem treguas, lhe flagellavamos o coração.

Espicaçada, emfim, pela tortura, e tambem por uma especie de espirito de inteiresa, disse-me:

«Roger, tu aconselhas-me muito mal, por que me obrigas a perturbar-lhe o repouso.»

Fiquei consternado, e cessei de empregar aquelle novo genero de martyrio, por que era para mim cruelissima mortificação vêl-a erigir-se em defensora de seu marido. Fanny, além disso, parecia fatigada d'essas disputas aviltantes e penosas.—Tenho medo de infastial-a—disse-me eu um dia.

 

XXVIII

Porém, nos mais violentos accessos de meu ciume, inraivecia-me vêr-lhe no semblante aquelle seu ar pudico, que ella conservava sempre, mesmo na mais avida vertigem do goso. Ora isto, com o correr do tempo, deu para me irritar. Tomei a peito{55} depraval-a, buscando abafar este amor nas cinzas do fastio: Fanny ficava sempre a mesma! Estavam alli duas almas diversas a exhalarem-se-lhe dos labios e dos olhares. Uma era a de Phrynea absorvida, e séria, nutrida dos mais finos primores como das especiarias mais corrosivas da paixão, o que, alternadamente, se assignalava por um sorrir estranho e vago. A segunda era a de um anjo immaculado. Ai! aquelle olhar d'ella! Aquella expressão de spasmo que reluzia perpetuamente em seus olhos azues, tão rasgados, sob as placidas e destacadas palpebras! Ainda agora me seguem e arrebatam! Sinto-os sempre, fitos nos meus! Interrogam-me, e fascinam-me! Não poderei jámais esquecer os olhos d'ella?...

Fanny, no garbo de suas attitudes, no meneio da cabeça, no andar, tinha algumas vezes um não sei que que denunciava appetites de um sensualismo profundo e vehemente, e mesmo alguma coisa dessa monstruosa concessão duplicada, que tanto a meus olhos a invilecia. De subito, com uma palavra só, transfigurava-se, e julgal-a-ieis uma outra mulher.

«Que mulher és tu, pois?» lhe disse eu, em seguida a uma discussão em que me havia manifestado sentimentos os mais contraditorios. Levantou ella a face, e encarou-me com os seus olhos tranquillos e lympidos; porém, commoção interna lhe dilatava as azas nazaes e avermelhava de leve as faces.

—Não posso viver sem amar—respondeu ella pausadamente—Não posso viver sem ser amada. Minhas qualidades boas, e meus defeitos, são cousas{56} secundarias: todas as mulheres tem d'umas, e d'outros. Mas o que é exclusivo meu, é a minha paixão.—E com leal exaltação, ajuntou: «comprehendes-me?»

 

XXIX

Chegou o estio, ao cabo d'estas muitas e penosas discussões. Todos os annos, Fanny ia passar aquella estação ao campo, nos arrabaldes de Pariz. Um dia, veio ella afflicta annunciar-me a triste nova da partida; eu, porém, recusei explicitamente conformar-me com a ausencia «Escrever-nos-hemos» disse ella. Semelhante resignação exasperou-me. Não sei que lhe respondi, esqueci-o; lembra-me só que combati aquella resolução com energia de desesperado. Eu chorava tanto, estava tão alvoroçado, tão infeliz, que ella houve piedade de mim. Apertando-me nos braços, mil vezes me repetiu que consentia em adoptar os expedientes que eu lhe indicasse.—Sê prudente! sobre tudo, não te arrisques—disse-me ella, entre dois beijos, retirando.

Passados oito dias, encaminhei-me na direcção de Chaville. Á beira da estrada real de Versaille é que estava a casa d'ella.

Quando ouvi dar a meia noite nos relogios longinquos, escalei o muro, e fui ter a um pavilhão,{57} cujo local me havia indicado Fanny. A vinte passos, d'um ponto em que me occultavam as copas do arvoredo, vi um vulto pardacento, immovel. Era Fanny. Corri para ella. Levou-me comsigo. Fechei a porta. Estávamos ás escuras—Não falles—segredou-me ella, com extraordinaria agitação—elle está desconfiado ha tres dias; anda triste; deve ter suspeitas.

Aqui está uma variante nova na amargura da minha vida, com a qual eu não contava.—Ouve—murmurou ella, com a voz tremula de mêdo—é preciso que elle não desconfie; não quero que elle o saiba; não quero. Tu és homem, a ti pertence dirigir o meu comportamento. Falla; e, se é de sacrificios que vaes fallar-me não temas, que eu sou forte.—E sentindo-se desfallecer, vendo-me perdido de dôr, disse-me com amargura:—Eu tinha esquecido que tu não passas d'uma creança. Perdoa-me por haver-te fallado como a um homem.

«Fanny,—disse-lhe eu solemnemente aconchegando-a de mim para fazel-a sentar ao meu lado—serei talvez creança, mas tenho coragem de homem. Surprehendido imprevistamente por esta cruel noticia, não sei que inventar; mas, já que és forte, decide tu o que devemos fazer: submetto-me. É preciso abandonar-te? Dize-o. Pela memoria de tua mãe, se assim o queres, não me verás jámais, ainda que me procures por toda a terra.

Não quero que morras—disse ella com voz soturna, erguendo-se, e batendo no chão com o pé. Depois tomou-me a cabeça entre ambas as mãos e abraçou-me convulsivamente sobre os labios. Mas{58} o ruido de passos que rangiam na areia impoz-nos silencio. Abraçados pela cintura, curvamo-nos sobre a vidraça para vêr quem assim passeava no jardim a hora tal.

Era elle! Reconheci-o na largura dos hombros, nos cabellos arrussados que volteavam ao vento sobre a cabeça nua. Caminhou parallelamente ao pavilhão, pela rua larga e descoberta, alagada dos fulgores da lua que cahiam sobre ella a prumo. Marchava lentamente, com as mãos enlaçadas no dorso, cabisbaixo, as feições alteradas, como homem que leva de poz si pensamento oppressivo. Passou ante nós, e imbrenhou-se no cerrado arvoredo.

Tive de sustentar em meus braços a desgraçada mulher, por que os joelhos não podiam sustel-a. «Socega, minha querida, disse-lhe eu—teu marido nada suspeita. Está preoccupado; mas não se vê alli a inquietação febril dos ciumosos. Eu sei bem o que é, de sobra me tenho observado a mim.

—Crês? exclamou ella n'um impeto de esperança que a vibrava.

«Tenho a certeza. Entretanto, separemo-nos. Passados oito dias, tornarei. D'aqui até lá observa-o bem. Não sei o que é que o inquieta; mas eu a quem tu hoje chamas creança, digo-te isto: teu marido não tem ciumes.{59}

 

XXX

Logo que ella partiu, fui impetuosamente no encalço do solitario passeador. Via-o outra vez na volta d'uma rua. Passou, como primeiro, deante de mim, sem me perceber, sempre sombrio, sempre meditativo. Curei de surprehender alguma involuntaria palavra que me revelasse a causa da sua concentração. Mas tinha cerrada a bôcca, e impassivel a fronte. Subindo para casa, accelerou o passo. No patamar, parou, olhou o céo estrellado com sombria seriedade, e alongou para elle os braços, como se do coração lhe fugisse alguma prece ameaçadora. E eu exclamei mentalmente: «É elle, pois, desgraçado tambem!»

 

XXXI

Passei os oito seguintes dias em angustia inexprimivel. Não parava em parte alguma. Os temores, as suspeitas subiam-me ao cerebro em borbotões,{60} como os vapores da vinolencia. Pensava n'ella só! Dizia-me não sei que de convicto e infallivel que eu estava ameaçado de perder Fanny. Era como um espectro deante de mim a imagem d'uma separação violenta. Não atinava com o modo de aliar esta especie de previdencia com a certeza de que o marido ignorava tudo; mas esta previdencia justificava-se tanto que eu entrei a tomal-a como aviso do céo.

Ao oitavo dia, á hora costumada, puz-me a caminho; mas, d'esta vez não esperei a hora indicada, nem me acautelei para entrar em casa de Fanny. Não. Caminhava deante de mim mesmo, com a violencia e direitura d'uma balla, resolvido a procural-a mesmo no seu quarto, se a não encontrasse no pavilhão. Timido de tudo, sem poder definir o objecto dos meus temores, esporeava o cavallo, que se espadellava com a terra, alternadamente contrahido e distendido como um grande arco atormentado por mãos febris. A lua alumiava de travez a estrada silencioza que eu levava, zebrando-a de listas de prata, e parecia voltar-se para mim melancolicamente seguindo-me com os seus fulgidos olhares. Desfillavam a meu lado as arvores, rapidas e negras como phantasmas vertiginosamente marulhados n'um rodopio. Os cães, que dormiam nos pateos, atiravam-se aos portões latindo ao estrepido das ferraduras do meu cavallo, que estalavam na calçada. E o vento que me açoitava a cara, murmurava-me aos ouvidos palavras irritantes. Tudo me impellia e me vaticinava algum drama em que eu ia representar um papel. Armei-me para{61} isso, decidido a não succumbir sem luctar com todas as forças que a desesperação desde muito me tinha dado. Quão exaggerado eu era na espectativa como nos preparatorios! Este meu espirito enthusiasta não sonhava senão combates sobrehumanos, desinteresse fero, esforços heroicos!... Ai! e que desenlace tão vulgar me esperava!

 

XXXII

Transpondo o muro, fiquei surpreso de vêr Fanny assentada na margem d'um passeio. Mais d'uma hora me tinha eu antecipado, e receava que seu marido estivesse ainda fóra. Logo, porém, que me avistou, Fanny, veio para mim, sem se esconder, como se fosse natural entrar eu em sua casa pelo caminho dos malfeitores. Tomei-lhe a mão. Pareceu-me vêl-a inleada e cuidadosa.

«Que aconteceu?—perguntei, levando-a para debaixo das arvores.

—Tinhas mais que rasão, Roger; meu marido não tem ciumes—disse ella—Nunca se fiou tanto de mim. Não me cancei a interrogal-o. Hontem contou-me a causa da sua preoccupação. Os seus haveres todos, depositados em Inglaterra, estão em risco com a fallencia d'um banqueiro. Esta manhã{62} partiu para salvar alguns restos, se ainda for tempo. É forçoso que a inquietação fôsse grande—ajuntou Fanny suspirando—por que nunca foi commigo tão expansivo.

Não achei palavra com que responder a esta afflictiva noticia, com quanto nos consolasse a ambos de tamanho pezo. Fiquei atordoado como homem que soffreu violenta pancada na cabeça. Regorgitavam-me nos labios os sarcasmos; mas eu represava-os.

«Nada respondes, meu amigo?—disse Fanny.

—Que heide responder?—exclamei, perdida a consciencia da minha brutalidade.—Lamento-te se tinhas grande apego ao luxo de que vaes ser privada; lamento-te, principalmente, por teus filhos; mas... «Mas?» atalhou ella.

—Mas não posso lamentar-te por teres sido ameaçada de perder-me, e te achares hoje mais livre que nunca para amar-me.

Fanny ergueu as mãos ao céo, como invocando o seu testemunho, com expressão de piedade, e disse brandamente:

«Não fallemos mais de mim. Eu heide ser sempre um livro fechado para ti.

Passeamos, depois d'isto, debaixo das arvores vagarosamente, sem nos darmos o braço, sem dizer palavra, durante meia hora: por fim, parou ella deante de mim e tomou-me ambas as mãos, e disse em tom de voz submissa:

«Roger, por que não fallas?

—Não tenho consolações que dar-te.

«Por que?{63}

—Por que eu mesmo tenho talvez necessidade de ser consolado.

«Pois que te succedeu?

—Nada.

Continuamos a passear, ao acaso, entre o arvoredo, silenciosos, ella curvando-se debaixo das franças, eu, erguendo-as, para ella passar.

—Agora vamos nós tomar quinhão nas amarguras d'elle—disse eu de repente. «Assim deve ser» respondeu ella com tranquillidade.

O remate do nosso encontro foi magoado por um começo que eu não podera prevenir. O pensamento de Fanny vagueava por outra parte. O meu, a meu pesar, tambem. E, todavia, eu não poderia justificar-me d'um certo prazer inquieto que me dava a idea d'um successo que podia apartal-a do marido para sempre.

—Quem sabe—pensava eu commigo—se a sua ruina fará o que a minha dôr não pôde fazer?

 

XXXIII

Depois d'este dia só em Paris nos tornamos a vêr. Era facil a Fanny ausentar-se, agora que a ninguem devia contas de suas sahidas. Por isso tornamos ao antigo viver. O que eu, porém, previra realisava-se com um rigor de desesperar. Não era só o pensamento senão a vida de Fanny que estavam n'outro logar. Cada vez o sentia mais. Nossa tranquillidade, prazeres, expansões, jubilos dependiam absolutamente das cartas que o marido lhe escrevia. Se faltava o correio, ficava distrahida, não me ouvia. Se recebia de manhã carta inquietadora, ficava preoccupada e taciturna. Quando a carta era de esperanças, irrompia ella em explusões{64} d'amor e d'alegria. Esta alegria, porém, molestava-me muito mais que a tristeza, e aquelle amor, cuja explosão atava a alguma coisa que não derivava d'elle mesmo, indignava-me. Gélido deante de sua inquietação, mudo se ella estava triste, irritado pela sua alegria, recuzava energicamente a receber a repercussão das novidades que tanto a preoccupavam; e quiz-me parecer que Fanny não se incommodava ou nem dava fé dos meus enfados. Isto desesperava-me.

Em summa, aborrecido de me vêr assim atado ao meu rival pela mulher, que, repartindo-se equitativa por nós, dava todos os seus pensamentos aquelle que ella julgava ter mais urgente precisão de suas sympathias; indignado por compartir dessas penas, e esperar-lhe anciosamente as alegrias que só podiam fertilisar as minhas; aguilhoado da tristeza, do ciume, e da desgraça, resolvi tentar um supremo esforço para recobrar o socêgo, arrancando-lh'a a elle. Desde muito que se me gerava no animo o desejo de exigir de Fanny o maior sacrificio que ella podia fazer-me; mas, retido pelo vago receio d'uma recusa dolorosa, deferi de dia para dia o momento de sollicitar-lh'o. Azou-se a occasião. Foi ella que a deu.{65}

 

XXXIV

«Uma mulher que se aliena—disse-me ella, uma vez, sem nexo que explicasse o improviso, e olhando-me com ar piedoso—Uma mulher, que se aliena, não pode amar sem tornar o seu amante o mais desgraçado dos homens. Quanto mais me examino, Roger, mais conheço que, fartes vezes, com desgosto meu, te devo fazer soffrer muito.

Commovido por este exordio, respondi balbuciante:

—E, todavia, a nossa alliança podia ser ditosa.

«Sim—disse ella amargurada—O que ha de mais entre nós é o amor.

O castigo secreto d'esta ligação é isso. Estas relações só duram com a condição de serem banaes; e, se o são, devem repugnar a corações nobres e delicados; se são profundas e intimas, tornam-se o supplicio de quem as sente.

E suspirou. Respondi assim:

—Vou mais longe que tu, Fanny.

Um amante, ainda mesmo que o seu amor seja mero capricho, deve soffrer com uma partilha que offende os sentimentos humanos todos. O amor proprio, por igual com o amor, tem seus ciumes, seu pudor, suas torturas. Uma amante, qualquer{66} que seja o seu theor d'amar, conhece sempre a existencia do marido. O marido, por via de regra mais feliz, não conhece a existencia do amante.

«Isso é ir longe de mais—disse ella a meia voz; depois, alçando os hombros, poz os olhos no céo, e exclamou:—Que é o amor proprio, Deus meu?

Folgando em fim de encontrar Fanny em tal disposição de espirito, aventurei-me. Peguei-lhe da mão, e erguendo-me, em quanto ella me olhava affectuosa, disse, n'um tom supplicante:

«Com tudo... se tu quizeres...»

Fanny corou logo, comprehendendo que se demaziava.

—Que queres tu dizer-me?

Não ousei responder; mas ella, por certo me adivinhou, por que me apertou meigamente a mão, e disse suspirando:—creança!

Eu fiz com a cabeça um gesto negativo! «Deixa-me!—disse ella de sobresalto, em tom de precipitada—Curar-te has assim? Não posso fazer-te feliz. Caza-te!»—A dôr anniquilou-a. Repelli-lhe rudemente a mão, e fitei-a colerico, por essas phrazes que me pareceram uma ameaça. Mas tão quebrantada a vi, que não tive coragem de a levar ao extremo, e murmurei por de mais:

—Bem sabes que não é possivel isso.

Replicou:

«Dei-te quanto podia haurir d'affectos em meu coração, e és tu quem me castigas!

Estava offendida: foi preciso aquietal-a, e jurar-lhe submissão; ella, porém, não perdoava assim, e exclamou:{67}

«Que queres que eu faça mais?

—Se me amas, como creio, o teu dever está traçado.

Corou outra vez: é que comprehendera.

«Meu dever! meu dever! Muito indiscreto és em proferir semelhante palavra, Roger! Ignoras tu que o meu mais restricto dever me ordena de não deixar a caza que governo?

—Ah! Fanny!—exclamei eu—que insignificancia tu trazes para me ferir... que confronto!...

«A caza—replicou ella baixando os olhos—é o posto d'honra confiado á mulher! Mulher que se respeita, não a abandona nunca!

Quiz interrompêl-a, mas ella continuou, de repente applacada, e olhando-me com ternura:

«Raciocina um pouco, meu querido filho: póde uma mulher abandonar sua familia honorifica, sem perder a estima de si propria? Póde ella desquitar-se publicamente de todos os seus deveres sem despenhar-se aos olhos do mundo entre as mulheres perdidas?

—São bem tristes considerações as da sociedade quando as cotejas com a minha vida...—respondi eu.

Ficamos em silencio, alguns minutos. Fanny proseguiu:

«Se eu seguisse os conselhos que me deixas adivinhar por que és muito honesto para m'os dar claramente, ser-te-hia forçoso, algum dia, fazer-me arrepender.

Eu quiz jurar; mas ella cortou-me a palavra.

«Podemos nós supprimir o passado? Não és tu{68} zeloso mesmo do passado? Oh! quero poupar-te!—accrescentou Fanny, levantando-se, e lançando-me um braço em roda do pescoço, em quanto com a mão sobre o meu peito, cravava ternamente nos meus os seus olhos azues—«Em teu logar, crê-me, eu seria tambem ciosa... Muito resististe!... disse ella, cahindo sobre uma cadeira, e escondendo entre as mãos a face: «Por que me não fugiste, quando era ainda tempo!

«Já era tarde, Fanny, bem o sabes, no dia mesmo em que te vi, pela primeira vez, passar deante de mim.

Ergueu-se outra vez, e abraçou-me com mudo transporte. Pensativo, alheado, recebia, como insensivel, as caricias. A final, pude dizer-lhe:

—O amor, Fanny, póde consolar muitas dôres, remir muitas humilhações, substituir muitos affectos. Diz tu: o que é a estima do mundo, os tranquillos sentimentos da familia, comparados á absorpção d'uma existencia por outra existencia? É acaso tão longa a vida que possamos consentir em immolal-a a coisas tão frivolas? E, de mais, que se lucra? Quem nol-o agradece?

«Roger! Roger!—interrompeu Fanny—que estranha moral!

E eu prosegui:

—Não estás cançada de córar, de tremer, de te esconderes? Não tens, emfim, vergonha da vergonha? E não te repugna ao coração esperar, esperar mais, esperar sempre, para trazer-me os beijos avidos á minha bôca faminta? No espaço d'um anno, com grande custo, apenas teremos cem horas de{69} viver juntos... a felicidade, de que devemos contentar-nos, é isto? Se ao menos essa felicidade fosse pura, estrema, absoluta! Mas tu não pódes ouvir-me, sem que a lembrança de tuas inquietações, perigos a que te expões, os meus proprios tormentos, te não impallideçam; e eu, tão desgraçado! não posso uma só vez abraçar-te, sem que logo um espectro...

«Supplico-te—bradou ella impetuosamente—se me amas, não me digas que és desgraçado, por que me matas.

—E se tu quizesses—continuei, fitando-a internecido—se quizesses!... Não haveria no mundo existencia para competir com a nossa. O que eu te peço é ser eu só o encarregado de te fazer serena a vida, desvelar-me por ti eu só, preparar, suavisar sob os teus pés a vereda do futuro; ser só a amar-te; o que eu quero é ser para ti o meio e o fim da felicidade; é tomar sobre mim todas as penas, e dar-te em troca todos os meus sonhos, prazeres, e felicidades; o que eu quero é ser a um tempo teu filho, teu amante, teu pai, reunindo sobre a tua cabeça querida as mais dôces e solidas affeições, é concentrar em ti as lembranças do passado, as felicidades do presente, os anhelos do porvir, de modo que venhas a ser toda para mim, e que não haja na minha vida inspiração que não seja tua, que não proceda de ti, que não sejas tu! Se tu quizesses... Não ha ahi paizes onde livremente os que a sorte separou e o amor ajunta pódem emfim saborear aquelle particular repouso que resulta da plenitude da felicidade que é a vida? Em meus sonhos,{70} muitas vezes me figuro que somos voluntariamente proscriptos na immensidade d'alguma solidão, onde, sob um céo azul sempre, á sombra d'arvores sempre veridentes, á beira d'um mar sempre sereno e sobre tapetes de musgo sempre em flôr, ahi, nos saboreamos por nós mesmos, como se a nossa dupla existencia mais não fosse que uma palpavel recordação. Que desgraça poderia ferir-nos ahi? que inquietações assaltear-nos? que suspeita incutir-se-nos? que ciume contristar-nos na felicidade de dias sempre eguaes? se tu quizesses... Seria pouco para mim amimar-te sempre como a uma creancinha melindrada? procurar incessantemente debaixo de tuas palpebras o olhar meigo de teus olhos azues? escutar-te muito tempo o halito a brincar-te por entre os labios? dormir com a boca presa á tua espadua, a mão inlaçada na tua mão? vêr-te todos os dias, andar, ir, voltar, mais bella, mais tranquilla, mais graça que o sonho das virgens? Ouve mais: não seria nada para ti o teres-me sacrificado todos os prejuizos que formam o coração das mulheres? teres-me tirado do abysmo de tristeza, no fundo do qual me estorço ha tanto tempo? teres-me dado tu só mais felicidade do que homem na terra póde cobiçar? Oh Fanny! Nunca mais, a chorar, eu te diria: «amo-te!... se tu quizesses!...»

Estava suspensa dos meus labios Fanny. Bebia-me as palavras, ebria de prazer. Inclinada para o hombro a cabeça, cahidos os braços, as palpebras descidas, ouvia-me como ao longe a musica, de que não queremos perder nada, arrobada n'um extasis que reunia todas as sensações e quebrantos. Arfavam-lhe{71} as rozadas azas do nariz; suaves respostas inintellegiveis lhe ciciavam os labios; convulções electricas lhe crispavam a cutis; tremiam-lhe as mãos em vibrações dulcissimas. Já não poderá conter-se. Correu-me ao seio, e debulhou-se em lagrimas no meu pescoço que ella cingia soffrega. Oh! que delicioso apertar aquelle!

«Não se falle mais n'isso—disse ella, com expressão de angustia, recuando a face, e apertando-me a fronte com a mão—Isso faz-me um grande mal. Querido Roger, o sacrificio, que queres fazer, é egual ao que me pedes. A felicidade debuxada por tua boca persuasiva é o mais bello sonho dos meus encantos; mas, ai! não passa d'um sonho! Meu Roger, amemo-nos, adoremo-n'os; mas, por piedade de mim, não falles assim mais!

 

XXXV

Não me dei por vencido d'aquelle grito de desesperação que me revelava, ao mesmo tempo, aspirações ardentes, e dôres mysteriosas. Nenhum de nós nesta affectuosa discussão, havia empregado os verdadeiros argumentos. Um tanto satisfeito por expôr a suprema questão da minha vida áquella que devia resolvêl-a, deliberei deixal-a reflectir, para pouco{72} e pouco a ir affazendo. Esperava azo propicio para reluctar e vencer a minha adorada inimiga.

Depressa veio o ensejo. Terrivel e imprevisto era elle: havia ahi uma só alternativa: vencer os extremos escrupulos de Fanny, ou perdêl-a para sempre.

 

XXXVI

Fanny pareceu-me preoccupada um dia. Fallava precipitadamente em muitas bagatellas, como se quizesse abafar alguma coiza gravissima. Abstive-me de interrogal-a, e fiz que não dava fé da sua turvacão. Acariciou-me vivamente, e eu a ella, mas nossos espiritos e vontades pareciam alheios aos affagos. Houve um instante em que um e outro esgotamos as palavras ociosas. Tinha Fanny a cabeça inclinada sobre o meu braço, e eu, todo attento no rosto d'ella, em muda anciedade a estava contemplando. Subiu-lhe aos labios em suspiros do intimo a respiração suffocada; aos meus olhares interrogadores respondia o descahir das palpebras, e o voltar os olhos, córando.

Tomei-lhe a mão sem dizer palavra. Apertou-m'a com força febril.

«Falla em nome do céo!» disse-lhe eu empallidecendo.{73} Abraçou-me convulsamente, aconchegando-me o peito da face d'ella.

Fugiu-lhe dos labios a narrativa cruel, cortada por mil reticencias confusas. Mas, desde a primeira palavra que proferiu, comprehendi tudo. N'essa manhã mesma, o marido lhe dissera em carta muito expansiva, que seria provavelmente obrigado a estabelecer-se em Inglaterra, por espaço de alguns annos. Em tal caso—accrescentava elle—deveria Fanny metter no collegio os filhos mais velhos, e ir ter com elle, levando o filho mais novo. Fiquei aterrado. Irritou-me a coragem que ella tivera para em fim proferir as abominaveis palavras de separação. Dessimulei, porém, as angustias que me alanceavam o peito, e deixei só transparecer no semblante os traços de dôr profunda. Abracei-a, comprehendi, e exclamei:

«Não será assim, Fanny!—juro que não, por que é arrancarem-me o coração o separarem-me de ti.

—Que hei-de eu fazer, meu Deus?—disse ella retorcendo as mãos.

«Amarmo-nos—respondi exaltado, com quanta força temos, e tirar um recurso da horrivel necessidade.

—Recurso!...—e eu interrompi-a logo: «Fanny! este momento é solemne; não ha que vêr com subtis considerações do mundo e dos ciumes, do passado: trata-se de viver ou morrer. Deante de Deus, te dou em penhor a minha vida. Queres dar-me a tua? Atirou-se aos meu braços, repetindo:

—Que hei de eu fazer?{74}

«Fugirmos para tão longe que ninguem nos veja mais.

 

XXXVII

Dito isto, cahimos em profundo silencio, Fanny retirou-se lentamente de meus braços, poz-me ambas as suas mãos nos hombros, e fixou-me.

Baixei os olhos, receando-lhe a ira. Mas que mal a conhecia eu! O que ella me revelou foi piedade sómente. Repartida entre o seu amor, e o dever que lhe apontava o logar digno ao pé do chefe de familia, a luctar sósinho no exilio para defender seus bens, Fanny deu-me testemunho d'uma agonia que não cabe n'alma sem rasga-la. Bem sabia ella que eu devia horrivelmente soffrer, pensando no proximo fim de união tão cara; mas tambem comprehendia que lhe não era possivel desobedecer á voz que a chamava. E isto flagelava-a com uma dôr sem nome. Perder-me e ser ella, uma vez ainda, a causa unica de meus infortunios.

—Meus filhos!—exclamou ella em fim, impallidecendo, com uma despedaçadora angustia. E pendurava-se-me do pescoço, fitando-me os olhos penetrantemente—Meus pobres filhos, tão creanças! Pensas tu n'isto? Tu que és bom, e me amas, podes-me exigir que os deixe?{75}

Immediatamente comprehendi pela commoção que me estorcia o animo, que quanto d'ahi em diante tentasse seria baldado. A pesar da resistencia, senti um surdo protesto subir-me das entranhas em gritos de indignação. Eu mesmo, no secreto de minha alma, não queria esse monstruoso abandono de mãe, nem mesmo o covarde desamparo d'um marido por sua mulher que adorava.

Mas, confessal-o-hei?—não me instigava tanto á lucta o desejo de passar a minha vida com aquella mulher, como a idea de fazer cessar a partilha execravel. Absolva-me dos males que causei um momento de franqueza! Eu senti, abraçando de novo Fanny, que soffria menos com a certeza de a perder que com a idéa de que ella ia unir-se ao marido. E, horrorisado de mim, dôr nova para ajuntar a tantas, disse comigo mesmo:

«Aqui ha mais ciume que amor.» Entretanto, mais tranquilla, mas sempre affavel, Fanny encostara-se ao cotovello e, voltada para mim, discutia sósinha. Escutei-a.

«Se eu ousasse... se eu não temesse mortificar-te...

—Falla, que estou de animo assente para ouvir tudo. Já agora, não ha nada ahi que possa fazer-me mais desgraçado.

Acariciou-me febrilmente, e disse, quasi desfallecida:

«Pois bem! eu não tenho coragem de arruinal-o. Hoje, o unico recurso d'elle está no meu dote.

—É isso só? deixa-lhe tudo o que tens. Não sou eu bastante rico para nós ambos?{76}

«Não é isso! não é isso!—disse ella, meneando a cabeça.

Encarei-a. Estava enleada e escolhi vagas palavras com que disfarçar a idéa. Continuou, a meia voz, como reprehendendo-se do que ia dizer:

«Como condemnal-o á solidão n'este supremo momento em que elle lucta tanto por mim como por elle! Nunca voluntariamente me desgostou. Ama em mim a companhia de quinze annos da sua vida, a mãe de seus tres filhos...

—Por que o enganaste?—atirei-lhe eu em rosto, no impeto doloroso da minha colera; mas, com uma só phrase me esmagou ella:

«Por que te amava!» e com expressão de orgulho que a engrandecia a cima de si mesma, accrescentou:—Mas a perfidia não competia a ti reprovar-m'a, Roger!

D'esta arte, quantos golpes eu lhe apontava, eram logo rigosamente rebatidos; mas, nem assim, eu desistia do ataque. E se nos descobrissem! repliquei eu, na certeza de que este golpe era difficil de aparar, fitou-me fixamente como receando que a eu denunciasse para a possuir, talvez, por esse infame meio.

Depois de olhar-me longo tempo, disse:

«Que desgraçado elle seria!...

Voltei-lhe o rosto, e Fanny concluiu:

«Elle diria com horror de mim: Nem por amor d'estas creancinhas...

Puz-lhe a mão nos labios, e, convulsivo, olhei para ella. Estava coberta de lagrimas. Posto que perturbado, não pude deixar de admirar-lhe a franqueza{77} nobre que nem, neste lance, me poupava. Estava toda embevecida na victima!

«Que faria elle?» murmurei. Fanny, levou as mãos á face, e respondeu com voz abafada:

—Talvez me perdoasse...—

E, passados os soluços que lhe embargavam a voz, disse:

—Estamos demasiadamente castigados! Se obedeço ao dever, abandonando-te; se não lhe obedeço, deshonro-me. De ambos os lados só vejo a desgraça, e faço desgraçados. Infeliz por ti, por elle, por meus filhos, por mim propria, nem me resta o recurso da morte para restituir a paz a todos! Deus meu, que me has dado o coração, que me não serve para consolar os entes que amo, e nem as suas dôres posso incerrar n'elle, como thesouros caros!

E, a luz crepuscular na alcôva, sobre as rendas dos flacidos travesseiros, enlaçados os braços e unidas as faces assim choravamos... Quem acreditaria que, desde muitos dias, se passavam assim todas as nossas entrevistas!

 

XXXVIII

Desde este dia funesto entendi que não devia esperar mais nada d'este amor, e vivemos na penosa{78} espectativa da decisão de um outro. Mas, como se o destino houvesse resolvido não dos poupar em dôr alguma, a solução todos os dias esperada, não chegava nunca.

Já as cartas não eram sómente assustadoras para Fanny. Era eu que as desejava, e inquiria o contheudo dellas, e fazia ferventes votos pelo bom exito d'aquelle que, máo grado meu, não luctava energicamente. Com tudo por dar alguma coragem á desgraçada mulher, exaggerava a minha confiança, e encomiava a esperteza conhecida, a firmeza de caracter e a força de vontade de seu marido. Affirmava-lhe que elle ressarciria os seus haveres, obteria justiça, e recobraria o tão merecido socego. N'elle se estribavam todas as minha esperanças: pensava n'elle só, e tomava apaixonadamente a peito a sua pendencia. A menos esperada ventura que eu entrevia em meus vagos sonhos e almejava com o ardor da desesperação, era a volta do meu rival, em cujos braços devia cahir a mulher que eu adorava!

Se eu podesse coadjuval-o!... dizia eu commigo; mas de que sirvo eu? E agora me pezava o inepto pudor que me não deixava entrar n'aquella caza—Se eu tivesse menos orgulho, se eu não tivesse querido exaltar-me, singularisando-me por uma delicadeza affectada, que, dos meus proprios olhos, me não lava da minha acção; se, como fazem tantos nas minhas circumstancias, eu me fizesse amigo do homem, cuja mulher roubava, resgatando hoje a pequena parte remissivel de meus actos, poderia achar algum lenitivo para esta afflicção. Mas eu tivera{79} sempre mais orgulho que bom senso. Pungia-me, então, a idéa de que, por falta minha, n'aquelle desastre em que cada qual heroicamente desempenhava o seu dever, estava eu sendo um ente inutil. Contrapondo á minha consciencia taes subtilezas, tão futeis ellas eram, que não me illudiam. Mas, á maneira do naufrago que se agarra aos limos fluctuantes, sem esperar salvar-se, eu me escorava á minha propria dôr, accuzando-me de faltas não commettidas, falsificando meu proceder e sentimentos n'isso mesmo que elles tinham de honra, por que eu não sabia que fazer para readquirir uns longes de esperança.

 

XXXIX

Fanny visitava-me como visitamos um doente incuravel, e retiramos sempre admirados de encontral-o vivo. Palavras de alento não as tinha para m'as dizer, que não carecia menos ella de ser consolada. Se eram boas as noticias, suspirava; se eram más, chorava. Como ella, um dia desenvolvesse em toda a sua horrivel extensão, a pesada cadeia das mais secretas miserias que entrevia—atterrada por se não sentir com forças para arrastal-a—eu rompi o silencio subitamente, e, com simplicidade, lhe offereci todos os meus teres para desempenhar a{80} honra de seu marido, que, por derradeiro ludibrio, fôra entregue aos azares do jogo.

Mas, a pesar mesmo deste novo desastre sobreposto ao antigo, e tão afflictivo que já fazia esquecer o outro, Fanny foi o que devia ser:

«É desgraçada a nossa situação—me disse ella com severidade extraordinaria—Roger! amo-te agora mais do que nunca; mas não sou livre; por isso mesmo que te adoro, é que tu és o unico homem de quem não posso acceitar nada.

 

XL

A adversidade cansou. As cartas vinham cada vez mais animadoras, e já não havia questões de honra, nem de miseria, nem se quer da separação que tanto temeramos. Quando muito era só a perda de ametade dos bens que podia preoccupar Fanny. Vieram o socego e os risos para ella; mas eu, como um miseravel que tem duas chagas a pençar, senti immediatamente despertar o ciume, mais ardente que nunca. O marido estava a chegar, e esta vinda, d'antes tão desejada, incutia-me agora invencivel horror. Dezejei-lhe a morte. Tornei-me sombrio, desconfiado, interrogador. Recomeçaram as nossas luctas.{81}

 

XLI

Nunca me viera a idea de romper com Fanny; mas travados outra vez em guerra, de repente me appareceu, fulgurante como um relampago. E eu senti entrar com ella em meu coração a suave caricia da esperança. Mas esta esperança, ai! não durou mais que um segundo. Máo grado meu, tremulo de horror, dei-me pressa em repulsar a idea do meu resgate.

 

XLII

Depois de uma discussão em que, mais uma vez, eu expozera aos olhos d'ella as minhas angustias, Fanny veio de moto proprio a devassar d'um pensamento que eu não ousara nunca deixar-lhe vêr.

—Não fui esperta—disse ella. Eu devia fingir-te a minha vida. Por muito improvavel que fosse o que eu te contasse, tu acreditarias tudo, por que iria no acredital-o o teu interesse. Não fui esperta, mas é que eu nunca soube mentir.{82}

Esta confissão foi para mim uma subita revelação, suppuz logo que ella á semelhança d'outras mulheres, orgulhosa de ser feliz, escondia vaidosamente a um tempo, vicios e dôres, e, desgraçada, queria que a suppozessem feliz. Esta suspeita inquietou-me oito dias; mas a esperança que me ella gerava no coração não podia durar. Instei Fanny, facilitando-lhe recursos para desmentir-se e patentear-me tudo de sua vida. Admirando-se de eu duvidar d'ella, Fanny confirmou glacialmente o que me havia dito e tornou-me á desesperação.

 

XLIII

Approximava-se, n'esta conjunctura, o praso que o marido designara para voltar. Parecia-me que devia ser esse o dia da nossa separação, e da morte para mim. A idea da partilha enojava-me. Resolvi cem vezes explicar-me com Fanny á cerca d'este assumpto horrivel, mas não me attrevia. Havia n'ella uma especie de renascimento: nunca a vira tão terna e submissa. Ao mesmo tempo deu em ser muito expansiva. Nos ultimos tempos, coisas insignificantes tocantes á sua vida intima, andavam sempre em nossas praticas; d'ahi vinha o continuar ella agora a fallar-me dos minimos incidentes da sua vida. É o que devia, mais tarde collocar-nos face a face, na attitude ameaçadora de dois inimigos.

Não sei como se deu, nem qual de nós foi causa da scena atroz que sobreveio; lembra-me só que Fanny estava já para sair, e ambos nós em pé. Acabava ella de apertar as fitas do chapéo, deante do espelho do fogão, ao qual eu me encostava; já tinha o chale nos hombros, e buscando com os olhos o lenço, que pozera sobre uma meza, acabava de{83} abotoar as luvas. Assim, continuavamos em termos meio affectuosos e familiares uma contenda que intendia com ella e com o marido. Estavamos ambos serenos quando lhe aconteceu proferir uma palavra que me gelou o sangue nas veias:

—Eu mentiria, se dissesse que não tinha affeição a meu marido.

Logo que reflectiu na crueza d'essas palavras, tão imprudentes como inuteis, arrependeu-se de as ter dito. Sem accrescental-as, nem desmentil-as, acercou-se de mim, affastou o chale para me cingir o pescoço com o braço, amimou-me o rosto com a mão livre, e alteou-se nas pontas dos pés para abraçar-me.

Era carinhoso o olhar, que exorava perdão á crueldade da bôca. Forcei-a lentamente a desprender-se-me do peito, e disse-lhe severamente:

«Vós outras, as mulheres, não tendes delicadeza alguma no coração.»

«Córou, fez-se mais meiga, mais insinuante, e quiz outra vez abraçar-me.

Puz-lhe a mão no hombro e affastei-a: dizendo-lhe, tremulo de furor:

—Ha dias que me falla em seu marido, incarecendo-o muito. Esquece-se de que não é elle agora o mais digno de lastima?

Apertou-me inergicamente a mão, em quanto com os labios cerrados, á mingua de palavras, me fitava com ternura supplicante.

Mas a colera recrudescia a proporção que Fanny denunciava arrependimento. Continuei:

«É justo que o ame, por isso mesmo que a sua estima se lhe deve com preferencia a tudo.{84}

Conheceu Fanny que não poderia apaziguar-me. Não sabendo que mais fazer, deixou passar aquella phraze de interpretação doble, desdeu os laços das fitas do chapeo, pousou o chapéo e o chale sobre a cama, e assentou-se n'uma poltrona defronte de mim. Com o cotovelo esquerdo apoiado no braço da cadeira, a face na palma da mão, os olhares ondulantes, assim ficou na sua habitual posição. Mais que nunca linda, com aquelles braços maravilhosos, cuja alvura assombrada de pennugem destacava da seda negra do vestido; com as grandes luvas de pelle da Suecia que lhe cobriam os pulsos; com o collo flexivel e inclinado; e côr pallida; e os cabellos louros voluptuosamente annelados sobre a fronte pura: era a semelhança de algum bello retrato de Rubens. Por de sob a fimbria do vestido, sahiam os pequenos pés reunidos e assentes no chão. Nas escuras dobras da seda envolvia-se o braço direito, cuja mão, meio fechada, permanecia immovel como se fôra de marmore.

 

XLIV

Quando o publico soube o desastre do marido de Fanny, soubera eu que em Pariz circulavam boatos deshonrosos para elle. De ser rico e altivo grangeou muitos inimigos. Deviam de ser calumniosos os ditos{85} que sahiam de bôcas invejosas. Não os desmenti por prudencia, mas fiz nota d'elles. Bem sabia eu que um dia me serviria d'elles para vingar-me.

Esperava eu, exasperado pelo furor, que uma palavra, provocando-me de novo, me desculpasse a crueldade. Ella, porém, de astucia não fallava, adivinhando que eu interpretaria á feição de minha raiva tudo que me dissesse. Assim ficamos ambos immoveis, callados, ella, esperando o golpe final, eu reunindo as minhas forças todas para descarregal-o.

Decidi-me em fim: e, com uma só phraze cortante como gume de espada, attacando o mais sagrado da honra do meu rival, repeti as infamias em que eu não cria.

A resposta foi prompta e terrivel. Isso é indigno!—exclamou ella erguendo-se hallucinada, escarlate, com uma expressão de colera e indignação que me assombrou.

Não quero que se rosse na honra do chefe de familia! Não quero que se deshonre aquelle cujo nome eu trago! Por isso que o trahi; por isso que conspurquei a parte de sua honra que elle me confia, é que eu prohibo que se ultraje a outra... e principalmente ao snr!... Envergonhe-se!... Se acreditou essas calumnias, competia-lhe defendel-as commigo, pois foi commigo que...

Interrompeu-se. Eu immudeci, e ella proseguiu: Fallou-me ahi na indelicadeza de coração das mulheres; e eu fallarei do orgulho dos homens. Não é só do amor das mulheres que carecem para estrado... Querem tudo o que ellas prezam, tudo o que respeitam: estima do mundo, familia, filhos, repouso,{86} e até a honra de seus maridos. Tudo lhes é mister para desvirtuar e rediculisar essa honra. Estou de mais castigada por ter crido que podia impunemente amal-o! Fui prudente; e por isso não é meu marido ultrajado que castiga a minha culpa; mas—castigo mil vezes mais cruel—é o meu amor. Mereço esta pena... e é o snr. que me pune!

Continuei callado: e ella, com a boca a trasbordar sarcasmos, proseguiu:

É como todos! O que ahi ha é orgulho. Não sabe amar!

Desta vez, respondi turvado:

«Não sou desculpavel por aggredil-o?

—Aggrida-o como homem. Não tem tantas causas para o fazer?

«Por Deus que o farei!

Furioso, com os olhos injectados de sangue, os dentes cerrados, avancei para Fanny, mas ella suspendeu-me a tres passos com um olhar glacial que eu nunca lhe vira. Depois vagarosamente embrulhando-se no chale, da cabeça aos pés, como a sacerdotiza antiga, sombria, feroz, desesperada, deixou cair sobre mim outro relancear de olhos despresador, e sahiu.{87}

 

XLV

Que farei para apasigual-a?—Tal foi a ignobil pergunta que eu me fiz, ao amanhecer do dia seguinte.

Escrevi-lhe uma longa carta tão submissa que não pude revêl-a sem pejo. Rasguei esta carta, comecei outra, mas tão acerba de estylo que devia exasperar quem eu queria commover. Não a conclui, e andei uma hora a passear phreneticamente em todas as direcções no meu quarto. Primeiro tive ideias de rompimento immediato; depois desvaneceram-se. Rebentou em chamas o furor e o ciume; depois apagaram-se. Por fim, comprehendi que o procedimento a que eu quizera impellir Fanny, era um crime, o qual, consumando irremediavelmente a desgraça d'uma familia inteira, devia tornar-nos desgraçados para sempre. Era-me pavoroso pensar que, a ter-me ella attendido, durante a nossa existencia toda, viriam interpor-se entre ella e mim as imagens de seus filhos abandonados.

Mas ao mesmo tempo escasseava-me força para o resgate. Affizera-me ás minhas dôres, e não ousava trocal-as por dôres desconhecidas. É preciso ter sido, como eu fui, o tudo nas ternuras e affeições d'uma mulher, o coração que incessantemente regia os movimentos d'outro coração, para poder{88} comprehender os horrores da solidão que segue um rompimento. Eu delirava de raiva e dôr. Por fim, commovi-me, erguendo os olhos para o retrato de Fanny.

—Que mal me fez ella?—dizia eu. Chorei; e, indeciso, vesti-me, e sahi.

 

XLVI

Seriam oito horas. O calor dos ultimos dias d'agosto purpureava o céo carregado. As trevas, semelhantes a mortalhas espargidas, desciam com a nevoa opaca atravez das arvores da grande avenida dos campos-Elyseos. Os passageiros davam-se pressa para fugir á tempestade que trovejava surdamente ao longe. As estrellas brilhantes das lanternas, aqui e além, corriam, cruzavam-se e desappareciam. Nuvens de pó sacudido pelo vento subiam diante de mim e toldavam o espaço. A meio-caminho, quasi entre Rond-Point e o «Arco do triumpho» parei.

Era alli. Encostei-me a um tronco de arvore, levantei o rosto, e olhei. A meus pés era a passagem das carruagens que vão do portal á avenida. Sobre a porta estavam abertas as quatro janellas da sala. Uma só lampada, por certo, illuminava o recinto, por que a claridade que translusia dos vidros{89} escassamente brilhava como um clarão duvidoso. Nenhuma sombra passava entre a lampada e os vidros. A casa está vasia—pensei eu—e todavia Fanny não está em Chaville por que a sala tem luzes.

Estalou, neste momento, mais forte a trovoada.

Relampaguearam os coriscos. Um bulcão rugiu na ramagem dos alamos da avenida, remoinhando turbilhões de folhas e terra. Então vi uma sombra de homem chegar á ultima janella, e fechal-a. As outras tres fecharam-as mais tarde. Depois, a froixa claridade que alumiava a sala bateu nas vidraças mais tensa e viva: havia-se accendido uma segunda lampada.

E depois, mais nada. A avenida deserta, a tempestade no céo de todo negro, eu em pé debaixo da minha arvore, e a sala vasia com as quatro janellas lusentes. Soaram onze horas no relogio d'uma egreja visinha.

De repente, o estrepito de rodas acceleradas, mordendo a areia, passou ao pé de mim. Eu dera, sem saber porque, alguns passos authomaticos.

—Arreda! Arreda! gritou uma voz irritada. Saltei para a margem da estrada. Um coupé vasio passou bamboando sobre o eixo, effeito dos sacões; depois uma grande carroça de viagem tirada por quatro cavallos, voltou de repente sobre si mesmo, ao tempo que se abriam os dois batentes da porta-cocheira. Remirei a carroça com assombro. Ao fundo estava um homem, que eu bem conheci—era elle. Ao seu lado uma mulher que lhe fallava: era Fanny. Entre elles, sobre os joelhos, e nos braços,{90} tres meninos de cabellos louros. Foi uma visão rapida. Não sei se me viram. A carroça desappareceu por debaixo do arco do portal, e logo os dois pezados batentes rodaram nos gonzos, e bateram entre si com estrondo lugubre e cavernoso.

Acabava eu pois de me arredar para dar passagem ao meu rival que entrava como senhor em sua casa.

 

XLVII

Por que me não esmagou elle com as suas rodas?—exclamei, com a morte na alma, retirando-me, e caminhando ao acaso como um ebrio.

Passava uma sege de praça; entrei—onde quer ir?—diz o boleeiro, embrulhando-se no seu capote—onde quizeres, ao Bosque, onde quizeres. E senti-me arrebatado d'aquelle sitio funesto.

A chuva escorria sobre as vidraças corridas. Encolhido n'um angulo da sege, com os braços cruzados, e a face encostada á almofada, vi de lado, ao clarão dos relampagos, estorcerem-se as arvores atormentadas pelos furacões. A intervallos, resalteavam no ar as astilhas dos coriscos. E eu dizia: Esta tormenta não os aterrará? Não sei que tempo passei blasphemando, rasgando o peito com as unhas, chorando, dentro dessa sege que corria atravez{91} das arvores do bosque, ao clarão avermelhado dos relampagos. Sentia-me abafar. Desci os vidros e a chuva batia-me na cara e nas mãos. Encostei-me ao rebordo da portinhola, com a face deitada nos braços. Tomou-me uma sensação horrivel de frio. Tinha febre. «Quer que recolhamos?» dizia de espaço a espaço o boleeiro cançado.

—Quero—disse eu, fatigado já tambem.

 

XLVIII

Nascia a aurora lagrimosa no mal enchoto céo, quando, erguendo a face, reconheci uma casa á margem da estrada. Era a della. Todas as portadas da janella estavam fechadas, e as luzes extinctas. Apenas um clarão avermelhado excessivamente mortiço, semelhante ao que sahe d'uma lamparina, brilhava como um ponto entre duas taboinhas de persiana, na ultima janella da direita, em uma alcova lateral ao salão. Debrucei-me longo tempo sobre o apoio da portinhola para enxergar o ponto vermelho e expirante. Mas não chorava já. Ia tranquillo, de gelo, prostrado de fadiga.—Dormirá ella agora?—me dizia eu.{92}

 

XLIX

Os primeiros dias, que seguiram esta noite horrivel, passei-os n'um estado de stupor de que não havia arrancar-me. Esperava não sei que, que devia terminar-me a vida e os males.—Isto não póde acabar assim!—dizia eu. Vinte vezes ao dia, pedia a minha correspondencia mas nem se quer abria as cartas que o meu creado me trazia. Bastava-me vêr a lettra dos sobre-escriptos. De Fanny não vinha alguma. Affigurava-se-me que ella tinha morrido. Isto amedrontava-me. Cheguei a duvidar da minha rasão.

Ao oitavo dia, depois da nossa ultima entrevista, tive um presentimento de que ia vêl-a. Preparei tudo o que queria dizer-lhe. Senti-me vencido. Queria pedir-lhe perdão; declarar-lhe que estava prompto a submetter-me; queria supplicar-lhe alguma piedade para os meus padecimentos. Esperei-a em vão até noite fechada, contando as horas nas pulsações alternadamente precipitadas e desfallecidas do meu pulso. Não veio. Não escreveu. Ninguem me deu um instante de esperança fazendo vibrar a campainha da minha porta.

Ao anoitecer, sahi na direcção da casa d'ella. Chegando á alameda fiquei surprehendido, vendo{93} tudo fechado. A ideia de Fanny ter ido para longe, tão longe que eu não podesse vêl-a mais, atravessou-me o cerebro como um dardo. Com horrivel angustia, mas affoitamente, como um covarde, a cuja cabeça subiram as fumaças da bravura, bati á porta e perguntei ao creado se a senhora estava em casa. Eu estava pallido e tremulo; mas elle não deu fé.—A senhora está no campo—respondeu, «Onde? em Chaville?»—sim, senhor.

Fui encostar-me a uma arvore por que me sentia desmaiar.

Ao cabo de alguns minutos decedi-me a ir para casa. Era meia consolação saber que Fanny estava ausente. Comprehendi, emfim, o motivo que lhe estorvara a vinda; mas não comprehendi por que me não escrevera durante oito dias. Eu deveria suppor tambem que ella esperaria carta minha; mas havia ainda muito egoismo no meu despeito.

—Quem sabe se ella me espera lá—dizia eu para consolar-me.

Apenas esta ideia se me abriu no espirito que um desejo imperioso de vêr Fanny, á custa de tudo, e logo, me assaltou. Estava então perto de casa. Entrei rapido e pedi o meu cavallo. Ajudei mesmo o creado a apparelhal-o. E lancei-me ao caminho, cheio de esperança, com as esporas cravadas nas ilhas sacudindo as redeas, á desfilada, enlameando passageiros, sem mandar arredar ninguem.

Tanto corri que receei ter-me desencaminhado, e não conheci a casa de Fanny, que estava em frente de mim, vagamente alumiada, debaixo das agigantadas arvores. Mas, alçando-me sobre os estribos,{94} para olhar por cima do muro conheci o pavilhão. Apeei, e entrei no bosque para prender o cavallo a uma arvore. Depois, retrocedi, e vi com surpreza que a graderia do jardim estava aberta. Um creado de farda estava á porta. Ao cabo da aléa, no cunhal da casa, vi brilhar as duas lanternas d'uma sege immovel.

A meio caminho entre a casa e a grade, um pouco á esquerda, no centro de um amplo taboleiro de relva, os vidros coloridos do pavilhão fulguravam aos raios d'um candieiro posto no interior.

—Que segnifica tudo isto?—perguntei eu, caminhando ao longe do muro para encontrar a brecha por onde eu passára duas vezes. Mas apenas puz o pé no jardim, fiquei como pregado no chão. Estava ouvindo imprecações e soluços; do pavilhão, a vinte passos de mim, é que elles sahiam.

Cobriu-me o corpo todo um suor frio. Eu tremia como a folhagem dos arbustos, sob as quaes me escondera.

Neste momento, a sege correu a grande trote dos cavallos para a grade; de certo o cocheiro obedeceu a um chamamento que eu não tinha ouvido. Ao chegar defronte de mim, parou, e o creado da almofada abriu a portinhola. Tinham cessado os gritos e os soluços. Sahiu um homem do pavilhão, e fechou-se a porta. Reconheci-o. Que outro poderia ser? Assentou-se nos coxins, o creado subiu para a almofada, o cocheiro picou os cavallos, a sege passou a grade, rodou sobre a calçada sonora, e a grade foi fechada pelo creado de farda que estava ao pé.{95}

Logo que este homem, caminhando para casa, se sumiu entre o arvoredo, avancei precipitadamente, sem precauções. Antes, porém, de levantar o trinco da porta, examinei atravez dos vidros. No centro do pavilhão estava uma meza redonda, com um candieiro em cima. Em toda a roda corria um amplo divan; e deitada sobre este divan, vi uma mulher chorando, com a face entre as mãos, dando soluços de rasgar o coração, era ella! Fanny! ella! Entrei precipitadamente abri-lhe os braços, e lancei-me de joelhos a seus pés.

Mal me havia reconhecido, quando expediu um grito lacerante, apertou-me a cabeça entre os braços, e abafou-me contra o seio. Eu não podia fallar nem respirar. Fanny beijava-me os cabellos, desgrenhava-os com a face, mordia-os para suffocar os gritos; depois ergueu-me a cabeça e eu senti cahirem-me lagrimas nas faces, em quanto os seus labios frementes se agitavam sobre os meus vertiginosamente, e suas mãos palpitavam por sobre meus hombros, face, pescoço, em phrenetica inquietação. Finalmente, cahindo desfallecida e quebrada de dôr tirou por mim, e arrastou-me na quéda sobre o divan. Ergui-me. A partida do marido, e as lagrimas d'ella, eram-me coisas incomprehensiveis. Entretanto, fiz quanto pude por chamal-a á vida. O candeeiro, cahindo, apagara-se. Caminhei para Fanny ás apalpadellas, arranquei-lhe os colchetes do vestido, e tirei-lhe a pedaços o colete. Depois, á força de caricias, rogos e orações, aquecendo-lhe as mãos com as minhas, e bafejando-a com o meu halito ardente, consegui reanimal-a. Soltou um longo{96} suspiro, e ergueu-se amparada nos meus braços, e parecia reflectir. Torrentes de lagrimas lhe rebentaram dos olhos, e lançou-se a mim com tanto amor, e com ar de tanta piedade, que eu, a soluçar tambem, a comprimi ao peito.

—Oh! Roger! meu Roger—exclamou Fanny com a voz entrecortada—se soubesses que desgraçada eu sou! Consola-me. Ama-me. Soccorre-me. Oh! que bem me faz o chorar sobre o teu coração... Meu querido Roger!

Os soluços embargaram-lhe as palavras. Instei com ella que se explicasse. Eu não sabia ainda que dôr podia ser esta, que rompia em gritos de indignação.

—Teu marido sabe tudo, sim? disse-lhe eu. Fanny fez um meneio de cabeça negativo, e respondeu:

«Não, não é isso; mas ha um anno que te minto. Eu sou a mais desgraçada, a mais humilhada, a mais insultada das mulheres. A escoria, o opprobrio, as infimas mulheres não são mais desgraçadas que eu!

A este grito, que lhe fugia do peito não tinha eu que oppor. Fiquei estupido e estupefacto. Não achava palavra que lhe dissesse. O que eu fazia era abraçar convulsamente a lagrimosa mulher. Subito, um raio de luminosa previdencia me esclareceu o espirito.—Se não aproveito esta occasião para confessal-a, nunca saberei nada—dizia eu commigo. Tranquilla deste lance, nunca mais fallará.

Era judiciosa esta idéa. Fiz bem escutar-lhe a{97} inspiração. Empenhei, pois, toda a minha eloquencia para tirar desta pobre mulher o segredo, que por tão largo tempo, me havia occultado. Instei, animei-a, interroguei-a, mostrando-me consternado por sua dôr. Entrei, pois, no segredo d'uma deploravel historia, não d'uma vez, mas arrancando-lh'a a promenores, a pedaços, por que a sua exaltação, deixando-se ir até dizer tudo, era intervallada de reticencias nos mais delicados pontos da narrativa.

Fez-se luz então para mim tudo o que houvera escuro e incomprehensivel na sua vida e proceder.

 

L

O marido de Fanny não era o homem fastidiosamente bom que eu cuidava. Era um terrivel déspota. Mulher, amigos, creados, todos se acurvavam aos seus caprichos e obedeciam passivamente ás exigencias do caracter d'elle. Por zêlos, não é que elle opprimia a mulher, senão que por indomavel espirito de vontade. Em sua casa havia uma unica pessoa que dava regra e á qual deviam amoldar-se habilmente as de mais. Não se tinha em conta de mero homem; dava-se ares d'uma especie de sol que allumiava; aquecia, e communicava vida a tudo que o rodeava.

Pelo que, logo que viu sua mulher, aconselhada{98} por mim, desviar-se insensivelmente da norma de vida que elle traçara, ficou primeiro, como pasmado; mas, com um carregar de sobr'olho, fez que Fanny entrasse immediatamente na ordem. Todavia, não lhe deu canceira averiguar o por quê d'aquella timorata tentativa de emancipação. A seu vêr, toda a mulher era ente chimerico, dirigido por machinismo incomprehensivel, que não merece analyse séria. Nem elle tinha arrebatado Fanny, nem a tinha esposado por amor. Não. Seduzira-a por que era formosa, e elle queria que uma mulher formosa fizesse as honras de sua casa. Raptou-a porque lh'a negaram. Esposara-a porque era rica, e elle pobre, e, de mais, queria, a um tempo, enriquecer-se e propagar-se.

E, como a visse submissa, todo elle era disvelos. Era-lhe ponto de honra gastar cada anno, com sua mulher dobrado do rendimento do dote, e a miudo a presenteava com ricas dadivas para ostentar sua liberalidade. Sentia por ella, em summa, alguma coisa d'aquella rudeza attenciosa que tem os cavalleiros arabes pelos seus cavallos de fina raça. Usam elles mesmos arraçoal-os com uma das mãos, tendo na outra o chicote prompto a castigar o menor desmancho.

Por largo tempo, Fanny, subjugada por aquella vontade superior, docilmente se sugeitou. Pensou, executou, viveu por elle. Á força de paciencia, obteve, por fim, de seu senhor uma apparencia de liberdade. Alguns mancebos—segundo me pareceu—approveitaram isso para cortejarem franca e assiduamente a bella mulher cujo ar de tranquillidade{99} inculcava um longo habito de rebellião interior, e de dôres inexpansivas. D'isso, porém, o marido nem se quer suspeitou. Sómente o accaso lhe trouxera ás mãos uma carta de comprometter. A scena immediata a este descobrimento foi terrivel. Não se deram, com tudo, gritos, insultos, nem brutalidades degradantes; nem duelo, nem explicações, nem separação forçada dos dois imprudentes, que teriam castigado irremissivelmente o orgulho do esposo, mesmo quando o vingavam. O intelligente marido o que fez foi declarar a sua espoza que guardava a carta. E, desde então, cada vez que a via inclinada a emancipar-se, servia-se da tal carta para a fazer tremer e submetter-se. Um quarto de papel tornou-se nas mãos deste homem um punhal com que elle espicaçava a mulher para fazel-a andar deante d'elle.

Era, pois, um vilissimo homem? Não: era simplesmente orgulhosissimo. Ainda que aquella carta preciosa fosse mil vezes mais explicita, o marido não lhe daria credito. Em quanto a elle, aquillo, quando muito, era a prova d'uma creancice perigosa que, astutamente explorada, poderia degenerar em apparencias de crime. Mas no crime é que elle nunca acreditou. E acreditar, como? Era impossivel, pela simples razão de que sua mulher não podia mostrar-se criminosa para com elle. E não podia por que era sua mulher. E não podia, por que elle... era ELLE. Por tanto, censurando um pouco essa creancice humilhante, não se mostrava inquieto nem menos feliz. E continuou a amar a mulher, a seu modo, com aquelle seu coração de ferro. Depois{100} de quinze annos de casado, vinham ainda ás vezes uns dias em que elle era todo amores com ella.

A arma, porém, continuava a ser arma em suas mãos, e sempre com serventia. Primeiro, graças á carta, obteve de Fanny que não fallasse mais com sua mãe, que elle detestava, por que o não quizera de bôa vontade acceitar por genro. Depois, exigiu que fizesse crear os filhos em peitos alheios, sob pretexto que os cuidados maternaes lhe desbotariam o gosto dos prazeres da sociedade. Depois, sem consultal-a, e sem visivel utilidade, vendeu o castello onde ella nascera, onde passara a infancia, e o parque onde estavam sepultados seu pai e seus dois irmãos. Finalmente, graças á prestimosa carta, não havia repressões que não lhe ordenasse, vexações que não lhe impozesse mas sem maldade, mas prodigalisando-lhe sempre obsequios e cortezias, principalmente em publico. E a vida de Fanny tornou-se um inferno no qual um implacavel demonio a torturava com uma mão, e acariciava com outra.

Quando, porém, Fanny resistia a exigencias graves, ou a ultrages brutaes á delicadeza d'ella, é que o marido rompia em transportes inauditos. Nesse caso, perdia a consciencia de si proprio, mas por uma hora sómente. Deixava de ser o homem urbanamente desdenhoso que trazia na cara os mais exquisitos matizes da superioridade de caracter, e cujo ar affavel e franco, parecia dizer a todo o mundo: «Vede que não ha que temer de mim.» Transfigurava-se em leão que a natureza amassara com as suas mãos callosas, e que a educação desbastara apenas. Hirtavam-se-lhe como crina os cabellos.{101} Flammejavam-lhe os olhos como reflexos d'oiro fundido. As ventas dilatadas assopravam um halito ardente. A boca contrahida abria-se, e mostrava dentes admiraveis, como se ameaçassem dentadas. Crispavam-se-lhe os punhos cerrados. Era medonho. Havia um insulto que não deixava nunca de esbofetear a victima. A carta dava sempre o pretexto. E era sempre o mesmo insulto, a mesma palavra infame que a marcava na fronte como ferro em braza, e que a rebaixava—como ella dizia—á ultima escaleira de todas as mulheres.

Mas a sorte, que não tem compromissos com as paixões e os caracteres, obstinava-se por vezes a brigar com este athleta. Feriam-no successos imprevistos: obstaculos estranhos sahiam a empecer-lhe os passos. Então era sublime! Não blasphemava, não injuriava a sorte, por que sabia que era inutil; mas arcava com os successos e obstaculos, e luctava silenciosamente, friamente, pacientemente. Por custume, dominava a sorte. Quando lhe correram risco os bens da fortuna, á força de audacia, conseguio resarcir a melhor parte, abandonando a outra, como um favor irrisorio aos credores, seus emulos. Outro qualquer, no logar d'elle, esmoreceria, que vontade como a sua não havia quem a tivesse. Mas um exito mediocre não bastava a este homem, insaciavel de exitos estrondosos. Decidira safar o seu navio de entre os escolhos onde fôra a pique. Queria salvar tudo, carregação, apparelhos, e até o lastro. Jurára de não ceder ao oceano, um prego só. Eil-o ahi, que, descançando, na meditação de oito dias, dos seus primeiros trabalhos, reapparece no{102} sitio do naufragio mais azafamado, mais resolvido, que na primeira vez. Esta partida subita cauzara a ignobil disputa de que eu fôra involuntaria testemunha.

 

LI

Parece que, ao jantar, em poucas palavras annunciara elle os seus projectos a Fanny. Mostrara-se tranquillo, meditativo, quasi affectuoso. Gracejou com Fanny sobre o seu ar melancolico, motivado pela vida absurda do campo. Brincou com os filhos. Foi polido, como sempre, com os creados que o serviam. Ao pospasto, levantou-se, pedio um charuto, accendeu-o, e dirigiu-se ao pavilhão, com Fanny sobraçada, dizendo-lhe frioleiras com geito amavel. Como os filhos os seguissem, brincando na relva, foi ter com elles, abraçou-os, despediu-os, e pediu-lhes affectuosamente que fossem brincar mais longe. Depois, assentou-se no divan do pavilhão, cuja porta estava aberta, fumando o charuto, e bebendo, o seu café aos golinhos. Ao cerrar da noite, veio o escudeiro com a luz. Pediu-lhe que mandasse pôr os cavallos á carruagem. Até ahi dissera sómente frivolidades com ar festivo; mas, retirado o escudeiro, ergueu-se a fechar a porta, tirou tranquillamente do bolso um papel sellado, e disse a sua mulher:{103}

«Minha querida, escreve a tua assignatura ao lado da minha no fundo d'esta folha de papel.

Fanny pegou da penna que elle lhe offerecia, mas, antes de escrever, disse-lhe:

—Que são estes engrimanços que eu assigno?

«Não é mais que um instrumento de doação reciproca de todos os nossos bens.

Fanny depoz a penna sobre a meza, e perguntou-lhe mansamente algumas explicações sobre o uso que elle ia fazer d'aquillo. O homem avincou a testa, e annunciou-lhe que, por algum tempo, ia «reassumir o negocio, e carecia de muito dinheiro.»

—Não somos nós já bastante ricos?—disse Fanny.

«Não.

—Então vai ser exposto o meu dote?

A esta pergunta, encarou-a carrancudo, e respondeu provocante e glacialmente:

«Sim.

—Então não assigno—disse ella como atterrada da sua coragem—porque não quero expor os bens de nossos filhos.

Foi então que estalou a borrasca. Foi curta, mas pavorosa. Vendo-se contrariado por uma impossibilidade, o déspota rugiu de furor. Pela primeira vez em a sua vida, travou do braço da esposa, apertando-lho para obrigal-a a assignar, e pizou-lh'o. Fanny supportou, não respondeu, nem chorou. Cumularam-se sobre ella desprezos, incriminações, injurias, todos os insultos e vilanias compendiadas pela recordação das passadas. Veio tambem a affronta suprema, a palavra fatal, estalar na lingua do insultador.{104} Ahi é que Fanny chorou, soluçou e decidiu-se a assignar. Serenou logo o marido: agradeceu, e quiz beijar-lhe a mão; ella, porém, mostrando-lhe o braço contuzo, disse:

—Não é por isto, Deus me é testemunha, que eu o desprezo; é pela covardia do insulto. Dito isto, elle pediu perdão por de mais, chamou-lhe creança e má cabeça, abraçou-a por força, chamou o cocheiro e partiu.

 

LII

Logo que Fanny, cedendo ás minhas instancias, me contou aquelles extraordinarios successos,—não ordenados como os eu repito, mas em fragmentos incoherentes, misturados de raptos de rancor;—logo que eu nada tive que indagar, e que ella immudeceu por não ter nada que contasse, ficamos algum tempo a contemplar-nos silenciosos, á luz tibia das estrellas, com spasmo temeroso. Alguma coisa formidavel se estava erguendo entre nós modificando estranhamente a nossa situação.

Eu não pude, ainda assim, entrar logo na averiguação dos factos que, forçosamente, deviam derivar d'aquella surprehendente confissão. Eu, vendo Fanny ainda pallida, descompostos os cabellos, e tremula, só pensava na sua humilhação.—É pois{105} desgraçada!—disse eu no intimo da minha alma. Tirei-a a mim suavemente pelo colo, busquei-lhe os labios, e abriguei-a nos meus braços com o ardor da esperança e da piedade.

Oh! como foi longo, estreito e desesperado aquelle abraço! Com elle se esposaram nossas almas, e ali sentimos o que ha de piedade na mudez d'aquelle apertar, de consolações nos suspiros, e que sympathia reflorece da mixtão das lagrimas! Éramos sósinhos, silenciosos, n'uma vaga escuridão, adornada pelo tibio alumiar de noite de estio. O desalinho dos vestidos de Fanny, o cansaço de chorar que a retinha deitada nos meus braços, o pejo d'uma confissão, que, posto que lhe desse alivio á alma, lhe opprimia o orgulho pela primeira vez; a felicidade de nos revermos mais amantes, mais alliançados que nunca, após uma scena terrivel que devia desligar-nos: isso tudo insinuava-nos não sei que desaffôgo de expansão reciproca, mesclada de amargura e dulcificação. Emquanto meus labios lhe rossavam de leve os longos cabellos desannelados, surprehendia-lhe no coração a velocidade de movimentos que se me figuravam surdas expressões de cólera. O arrepender-se de ter defendido por tanto tempo e nobremente, contra os meus ataques, aquelle que lhe era um jugo na vida, arrancava-lhe gritos de uma ironia implacavel. A irritação do insulto, e a indignação do aviltamento immerecido, apertava-lhe os braços em volta do meu pescoço mais energicamente do que nunca o fizera o amor. Ao mesmo tempo, o pesar de ter flagellado o amante, cuja só presença lhe estava sendo a mais terna das{106} consolações, como a mais rapida e segura das vinganças, inspirava-lhe a submissão e a supplica. A lembrança do meu rival, presente a nós, ajuntava uma acrimonia angustiosa aos beijos d'ella, e uma dôr infinita ás minhas caricias; e n'aquelle instante ao menos, em que, sem fallar, trocamos tantas sensações e idéas bem comprehensiveis, Fanny, estava emfim, na minha idealidade, absolutamente, e para sempre, tão ligada a mim quanto apartada d'elle.

 

LIII

Quando recobramos a palavra, o furor, reconcentrado em mim, fez subita explosão.

Fanny ficou estupefacta. Pronunciei, como um demente, palavras ardentes, sem nexo. Uma especie de loucura acerava, como laminas de um punhal, cada uma das minhas phrazes, e a raiva hervava-as de peçonha a mais corrosiva.

O sentimento da impotencia da vingança, a certeza de que os males d'aquella mulher deviam renovar-se infinitamente, e os meus ciumes passados, e mais que tudo, a memoria das nossas deploraveis questões, causadas por aquelle indigno homem, faziam-me offegar de colera como homem que acaba de levar uma bofetada, e não pode despedaçar entre as mãos aquelle que lhe gravou o ferrete{107} deshonroso... Na minha demencia, parecia-me que o amor de Fanny, perdia tanto do seu valor, quanto mais desgraçada ella era; e, envergonhado d'esta atroz idéa, meditava em matar, e dar por ella a minha vida. Fanny, porém, ainda abatida, mais queria ser consolada que vingada.

Abraçou-me, e, coisa estranha! foi ella que me affagou para me pacificar.

 

LIV

Passei o dia seguinte a recordar tudo o que tinha sabido. Havia muito que eu não sentira, como então, o espirito desoprimido de duvida.

Um feliz provir se descortinava ante os meus olhos, depois de tão tormentoso passado, como serenos valles e descampados aos olhos do viajante que desce a ladeira escarpada de perigosas serranias. A esperança d'uma existencia quieta refrigera a alma como a briza da tarde que succede aos ardores do dia, e agora tudo me convidava a repousar-me á borda da senda facil, que docemente se aplanava debaixo de meus pés contusos. A serenidade dos dias, a auzencia das inquietações, eram a minha prespectiva. Pensava n'isto sempre, e minha alma enlevada derramava-se em effluvios de reconhecimento ao acaso que se cansara, emfim, de me transviar.{108}

Entrava n'este sonho necessariamente a imagem de Fanny. Era a companheira que me seguira através dos abysmos da paixão. Soffrera irmamente commigo a longura das caminhadas, a incerteza do fim, os espinhos occultos sobre os quaes, juntos, laceravamos os pés. A mesma dôr nos arraiara de sangue os olhos, e abrazára os nossos halitos. A ancia do repouso sentiramol-a ambos ao mesmo tempo. E, como se fosse preciso que o mais debil dos dois soffresse mais, Fanny dava-me alentos para a resignação, e com as mãos trementes enxugava-me da fronte o suor do desespero, e ao mesmo tempo escondia-me dôres e trances particulares que ella suportava heroicamente para me não angustiar.

Mas agora esses desgostos que eu surprehendera, estavam sanados. Renascer não poderiam mais. Ambos livres do phantasma que tão cruelmente nos perseguira, podiamos, em fim, senhores de nossas acções, compensarmo-nos amplamente do supplicio e dos terrores. Á maneira de dois fugitivos, que não deixaram pégadas, e vão ás bordas das fontes, e á sombra dos bosques silenciosos, sacudir o pó das sandalias, nós nos íamos, emfim, vingar da sorte estupida, esquecendo os tormentos que nos infligiramos.

D'est'arte sonhava eu, a sós commigo, contemplando a imagem querida de Fanny que me sorria entre as mãos, cingida em moldura de ouro, como d'uma aureola. Assim me comprazia dispondo ante nós as paragens do nosso futuro.

Nunca eu afagara mais cruel illusão!{109}

 

LV

O dia em que tornei a vêr Fanny, era um dia explendido!

Veio a minha casa, de manhã, deliciosamente vestida, como para celebrar dignamente as nupcias da nossa felicidade. O seu vestido côr de malva, que tão gentilmente condizia com a frescura da sua pelle, resplendia sobre as fórmas esbeltas e finas, e caia-lhe em reverberos, sobre os pés. Os braços meio nús, sobresahiam das rendas das mangas, com reflexos baços como os de marfim não lustrado ainda. Do corpete chanfrado sobre o seio elevava-se, um pouco inclinado, o colo alvissimo. Por de sobre as faces ondulavam-lhe os cabellos.

Nenhum ruido nos perturbava, a não ser a campainha do relogio que não ouviamos, e, de longe em longe, o rodar precipitado e passageiro das carruagens, estremecendo a calçada. Conversamos, mais uma vez, sós por sós. Fanny comeu pouco, sorrindo, como a pedir perdão. Eu ergui-me para servil-a, e abraçava-a na passagem. Ella ministrava-me o vinho, com graça, vertendo-o d'alto, e eu todo me enlevava na formosura d'aquelle braço que se inquadrava no vacuo sombrio da sua larga manga. Nunca o nosso quarto nos parecera tão bonito! Queriamos d'alli não sahir mais!{110}

Ergueu-se Fanny, e foi sentar-se no diwan. Colloquei-me a seus pés sobre uma almofada, com o cotovello sobre o joelho d'ella, e longo tempo estivemos assim mudos a contemplar-nos. Com uma de suas mãos, intromettidas nos seus cabellos, levantava-os aos tufos, e devidia-os. E eu beijava-lhe a outra mão, travada na minha.

—Oh Fanny! se tu não fosses casada!...—dizia-lhe eu com paixão. E ella respondia:

—Oh Roger! se tu não fosses cioso!...

Não sei como se passou o dia; mas mui rapido passou! Em mutuos olhares de extasis, em abraços doidos de ternura, em ir e vir d'uma para outra camara, que horas tão instantaneas correram! Quiz saber a historia da minha vida. Contei-lh'a: era simplissima. Chorou ouvindo a narrativa da morte de minha mãe.

Muito havia que não estiveramos tão intimos, serenos, e felizes. O rancor atroz do ciume não nos separava. Expandimo-nos sem reverva: por isso mesmo foi completo o socêgo de nossas almas. Havia ali felicidade que bastaria á boa fortuna de dez amantes.

Cotejando em meu espirito aquelle dia singular com todos os precedentes, lembrou-me de repente a causa que, por mais d'um anno, nos fizera tão desgraçados. Rompeu de minha boca uma exclamação furiosa, e, por piedade das angustias de Fanny, tanto tempo escondidas, não pude conter-me que não exprobrasse o oppressor.

Fiquei como empedrado quando vi Fanny franzir então a testa, e morder os labios. Relanceou-lhe{111} rapida na face uma sensação, como o relampago silencioso que fende uma nuvem. Depois sorriu, e acalmou como o céo d'uma tarde estiva. Eu, porém, curei de indagar a causa d'aquella sensação dolorosa, e tornei-me pensativo e triste, por não sei que confusa remeniscencia.

 

LVI

Fanny retirou-se sem parecer notar em mim turvação alguma. Depois que sahiu, mil recordações uma apoz outras, como vagas d'um mar silencioso cumulavam-me o espirito. O porte de Fanny pareceu-me agora mais que nunca incomprehensivel.

—Esta mulher é a mais extraordinaria ou a mais vil das mulheres!—Disse, e repassei na memoria quanto sabia d'ella. Mas, outra vez ainda, tudo me pareceu contradictorio em sua indole.—Por que defendia o meu rival quando eu ignorava as suas violencias? Por que o accusou depois? Por que impallidece agora se me ouve reprovar as acções do homem que a ultraja? Oh! é possivel supporte tamanhos despresos, vexações tão aviltantes, e conserve a minima affeição a um homem que a tortura e humilha!! Indecifravel enigma. Ama-me ella? Ama o marido? Que ha ahi de commum entre essa mistura de seres, de sentimentos, de calculos, de{112} transações, e o amor, esta paixão absoluta, intolerante, e exclusiva? Deste modo ajuntava, separava, e confundia todos os factos da nossa existencia commum sem poder desinredar o inextricavel fio da meada. Cada facto, por seu turno, vibrava-me no ouvido, como um som agudo; e, á maneira d'um clamor synistro, estrondeando por sobre tudo, rugia incessante aquella palavra da consciencia de Fanny, proferida, um dia, para meu supplicio:

—Eu mentiria se dissesse que o não estimo.

 

LVII

Desde então, illaqueado mais estreitamente que nunca na rede das incertezas, um só desejo me dominava—tirar de Fanny a explicação do seu caracter, não interrogando-a, mas compelindo-a a extremos indicativos.

Aggredi acintemente o marido deante de Fanny: difficil fôra o defendel-o, por que o ataque era dirigido ás violencias que lhe eram a ella feitas. Limitou-se, primeiro, ao silencio, erguendo ao céo os olhos, por que eu a estava pranteando; depois, mostrou-se descontente da asperesa das minhas palavras. Repentinamente lhe assomou á face o sangue, os labios cerraram-se, as palpebras descahiram, isto a tempo que eu lhe estava exaltando a{113} resignação para melhor accusar os caprichos do marido. Obedeceu, por fim, á sua eterna preoccupação, e disse-me:

—Não fallemos mais de tal: tudo isso é triste; mas eu sou obrigada a submetter-me. Ao cabo de tudo, sempre é meu marido!

 

LVIII

Estas palavras nem me espantaram nem indignaram. Esperava-as. Sorri com amargura, ouvindo-as dos labios da mulher estremecida. Eu passeava d'um para o outro lado no meu quarto, e ella seguia-me com a vista.

—É a derradeira illusão que morre!—exclamei eu.

Fanny pediu-me a significação d'estas palavras, e eu recusei dar-lh'a, e disse:

—Já são que farte as questões que temos ha um anno; por minha vez, te rogo que não te importe saber o que se passa em mim. Amemo-n'os taes quaes somos. Por mais que desesperemos e resistamos nunca se mudará a nossa indole.{114}

 

LIX

Durante a ausencia do marido, que foi de mais de seis mezes, houveram grandes alterações na nossa vida. Eu via Fanny quasi todos os dias. Ambos abusavamos da liberdade d'ella! Vinha passar commigo todo o tempo disponivel. Frequentes vezes jantavamos juntos. Encontravamo-nos nos passeios e no theatro, e nas lojas. Aqui, sem nos mostrarmos conhecidos, trocavamos olhares furtivos, e, perpassando ao longo dos balcões, sentiamos as delicias instantaneas do contacto. Escreviamos, além d'isso tudo, cartas infinitas, e trocavamos flôres.

Fanny esmerava-se em attenções, para compensar-me do mal que me fazia. Liberalisava-me aquelles delicados disvellos que as mulheres aguardam dos homens, e dos quaes disvellos são tão economicas, quando se dignam conceder-lh'os. Beijava-me a mão, chamava-me seu querido filho, mostrava-se submissa, e esmerava-se por que não houvesse coisa que turvasse a serenidade da minha vida. Nunca, porém, tratando-me como dominador, se rebaixava. Ajoelhada deante de mim, tinha a inteira dignidade d'uma rainha.

Ás vezes, quando as bellas noites do outono eram mais balsamicas e suaves que as do estio, fugiamos{115} da cidade, como aves cansadas do calôr do dia. Hombro com hombro, recostados ao respaldo d'uma carruagem fechada, com as mãos inlaçadas silenciosos, iamos ao bosque buscar um pouco de ar, de silencio, e de solidão. Rentes comnosco passavam fogosas parelhas tirando por grandes calexes descobertos, cheios de mulheres risonhas cujos véos fluctuavam ao vento. Ouviamos o fremito das rodas na areia, o resfolgar dos cavallos, e o estalido dos chicotes. Viamos agitarem-se entre as arvores as luzes das lanternas, e mirarem-se na agua morta dos lagos as sombras espessas dos bosquesinhos de pinheiros. A lua, ás vezes tão melancolicamente ingastada no céo como nodoa de prata, alumiava grandes moutas de espinheiros, donde subiam, razando as hervas, nuvens alvas de vapor. Ebrios do aroma das carvalheiras, e da mollidão dos nevoeiros luminosos, apeavamos no angulo d'algum caminho estreito, e nos intranhavamos por debaixo da arcaria de immoveis arvores, passeando vagarosamente, mais perdidos em nosso scismar do que o estava a verde folhagem á sombra da noite linda. Era delicioso aquelle momento em que Fanny, infadada, se me pendia do braço, e justapunha a sua espadua á minha! Não fallavamos, sentia-se ali o viver, ouviamos as nossas respirações; e, assim unidos, achavamos doçura estranha n'aquelle nosso silencio e na incerteza de nossos passos.

Algumas vezes, com tudo, suscitavam-se ligeiras discussões, remeniscencias attenuadas de antigas discordias. Fanny, porém, tomando-me, a rir, pelo que eu era, uma creança, ou fazia que me não intendia,{116} ou, sacudindo-me o braço em ar de gracejo, dizia:

—Ora vamos, não se falla aqui do que já lá vae.

Todos os lados accessiveis da minha vida ia-os ella penetrando cada vez mais. Como queria tudo saber, imperiosamente se senhoreava de tudo, passado, presente, e dispunha de tudo, a bel-prazer do futuro. Eu pensava em tudo como ella. Se me dava conselhos eu seguia-os como ordens. Em minha casa era ella que dirigia tudo. Os moveis como que se moviam espontaneamente para se collocarem nos logares designados por ella; os quadros entravam n'outras molduras; os espelhos inclinavam-se á vontade d'ella para lhe espelharem por toda a parte a imagem. Era-me prazer grande o vêl-a assim dispôr do que era meu. A minha casa, tornada sua, parecia afeminada. Já lá se não viam por sobre as mezas esporas, chicotes, caixas de charutos; nem junto das paredes tropheus de armas quarteadas; mas, em logar d'isto, estavam bocetas de flôres, alvissimas caças rojando sobre os tapetes, mobilia colorida a lacca e incrustações de Boule, e caixas de perfumarias. Levantavam-se do tapete agulhas e fios de seda e lã: no rebordo da chaminé brilhavam o dedal e as thesouras.

Foram, no drama da nossa vida, esses seis mezes uma especie de entre-acto. Nada nos faltava para a felicidade, excepto a confiança. Fanny estava sempre sobre-rolda receando ataque improviso, e eu conservava no coração um certo azedume. Não havia consolar-me de não ter podido vencer os escrupulos da mulher que eu tanto amava.{117}

Cheguei á fraqueza piegas de pedir-lhe conselhos para a direcção dos meus bens. Fanny não entendia nada de negocios, mas dava aproveitaveis pareceres, porque eram sempre dictados por um espirito de desconfiança feminil. Pois não a consultava eu até em compras de cavallos? No tocante ao vestir era ella quem decidia soberanamente dos feitios e das côres. Arranjava a minha roupa branca, a rir, erguida em pontas dos pés para chegar aos lotes dos armarios, e intromettia-lhe bolsinhas odoriferas que trazia comsigo, e nunca pude encontrar n'outra parte. Todos os instantes dos meus dias estavam, em fim, contados. Não dava um passo sem sua approvação; não comprava luvas ou gravatas que ella não elegesse. O numero dos meus amigos fixou-o ella. Desprezei tres, porque tinham nomes que não agradavam a Fanny. Tudo isto me parecia delicioso. Viver sem ella é que eu não podia por mais que fizesse. Estava enfeitiçado.

 

LX

Mas o meu ciume, esse não estava morto, nem se quer entorpecido: apenas tinha variado um pouco de objecto. Desde que o marido estava auzente, já não podia soffrer por causa de uma partilha que não existia; mas os menores sentimentos que Fanny{118} me deixava adivinhar, inquietavam-me. Afóra os filhos, e a mãe que ella via ás escondidas, eu não lhe consentia amar ninguem. Fanny sorria, encolhendo os hombros. D'este modo nos tyrannisavamos mutuamente.

Um dia, quando eu lhe tirava o «corpete», uma carta grande e quadrada—lhe fôra entregue quando saía de sua casa—escorregou-lhe do peito e caiu aos meus pés. Levantei-a. Tinha o sêllo de Londres. Encarei Fanny, que, pallida, estendia a mão tremula a tomal-a.

«Teu marido escreve-te?» disse-lhe eu, entregando-lh'a.

—Que pergunta!—disse ella.

—Escreve-te regularmente?—ajuntei eu, depois d'um momento de silencio, durante o qual eu sentia as garras do meu antigo furor atassalhar-me o espirito.

—Pois então!... disse ella—todas as semanas.

«Porque te escreve elle?... Separados por tão violenta discussão, parecia que os corações deviam separar-se para sempre.

Fanny olhou-me com espanto e ficou pensativa. Mas, como eu esperasse resposta, replicou:

—Espantam-te sempre as mais singelas coisas. Não é natural que meu marido me diga dos seus negocios, e me falle dos seus filhos?

«É justo... Eu não tinha pensado n'isso—murmurei.

Fallou-se de muitas coisas; mas, a sós commigo, reflexionei immenso.

«Respondes ás cartas de teu marido?{119}

Fanny fez-se livida, hesitou, e deu signaes de impaciencia. Depois simulou um ar de indifferença, respondendo:

—Escrevo-lhe raras vezes;

—Sim? e, diz-me cá, que lhe escreves?

—Não sei. Escrevo-lhe friamente. Falla-se de negocios. Isto não te interessa nada.

Fiquei um tanto inleado; mas não pude reprimir-me.

—Como é que nunca tiveste a idéa de mostrar-me as cartas de teu marido?

Roger! Roger!—exclamou sorrindo contrafeita—eu creio que estás louco! Uma mulher póde por ventura confiar a alguem, principalmente áquelle que ama, o segredo dos negocios de seu marido?

—Tambem é verdade—murmurei eu.

Fanny quiz logo aproveitar a vantagem que obtivera.

—Feliz seria eu, disse ella, podendo mostrar-te essas cartas que te dão tanto que pensar. Provar-te-iam que é uma sem-razão recear alguma coisa. Sabe, pois, espirito desconfiado, que não se póde viver em menos união do que eu vivo com meu marido.

—De certo!

—Como podes suspeitar o contrario depois que te confiei as minhas amarguras?

—D'antes, tambem me confiavas o segredo dos negocios domesticos: não esqueças isto, Fanny.

—Oh! hoje é muito differente.

—Porque?

—Porque... cá me entendo.{120}

Isto fez-me reflectir novamente. Fanny levou as mãos ao céo com piedosa expressão; eu estava como involto nas sombras da morte. E assim nos contemplavamos. Era-me impossivel a quietação. Agitava-me d'um para outro lado.

—Se dizes a verdade, Fanny, por que me não mostras as cartas que lhe mandas?

—Não é possivel. Quem lêsse uma, comprehenderia as outras.

—Não obstante, eu bem quizera conhecer o tom das tuas cartas. Porque lhe não escreves agora, mesmo aqui? Falla-lhe de tudo menos do que não quizeres que eu comprehenda. Eu mesmo levo a carta ao correio. Supplico-te, Fanny... Se nada temes de ti, dá-me esta prova de confiança, para me tranquillisar que eu soffro muito.

—Não é possivel—redarguiu ella, com signaes de offendida.

A raiva que me devorava o coração estalou desassombrada:

—Que lhe escreves tu que não queres que eu saiba? Juraste matar-me? Falla, se tens na alma sombra de piedade! Torturas-me barbaramente como um algoz!

Fanny ergueu-se, pegou-me da mão e disse brandamente:

—Roger, eu não queria magoar-te.

—Pois que! que mais querias tu fazer-me? Vae! Tu és mulher de duas caras; eu nunca fui amado por ti!

A esta phrase injusta, lançou-se-me ao pescoço, abafando-me com beijos as palavras. Eu continuei:{121}

«Como podiam magoar-me as tuas cartas, se, depois d'essa horrivel contestação, ficaste despeitada com teu marido?

—Sê rasoavel: uma mulher póde ficar despeitada com seu marido?

«Pois que?—exclamei furtando-me aos braços d'ella—tu perdoaste-lhe?

—Rigorosamente não—disse ella, sentando-se quebrantada—mas foi-me preciso acceitar as suas desculpas. D'esta vez, ainda assim, está tu certo que não esquecerei mais os ultrages passados.

«Perdoaste-lhe! perdoaste-lhe, Fanny!—Bradei, de pé em frente della, que olhava para mim assombrada—Não tens, pois, dignidade alguma? Não te sentes das injurias? És assim vil? Amal-o? Mentiste-me, pois, a mim? Ah! isto é que eu não acreditaria nunca!

Fanny continuava a ouvir-me silenciosa.

«Diz-me cá: por que me occultaste tanto tempo que elle te insultava?

—Não queria deshonral-o. Se tivesses mais alguma experiencia, não te espantarias do que succede. Em summa, eu não quero fallar mais n'isto. Seja-te bastante saber que se me elle restringe a liberdade, ou diz arrebatado coisas indignas, tem pesar do que faz e diz, passada a colera. Affirmo-te que o julgas mal. É possivel que eu exaggerasse os factos no primeiro momento da indignação.. mas.

«Calla-te!—bradei eu—se tens pudôr, calla-te! Ha uma coisa que parece passar-te desapercebida, e é que, á proporção que vaes fallando, não sei que idéa peçonhenta lucta, em mim, com o meu amor.{122} Não accrescentes uma só palavra. Acceito ainda isso, por que sou vil, por que sou um fraco, por que te amo muito, por que não posso dissuadir-me de te amar; mas sabe tu que maior mal não m'o podias fazer. Supplico-t'o—não digas mais nada.

E lançando-me a seus pés, exclamei:

«O despresares-te a ti propria, seria, sobre tudo, cruelissimo!

 

LXI

Sempre que tivessemos algumas dessas deploraveis luctas o apartamento era frio, e eu ficava dias inteiros a reluctar com a memoria d'ella. Mentalmente eu reproduzia os ataques e os argumentos, e inutilmente sondava a causa misteriosa do seu proceder. Eu era muito moço e inexperiente: avaliava-a mal. Aquella natureza complexa, que resumia no seu caracter muitos caractéres diversos, queria eu que visse as coisas absolutamente como eu as via. Eu, o que então sabia, era que as palavras: sentimento, amor, delicadeza, ciume, e outras assim, representavam para Fanny umas idéas, e para mim outras. Ignorava que o custoso para mim não o era para ella, e que lhe bastava sempre a boa intenção para indulgencial-a d'um facto, qualquer que fosse. Em mim, não descontava nada á sua fraqueza. Depois é que apprendi a conhecêl-a.{123}

Quantos maiores esforços eu fazia para desligar Fanny de seu marido, mais eu estreitava os vinculos relaxados por quinze annos de existencia commum. Fanny lastimava-me interiormente, mas eu devia ser-lhe pesado. Bem sentia eu que a importunava, mas não estava em mim deixar de a repellir de cada trincheira em que ella esperava o combate. Não me passava pela mente que o unico recurso para conseguir o meu fim, era mudar de tactica. Ninguem me havia dito que eu devia esconder o meu ciume, como principal causa da nossa separação. Que candura! Eu via nas manifestações do meu ciume provas de um amor que devia abalal-a. E, com tudo, tão facil me seria serenar-lhe a vida a ponto de a forçar a comparações, com vantagens minhas, entre os dois homens de quem ella dependia. Mas mais simples que tudo seria não amal-a!...

Ama ella o marido? Não acredito, nunca o acreditei. Um sentimento banal, resultante do costume e agradavel ás almas pacificas, porque naturalmente continúa as coisas, e não cansa o espirito em mudanças, esse devia tel-o. E o vêr o despota humanisado diante d'ella, commovia-a; e o receber caricias da mesma mão que a castigava rudemente, dava-lhe uma especie de satisfação. Não era isto fraqueza nem ingenita baixeza de animo; era uma certa indifferença de genio, explicavel na idade d'ella Fanny, em fim, certo, não tinha uma alma varonil, nem mesmo uma alma muito nobre, por que antes queria astuciar que combater, e antepunha o aviltar-se, repartindo-se, que transtornar o seu viver;{124} era, porém dotada de alma recta. Cuidava, certamente, que se resgatava, em sua consciencia, da perfidia conjugal com uma submissão completa. Até certo ponto, era indemnisar o marido, o tolerar-lhe os caprichos do genio. Em que restingas, em que abysmos, em que cahos de coisas sem nome, a probidade, esta rara perola, se esconde?

 

LXII

Era urgente que eu accedesse á nova concessão do aproximarem-se os esposos. Mas de concessão em concessão lá se ia, desfeita em lagrimas, a minha estima. Eu humilhava-me como o escravo que não póde resistir, com gritos de raiva surda, e desejos immensos de vingança. Ah! se Fanny soubesse que ella devia accusar-se só a si da minha abominavel vingança!

 

LXIII

Inraivecido por não poder vencer a pertinacia do caracter de Fanny, trahi-a. Amor e ciume, quiz{125} tentar matal-os na devassidão. Conspurquei-me voluntariamente, e acintamente, ao contacto de labios impuros da luxuria estupida. Cada noite, de proposito, como ladrão que se embusca no angulo d'uma rua, entrava rindo sarcasticamente de mim mesmo, no infame prostibulo onde eu contava apagar a sêde de vingança. Sorria amargamente ainda, como traidor que pensa na confiança dos ludibriados, eu arrastava commigo, aos braços da mulher querida, a torpe recordação das creaturas degradadas, cujas caricias não tinha podido sevar-me o rancor; e deste modo eu achava um meio de identificar Fanny commigo, sem o ella saber, e ingolphal-a commigo nas mesmas execraveis immundices.

Mas era-me maior a vergonha na sahida que a cegueira do furor na entrada. Estorcia-me os pulsos na rua, e arrancava os cabellos desesperado. Mais ciumento, mais aferrado, mal vingado, castigado por minhas proprias mãos, martyrisava-me com o profundo pensamento da inutilidade dos meus esforços. Não sei que desgosto corporal me subia aos labios. Era um horror de mim mesmo. Vagava, de ventura, toda a noite, como miseravel sem abrigo, esperando vencer com a fadiga do corpo os tormentos do cerebro. Debruçado sobre o parapeito das pontes via redemoinhar a onda negra do Sena, menos sombria e mais lodacenta que os pensamentos, irriquietos do meu espirito attribulado. Eu chafurdava nos lamaçaes, como para destruir sobre immundices impalpaveis, a impalpavel, mas real immundice que imporcalhava o meu amor. E sempre diante de mim, perpassando como phantasma nas{126} sombras que se tiravam ao longo das ruas, via a imagem de Fanny, com o seu ar tranquillo, fronte serena, olhar sombrio, como que a visitar-me, mas forçando-me a pensar n'ella quando eu ia cuidando em matar-me para esquecêl-a. Oh! que terrivel estado aquelle, sem repouso nem treguas ás minhas angustias! que me exacerbava e prostrava! que incharcando no nôjo a minha desesperação, infamava o meu ciume sem applacal-o!

 

LXIV

Sustentava-me, comtudo ainda, um resto de coragem, essencial na minha indole. Estas pelejas intimas davam-me alento. Resolvera buscar o remedio até encontral-o, e, não o tendo, emprehender algum arrojo de desesperado, para arrebatar Fanny, a pezar d'ella. Ninguem sabe os estragos que uma idéa fixa póde fazer d'uma alma. Incrivelmente vos vos roja até vêr o bem nas coisas repugnantes ás menos temerosas consciencias.

Após maduro reflectir, decidi-me ao penoso sacrificio da ultima concessão. Estava eu como um doente, que desenganado da cura, pactua com o mal, e dispõe-se de modo que seja menos o soffrimento no restante de seus dias.

«Tudo te perdôo!—disse eu a Fanny.»—nunca mais te fallarei dos nossos eternos motivos de discordia.{127} Não examinarei o teu proceder; não te sondarei os sentimentos; tudo te concêdo, tudo acceito, excepto a abominavel partilha que tanto me fez soffrer, e tão demorada tem sido. Não posso mais... antes quero vêr-te desgraçada; antes morta; quero morrer eu. Sê-me leal, supplico-t'o—accrescentei com tristeza—porque me faz um mal horrivel duvidar de ti.

—Pois bem, não haverá mais partilha—respondeu Fanny, com um aperto de mão—não te inquietes, não soffras mais. Quando meu marido voltar, approveito-me do pretexto dos ultimos insultos para impor-lhe condições. Viverei completamente separada d'elle em sua caza. E isto, por toda a vida Roger, socega, sê emfim feliz. Não dependia de mim o seres feliz ha mais tempo.

«Restitues-me a vida!—exclamei, lançando-me aos pés d'ella, e abraçando-os.

—Querido filho!

—Liguemo-nos por um juramento.

A isto sorriu-se ella, mas jurou solemnemente, dadas as mãos, e fixados mutuamente os olhos.

«E agora—disse eu—se por qualquer motivo, uma vez só, resolveres faltar á palavra, juras que me avisarás, para que não haja entre nós traição.

—Por que queres tu que eu jure.

«Pela minha vida.

Fanny sorriu outra vez, mas jurou solemnemente.

Depois d'isto fiquei totalmente tranquillo. Picou-me n'alma o ciume como a recordação de um sonho que de tempo a tempo, nos sobresalta. Reapreceu-me a vida bella e ampla. Confiava.{128}

 

LXV

E por isso a chegada do marido apenas me incommodou pela impossibilidade de me avistar tantas vezes com Fanny. Chegara o estio. Fanny habitava outra vez a sua casa campestre, e eu ia vêl-a algumas vezes, por noite, no caramanchão da tapada, e mais vezes vinha ella a Pariz, quando engenhava pretexto para passar fóra um dia. Mostrava-se mais livre que d'antes, pelo menos as visitas eram mais delongadas; mas, mais que d'antes, me pareceu pensativa e preoccupada. Attribui este enleio aos infadamentos procedidos da palavra que me dera. Entendo que novos debates, novos tormentos a faziam desgraçada; e, lastimando-a de todo o meu coração, animei-a á resistencia, e consolei-a quanto em mim cabia. Fanny, porém, denotava constrangimento, suspirava, e acolhia os meus beijos á flôr dos labios, como se tivesse esfriado em seu amor.

Estava escripto que tudo, na nossa historia, fosse extraordinario, e que eu não intendesse nunca o procedimento d'esta mulher. Logo que me eu persuadia de ter-lhe penetrado a nova tristeza—imputando-a a discordia que o respeito do seu juramento devia acarear—soube um facto que me atirou, mais que nunca, a um mar de incertezas.{129}

Recobrando o repouso do animo, dei-me a um viver menos solitario. Meus amigos procuravam-me, por que os eu procurara. Interessou-me, de novo, a sociedade. Um dia, com grande espanto, soube que, a respeito do marido de Fanny, vogavam boatos escandalosos. Dizia-se que, durante a sua ultima viagem a Inglaterra, se tinha elle namorado de uma irlandeza que se estreara no theatro da Rainha; que a tirara da scena; que a chamara para França, havia um mez. Diziam-se maravilhas da magnificencia em que elle a tinha. Era lindissima, alta e esbelta como Fanny, mas morena como as filhas do Norte, com bellas côres rosadas, e finos cabellos sedados que se desenrolavam languidamente em longos anneis até ao peito.

Jubiloso de nova tal, fiz tenção de lhanamente contal-a a Fanny, a fim de fortalecêl-a na resistencia, e ministrar-lhe um terrivel argumento contra o nosso inimigo, se elle se obstinasse em tormental-a. Nova surpreza me esperava, que devia sobrelevar todas as mais a prodigiosa altura.

Fanny, como tantas outras mulheres, atraiçoando seu marido, não queria que elle a atraiçoasse. Irritada pelo meu ar de triumpho, nem deu credito á realidade da historia, nem á sinceridade da justificação.

—Ou mangaram comsigo, ou o snr. forjou uma historia desinfadadamente, para me atormentar. O que me diz aborrece-me. A grosseria desses sentimentos enoja-me tanto que não posso perdoar-lhe, faça o que fizer. Saiba que meu marido ama-me sempre. A tristeza que soffre, de mais o demonstra.{130} O juramento que o snr. me arrancou, lealmente o tenho sustentado. Incumbe-lhe respeitar a minha sensibilidade, cessando de calumniar um homem que, por causa do snr., é desgraçado.

Foi tamanha a minha estupefacção, que nem me occorreu a idéa de censurar aquellas estranhas palavras. Fanny mortificava-me cruelmente fallando-me da «sua susceptibilidade, do seu juramento arrancado, da minha supposta calumnia» a proposito da infidelidade exactissima, do homem que eu detestava. Cuidava eu que Fanny se daria por feliz sabendo que, emfim, espontaneamente, o marido se afastava d'ella, como ella, desde muito, se afastara d'elle. Esperava eu acções da graça, e sahiu-me cólera, orgulho offendido, retaliações, que, a meu vêr, tinham as apparencias todas do ciume. Isto era para indoudecer!

 

LXVI

Incutiram-se-me suspeitas novas, e estas, mais crueis mil vezes que quantas me haviam suppliciado. Desta vez, porém, o acceital-as docilmente, não me foi facil. Intranhara-se-me a desconfiança como vibora no coração, e o germen da peçonha, que ella ahi revessara, circulava-me nas veias.

O ciume resurgiu mais abrasado. A só escusa,{131} que podia mitigal-o, era imposssivel. Não era já da partilha que eu accusava Fanny; mas sim da mais rasteira traição. Resolvi esclarecer a incerteza, por todo o preço. Nada disse a Fanny, fingi-me longe de suspeitas. Menti no rosto como nas palavras. Affectei consummado comico, a maior liberdade de espirito, quando me estava a morte no coração.

Pela primeira vez na minha vida, fui homem. Por mim, e só commigo, fiz quanto cumpria para descobrir a verdade. Comprei, com um pseudonimo, a casa contigua á de Fanny. Instalei-me secretamente lá. Todo o dia, cosido com as portadas das janellas, escutava os menores rumores da casa visinha, e via tudo que lá entrava, como se estivesse á espera de vêr algum estranho entrar ahi a roubar-me a mulher que me era a vida. De noite, escoava-me através da sebe de arbustos que separavam os nossos quintaes, e andava debaixo das janellas de Fanny, como ladrão que estuda o edificio que quer assaltar. Assim apprendi os costumes da familia que eu espionava. O erguer, o comer, o deitar, sabia tudo. Via de manhã os creados abrirem portas e janellas, e ouvia o roedôr dos moveis, deslocados na limpeza dos quartos e da sala. Ás oito horas, o dono da casa descia ao jardim, onde encontrava os filhos. Ás nove apparecia Fanny em desalinho campestre. Dava com elle alguns passeios. Ás onze horas chamava a campainha ao almoço. Ao meio dia, esperava o coupé á porta. O marido sahia, e só voltava ás sete horas para jantar. Muitas vezes, depois do meio dia, vi Fanny assentada na raiz d'uma arvore enorme, que assombrava largo{132} ambito, conversar com os filhos, lêr, ou occupada em algum trabalho de agulha. As visitas eram numerosas. Das tres ás seis horas, quando estava bonito o tempo, circuitava o grande taboleiro de relva, longa fileira de trens, cujos cavallos escarvavam na areia, á sombra das arvores, sacudindo os freios, a tempo que os bandos de senhoras e cavalheiros, assentados em cadeiras de bambu, riam, e bebiam gelados. Ao intardecer sahiam todos, e os homens faziam caracolar os cavallos á portinhola das carruagens, ou reunidos atraz dos trens, caminhavam lentamente fumando os seus charutos. Fanny recebia-as com uma graça incantadora: variava muito de vestidos, e da minha janella via eu que as mulheres examinavam detidamente os seus deliciosos enfeites, ao passo que ella, parecia descuriosa de si, como se sempre estivesse adornada, sem o saber. Raro sahia de noite, se o calôr não era ardente. O marido passeava então com ella; mas ordinariamente tornava para Pariz ás oito horas, e quando tornava, era por alta noite.

Nos dias em que nos uniamos em Pariz, Fanny entrava no coupé com o marido.—Qual de nós é o enganado?—dizia eu commigo. Eu montava, e por travessas, e a galope, chegava a minha casa primeiro, e ahi era tão pouco preguntador quanto ella era meditativa. Era-o em toda a parte, em sua casa como na minha. Ao mesmo tempo, os passos do marido, mandava-os eu espiar. Nunca ia senão ao club, e a casa da amante. Aqui pernoitava algumas vezes. Fallava n'isso francamente aos seus amigos, e continuava a mostrar-se prodigo com ella em demasia.{133} Era um homem prefeitamente feliz. Não o attribulavam suspeitas nem inquietações: rico, pae de galantes filhos, uma mulher adoravel. Que lhe faltava? Eu invejava-o.

Mas não me bastava assistir á vida exterior da familia, cujos segredos eu queria conhecer. Ao cabo de quinze dias, vendo esteril a minha espionagem, cancei-me da futilidade d'ella. Obtivera apenas o direito de suppor que Fanny cumpria a palavra, por que o marido, passeando com ella, parecia exclusivamente entretido com os filhos. Além disso, a frequencia das visitas que ella recebia, estorvava-me de vêl-a concentrada em si, tanto quanto eu queria. Resolvi introduzir-me em sua casa, sem o ella saber. A frieza, com que me estava tractando, era assustadora. Distrahida sempre. Muitas vezes, com terrivel commoção, de longe a via, quando se julgava sósinha, cahir sobre um banco, e esconder n'um lenço, o rosto lavado de lagrimas. Em oito dias, centuplicaram as minhas suspeitas.

 

LXVII

Por uma bella noite de agosto é que eu executei o horrivel designio, cujo exito devia decidir do meu destino. Não sei que hora era; mas, havia muito que as estrellas radiavam na face do céo a{134} sua suave claridade. Abri a ultima janella do primeiro andar da minha casa contigua á de Fanny, fixei a persiana contra a parede, e resvallei pela rampa; pendurei-me do varão sutoposto á baranda da casa visinha; fixei um pé na goteira da sacada, depois o outro pé, e saltei. Estava em casa d'elles.

Fiquei immovel a escutar o silencio, interrompido apenas pelas precipitadas pulsações do coração. Perto de mim, uma janella alumiada como um grande quadrado de luz, branqueava de clarão baço, a parede innegrecida da casa. Baixando-me sobre os joelhos, enxerguei que esta janella não estava de toda fechada. As beiras das portadas tocavam-se, mas deixavam coar uma resteasinha de luz. Duas cortinas de cassa branca, pendentes diante das vidraças, deixavam-me vêr todo o quarto através d'um alvadio de leite que esfumava um pouco os objectos.

Lembra-me tudo isto. No fundo do quarto havia um grande leito, e sobre este, uma corôa de ebano lavrado donde pendiam cortinas de estofo escuro que contrastavam com a brancura dos lençoes. Á esquerda da cama, um tapete estreito, á direita, uma commoda; ao pé da chaminé uma poltrona de espaldar muito alto. Que sei eu? Creio que outros moveis estavam lá, mas eu não reparei. Ao principio, não vi ninguem no quarto, alumiado desigualmente, por um grande candieiro de cobre, coberto de quebra-luz, que dardejava sobre o pavimento os raios, deixando o tecto escuro. O leito ficava assim cortado longitudinalmente pela zona luminosa. Como{135} quer que eu me chegasse á vidraça para examinar se elle estava occupado, uma sombra passou lenta entre o candieiro e a janella, desenhando-se nas cortinas brancas. Pulsou-me o coração mais rijo. Agachei-me rente com a sala, recuando um pouco.

Reconhecio-o. Era elle. Ainda o vejo. A viração tepida da noite de agosto, suspirava á volta de mim na folhagem; cantava um passaro entre os arbustos; a terra vaporava odores balsamicos; mas eu não via, não sentia, não investigava senão elle. Alongando o pescoço para ajustar os olhos á entre-aberta da janella, vi-o, com espasmo mudo, como se fosse para mim coisa extraordinaria vêl-o de pé n'um quarto de sua casa. Tinha os pés nus em amplas moiras de marroquim amarello; afivellava nos encontros uma larga calça branca de flanella. Despeitorado, arregaçado o colleirinho, arremangada a camiza, ia e vinha pelo quarto, fumando um charuto, dando corda ao relogio, mirando-se ao espelho, e esticando os braços. Assentou-se depois na grande cadeira encoirada, cruzou uma perna sobre o joelho da outra, e bamboando-a deixou cahir a chinela. D'onde eu estava, via-lhe perfeitamente a sola do pé nú levantada ao nivel dos meus olhos, e o braço carnudo descançado sobre o encosto da cadeira. O outro braço subia e baixava do joelho para o rosto, quando levava aos beiços o charuto, cujo fumo odorifero se exhalava até mim.

De repente, voltou a cara para uma porta que eu não tinha devisado, collocada ao pé do leito. Esta porta estava aberta, e no inquadramento obscuro que ella cortava no fundo do quarto, vi, duvidoso{136} da minha razão, uma fórma vaga alumiada em rosto por um castiçal que ella trazia.

Potestades do céo! Era ella! Oh Deus! por que me não fulminaste n'aquelle momento!

Entrou vagarosamente, depoz o castiçal sobre a commoda, e, atravessando longitudinalmente o recinto, foi direita a elle, que a observava tranquillo, e sem levantar-se.

Fanny estava meio vestida com aquelle desleixado traje que eu lhe vira algumas vezes pelas manhãs, quando, ao sahir da cama, passeava no jardim com os filhos. Era um chambrão muito farto de cachemira azul aberta no peito, entre flocos de cambraia, deixando vêr o começo dos seios. Sahiam-lhe das largas mangas os braços nús. Trazia desmanchados negligentemente os cabellos, apanhados sobre as faces lizas, e apertados por grossos tufos sobre a nuca. Aquelle eterno porte de placido pudor, lá o apparentava no semblante.

Mas que vinha ella fazer alli a tal hora? quem lhe pedira isso? Não póde a recordação do amante retêl-a no limiar d'aquella porta? Dir-se-hia que ella nem se quer se lembrava de ter jurado, nem lhe passava pela mente a existencia d'algum homem para ella, senão aquelle que alli estava sentado, encarando-a, sereno como ella.

Fuzilou-me na alma um relampago de esperança, mas foi relampago. Abaixado sobre os joelhos e as mãos, embaciado o vidro pelo meu bafo, senti oscillar-me os braços como se o balcão estremecesse debaixo de mim. Suor de agonia, acre e frio, me banhava a face e os membros; rangiam-me os{137} dentes, cahi, desfallecido, como arvore tombada ao ultimo golpe do machado. Mas ouvi palavras; e, repuchando quantas forças tinha, ergui-me sobre os joelhos e punhos.

Via-a andar mansamente d'um para o outro lado do quarto. Tocava, vagamente, e como em distracção nos objectos de sobre os moveis, tal qual costumava fazer em minha casa. E o marido tendo-a sempre d'olho. Fallavam; mas a minha commoção só me deixava ouvir um murmurinho. Rodeava-o ella, socegada e perfida, com os seus azues e suaves olhos, e apparencias de simpleza vaga. A instantes, sorria um sorriso melancolico. Quiz vêr n'esse rir, que lhe dilatava os labios sem illuminar-lhe o olhar, alguma coisa forçada. Não se mostrava pensativa, nem contemplativa, nem commovida. Estava perfeitamente á sua vontade, natural e tranquilla. Bem sabia ella que a sua grande magia era a irritadora tranquillidade.

O marido riu tambem, por sua vez. Vi-lhe o brilho dos seus alvos dentes. Dava mostras de defender-se ingenuamente d'uma accusação que ella fazia, sem cólera, mas como uma malignidade gracejadora, que não era isempta de desdem e altivez. Discutiam tão pacificamente que pareciam nenhum acreditar na realidade da sua disputa familiar. A final, debaixo da testa quadrada do marido, brilharam mortiços os olhos; e, quando ella perpassava diante d'elle, rossando-lhe com o vestido o pé, a decisão foi prompta; calçou a moira; e tirando brandamente pela cintura da mulher, sem resistencia, fêl-a assentar no seu joelho.{138}

Saltaram-me as lagrimas então, lagrimas ardentes, que as palpebras não podiam reprezar, e desceram silenciosas pelas faces até aos labios. Emfim, comprehendia tudo; via a profanação, posto que a não quizesse vêr; affirmava que não era sonho aquillo, e queria duvidar. Não posso exprimir o que então se apartava de mim, o melhor de minha essencia, e o mal que me fazia vêr aquella mulher, que eu adorava, nos braços d'outro.

Fanny continuava sentada com as mãos cruzadas sobre os joelhos, e com os olhos no marido, conversava serenamente. Nada ha ahi mais casto que a simplicidade da sua attitude, a pureza do seu perfil, e aquella expressão dos olhos azues. No entanto elle, comprimindo-a cingida pela cinta, amimava-lhe a face com a mão livre. A final, Fanny lançou-lhe por sobre o hombro o braço esquerdo, e pendeu para elle langorosamente. Vi-lhe então as costas, cobertas de tranças dos cabellos, e o vestido fazia roda por largo espaço com impudor esplendido. Oh! como a abominavel creatura cheia de graça e lascivia se aconchegava d'aquella espadua robusta!

—É impossivel aquillo!—gritei eu em minha consciencia.—Não ha-de ser assim!—Mas elle abraçou-a, collando a boca espessa ás puras faces d'ella, e não sei o que lhe disse a meia voz. Fanny fez um gesto negativo com a cabeça, muitas vezes, sem córar. Elle, por cortezia, insistiu sorrindo, e ella, resistindo, pouco e pouco se rendia! Mulher scelerada! como ella prolongava o meu supplicio! O debate mudo, durou algum tempo. Não sei como foi{139} que o sinto se lhe despregou, e rolou nas dobras do vestido. E eu chorava sempre. Levantou-se ella em fim, aquella mulher de resplendores e flôres, e, por um só movimento de braços e hombros, fez escorregar o chambre até aos pés. Eu cahi de joelhos, e ergui as mãos, como a exorar piedade. Ella tirou com afan, os pés do monte de estofos, e, um tanto pallida, mas em silencio, caminhou para o leito, achegando ao peito as ultimas coberturas. Quantas vezes a vira eu assim impallidecer! Cravei as unhas no rosto. O marido ia depós ella, vagarosamente.

E eu sem uma arma! Eu queria immediatamente estrangulal-a, espedaçal-a, ingolphar meus braços nas entranhas d'aquella mulher estupida. Com todo o sangue d'ella, não se apagaria o ardôr da minha tortura. Arquejante como o tigre, que vê a garra do leão cravada na sua preza, ergui-me a prumo, ferrei as unhas contra os dentes, escorria-me o suor da face, soluçava, como em arrancos de morte, estrebuchava, e via os horrores d'aquelle quarto.—Piedade! piedade!—foi o meu grito! E furioso, e perdido, avançara um passo! mas os cabellos heriçaram-se-me, e os olhos saltavam-me das orbitas, e a minha vista acerada entrou como um punhal nos cortinados sombrios, e vi... vi tudo! Quiz ir ávante, e não pude. A punição pregava-me os pés á balaustrada, e de minha bôca sahiam gargalhadas de demonio. Que horror! Eu testemunha d'aquelle espectaculo, a rir, como um doudo, a comprazer-me d'um jubilo que não tem nome nas linguas humanas! Tentei de novo avançar, por que ouvira{140} suspiros, e queria saber qual das duas bôcas os exhalavam. Por um esforço prodigioso dos meus musculos todos, cheguei a despregar o hombro da parede, e dei ainda um passo; mas por que ao coração intumecido me refluira todo o sangue, perdi o equilibrio, e cahi como um pezo inerte sobre o balcão.

 

LXVIII

Quando cobrei o alento, estava a janella fechada e apagada a luz. Corri as mãos sobre os vidros impenetraveis. Corri a baranda em toda a sua extenção; tudo apagado, tudo fechado, dormia tudo. Dominava-me uma raiva glacial. Á custa de tudo, eu queria remirar esta mulher que eu detestava com o coração, com a alma, com os sentidos, com todo o meu ser. Mas ir até ella, como? Pendurei-me na rampa, e deixei-me cahir ao jardim. Rodiei vinte vezes a casa, empurrando todas as portas; mas a minha fraqueza não podia com ellas. Finalmente, atirei-me ao chão, e ahi, com o rosto entre as mãos, desafoguei-me em soluços.

—Trahido! trahido!—bramia eu, com monotonia desesperadora.—E o céo impassivel!—De subito ergui-me, e, sem idéa fixa, atravessei as trévas, rapido como se me viessem perseguindo assassinos.{141} Precorri a tapada; saltei o muro, atravessei a estrada, entrei nos campos, e a correr sempre, com a cabeça nua, chorando e fallando sósinho, atirei-me como um attribulado gamo, que foge com os dentes de matilha feroz incravados nos flancos.

Onde ia eu? não sabia. Fugia áquelle espectaculo. Salvava-me a todo o correr, para o mais longe possivel, para não vêr a imagem horrenda que me ficara nos olhos. Trahido! Trahido! era o grito que me esporeava, e excitava a fuga. Despenhei-me em barrancos. Levantava-me ferido, coberto de suor e lama, e corria de novo, sem destino, por escuridade pavorosa. Lancei-me desamparadamente em cancellos insilveirados; deixava-lhes os meus vestidos a pedaços, e caminhava. Esgalhos de arvores batiam-me no peito, raspavam-me a face e os hombros os tojos lacerantes; parava a chorar e depois caminhava. Atravessei as ruas dezertas das aldeias, que resoavam sob os meus passos; campos cultivados, cujas searas me ondulavam nas pernas como vagas; collinas, bosques, regatos, atalhos, estradas que desfilavam á roda de mim, como se o solo fosse arrastado commigo no arremeço d'um sorvedouro immenso. Faltava-me a respiração, e eu corria ainda, chorando, chorando sempre.

—Ó minha mãe!—bradei eu.—Se soubesses quanto eu soffro!

De repente, achei-me com os pés em agua. Ante mim, distendia-se um vasto espaço negro, uniforme, entranhado nas trevas, d'um lado e d'outro, com grandes e mysteriosos zunidos. A lua dardejando de viez o seu reflexo argentino, sobre esta superficie{142} luzente, parecia serpente enorme assanhada contra mim, para engulir-me. Involvia-me o nevoeiro. Avancei tropeçando nas pedras, mas os jactos d'agua da torrente rapida, embargavam-me o passo. Horrida tentação me assaltou. Contemplei o céo sereno, onde brilhava, entre nuvens immoveis, o dôce astro dos amantes; puz a mão sobre o coração, e caminhei. Dava-me a agua pelos joelhos, mas sentia sempre o chão lodento em redor dos meus pés que escorregavam. Não podia mais. Vergado á fadiga e á commoção, soluçando como as mulheres, cahi, e fui arrastado na torrente que marulhava em sua marcha obscura.

 

LXIX

O que decorreu depois d'isto, não sei.

Atrophiara-me um frio horrivel. Era nos ouvidos o sibilar lacerante. Sentia abafar. Muitas vezes cheguei a ajoelhar, impellido sempre pelo peso das aguas. Por fim, esqueci tudo; entendi que morria.

Quando me senti viver, estava na minha cama, com a cabeça em fogo. Abri os olhos esgazeados. Tremia em todas as fibras. Sacudia-me o corpo, desde a cabeça aos pés, uma horrivel febre. Ao meu lado, estavam dois amigos observando-me. Fallei, e elles abanaram a cabeça. Veio um homem, e tomou-me{143} o pulso: encolheu os hombros, e partiu. Continuei a tremer. Isto durou muitos dias.

Depois soube que uns pescadores me tinham, de madrugada, encontrado sem sentidos, nas margens do Sena, com a cabeça envazada no lôdo. Buscaram-me as algibeiras, e acharam na minha carteira uma carta, e, guiados por ella, me trouxeram a minha casa. Delirei no caminho, e tiveram-me em conta de doido. Estava-o, realmente.

Fanny, porém, ignorante de tudo, admirada de me não vêr, veio uma manhã; mas o meu creado, a chorar, impediu-lhe a entrada no quarto, e contou-lhe o que sabia. «Quiz afogar-se—disse elle—e agora está doido»—Ella, porém, não quiz crêr no suicidio, e supplicou a entrada. N'esse dia, um abatimento sem nome, semelhante ao dos cadaveres prostrados em seus sepulchros, me tinha como pregado pelas costas ao leito, com os braços alquebrados e os olhos abertos. De repente, devisei na porta, que se abriu ao pé do meu leito, uma fórma humana, de pé e quieta.

Não atinei logo com quem fosse aquella mulher que me vinha vêr moribundo, adornada de trajos de estio tão elegantes e frescos, com braceletes nos braços e flôres no chapéo: tambem não entendi por que chegava com ambas as mãos o seu véo branco ao rosto. Os meus amigos tinham-se retirado para o fundo do quarto, afim de respeitar, quanto fosse possivel, um segredo que não queria ser penetrado. A mulher adiantou-se até á minha cama, e eu ouvi-lhe o fremito do vestido. Curvou-se-me sobre o leito, e levantou o véo. Como que senti refrigerar-se-me{144} a alma, de vêr sobre o meu rosto aquella face viçosa cheia de graça, e como perfumada de saude.

Fanny! exclamei subitamente, erguendo os braços. Fanny abaixou-se a soluçar sobre o meu peito. Mas a memoria restaurara-se com o conhecêl-a; levei-lhe á face os punhos fechados, e repelli-a de mim, gritando furioso «sai d'aqui!» Ella acreditou que eu estava doido, e arredou-se chorando; mas com um resto de força que a raiva me déra, bati-lhe no hombro, e, ao lançar-me fora da cama, cahi por terra aos pés d'ella.

 

LXX

Quando sahi do lethargo, suppliquei, de mãos postas, aos meus enfermeiros, que não deixassem entrar em minha casa aquella mulher.

Ella, porém, que não podia suspeitar o succedido, e continuava a crêr na minha demencia, vinha todos os dias—disseram-m'o depois, e todos os dias com gestos afflictivos, sollicitava vêr-me.—O medico não consente—respondia inflexivel o meu creado. Fanny offerecia dinheiro e prendas; mas comprehendendo a final que a sua presença podia matar-me, retirou-se, pedindo a Deus a minha cura, e offerecendo-lhe, em troca da minha, a sua vida.{145} D'isto não sabia eu nada então. Decorriam os dias, e, por desgraça minha, graças aos disvellos que me rodeavam, a vida pouco a pouco affluiu apagando a febre.

 

LXXI

Ao cabo de seis semanas entrei em plena convalescença. Já os amigos me tinham deixado. Perguntou-me, muitas vezes, o creado, se eu queria receber aquella pessoa que tanto parecia amar-me, e cuja presença tão mal me fizera uma vez. Sempre com repellão lhe disse que o expulsava se a deixasse entrar. O desejo, porém, de a vêr, entrou commigo, e tornou-se emfim n'uma irresistivel necessidade. Fiz fallar o creado sobresaltado, que não intendia a minha frieza. Contou-me tudo que eu não sabia; que ella vinha diariamente, e elle já não sabia que dizer-lhe, para estorvar-lhe a entrada. Se ella vier hoje,—murmurei eu impetuosamente, corrido de vergonha,—recebo-a.

Sentia-me eu abalado como se alguma funesta esperança tentasse renascer em mim. Com o abatimento da molestia, quasi que a cólera se desvanecera; mas ganhara-me uma dôr intensa, e eu assentava—tamanho desgosto era o meu por tudo—que não podia viver. Aquella noite terrivel da traição,{146} lembrava-me como um sonho máo. A um tempo, amava e desprezava a mulher graciosa e perfida, cuja imagem era commigo sempre. O que eu esperava para acabar com tudo, era alguma cousa indelineavel.

Estava eu sentado n'uma poltrona, ao pé da minha janella, com os olhos fechados, repassando no animo o que eu diria á prejura, quando senti apertarem-me a mão, e misturarem-se n'ella os beijos com as lagrimas. Abri os olhos. A meus pés, de joelhos, livida, mas formosa ainda, formosissima, estava Fanny, olhando-me com eloquente ternura. Senti o perfume d'ella. Nada diziamos. Eu sei que chorava.

Fanny ergueu-se, abraçou-me maternalmente a fronte e os cabellos, com os seus dois braços nús. Não resisti, porque me era aprazivel receber aquellas caricias, a que eu tinha direito, em quanto não fallasse. E por isso mesmo é que não fallava. Finalmente, como eu chorava sempre e a não abraçava, Fanny disse:

—Foi-se o teu amor, Roger?

—Ainda não—respondi, tapando o rosto com as mãos. Ella não intendeu, e deteve-se em pé e agitada defronte de mim.

—Fanny, diz-me que é um sonho, ou que estou doido. Diz-me que não devo odiar-te, porque este odio dilacera-me.

Não córou. Não impallideceu. Pura como a chamma, e crendo-se talvez ella mesmo pura, amimou-me internecida, com apparencias de admirada.

Foi então que eu, reunindo as minhas forças todas,{147} a tomei pela cintura gentil em meus braços, e a fiz sentar defronte de mim. E disse-lhe:

—Sei tudo.

«O que? tu que sabes?

—Vi tudo.

«Mas que?

—Porque me trahiste? Tu não cedeste, porque foste tu quem o procurou, não foi elle a ti. Foste tu, que trocando despejadamente o papel, o seduziste a elle.

Fanny não perdeu ainda a côr, e quiz fallar. Eu, porém, com os olhos cravados n'ella, sem cólera, e frio como o aço, continuei:

—É necessario dizer-te tudo? Não merecias confiança. Comprei a caza vizinha da tua, em Chaville...

Aqui, impallideceu, e disse:

«E depois?

—Uma noite, horrivel noite!... depois de te espiar em vão quinze dias, arriscando a minha vida, consegui introduzir-me sobre o balcão da tua casa. Não sei que hora era. Ajoelhado por traz da vidraça do quarto de teu marido, pude vêl-o. Como te vejo agora, tudo vi. Estava elle só. Entraste...

«Isso é falso!» exclamou Fanny, mais horrivelmente pallida. Semelhava um cadaver sentado n'uma cadeira defronte de mim.

—Será preciso dizer mais?—accrescentei.—Vestias um chambre de cachemira azul. Trazias os cabellos em desalinho, e o peito nú. Calçavas chinellas de setim. Nús, trazias os braços. Serena como sempre, no momento mesmo em que prejuravas,{148} não amaldiçoaste aquelle que vinhas saciar, por que ha em ti dois corações, para amar dois homens, Fanny, a elle, e a mim.

Fanny sacudiu rapidamente a cabeça, e disse com voz abafada:

«É falso! é falso! tu não me conheces!

—Será preciso dizer mais?... Exprobraste-lhe a traição, que é certissima. Defendeu-se elle, a sorrir. Tu, cem vezes, passaste diante de teu marido, por que querias fascinal-o, sem lh'o dar a intender, com os teus exteriores pudibundos. Sahiu-te tudo ao pintar, por que elle puchou-te para sobre o coração, e tu deixaste-te sentar sobre os joelhos, e nem de mim te lembravas, de mim, a agonisar, com aquelle espectaculo diante...

«Basta!»—exclamou Fanny, e ficou a olhar para mim. Parecia soffrer horrorosamente; mas não chorava. Dilatavam-se-lhe as pupilas, e crispavam os labios resequidos. Com pena d'ella, baixei os olhos, mas accrescentei:

—Sabe que eu estive ali, eu, que te adorava, e é de crêr que a vergonha e a dôr não matem, por que eu vi tudo, e não morri.

Como duas estatuas fronteiras, nas bordas d'um jazigo, assim ficamos em contemplação, e immoveis. Por fim, disse ella:

«Eu devo fazer-te horror!

—Fazes.

Ergueu-se, levantou as mãos ao céo, lançou-se a mim, como sobre uma preza, apertou-me entre os braços, sentou-se-me nos joelhos, peito a peito, e a buscar-me os labios, com estas exclamações:{149}

—Não importa! eu adoro-te sempre.

Mas eu, levantando-me, sacudi-a, e atirei-a ao chão, e ella ahi ficou. Abismada a meus pés, como a Magdalena, soltas as tranças, nodados os braços aos meus joelhos, desfeita em pranto, exclamava:

«Perdão! piedade! Eu tinha perdido o juizo! estava doida! mas amo-te sempre! Tem compaixão de mim.

E prometteu submetter-se a tudo que eu exigisse d'ella. Propôz-me a fuga, bradando:

«Mata-me, e não me repulses! Esmaga-me aos teus pés. Sou culpada, mas não me abandones. Amo-te. Rasga-me o coração...

Fiz que se erguesse e sentasse. Estava corada, e escondia o rosto; mas eu sentia-me impiedoso. Recrudescera o meu furor com a narração do meu supplicio. Voltei as costas áquella mulher, cuja soberba, por tanto tempo me mentira. Ainda assim queria ella violentar-me, estendendo para mim os braços; mas fiz-lh'os recuar á face, com um gesto.

—Sabe que te detesto e adoro—disse-lhe eu—É isto o meu castigo, por que eu fiz minha, a mulher d'outro, e devo ser castigado. Tu, para mim, és uma deshonra, e mais nada. És um idolo attascado em lama. Vi-te, em attitude pudica, com o rosto angelical, e olhar infantil; vi-te grotesca e disforme, raivar e uivar, como a loba mordida pelos cães. Cala-te! tu fizeste peor que as creaturas com quem esse homem hediondo te compara: essas, ao menos, não mentem.

«Mas elle é meu marido!—disse Fanny.

—Não tens consciencia? Diz-me com franqueza{150} se é certo seres tu um ser intelligente, e se uma idéa dirigiu a tua acção funesta. Quem te obrigava a ir procural-o?

Fanny, com grande esforço, respondeu:

«Eu via que elle se desprendia de mim. Não o amo, por que te amo, mas dependendo d'elle. Não é natural? Repartida entre o desejo de conservar sua affeição, e o receio de ser forçada a mostrar-lhe uma affeição semelhante, quiz segural-o quando me fugia, e, quando se approxima, é escusado tentar eu fugir-lhe. Cedi ao dever. Reciei que me deixasse. O temor de me vêr abandonada com os meus filhos, inlouqueceu-me. Perdoa-me. A mulher, que elle conheceu em Londres, é a causa de tudo. Eu preciso de paz, socega-me tu. Fiz mal, por que te amo; mas sou mulher, e tu não conheces as mulheres. Não calculas quanta honestidade pode haver nas traições d'ellas.

—E o teu juramento?—exclamei. Fanny contorcia as mãos afflictivamente. Eu prosegui:

—Mentes, quando dizes que cedeste ao dever. Não cedeste senão ao orgulho. Intristecia-te o ser abandonada por esse homem que não amas, e te não ama, e te opprime, e te despreza e insulta. Não cedeste tambem á sêde d'um prazer abominavel? Repito-te que ouvi tudo.

Neste conflicto, encontraram-se os nossos olhos. Fanny fez-se escarlate, quiz fugir, tornou para mim, e cahiu de joelhos, exclamando:

«Se soubesses quanto eu me abomino! Eu queria arrancar o coração deste corpo. O meu coração está puro. Vêr-te, ouvir-te, sentir-te ao meu{151} lado, bastára-me sempre. Por isso mesmo que te amo, é que tu és o unico ente, mais que homem para mim. Tu és neste mundo o meu amor unico. És a minha vida.

—Amas-me!—bradei eu com raiva.—Mas de que modo me amas? Acima de mim, em teu coração tão puro, estão vãs considerações do mundo, razões de sociedade, costumeiras mesquinhas, está teu marido. Não me falles de teus filhos. Que amor é aquelle que não conhece a virtude dos sacrificios? que recua diante de qualquer respeito? que é limitado? que soffre prescripções? que não é uma abnegação absoluta do individuo, de todos os seus pensamentos, e affectos, e deveres e virtudes? Quem se perde pelo ente que ama, e destroe a honra e segurança do seu futuro, e chega, por amor delle, até ao crime, e se tortura a inventar maiores provas ainda, não dá o mais radioso testemunho da paixão exclusiva, intolerante, e soberba. Tu nunca soubeste que o amor não vive senão de si, e nada reserva fóra de si. Renegado sublime, piza os mais santos objectos, forte da felicidade que inventa, e que lhe justifica a impassibilidade. Porém, tu! mulher das dedicações mesquinhas, das virtudes pequenas, dos deveres timidos, chamas loucura a tudo isto. É alto de mais para ti! a tua vista não alcança tanto. O que tens, superior a ti, é a tua casa, é o teu bem-estar, é o luxo que te cerca, é a falsa estima do mundo que tanto se dá de ti como das outras, são as relações banaes, é um complexo de coisas miseraveis. E dizes que me amas! Supportarias tu o abandono da sociedade?{152} Offereci-te tudo que tinha; dar-t'o era a minha felicidade; para ti roubaria eu os indigentes. Ainda assim, aceitarias tu o menor incommodo como preço da minha felicidade? Não ultrajes, pois, o amor, a paixão soberanna, que não quer ouvir em redor do seu throno, uma voz que não seja a sua. Crês que amas por te haveres entregado? Vai, já te disse que vi tudo. Estavas com elle como commigo. Custou-te tanto a passar dos meus braços para os delle como d'um vestido para outro.

Fanny, ergueu-se desesperada, e quiz partir; mas eu retive-a, atirei-a para o fundo da alcova, e collocando-me diante da porta, com os braços cruzados, exclamei:

—Hasde ouvir tudo!

Faltou-me a expressão. Arquejava de anciedade. As minhas palavras eram gritos. Cerrei os punhos em postura ameaçadora; Fanny olhava-me de revéz com inexpremivel terror. As palavras vieram, depois, impetuosas:

—Eu nunca tive crença em ti. Tanta certeza eu tinha de que me atraiçoavas, que, por minha desgraça, quiz conspurcar o nosso amor. Sabe-o, se nunca o supposeste; sabe que eu, teu adorador, atraiçoei-te com as mais rasteiras mulheres.

Fanny não me acreditava. Attribuia á impotencia do furor o que eu dissera, e fez um gesto de denegação soberba. Máo grado meu, repassado de angustia, fallei n'um tom de voz supplicante, e branda. Toda a minha cólera cahiu sob o pezo da piedade.

—Sabe, pois, murmurei eu com as mãos erguidas,{153} que eu te amava ao mesmo tempo com amor de mãe, de mulher, de creança. Quanta piedade, respeito, e ternura que podem resumir-se em amor no coração, quantas delicias, tocam a divinisação pela maviosidade, todas senti por ti, desde o primeiro dia em que te vi passar com tuas graças, com a tua serena suavidade, com a tua formosura. Sabe que te adorei piedosamente; que só em ti pensava; que eras a minha segunda alma; que me doiam mais teus males que os meus; que, por desvanecer-te do animo uma incerteza, teria dado, risonho, a vida, que eu só amava por que te era aprazivel. Vê que choro. Tudo que era teu, amei: teus filhos, tua mãe, tua casa, teus creados; as irregularidades irritaveis do teu caracter, os teus vestidos, e as tuas rendas. Creio até que o amava a elle, por que, em meu espirito, a tua imagem andava associada á d'elle. Nem minha mãe amei como a ti. Por ti, têl-a-hia abandonado, com tudo que venero. Eras o meu eterno espirito, o meu bem mais caro, a imagem perfeita das coisas puras.

«Perdão!» exclamou ella, recahindo de joelhos.

—E tu, Fanny, calcaste aos pés este respeito, este amor incomparavel, este coração...

«Piedade!

—Recalcaste-me como a féra impassivel que esmagou com as garras as primeiras flôres do campo. E agora... aqui me tens sem futuro, como um desgraçado que não pode amar alguem, como o ancião, que viu em roda de si, morrerem todos os seus. Tudo feneceu, tudo apodreceu em meu coração. Estou velho! tenho cem annos! vou morrer!{154} sou um sepulchro! Tu sabes de mais que estou sósinho no mundo...

«Piedade! perdão!—exclamou Fanny, indo hallucinada, esbarrar nos moveis e nas paredes.—Não me digas que és desgraçado!

—Oh! desgraçado! e não digo bem o que sou. A lingua não tem voz que o diga.

Ingrata! Não te bastava ser senhora da minha alma, do meu coração, da minha vida; vens ainda tirar-me o que eu mais amava no mundo... a estima de ti... que me era mais que tu mesma!

«Piedade! piedade!»—continuava ella exclamando.

—Assassinaste-me a mocidade. Pois bem! ouxalá que nunca soffras o que eu estou soffrendo... Adoro-te, e horrorisas-me!

Dito isto, quiz feril-a e abraçal-a ao mesmo tempo; mas cahi desfallecido: e, por noite, quando abri os olhos, e a procurei no quarto ás apalpadellas, não a encontrei.

 

LXXII

No dia seguinte, senti-me saciado de vingança. Experimentava aquella especie de serenidade cruel, que segue as execuções supremas. Sentia-me satisfeito, em fim, como o juiz que tem em seu poder a irrecusavel prova do crime que puniu.{155}

Já me não afligia o pensar n'ella. Não obstante, eu previa lucidamente os graves desgostos da sua vida.

—Soffrerá longo tempo, e depois odiar-me-ha. Incadeada sob o jugo, debalde tentará soffrêl-o corajosamente. A resignação desdiz do caracter d'ella. Outro virá, mais tarde, substituir-me. Se a não amar, será despresado. Amando-a, repetir-se-hão immediatamente, e com as mesmas phrazes—identicas luctas, as mesmas perfidias, iguaes torturas. Emquanto viva, Fanny perseguirá fatalmente a sua chimera. O amor ideal que a arrasta não se dessipará mesmo nos gelos da idade; quando as rugas sobrevierem a provar-lhe que tudo é mudavel na terra, ella continuará a evocar o phantasma d'uma paixão que foi e será sempre o seu supplicio. Ha-de apartar-se da sociedade, como os soldados feridos no fogo de vinte pelejas. Como elles, afastada de tudo, saciada de tudo, tirará commoções para uma vida nova no mysterioso poema das suas remeniscencias. Os filhos, que adora, não a consolarão. Quem sabe se virão a desprezal-a?... Condemnada a amar por egoismo, não se fará feliz a si, nem a outrem. Impotente para o bem, ser-lhe-ha martyrio eterno o procural-o. Para a felicidade propria, faltar-lhe-ha sempre um vicio; para a felicidade alheia, faltar-lhe-ha sempre uma virtude. Tem coração de mais, e coragem de menos.

Dest'arte, julgava eu, de longe, aquella mulher que eu, por ultimo conhecera, á custa da minha ventura. Não posso dizer que a lastimava. Com quanto me sentisse prostrado de fadiga, a irritação{156} surda, contra ella, era immensa. Como se annos e annos medeassem entre nós as suas barreiras, eu me sentia separado d'ella, mas ainda a sentia viver em mim. Era-me a memoria d'ella, como o ferrete aberto com ferro em braza. O estygma intalhado a fogo no coração, não podia eu, forçado do amor desvanecêl-o.

 

LXXIII

Se, porém, julgando-a, me não compadecia d'ella, era-me impossivel pensar em mim, sem padecer em todas as fibras do meu ser. Quanto amor eu tinha, quanta affeição filial, ternura piedosa, e veneração, exhalava-se de mim como vapores, e dissolvia-se em lagrimas amargas, que eu tragava, sobre a cruz onde a sorte immisericordiosa me cravára. Estorturava-se, este amor, como joven robusto que saboreou a vida e não quer morrer. A affeição de filho, que eu naturalmente lhe dera, por causa da differença de nossas idades; a piedosa ternura que ella me inspirava, como um bem suavissimo; a veneração, em summa, que lhe era a ella um incenso grato, isso tudo, o melhor de minha existencia, desfazia-se em meu coração, e evaporava-se lentamente em caricias de effluvios e perfumes. Qual viajor, surprehendido, ao despertar, nas steppes infinitas{157} da Asia, por um turbilhão fluctuando raso com o chão, tal eu me sentia perplexo nas minhas revoluções, prudencia, e coragem. Em redor de mim tudo se movia vagarosamente, derramando-se em fórmas confusas: fugia tudo; memorias queridas, votos superfluos, ternos desejos, pezares, aspirações, tudo se esvahia nas distancias do meu sonhar, e me deixava, sósinho, n'um grande espaço. E desse turbilhão nevoento de sensações, vontades, e habitos; densas oscillações impalpapeis de penas, prazeres, e esperanças, prolongadas até ao extremo limite que meus olhos viam, surdia emfim um phantasma enorme que subia, subia até ao céo, tristemente involvido em pallida mortalha. Este phantasma reconheci-o na amargura que tinha impresso na face assombrada, no atrophiamento da sua attitude, na sua mudez, no rir amargo que lhe circuitava os labios descorados. Ah! uma vez o tinha eu já visto crescer para mim, e me sentira estalejar com elle nas dobras de seu sudario. Vinte annos tinha eu. Foi quando perdi minha mãe, e da sepultura d'ella, revolvida de fresco, sahia e me aferrara nos braços a glacial SOLIDÃO.

Eu chorava. Tudo estava em redor de mim fallando-me d'ella. Todo o mal que me fizera, esqueci-o. Mil vestigios deixára Fanny n'aquelle quarto que eu preparava amorosamente para recebel-a. N'aquelle tecto que lhe cobrira a cabeça, nos tapetes pisados por ella, nos moveis que tocaram suas roupas, em tudo me apparecia serena e consoladora. Aqui me abria os braços de veludo, a poltrona onde ella se assentava tantas vezes; ali a molle{158} pegada do seu sapato, no coxim em que ella descançava os pés; acolá, resequidas, nos vazos chinezes, desfolhando-se tristemente, as flôres que ella amava; além, as cortinas que ella tantas vezes levantava com sua mão timida; ali, se move ainda o pendulo do relogio, para o qual ella estava olhando sempre; aqui, o véo d'ella, aqui as cartas, seus dôces reflexos; além, o pente embalsamado com o perfume dos seus cabellos; e acolá, finalmente, frio e cerrado como um tumulo, o leito onde tantas vezes chorávamos.

Agora, me assoberbava a memoria, tudo o que dissemos, pensamos, e esperamos. Como longinqua musica, trazida na viração do mar, soava-me nos ouvidos o cantar de suas palavras; como emanação de flôres que se evapora com o orvalhar das noites, deliciava-me o olfacto, o perfume de sua cutis olorosa; como bafejo de primavera, perpassavam-me nos labios os effluvios de seus beijos. Ardia-me a mão que ella tocara; ardia-me a fronte que ella afagara em seu seio; ardiam-me os olhos que ella adorara, a boca em que a sua apremara nas vertigens da paixão, o peito que ella duplicara com o seu peito. Oh! que prazer me era sorrir-lhe ao retrato, e remecher nas cartas d'ella! Affigurava-se-me ouvil-a ainda; esperal-a ainda, como nos dias passados; vêl-a chegar assustada, como a cerva dos bosques, a esconder-se em meus braços. Mas, ao mesmo tempo, não sei que vaga essencia se desprendia de mim em soluços e gemidos. Quebrantava-me uma tristeza profunda; uma lethargia sem nome paralisava todas as minhas idéas. Meditativo,{159} como póde sêl-o o homem no leito da morte, eu dizia commigo:—Acabou tudo! não nos tornaremos a vêr, nós, que tanto nos amamos!...

 

LXXIV

Era tamanha a minha tribulação, que eu receei succumbir á paixão. A imagem d'ella, entrava em todas as minhas meditações. Como não podia arrancal-a da memoria, fugi com ella, precipitadamente, sem voltar o rosto, como o incendiado que não quer ouvir os gritos de maldição sahidos d'entre as chammas accendidas por sua mão cruel. Parti, sem dizer onde ia, para partir, para me afastar. A minha mesma coragem me apavorava. Mas a memoria ia commigo, chorava commigo. Cançado um dia, da vista dos homens, deixei os caminhos trilhados, e intranhei-me, ao norte, nas areias que bordam a foz do Loire. Caminhei trinta horas sem parar. Ao anoitecer, apeei n'um deserto, e resolvi acabar ahi...

Não queria porém, eu, que ahi dissessem que irreflectidamente me suicidara como um louco, ou como creança infraquecido na lucta. Apozentei-me, pois, aqui, para luctar contra mim mesmo, e vêr se a cura me póde ser ministrada por um hospede menos frivolo que a morte. Impuz-me o prazo d'um anno, para viver uma vida differente, só, meditativa,{160} austera. Estou resolvido a esperar até final. Algumas vezes, detesto-me, e todavia espero. Fio-me não sei de que. Amo, como nunca amei, a mulher que me reduzio a isto. Não a desprezo já. Absolvo-a. Eu teria feito o mesmo, se fosse ella, e affirmo que valem menos que ella, as que de outro modo se comportassem. Mas ha momentos em que a detesto, e me arrependo de a não ter esmagado. Assim, e incessantemente, vou d'um extremo de amor e piedade, ao outro extremo de furor e odio. Oh! amar! que supplicio!

As forças da minha alma estão extinctas. Já me não pulsa o coração. Hoje principalmente, que dou fim aos traços do drama da minha vida, sinto a tentação terrivel de completal-o com um sanguinario epilogo.

Mas, porque ha-de ser aqui, e não ha-de ser além ao pé d'ella? É porque me resta ainda o pudôr d'um ciume feroz, que não quer ser carpido. Qual besta-féra, que, ferida de morte, procura uma caverna onde morrer em paz, e esconder seus ossos; assim eu, se devo morrer, quero que seja n'um deserto, longe d'aquella que eu amei de mais.

 

 

FIM

 

 

 

PARCERIA

ANTONIO MARIA PEREIRA

LIVRARIA-EDITORA

OFFICINAS

TYPOGRAPHICA E DE ENCADERNAÇÃO

MOVIDAS A ELECTRICIDADE

44 a 54—Rua Augusta—44 a 54

LISBOA






End of the Project Gutenberg EBook of Fanny: estudo, by Ernest Feydeau

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FANNY: ESTUDO ***

***** This file should be named 30571-h.htm or 30571-h.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        https://www.gutenberg.org/3/0/5/7/30571/

Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
of public domain material from Google Book Search)


Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
https://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.