Project Gutenberg's Manuel de Moraes, by João Manuel Pereira da Silva

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: Manuel de Moraes
       Chronica do Seculo XVII

Author: João Manuel Pereira da Silva

Release Date: August 27, 2009 [EBook #29819]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK MANUEL DE MORAES ***




Produced by Pedro Saborano





MANUEL

DE MORAES

CHRONICA DO SECULO XVII

 

POR

J. M. PEREIRA DA SILVA

 

 

 

 

RIO DE JANEIRO
B. L. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
69, RUA DO OUVIDOR, 69
PARIZ.—AUG. DURAND, LIVREIRO, RUA CUJAS, 7

1866

 

 

 

 

MANUEL

DE MORAES

 

 

 

 

VENDEM-SE

AS SEGUINTES OBRAS DO MESMO AUTOR

NAS CASAS MENCIONADAS

EM PORTUGUEZ:

HISTORIA DA FUNDAÇÃO DO IMPERIO BRAZILEIRO. 6 vol. in-8º.

VARÕES ILLUSTRES DO BRAZIL DURANTE OS TEMPOS COLONIAES. 2 vol. in-8º 2.ª edição.

OBRAS POLITICAS E LITTERARIAS, Discursos parlamentares, Viagens, Reminiscencias, Poesias, etc. 2 vol. in-8º.

JERONYMO CORTE-REAL, chronica do seculo XVI. 1 vol. in-12.

EM FRANCEZ:

SITUATION SOCIALE, POLITIQUE ET ÉCONOMIQUE DU BRÉSIL. 1 vol. in-12.

LA LITTÉRATURE PORTUGAISE, son passé, son état actuel. 1 vol. in-12.

 

 

PARIZ.—TYP. PORTUG. DE SIMÃO RAÇON E COMP., RUA D'ERFURTH, 1.

 

 

 

 

MANUEL

DE MORAES

CHRONICA DO SECULO XVII

 

POR

J. M. PEREIRA DA SILVA

 

 

 

 

RIO DE JANEIRO
B. L. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
69, RUA DO OUVIDOR, 69
PARIZ.—AUG. DURAND, LIVREIRO, RUA CUJAS, 7

1866

{I}

 

DUAS PALAVRAS

AO LEITOR

Encontra-se na Biographia luzitana do abbade Diogo Barbosa uma succinta noticia de Manuel de Moraes, nascido em São Paulo (Brazil), pelos fins do seculo XVI, ou principios do XVII; autor de uma Historia da America, que se perdeu inteiramente, e de uma memoria em pró da acclamação d'el-rei D. João IVº, publicada em Leyde (Hollanda), no anno de 1641, com o titulo de{II} Prognostico y respuesta á una pergunta de un caballero muy ilustre sobre las cosas de Portugal; condemnado pelo tribunal do Santo Officio, relaxado em estatua no auto de fé de 6 de Abril de 1643, por apostata da religião catholica, e casado com mulher schismatica; e fallecido emfim em Lisboa, naturalmente, segundo o dizer de varias tradições; pela violencia, conforme outras não menos procedentes.

Fallando d'elle igualmente Innocencio Francisco da Silva no seu Diccionario biographico e bibliographico portuguez e brazileiro, accrescenta que pertencêra á companhia de Jesus em São Paulo, e fôra garroteado no auto de fé de 15 de Dezembro de 1647.

Outros escriptores, que procurárão lembrar-lhe tambem o nome, e nós particularmente no supplemento annexo á obra dos Varões illustres do Brazil durante os tempos coloniaes,{III} repetírão sómente o que avançára o abbade Diogo Barbosa, porque nem-uns esclarecimentos lográrão mais a este respeito, por maiores pesquizas que houvessem commettido.

Parece pois evidente que se não poderá jámais esboçar um estudo biographico e regular ácerca de Manuel de Moraes, por lhe faltarem os elementos precisos que illustrem e aclarem a physionomia, vida e feitos de um varão tão distincto, e cuja existencia é todavia incontestavel.

No desejo porém de torna-lo conhecido dos leitores, e de pôr a limpo a sua original e extravagante personalidade, traçamos proceder em relação ao escriptor paulista como o fizemos a respeito do poeta portuguez Jeronymo Cortereal, cuja biographia nos legárão todavia menos incompleta os autores passados.

A chronica de Cortereal terá assim uma{IV} imitação na de Manuel de Moraes. Comprehendia aquella a pintura da nação e da sociedade portugueza durante os ultimos dias de D. Sebastião até o jugo castelhano. Encerrará esta a descripção dos successos occorridos durante o seculo XVII em São Paulo e nas missões jesuiticas de Guayrá; em Pernambuco e nas guerras dos Hollandezes; nos Paizes Baixos e na emigração dos judêos portuguezes; em Portugal e no predominio sangrento da Inquisição.

Confundir-se-hão no mesmo quadro a historia real e a imaginação aventureira. Não é este o ramo mais popular da moderna litteratura, a formula mais estimada pelo publico da actualidade?{1}

MANUEL DE MORAES

CAPITULO PRIMEIRO

Quem presentemente seguir da cidade de Santos para a de Sao Paulo aproveitando a estrada de ferro, que se acaba de construir entre os dous pontos mais interessantes da provincia; e lançar os seus olhos curiosos sobre a capital, assentada doce e preguiçosamente nos cimos de serras altanadas, que affrontão os ares; bafejada por uma atmosphera{2} encantadora e portentosamente diaphana; avistada de longe por todos os lados como uma habitação aerea; coroada de torres de igrejas e de edificios risonhos; cercada de campinas que se somem na confusão do firmamento; regada aos pés pelo riacho Tramandatahy, que a pequena distancia, e na propria planicie descoberta, precipita as suas aguas claras e boliçosas no seio do rio Tieté, assemelhando-se já na infancia a um monarcha poderoso quando o assorberbão as copiosas torrentes das chuvas: não póde ao certo imaginar o que fôra esta povoação nos primeiros annos do seculo XVII.

O celebrisado Martim Affonso de Souza, donatario das terras que correm do Cabo de São Thomé para o sul até encontrar as ultimas cincoenta leguas reputadas pertencentes á corôa portugueza, e que havião sido concedidas a seu irmão Pedro Lopes de Souza, edificára o arraial de São Vicente, á beira do{3} mar, povoára-o de gente laboriosa e aventureira, e passára aos moradores ordem de internar-se pelo solo, explora-lo, e cultiva-lo, travando amizade e pazes com as tribus gentias e tranquillas que encontrassem pelo caminho.

Seguio-se a São Vicente o arraial de Santos, como porto mais favoravel á navegação e ao commercio, por mais resguardado dos ventos e das furias do oceano. Dobrando depois as serras alcantiladas e graniticas que se avistavão, descobrírão os Portuguezes planicies immensas e uberrimas, que se estendião voluptuosamente pelas alturas dos montes, e fundárão então ahi a povoação de São Paulo, perto das tabas e residencias da tribu de Tyberiçá, que habitava os sitios deleitosos de Piratininga, e acolhêra os invasores como amigos e alliados, contando com o seu auxilio para combater e resistir aos valentes Tamoyos do Rio de Janeiro, que pela parte{4} do Norte commettião assaltos e depredações incessantes, roubavão e assassinavão os vizinhos sem piedade e nem commiseração, e aterrorisavão com as suas façanhas as raças mansas de Carijós, e Goyanazes, que possuião as terras e florestas da parte meridional da capitania hoje denominada provincia de São Paulo.

Não se tinhão ainda derribado as mattas poderosas, que cobrião o solo, e negavão caminho. Não se havião vencido ainda as correntes rapidas e desordenadas dos arroios, que cortavão as communicações com o largo e fundo das suas aguas possantes. Não se encontravão ainda pousos e ranchos semeiados pela estrada, para allivio dos viajantes. Não estavão ainda edificadas as lindas casas de campo, rodeiadas de pomares e jardins, e enfeitadas de flôres cheirosas, que alegrão os sentidos, e extasião com doçuras ineffaveis.

Não apparecia ainda o pittoresco arraial{5} de São Bernardo, brilhando como preciosa quinta de fidalgo no seio de arvoredos fructiferos.

Desde que se attingia ao alto dos serros, de onde se descortina o panorama soberbo das terras inferiores, rasgadas pelo curso caudaloso dos rios, e do mar fremente, que sussurrava de continuo como o gemido da eternidade, até que se chegasse á povoação de São Paulo, fulgurava a só natureza virgem com a magestade das suas arvores, a grandeza dos seus penhascos, a immensidade das suas cataractas de aguas, a extensão dos seus desertos, e a pompa e sombrio dos seus reconditos segredos.

Traçárão-se a esmo os caminhos, descendo e trepando como animaes bravios da solidão. Transpunhão-se os arroios a nado, as catadupas com páos agrestes e mal afeiçoados, que se destruião e atiravão por cima d'ellas para servir de pontes de passagem.{6} Desperdiçavão-se dias e noites inteiras na viagem difficultosa, dormindo-se ao ar, sobre o chão humido, ou em redes pendidas dos galhos das arvores. Que espirito extraordinario imaginaria n'essa época que uma estrada de ferro, movida pelo vapor, levaria hoje em poucas horas os viajantes de Santos a São Paulo, domando a natureza, avassallando os elementos do solo, e correndo mais que as aguias velozes, e quasi tanto como a aragem fresca do vento!

Se por um lado perdeu com a metamorphose a poesia das brenhas, esplendores e primitiva magnificencia das localidades, não resplandece porém nos progressos da sociedade actual, nos descobrimentos arrojados do genio do homem, outra poesia nova, que se reveste igualmente de encantos e vôos admiraveis, posto diametralmente differentes?

Não possuia a povoação de São Paulo nos{7} primeiros trinta annos do seculo XVII mais de trezentas a quatrocentas casas, com cerca de tres mil moradores, gentios catechisados e livres em maioria, Portuguezes, mamelucos ou mestiços de branco e gentio, mulatos e pretos escravos. Erão pela maior parte as habitações simplices choupanas, cobertas de telhas ou de palha; quatro ou cinco igrejas regulares, e não mais de trinta a quarenta predios de apparencia senhoril. Estreitas e tortuosas ruas traçadas sem o nivellamento preciso do solo exigião degráos para subidas e descidas, que communicassem os varios outeiros, sobre que o arraial pousava. Dominando a eminencia banhada aos pés pelo riacho Tramandatahy, pairava a casa da companhia de Jesus, limpamente caiada, erguida em sobrados, coroada de telhas vermelhas, dominando a planicie, que acabava nos montes da Penha, atirando uma cerca repleta de larangeiras, jaboticabeiras,{8} e varias arvores fructiferas pela quebrada do outeiro até as margens do arroio, e encostada á igreja do Instituto modestamente edificada, tendo ao lado uma torre pittoresca e um cemiterio já bastante povoado de sepulcros, e na frente uma praça irregular bem que espaçosa.

As varias classes dos moradores se differençavão igualmente pelos costumes e tendencias. Empregavão-se os escravos nos trabalhos infimos e agricolas. Dedicavão-se os Portuguezes nascidos na Europa ou já no Brazil ao commercio e industria, á construcção e edificação de propriedades, a compras e vendas de terrenos, ou permutas em grosso ou a varejo de objectos de mercancia. Regimentos militares e milicianos defendião a povoação. Algumas ordens monasticas possuião já conventos. Mais numeroso e importante se manifestava porém o Instituto de santo Ignacio de Loyola, ao qual respeitavão{9} as proprias autoridades civis e militares, em obediencia ás ordens terminantes e rigorosas que lhes chegavão da metropole européa, recommendando-lhes todo o apoio e protecção aos jesuitas, como os apostolos mais fervorosos da catechisação dos indigenas, e os esteios mais firmes do altar e do throno. Posto em geral mais viciosos que todos os habitantes, se reputavão os mamelucos descobridores audazes de terras interiores, e exploradores perspicazes dos desertos, incitando continuamente a cobiça dos Portuguezes, que chegavão á povoação nos desejos e ancias de correrem atrás de minas de ouro e prata, que dizião existir para as partes de dentro da capitania, e para os confins e limites do Perú, e de guerrearem os gentios salvagens, que se reduzião ao captiveiro, segundo as leis existentes, quando apanhados sómente nos combates, ou convencidos de crimes.{10}

Formavão os caboclos catechisados uma classe innocente, submissa, devota, mas activa e industriosa. Compunha-se de operarios, agricultores, musicos e cantores. Apprendião todos os officios, e gostavão de procissões religiosas, festas nos templos e solemnidades apparatosas. Veneravão e obedecião aos padres da companhia de Jesus como a seus pais e protectores, seus amigos e mestres, seus medicos e anjos tutelares. Ouvião-lhes os conselhos, attendião-lhes aos sermões e predicas, assistião nas suas escolas ás lições da lingua e grammatica portugueza, ás explicações do catechismo romano, e ao exercicio do canto e musica, com que particularmente os deleitavão os jesuitas, alimentando-lhes a fé, e moralisando-os convenientemente. Applicavão os filhos desde a infancia aos coros das igrejas, ao tanger dos instrumentos sonoros, e ao serviço religioso.

Estava a capitania de São Vicente dominada{11} ainda pelos herdeiros do donatario, e administrada em seu nome por autoridades de sua escolha, conhecidas pelos titulos de locotenentes e capitães-móres. Prestavão todas preito todavia ao governador do Rio de Janeiro em tudo quanto se considerava direcção politica.

Não erão raras as lutas em que se envolvião os jesuitas contra as pretenções dos brancos e mamelucos, ambiciosos de converter em escravos quantos gentios apanhavão, ainda que as leis não consentissem o captiveiro senão em casos particularisados. Timbravão os padres em defender os infelizes indigenas, e sustentar os seus direitos e fóros de homens livres. Bastantes conflictos travavão igualmente no intuito de livrar os gentios de attentados e malversações, que soíão praticar os conquistadores contra as suas pessoas, familias e propriedades. Valião-lhes o respeito que incutião em animos ignorantes, as{12} crenças catholicas da época e que chegavão ao gráo de superstição, e das quaes os jesuitas se aproveitavão, e o apoio igualmente que prestavão aos padres as autoridades da colonia.

Como se alvoroçava a população de São Paulo ao receber noticias de Portugal e Hespanha, unidos então sob o sceptro dos Felippes de Castella? Quantas dôres e gemidos, quantas preces nos templos, quantas genuflexões perante os altares, ao espalhar-se que os Hollandezes se havião apoderado da cidade do Salvador da Bahia, e logo após do territorio de Pernambuco, ameaçando submergir o Brazil no pelago das calamidades, com levantar sobre as ruinas da religião romana o frio e schismatico culto da reforma preconisada por Luthero, Calvino e seus discipulos! Ao saber-se de victorias dos Hollandezes, acudião povos dos arredores de São Paulo, e corrião todos os moradores, guiados pelos{13} jesuitas e pelas autoridades, a implorar do Deos eterno misericordia e salvação, misturando-se as imprecações e lagrimas de gentios, mamelucos, brancos e escravos, que batião nos peitos amarguradamente, se infligião castigos corporaes, e apegavão-se aos santos do calendario para lhes conseguir protecção e piedade!

Corria assim este estado de cousas, quando, ao acabar de uma tarde do mez de Abril de 1628, descêrão dous vultos o outeiro em que estava situada a cerca da casa de Jesus, como peregrinando por entre o arvoredo, e procurando as margens do Tramandatahy.

Cobrião-se ambos de roupetas de jesuitas. Mas um puxava já os seus annos para além do numero de quarenta. Começava-lhe a cabeça a embranquecer e calvejar, cahindo-lhe os cabellos á proporção que perdião a côr primitiva. Physionomia sympathica e rasgada; olhos bondadosos; gestos agradaveis{14} apparentava. Conversando com o seu companheiro, que pouco mais passava dos vinte annos de idade, mexia o padre Eusebio de Monserrate, que assim se chamava o mais velho dos dous vultos, as contas grandes e pretas de um rosario terminado por uma cruz regular, parava de quando em quando, ouvia attentamente o seu interlocutor, dirigia-lhe palavras curtas e pausadas, levantava os olhos para o céo, e fixava-os a miudo no mancebo, como perscrutando-lhe no intimo do peito. Esbelto, vigoroso e alto, erguia-se o seu companheiro, noviço ainda da companhia. Dir-se-hia porém triste, abatido, acurvado por alguma dôr do espirito, e mais prestes a confessar-se humildemente que a entreter uma conversação regular e séria.

Morria ao longe o dia, enterrando-se o sol, que o allumiára, por detrás dos morros da Penha, posto raiassem ainda os derradeiros clarões, que vagão indefinida e indecifravelmente{15} depois ainda que o rei dos astros desapparece, demorando-se elles por algum tempo no horizonte, que do lado opposto se escurecia e minguava com as sombras da noite proxima. Suave viração brincava com as folhas das arvores, perfumando e refrescando a atmosphera um pouco aquecida com os ardores antecedentes do sol. De um para outro lado saltavão pelo chão timidas rolinhas, fugindo aterrorisadas sempre que ouvião o menor sussurro, e parecendo procurar abrigo tranquillo em qualquer galho ou tronco esparso que encontravão.

Soárão sete horas nos sinos da torre dos jesuitas, quando se havião já approximado do Tramandatahy os dous individuos de que fallamos. Tirárão immediatamente da cabeça os seus grandes chapéos de abas largas, e cortárão toda a conversação para dirigir preces ao Todo Poderoso e benzer-se devotamente. Acabadas as rezas, pegou o padre na mão{16} do mancebo, e disse-lhe com pausa estudada:

—Queres emfim abandonar a casa de Deos e deixar o serviço da religião e da companhia?

—Não me inspira vocação nenhuma para o estado,—respondeu-lhe o joven, tentando beijar a mão do jesuita, o que este lhe não permittio.—Não dirige Deos a creatura humana?—continuou depois de alguns momentos de repouso.—Se me não concede vontade e dedicação é porque me destina para outros fins.

—Serás desgraçado, filho!—retorquio-lhe o padre.—Deos não quer violencias. Recommenda apenas a convicção para chamar ao gremio da Igreja as ovelhas extraviadas. Dá-lhes o livre arbitrio, para ficarem responsaveis das suas intenções e feitos. Mas serás desgraçado, porque a Igreja catholica é a razão divina, a unica salvação da creatura{17} humana, e não encontrará descanso quem a trocar pelo oceano insondavel do mundo das miserias.

—E porque me não depositou Deos no espirito ancias e aspirações intimas para a vida da communidade ecclesiastica e da disciplina rigorosa que exige o santo Instituto?—perguntou o joven, exaltando-se amarguradamente, e manifestando agitação patente do animo.

—Para que saibas domar as paixões que borbulhão no homem,—repetio-lhe o velho.—Mais ganha quem na luta commette sacrificios, e vence os instinctos desregrados da natureza e da juventude.

—Que vale a devoção contrafeita?—articulou o mancebo.

Sorrio tristemente o jesuita, comprehendendo-lhe o fundo do pensamento. Chegou-se a um tronco cahido, que descobrio a pequena distancia, no intuito de arrimar-se n'elle,{18} levando pelo braço e para perto de si o noviço angustiado.

—Escuta,—disse-lhe com amenidade.—Eu tambem passei pela tua idade. Eu tambem senti ferver-me no peito paixões desencontradas, como em ti prevejo, e que me incitárão e arredárão do verdadeiro caminho da felicidade n'este e no outro mundo. Eu tambem, como santo Ignacio de Loyola, creador de nosso santo Instituto, achei-me precipitado nas lutas extravagantes e desordenadas da vida. Eu tambem combati como soldado, viajei como peregrino errante e aventureiro, soffri fomes, sêdes, perigos, prisões e exilios. Apprendi porém á minha custa, ensaiou-me a experiencia dos males, arrependi-me sinceramente dos meus erros, e foi o Eterno comigo misericordioso, abrindo-me a tempo os olhos da razão, para buscar asylo e socego de corpo e d'alma na Sagrada casa, a que me acolhi de coração. Oxalá seja Deos{19} bondadoso tambem comtigo, e te manifeste na eternidade a sua infinita piedade!

—Deixai-me igualmente gozar da mocidade,—exclamou o joven.—Siga comigo a natureza a sua marcha legitima, como succedeu comvosco.

Encarou-o o padre absorto. Percebeu lagrimas copiosas cahirem-lhe dos olhos apezar da firme resolução que denunciavão as palavras do mancebo. Não descobrio maldades aonde apparecia a só exaltação de animo verde e inexperiente. Moveu-o a compaixão, e assomou-lhe igualmente ao espirito a reminiscencia do seu proprio passado. Abraçou-o apertada e amigavelmente, e disse-lhe:

—Não lucra a religião com duvidas e lutas do espirito. Não agradece o Instituto de santo Ignacio serviços involuntarios. Parte. Manda-me a consciencia que te abençôe na despedida, e rogue a Deos todo poderoso{20} te illumine na senda escabrosa que pretendes percorrer, e te abra os thesouros da sua ineffavel graça a tempo de salvar-te dos perigos.

Cahio o joven de joelhos, e recebeu com toda a humildade a benção, que lhe lançou o religioso. Ao deixa-lo, sentio o padre que seus proprios olhos humedecião, e lhe rolava pela face, que começava a enrugar-se, pranto amargo e sentido. Acompanhou com a vista o mancebo, que sahia da cerca, até que não pôde mais descobri-lo com as trevas da noite, que se adiantava. Levantou-se do tronco em que estava apoiado, e seguio machinalmente para a casa da companhia, subindo o outeiro. Chegado ao alto, voltou-se, procurando rever ainda o joven. Vão esforço! Desapparecêra elle completamente.

Rezou baixo alguns minutos, benzeu-se enternecidamente, e saudando o porteiro, entrou no convento. Dirigio-se para a Igreja,{21} prostrou-se ante os altares, e duas longas horas passou ahi n'essa posição, orando em pró do noviço infeliz, que as tentações do mundo arrancavão á vocação religiosa.{22}

CAPITULO II

Sahido da cerca dos jesuitas, seguira no entanto para o interior da povoação de São Paulo o noviço que se despedira do padre Eusebio de Monserrate. Chamava-se Manuel de Moraes. Nascera nos primeiros annos do seculo. Destinára-o seu pai, José de Moraes, para a vida trabalhosa de membro da companhia de Jesus, por se persuadir ser este o estado mais feliz, e posição mais brilhante e grata a Deos e á sociedade, que podia descobrir para o filho unico varão que lhe concedêra{23} a Providencia. Oriundo da provincia do Minho em Portugal, alli se casára José de Moraes com Ignez das Dôres, e o obrigára a pobreza a deixar os lares patrios, e procurar fortuna no Brazil, levando comsigo a consorte e companheira. Guiado pelos conselhos dos jesuitas, de quem se mostrava fervente admirador, empregára-se em lavoura na capitania de São Vicente, e ganhára creditos merecidos de um dos mais honestos moradores de São Paulo, e dos mais honrados Portuguezes, que ahi residião. Além de Manuel de Moraes, tinha mais tres filhas menores, que Ignez das Dôres educava piedosamente infiltrando-lhes no espirito tenro ainda as maximas mais salutares e virtuosas.

Entregára o proprio José de Moraes o filho querido á companhia de Jesus. Confiára-o particularmente ao padre Eusebio de Monserrate, seu amigo antigo, e protector decidido.{24} Madrugára no moço o engenho, e nem-um estudante o excedia em penetração e agudeza de espirito, e em desejos de instruir-se, e aproveitar as lições dos mestres. Merecia as sympathias dos jesuitas pelo seu procedimento escolar, e pela vida regrada que seguia, posto lhes desagradassem frequentes opposições e resistencias á disciplina e devoções mysticas que soíão praticar-se no Instituto dos discipulos de santo Ignacio. Procurára Eusebio de Monserrate acurvar essa vontade altiva, modificar essas tendencias mundanas, que o noviço manifestava claramente. Nada conseguíra, como acabamos de referir, e se determinára por fim Manuel de Moraes a abandonar o convento, e o velho padre a consentir-lhe aos desejos, reconhecendo a inutilidade das suas exhortações e conselhos.

Turvára-se a noite, e chuva ao principio miuda, que cahia sobre a terra, prognosticava{25} maiores torrentes, pela escuridão que cobria o firmamento, e pelos indicios certos de relampagos, que se denunciavão na atmosphera carregada de grossas nuvens.

Graves cogitações lhe acabrunhavão todavia o espirito attribulado pela importancia do passo que acabára de dar. Como o acolheria seu pai, ao saber da resolução que tomára? Tê-lo-hia previamente scientificado e preparado o padre Eusebio de Monserrate? Que vida o esperava, e que aventuras lhe erão reservadas, agora que, não pertencendo mais ao Instituto de santo Ignacio, entrava no gozo inteiro da liberdade, e se atirava no seio da sociedade civil, que não conhecia, mas que a imaginação lhe pintava como a mais apropriada e favoravel ao seu caracter, e ás suas aspirações intimas, que a communhão religiosa, que o acolhêra e educára até os vinte quatro annos de idade?

Ao descer um outeiro ingreme para subir{26} aquelle em que pousava a casa paterna, para a qual se encaminhava, e que era situada na extremidade da povoação, ouvio não longe de si, e mais em baixo, por detrás de uma ruela miseravel, gritos e rumores extraordinarios.

Cobria-o o habito preto de lila, que usava no convento. Não tinha armas para atacar ou defender-se. Sobrava-lhe porém coragem, e não hesitou um instante em correr para o lugar do perigo, de onde partião vozes que parecião pedir soccorro. Não lhe prestava a roupeta do jesuita uma força moral que lhe attrahia o respeito?

Ao dobrar um becco escuro, achou-se em frente de um grupo de quatro homens e de uma mulher. Escondia-lhe a densa escuridão as peripecias do acontecimento. Approximou-se porém de subito, e gritou-lhes, mostrando a cruz do seu rosario:—Em nome de Deos, cessai, peccadores!{27}

Mais poderosa que a espada foi a exclamação resoluta do noviço. Ao ouvi-lo, tres dos homens deitárão a fugir, sumindo-se incontinente. Achou-se Manuel de Moraes com um só dos homens, e o vulto de mulher que se arrastava pelo chão, proferindo ais angustiados.

Atirou-se-lhe aos joelhos o individuo que ficára, e agradeceu-lhe a sua salvação. Apressou-se a mulher em imitar-lhe o exemplo, e ambos fallavão ao mesmo tempo, denunciando a sua gratidão, e beijando o habito do noviço.

—Que succedeu?—perguntou-lhes Manuel de Moraes, levantando-os, e animando-os com gestos bondadosos, e um tom meigo, que lhe devia affeiçoar a confiança.

—Padre!—disse-lhe o homem mais tranquillo—Sou um pobre carijó, e é minha filha esta menina. Moravamos ahi,—apontando para uma infima choupana—quando tres{28} brancos arrombárão a porta, se atirárão sobre a cama de minha Cora, arrancárão-na d'ahi, e corrêrão para a rua, carregando-a nos braços. Acordei sobresaltado, precipitando-me contra elles com os meus braços por unica arma, que os braços de um pai valem as melhores espingardas. Segurei em minha filha, atraquei-me com elles, quando chegastes, e nos salvastes!

—E que sangue é este?—continuou Moraes, percebendo-lhe manchada a cabeça, a face, e a camisa de algodão.

—Não é nada, meu salvador,—repetio o gentio, chegando os labios á mão do noviço.—Alguma bordoada que apanhei. Não é nada, que escapou Cora dos seus perseguidores.

—E os conhecestes?—interrogou-lhe o joven.

—São perros,—tornou-lhe o carijó.—Não lhes divisei bem os rostos, mas creio{29} que não passão de uns máos vizinhos brancos, que commettem tropelias em São Paulo, sem respeito ás vozes dos santos missionarios, e nem medo de castigo de Deos eterno. Somos fracos, pobres gentios, e os padres sós nos amparão e protegem!

Dirigírão os seus passos para o casebre miseravel que servia de habitação ao indigena. Cahida estava a porta unica que lhe abria communicação para a ruela, arrancada dos gonzos e derribada por terra. Entrárão os tres. Acendeu o gentio lume com umas pedras. Passou-se o fogo para uns pedaços seccos de páo, que se illuminárão em um momento. Vio então Moraes o caboclo, que reconheceu por um dos mais fieis seguidores da religião e frequentadores da igreja da companhia. Trazia camisa e calças de algodão branco. Pés no chão, e o aspecto respeitavel. Uma saia da mesma fazenda cobria o corpo todo de Cora, apertada na cintura e{30} com mangas largas e compridas. Cahião-lhe em desordem pelos hombros bastos cabellos pretos, que se dirião luzentes como o verniz. Olhos quasi azulados, grandes, rasgados, cobertos de espessas pestanas da mesma côr, harmonisavão admiravelmente com o vermelho das faces juvenis, com o delicado dos labios e fórmas do rosto, e com o esbelto e elegante do corpo. Uma grande estampa da santissima Virgem lacrymosa ornava a parede do aposento, despido de trastes, e sem forro nem soalho de madeira.

Ajudou Manuel de Moraes ao gentio no levantar e pregar de novo a porta do seu casebre. Socegou-o com seus conselhos. Exhortou a filha a proseguir no caminho da virtude. Despedio-se por fim d'elles, deixou-lhes a choupana, e continuou o seu caminho, pensando na luta das duas raças de homens que ahi estavão reunidas na mesma povoação e em face uma da outra, e agradecendo{31} a Deos por conservar ao menos a autoridade e prestigio dos padres da companhia de Jesus, afim de defenderem a mais fraca e innocente, e reprimirem com as armas da religião, que assoberbavão felizmente os espiritos de todos, as violencias e arbitrios, que com barbaros instinctos soíão os conquistadores praticar contra os desgraçados gentios.

Volvêrão-lhe pela mente idéas favoraveis ao seu regresso para o seio da companhia, destinada á salvação de tantas almas desditosas, e á protecção de individuos tanto mais interessantes quanto menos robustos, e menos estragados na religião e nos costumes. Ou o pejo, depois do que havia commettido, ou uma aspiração interna e indefinida, que o arrastava para o mundo, e lhe pesava sobre a razão, ordenárão-lhe porém que marchasse para outros destinos, posto lhe fossem desconhecidos.{32}

Absorvido n'estes pensamentos chegou á porta da casa paterna. Reinava o maior socego e quietação na aldêa. Continuava negro o céo, a chuva mais grossa, o vento crespo e em rajadas desagradaveis, a atmosphera atravessada por scentelhas de fogo, o ar roncando já com trovões assustadores, ainda que longinquos ainda. Nem uma luz raiava nas ruas, e nem uma porta ou janella das casas estava aberta.

Bateu docemente com a mão na porta do ninho paterno. Respondeu-lhe logo o latir de um cão amigo, e depois uma voz perguntando-lhe quem era. Á sua resposta conhecida, se lhe abrio a porta, e penetrou elle na casa.

Não era abastada de bens de fortuna a familia de Moraes. Passava todavia folgadamente, porque os trabalhos ruraes do chefe a entretinhão com a satisfação das necessidades da vida, e até com alguma commodidade.{33} Estava o pai, cuja idade orçava pelos quarenta e cinco a cincoenta annos, sentado em uma velha poltrona, rodeiado da mulher e de tres filhas menores de pé, e que parecião ouvir-lhe as admoestações e conselhos. Alguns moveis, uma talha de agua de barro vermelho encostada a um canto, uma mesa no centro, sustentando algumas iguarias frias, e uma vela acesa em um castiçal de páo, formavão todo o seu adorno. Parecia que se terminára a merenda habitual da noite, e que a familia attendia ás bençãos do seu chefe, para se recolher ao descanso do somno.

—Louvado seja nosso Senhor Jesus Christo,—disse Manuel, benzendo-se ao entrar, e beijando as mãos do pai e da mãi.

—Novidades grandes trazeis-nos,—exclamou o velho, percebendo-o.—A taes deshoras fóra do convento! Que desgraças nos annunciais?

Empallideceu Manuel a esta pergunta repentina,{34} e que o impressionou como máo agouro. Como preparar o animo de seu pai, que se mostrára tão adheso ás felicidades da vida ecclesiastica, e tão convencido da missão religiosa, para communicar-lhe o passo que dera de abandonar a companhia? Traçou attenuar-lhe pela melhor maneira o effeito que devia produzir o motivo da sua apparição, mostrando-se ao principio cuidadoso pela saude de todos os membros da familia, que ha tres dias não havia visitado, antes que respondesse a seu pai como lhe cumpria.

Em poucas palavras o satisfez José de Moraes, assegurando-lhe que todos gozavão de paz e socego, reiterando-lhe a pergunta que lhe dirigíra, e mostrando-se ancioso por saber a razão da sua visita inesperada.

Comprehendeu o filho que a narração devia de ser rapida para que menos desastroso fosse o effeito produzido. Não andava já contente José de Moraes com a sua conhecida repugnancia{35} de passar na companhia do gráo de noviço ao de irmão, que era o segundo do Instituto, e requisito necessario e indispensavel para se elevar ao de padre. Exasperava-se porque o filho lhe não abria o coração, pelo temor em que o pai o continha, e respeitoso afastamento de si, em que o guardára desde a infancia, quando alguns avisos dos jesuitas lhe chegavão aos ouvidos, e profundamente o irritavão.

—Antes de responder-vos, meu querido pai—disse-lhe Manuel, ajoelhando-se perante elle, e apertando-lhe as mãos com affecto extremoso—Antes de responder-vos, peço-vos me perdoeis!

A estas expressões arrancou José de Moraes as mãos que o filho conservava e beijava. Levantou-se da poltrona, deu alguns passos para se arredar de Manuel, tomou aspecto sinistro, e gritou-lhe arrebatadamente:

—Que crime commettestes? Preciso sabê-lo{36} primeiro, porque Deos me não permitte perdoar na ignorancia!

Assumio logo ao espirito de Manuel que o padre Monserrate nada contára ao pai, e o não prevenira para o golpe que lhe ia ser descarregado. Sobresaltado mais por esta circumstancia imprevista, conservou-se taciturno por alguns momentos, morrendo-lhe a voz nos labios quando estes pretendião dar passagem ás palavras.

Foi mister que José de Moraes, depois de mira-lo attentamente, e procurar adivinhar-lhe o pensamento, lhe ordenasse positivamente que se não evadisse a declarar-lhe toda a verdade.

Triste e abatido, continuando curvado, e saltando-lhe dos olhos algumas lagrimas, balbuciou então vagarosamente Manuel:

—Faltei á vossa vontade, aos meus proprios desejos de obedecer-vos.

Levou o velho a mão á fronte despovoada{37} quasi de cabellos. Ergueu-se com magestade, posto manifestasse a maior afflicção. Chammejárão-lhe os olhos, apertárão-se-lhe os labios, anuviou-se-lhe a physionomia inteira.

—Expulsárão-te da companhia?—disse-lhe desesperadamente.

—Não, meu pai,—tornou-lhe Manuel com tom decidido e firme.—Foi sempre exemplar o meu proceder na casa dos santos padres. Elles vo-lo dirão todos, que não criei nem-um desaffecto.

—Mais criminoso foste então,—retorquio-lhe o velho—porque lançaste sobre mim, sobre tua familia, e sobre ti proprio, a deshonra, commettendo fóra do claustro attentados talvez horrorosos.

—Não, meu pai,—continuou Manuel mais tranquillamente.—Segui sempre o caminho da virtude, que me ensinastes.

—Não te entendo,—repetio-lhe José de{38} Moraes, bastante alliviado já do peso horrivel de idéas disparatadas que lhe apouquentavão o espirito.

—Não commetti um crime, meu pai,—proseguio Manuel.—Não pratiquei uma acção viciosa. Mas faltei ás vossas ordens, e desobedeci á vossa vontade, por mais que me esforçasse em satisfazer-vos; faltárão-me as forças!

Embrulhava-se cada vez mais o espirito de José de Moraes com estas declarações singelas, mas resolutas no tom e nos gestos do filho. O que lhe teria succedido, que o devesse magoar profundamente? Em que lhe desrespeitára Manuel ás ordens e desattendêra á vontade, que se elevasse a tal gravidade, que lhe fosse preciso perdoar de antemão? Nem-uma idéa lhe fulgurava ao animo que lhe prestasse a chave do segredo, e lhe fizesse adivinhar o mysterio escondido nas palavras do filho. Menos exasperado ficára todavia, posto inquieto ainda.{39}

Conservava-se como uma estatua a mãi enternecida. Não fizera um movimento, não proferíra uma palavra, não praticára um gesto. Debulhados apenas os olhos em pranto copioso, corrião-lhe elles a miudo do filho para o marido, e de José para Manuel de Moraes, sem que ousassem fitar-se seriamente em nem-um dos dous. As duas filhas maiores apertando nos braços a mais pequena, que teria seis annos, e recolhendo-se a um canto da casa, formavão um grupo de pequenas creaturas espantadas, a quem embargava a voz na garganta o terror de que se tinhão apossado.

—Que fizeste pois?—disse mais pausadamente José de Moraes, chegando-se para o filho. Custou-lhe a conceder a mão que o noviço parecia implorar-lhe. Fê-lo todavia na intenção mais de anima-lo a terminar a historia que lhe devia contar, que de manifestar-lhe paternal affecto.{40}

—Perdoai-me antes, meu pai,—repetio-lhe Manuel.—Promettei-me o vosso perdão e abrir-vos-hei todo o meu peito, revelar-vos-hei todo o occorrido.

—Confessa primeiro,—continuou o velho, arredando-se de novo do pé do filho, e carregando o semblante com indicios visiveis de tempestade.

Reinou o silencio. Nem o filho se atreveu a fallar, por o não animar José de Moraes com um gesto ou palavra que se lhe afigurassem de benevolencia, e nem o velho julgou dever proseguir na indagação, depois de ter dado provas patentes das suas exigencias.

Appropinquou-se no entanto de Manuel o cão amigo, no intuito de acaricia-lo e festeja-lo, como soía pelo seu animo de animal fiel e agradecido.

—Sahe d'ahi,—gritou para o cachorro estremoso o velho irritado, lançando-lhe um olhar terrivel e dando-lhe com o pé. Comprehendeu-o{41} o animal submisso, e volveu vagarosa e tristemente para a porta da rua, aonde era o seu lugar, e deitou-se de novo no chão, posto não tirasse a vista da scena, que para elle se diria comprehensivel.

Resolveu-se emfim Manuel de Moraes a fallar, no desejo e esperança de terminar o espectaculo cruel, de que era parte importante. Abaixou humildemente a cabeça e balbuciou pausadamente as seguintes palavras:

—Não encontrei jámais em mim vocação para a existencia pacifica dos claustros, e nem para a vida religiosa. Lutei bastantes annos para vencer minhas paixões, dobrar o meu espirito, reprimir-lhe as tendencias para o mundo e para a sociedade civil, abafar n'alma as aspirações que d'ella partião, e me convidavão para outros destinos. Não posso pertencer á companhia de Jesus, como me determinastes e como vos devia um filho obediente. Prefiro despir o habito, deixar o Instituto,{42} e ajudar-vos nos trabalhos em que vos empregais, meu pai!

—Nunca!—retorquio-lhe o velho com violencia.—Dediquei-te á vida dos missionarios para bem teu, serviço de Deos, amor da religião e arrimo da tua familia.

—Deixei-a já, meu pai!—respondeu o filho.—Esta roupeta me não pertence mais. Estes trajos já não são meus. Desamparei a casa da companhia. Despedi-me d'ella para sempre. Deos não quer votos contrarios ao coração e ao espirito.

Tão decididos termos exaltárão em demasia o animo irritado de José de Moraes. Sem titubear um momento e nem hesitar um instante, gritou para o filho, respondendo á sua declaração com outra mais forte e resoluta:

—Foge de minha presença, que te não reconheço mais por meu filho! Sahe immediatamente d'esta casa que desdouras, e cuja porta te será para sempre fechada!{43}

Pretendeu Manuel fallar ainda. Faltou-lhe coragem diante do gesto altivo e firme do velho. Olhou para a mãi, que cahio em soluços sobre um banco encostado á parede; para as irmãs, que, como pombinhas diante do caçador feroz, se apertavão cada vez mais umas ás outras.

—Minha querida mãi!...—escapou-lhe dos labios uma voz dorida.

Procurou a mãi acolhê-lo, mas trepidou, á vista do marido, que com o braço estendido mostrava ao filho a porta da rua.

—Manuel!—pronunciou sempre a assustada mãi.—Obedece a teu pai, volta para os teus deveres.

—É impossivel já, exclamou o noviço.

—Calai-vos, senhora!—cortou-lhe o velho a palavra nova que desejava ella pronunciar.—É um homem perdido esse que ahi está. Não é mais nosso filho! Acompanha-o a maldição do pai e o castigo infallivel do céo!{44}

Não pôde mais nada dizer Dona Ignez, e perseverou na sua posição dolorosamente enternecida. Afigurava-se a Virgem das Dôres, partida pelas mais acerbas magoas e crueis soffrimentos, e prostrada com a submissa e evangelica resignação de que as sós creaturas celestes se revestem.

Levantou-se então Manuel de Moraes, que se conservava de joelhos. Intentou approximar-se do pai. Foi com força repellido. Traçou proferir algumas palavras. Impôz-lhe o velho silencio com um gesto expressivo. Chegou-se á mãi e agarrou-lhe na mão. Saltou José de Moraes do seu lugar, e arrancou-lh'a violentamente antes que o filho tivesse tempo para a tocar com os labios.

—Segue o teu destino, infeliz!—disse-lhe o velho.

Percebeu Manuel que nada mais podia fazer que minorasse a dôr do pai, e lhe cumpria sómente sahir da casa. Dirigio-se para a{45} porta da rua, e abrio-a. Antes de transpô-la porém, volveu-se de novo para os parentes, mostrando-lhes as lagrimas, e pedindo-lhes a commiseração e piedade. Soluços repentinos acompanhárão uma voz de despedida saudosa, e de adeos dorido. Pôz termo o velho á scena, correndo para a porta, e fechando-a sobre o filho, que se achou de fóra e no meio da rua.{46}

CAPITULO III

Tinha chegado no entanto a tempestade ao seu apogêo. Rasgavão os ares os coriscos e raios que esclarecião sós e momentaneamente a povoação de São Paulo. Enlutára-se a natureza, e a noite espessa, triste e medonha não deixava descobrir caminho. Se não fôra o relampago, que de quando em quando commettia a sua apparição, ter-se-hia perdido de certo o noviço no meio d'esses beccos e ruellas estreitas e escuras, de subidas{47} e descidas, bem que as conhecesse desde a sua infancia.

De vagar, e apalpando quasi o caminho, largou a aldeia, e se dirigio para a planicie. Teria marchado tres quartos de hora pelo campo aberto, apenas de distancia em distancia povoado por um ou outro casebre isolado e solitario, quando se achou no sitio a que chamão hoje da Luz, por se ter ahi erguido uma ermida sob a invocação da senhora d'este nome.

Apezar do máo tempo, alagada a roupeta com as chuvas abundantes que a inundavão, enterrados os grossos sapatos nos lodaçaes, que uns sobre outros tinha de atravessar, continuou a sua marcha por meia hora mais, até que se appropinquou de uma rustica choupana, e conseguio que lhe dessem n'ella entrada e pouso. Pertencia a um seu amigo da infancia, com o qual entretinha a maior intimidade.{48}

Acolheu-o e espantou-se Antonio da Costa com a sua apparição inesperada, e áquellas horas mortas da noite. Agasalhou-o; ajudou-o a despir-se da roupeta de noviço, que trajava ainda, deu-lhe novo fato, emquanto a capa se enxugava ao fogo de um brazeiro, e convidou-o a tomar alguma refeição, para recobrar as forças perdidas.

Não excedia a idade de Antonio da Costa a vinte e dous annos. Era homem robusto já, como se mais adiantamentos ganhára sobre o tempo. Possuia imaginação ardente e aventurosa, e sentimentos cavalheirescos. Vivia só e retirado n'aquelle sitio e casa, depois da morte dos pais, que minguados recursos lhe havião legado. Não se applicáva a trabalho ou officio algum, vegetando e estorcendo-se por isso nas angustias da ociosidade, que mais desespera que nutre o homem, e lhe torna tediosa e aborrida a sua existencia no mundo.{49}

Summariou-lhe francamente Manuel os acontecimentos por que passára, e a situação a que o havião elles arrastado. Chamárão os successos do noviço as reflexões do seu amigo para si proprio. Comprehendeu que era identica a posição de ambos, e lhes cumpria abandona-la conjunctamente, procurando meios que do mundo em que vivião os arrancassem para novo destino. Em vez de dormirem, gastárão os dous moços o resto da noite em mutuos pensamentos e cogitações. Reflectião, e discutião sobre o que devião fazer, sem que tivessem chegado ainda a um accordo, quando começarão a annunciar-se os primeiros arrebóes da madrugada.

Passára o temporal, e promettia bonança o dia que se levantava. Conversavão ambos, recostados sobre a mesma cama, quando ouvírão grandes rumores na estrada. Erguêrão-se, abrírão uma janella que dava sobre ella, e prestárão sua attenção a vozes alternadas e{50} ás vezes conjunctas, e tumultuosas. Descobrírão um grupo de cerca de trinta homens brancos e mamelucos, e outros tantos ou mais gentios, armados todos de espadas, facões, clavinotes e espingardas, de mochila ás costas, vestes grossas de viagem, calças arregaçadas, e largos chapéos, ou carapuças espessas.

Parára o grupo quasi defronte da choupana de Antonio da Costa, e ahi se occupava em uns negocios ou aventuras, fallando muitos ao mesmo tempo, e commettendo a maior algazarra.

—Não ha que fallar mais,—disse um com voz de estentor, dominando inteiramente o barulho...—Matheus Chagas sabe melhor que ninguem os caminhos, está affeito aos perigos do sertão, e devemos obedecer-lhe ás cegas. Sem chefe não ha bandeira que preste. Seja Matheus Chagas acclamado para nosso chefe.{51}

Seguírão applausos repetidos, e gritou a maior parte:—Viva Matheus Chagas!

Rompeu então por d'entre elles um homem pequeno, corpulento, de physionomia requeimada do sol, e rasgada por um talho de faca ou instrumento cortante. Seguravão-lhe as mãos calejadas uma grande espingarda, e um enorme facão lhe pendurava á cintura. Enrolado capote velho com mochilas que parecião coldres lhe cobria desformemente as costas. Era o senhor Matheus Chagas, improvisado repentinamente em commandante do grupo pelas acclamações dos companheiros. Agradeceu-lhes a prova de consideração que recebia, e lhes prometteu que, como homem de resolução, tomava ao serio o posto conferido, e os guiaria para os seus destinos.

—Amigos!—disse-lhes emphaticamente.—Levar-vos-hei caminho direito ao Perú. Muita caça encontraremos nas mattas, e{52} muito peixe nos rios para alimentar-nos, muito boa agua para matar-nos a sede, saborosas frutas para refrescar-nos, bastos arvoredos para cobrir-nos contra os ardores do sol, e gentio em quantidade para captivar e vender. Espero em Deos que entraremos nos paizes dos Castelhanos, e encontraremos e carregaremos ouro e prata que elles lá têm em abundancia, sendo mais felizes que Aleixo Garcia, que elles roubárão escandalosamente, e matárão com tanta barbaridade[1]. Não sabeis que o cacique Taubixi, mandou avisar os Portuguezes de São Paulo que havião lá muitas riquezas, e os fossem ajudar contra os Castelhanos, que só querião tomar os bens aos gentios e assassinar-lhes{53} os filhos e as mulheres[2]?

—Bravo! bravo! Viva Matheus Chagas! repetirão todos com contentamento cada vez mais estridente e progressivo.

—Em ordem pois, e andar para adiante!—continuou o fogoso orador.—D'aqui a trinta leguas começão os nossos trabalhos. Até então viagem de rosas. Depois tocaias de gentios atrás do páo, ataques de jaguára de sobre a ribanceira, mordedura de cascavel dentro do buraco. Mas não tenhais medo. Eu conheço todos estes perigos. Servi com um dos homens que por ordem de Martim Affonso acompanhárão ao sertão em auxilio de Aleixo Garcia ao capitão José Sedenho, e de que poucos escapárão da refrega[3]. Marchemos, amigos!{54}

Reconhecêrão os dous moços, que presenciavão esta scena, que o grupo avistado formava uma bandeira de aventureiros, como começavão a organisar então os Portuguezes de São Paulo, incitados pela ambição de descobrir minas de ouro e prata, e fazer guerra aos gentios do interior para os reduzirem ao captiveiro.

Posto que nas sós tradições, que se referião a Aleixo Garcia e aos Hespanhóes do Perú, se denunciasse a existencia de minas de ouro e prata no interior do paiz, e nem uma havião ainda descoberto os Portuguezes, bastava a idéa para lhes fallar á cobiça, e leva-los a tentar a fortuna nas emprezas, atirando-se nas densas mattas, transpondo os rios caudalosos, dobrando as serranias levantadas, em procura de preciosidades que a crença geral dizia escondidas no seio das terras, e colhidas pelos Castelhanos por mais audaciosos. Deve a corôa portugueza a{55} estas bandeiras de aventureiros terrenos importantes que conquistárão, e com que alargárão as suas posses, ganhando-as sobre os vizinhos Castelhanos, espalhando nucleos de arraiaes e povoações, que com o tempo prosperárão e augmentárão, e abrindo communicações e caminhos para a beira do mar, aonde havião os Portuguezes começado a estabelecer-se. Findárão seus dias pelos desertos muitos dos aventureiros. Bandeiras inteiras desapparecêrão sem deixarem noticias. Não os poupavão as frexas envenenadas dos gentios, e as tacapes terriveis e pesadas de que usavão, no meio dos seus ferozes festejos, para quebrarem as cabeças dos prisioneiros, cujos corpos devoravão em banquetes horriveis. Resultárão porém no fim das correrias dos Paulistas vantagens e lucros extraordinarios para a colonia, que cresceu em terras, população e riquezas.

Olhou Manuel de Moraes para o seu amigo,{56} e disse-lhe:—Não pensas que o céo nos mostra o que temos de fazer? Porque não acompanhamos estes homens nas suas explorações?

Apoderava-se igualmente de Antonio da Costa o mesmo pensamento repentino.—Vá feito,—respondeu,—e já!

Não gastárão tempo em colloquios. Tomou o noviço a sua roupeta que seccára, e o seu chapéo preto de abas largas. Vestio-se Antonio da Costa com uma jaqueta grossa, deitou-lhe por cima um capote, collocou na cabeça um barrete de palha tosca, e pegou da espingarda e espada que possuia. Promptos para a longa peregrinação, sahírão ambos da choupana, cuja porta ficou trancada, e apressárão os seus passos afim de apanharem a bandeira, que se tinha afastado e adiantado bastante.

Ao chegar á margem do rio Tieté, lográrão os moços encontrar os aventureiros, a cuja{57} empreza pretendião associar-se. Requereu Antonio da Costa fallar ao chefe. Apresentado a Matheus Chagas, declarou-lhe a sua intenção e a do seu companheiro.

—Hum! hum!—vociferárão alguns.—Dous rapazolas, que parecem uns fracalhões, para que nos servem? Queremos gente forte, robusta, capaz de trabalhos e de fadigas, e não franguinhos, que irão só incommodar-nos!

—Silencio!—bradou Matheus Chagas.—Sou eu quem governa, e aceito a companhia. Teremos assim padre e sacristão!

Gargalhadas estrepitosas soárão d'entre os aventureiros. Apropriava-se de feito o dito do chefe ás vestes de Manuel de Moraes e ao juvenil semblante de Antonio da Costa. Subio ao rosto do noviço um rubor subito. Virando-se para o seu amigo, pareceu annunciar-lhe que melhor fôra abandonar o intento. Disse-lhe porém baixo Antonio da Costa que não{58} fizesse caso das risotas do grupo, e lançado estava o dado do destino.

Concordes assim, seguírão todos o seu caminho, acompanhando pela margem esquerda a correnteza do rio, até que em um sitio mais baixo deparárão com seis canôas de toscas e mal afeiçoadas madeiras, juntas por amarras de corda, e pregos grossos, como as jangadas modernas das costas do norte do Brazil. Embarcárão-se nas canôas, desatárão-lhes as cordas que as seguravão á terra, e largárão-nas pelo Tieté, para que as suas aguas as levassem.

Rolava o Tieté no seio de planicies admiraveis, povoadas de arvoredos gigantescos, jacarandás, louro, gurubus, cabiunas e gabirobas possantes, volteando incessantemente como serpente que se enrosca, recuando, avançando como jogo de xadrez, e lançando assim traços argenteos e limpidos através da côr verde-escura das mattas, que o cobrião{59} ás vezes com o tecto protector e hospitaleiro dos seus galhos numerosos. Pelos troncos e ramos das arvores corpulentas se atracavão igualmente mil tenues fios de parasitas, scintillando com as côres de suas flôres deleitosas, que perfumavão a atmosphera e extasiavão os olhos. Rasgavão os ares diversos e copiosos chilros de pequenos passaros, que se erguião e sumião ao rumor que fazião os viajantes. Alli gemia funebremente a juriti, e mais adiante repercutia o som vibrante da araponga, assemelhando-se ao lavrar dos ferros nas forjas das officinas. Via-se ás vezes correr assustada a cotia ligeira, e estridentes risadas dos macacos parecião zombarias de gente que chasqueava a viagem dos aventureiros.

Amarravão-se de noite as canôas ás ribas do rio. Acendião-se fogueiras para seccar a temperatura, e afugentar os animaes damninhos dos desertos. Envolvião-se nos seus{60} capotes os homens da bandeira, e dormião ao ar, e á luz opaca dos astros. Levantavão-se á alvorada, reganhavão as suas embarcações, e continuavão a sua derrota.

Havião navegado oito dias já com esta monotonia, quando percebêrão o primeiro salto do rio, cavado entre morros, e apertado pelas suas quebradas. Passárão as canôas para a terra, e as carregárão ás costas até vencerem o salto, e collocarem aonde o rio offerecia de novo facil navegação. Formava o salto uma verdadeira e perigosa cascata, pela qual rodomoinhavão e se precipitavão as aguas por entre pedras ás vezes agudas, que despedaçavão tudo quanto rolasse com a corrente atirada do alto. Exigia esta operação grandes trabalhos materiaes dos aventureiros, que a pericia de Matheus Chagas sabia até diminuir para se não cansarem.

Não poupavão aves e animaes, que lhes apparecião, roncando de quando em quando na{61} solidão o tiro das espingardas disparadas. Apanhavão ás tardes e ao cahir da noite, ao anzol, peixes exquisitos que lhes variavão o paladar, e lhes deleitavão o gosto. Jacús, tucanos, pacas e capivaras dos mattos, bagres, e surubis do rio, erão tudo regalos, com que os presenteava aquella magestosa solidão dos tropicos.

Soou-lhes um dia um assobio agudo e penetrante de animal bravio. Não lhe prestavão os aventureiros mais attenção, quando minutos depois echoou um segundo. Levantou-se Matheus Chagas, e fazendo signal de silencio, disse á meia voz aos companheiros:

—Atraca, e quietos e mudos. Temos, pelo que parece, gentio perto. Cuidado com as tocaias. São finos como lãs de cagado, e velhacos como lobos.

Encostárão as canôas á margem, e o chefe escolheu tres Carijós, aos quaes incumbio de reconhecer os signaes, e vigiar os sitios.{62}

Não se demorárão os caboclos designados. Entranhárão-se logo pelo basto arvoredo, marchando sobre folhas seccas sem que fizessem o menor ruido, enfiando pelos galhos das arvores com geito de animaes silvestres, e avançando com a ligeireza da corça.

Chegados á raiz de um outeiro, que estava a duzentas braças do sitio em que havião ficado os aventureiros, apromptando as suas armas de fogo para o que désse e viesse, deitárão-se ao chão os tres Carijós, estendendo-se ao correr do terreno. Reinava silencio sepulcral. Nem gritos de aves, ou animaes, nem barulho do rio, ou sopro de vento. Ardentissimo o sol vibrava raios abrazadores, que recolhião ao repouso os entes todos que habitavão as florestas.

Applicárão os Carijós á terra os ouvidos, para que a terra lhes communicasse o que sobre ella se passava em distancia. Em dous livros soem os gentios ler com particular attenção,{63} a terra que lhes noticia o que se passa em torno e até distante d'elles, e o céo, aonde descobrem as peripecias do tempo. Depois de um quarto de hora de acurada attenção erguêrão-se vagarosamente, e a um signal expressivo de um respondêrão os dous com breve abano de cabeça. Examinárão então o terreno, para descobrir que especie de entes o havia pisado. Voltárão para junto dos aventureiros com as mesmas cautelas, e disserão ao chefe:

—Inimigo está perto. São muitas duzias.

—Como o podeis saber?—perguntou-lhes um Portuguez curioso.

—Calai-vos—retorquio Matheus Chagas.—Sou eu o chefe, e quem governa.

Approximou-se dos Carijós, e indagou a distancia em que pensavão estar os inimigos.

—Quatro a seis tiros de frexa—respondêrão-lhe os Carijós.—Ouvimos debaixo da{64} terra o rumor dos seus pés. Apanhámos no chão os signaes de seus passos.

Havião acabado apenas de proferir estas palavras, quando cahio de cima das arvores, não muito longe dos aventureiros, um passaro atravessado por uma frexa produzindo um ruido grande por entre as folhas seccas. Correu para alli um dos Carijós, apanhou o passaro, que reconheceu por uma jacotinga, que entregou a Matheus Chagas.

Não podia haver mais duvida de que tinhão perto de si tribus de gentios selvagens. Não era porém Matheus Chagas homem de temer. Habituára-se ás correrias e á luta.

—Á tocáia tocáia,—disse elle.—Vá o padre fallar-lhes, engana-los, e descobrir-lhes o numero. E digão que o padre nos não serve!

Nomeou quatro Carijós, dous mamelucos, e dous Portuguezes. Ordenou-lhes acompanhassem em distancia, e escondidos, a{65} Manuel de Moraes. Recommendou ao noviço avançasse sem temer, procurasse os gentios, e mostrando-lhes sempre a cruz do seu rosario, lhes fallasse no céo, para que elles se persuadissem que não tinhão inimigos diante de si, mas missionarios de paz, que os pretendião catechisar.

Não trepidou Moraes em obedecer ao chefe. A rogos de Antonio da Costa, deu-lhe Matheus Chagas o seu amigo por companheiro.

Tomárão os dous moços a direcção que lhes apontárão os tres Carijós que tinhão já reconhecido os sitios. Seguírão-lhes os passos os oito aventureiros, occultando-se para não serem vistos, e nem pressentidos pelos inimigos.

Chegárão Manuel de Moraes e Antonio da Costa á raiz do outeiro, e subírão-no até o alto pelas escabrosidades do terreno. Quando alli apparecêrão, echoou na baixada opposta uma gritaria descommunal, que lhes annunciou{66} a existencia proxima dos gentios que devião procurar. Levantou os braços o noviço, apertando e mostrando nas mãos a cruz e o rosario, e seguido pelo seu amigo, foi descendo em direitura ao sitio de onde partião as vozes da tribu selvagem, sem que entretanto descobrissem pessoa alguma adiante e nem atrás de si.

Deixado o outeiro, encaminhárão-se afoutamente pela veiga, que se abria, e acabava no rio. Terião marchado duzentas braças mais, quando a gritos repetidos, se sentírão rodeados de um enxame de gentios nús, tendo apenas na cabeça, e nas partes inferiores do corpo, pennas multicôres de passaros vermelhos e fulgurantes, e nas mãos arcos e frexas de tamanhos e feitios diversos.

Sentírão ambos os moços parar-lhes o sangue nas veias, e arripiarem-se-lhes as carnes. Levantada a cabeça, e erguidas as mãos, mostrou Manuel de Moraes aos gentios a cruz{67} divina, e começou um discurso em portuguez, que derão os indigenas mostras de não entender, posto lhe prestassem attenção com ares de curiosidade. Curvado com humildade, e as mãos entrelaçadas no peito, como penitente, se conservava Antonio da Costa firme e resignado, representando ambos as personagens que lhe havião sido confiadas.

Cada um dos gentios procurava todavia examinar os dous individuos. Occupárão-se uns com o improvisado Jesuita, pegavão-lhe na roupeta, miravão-lhe o chapéo, olhavão-lhe para os grossos sapatos, espantavão-se diante dos seus gestos e das suas palavras incomprehensiveis. Seguravão outros no seu acolyto, e puxavão-lhe as barbas sem o menor respeito.

—Homem de paz,—exclamava Manuel pomposamente,—procuro dar-vos a paz, e ensinar-vos a religião do unico Deos, creador do mundo. Deixai, selvagens, a vida errante{68} e nomade, que vos arrasta para a perdição! Morreu o verdadeiro filho de Deos em Golgota...

Trocárão no entanto entre si os gentios palavras rapidas em lingua guarany, das quaes posto algumas escapassem a Manuel, percebeu-lhes comtudo o sentido, por haver estudado o idioma na casa da companhia. Manifestavão os gentios suspeitas de que fosse um laço a scena a que assistião, e parecião desconfiar da veracidade do missionario.

Para desviar-lhes as suspeitas, e affeiçoar-lhes os animos, disse-lhes Manuel em guarany:

—Tenho companheiros, sim, mas ficárão longe e não vos farão mal. Somos mensageiros de paz, e procuramos a vossa amizade. Vim por isso fallar-vos.

—Piayas desconfião, e mossacaz são fortes,—respondeu-lhe um d'entre elles.—Os brancos são máos e enganadores.{69}

—Socegai-vos,—continuou o noviço.—Os que vêm comigo são bons e amigos.

Trocárão-se signaes mutuos os indigenas. Apalpárão alguns d'entre elles os dous moços para examinarem se tinhão armas escondidas. Reconhecendo que nem-umas trazião, o que parecia cacique da tribu lhes disse com resolução:

—Padre, não vos faremos mal. Somos uma tribu e uma nação poderosa. Temos perto d'aqui as nossas tabas, as nossas mulheres e filhos, e os nossos maracás e uapis. Seguí vosso caminho tranquillamente, e não nos procureis mais, que não queremos negocios com brancos.

Sumírão-se logo em um instante com a mesma velocidade com que tinhão apparecido, deixando absortos os dous moços, que sem os verem mais, lhes ouvião todavia estridentes e repetidos assobios pela espessa floresta, os quaes devião corresponder á signaes{70} e avisos que se communicassem os gentios.

Tratárão os moços de voltar para onde estavão os seus companheiros, e descobrírão agachados por detrás de uma grande arvore os oito amigos que os seguião.

—Cuidado,—disse um Carijó.—São muitos centos. Se desconfião, mal de nós.

Deixárão o sitio e procurárão ajuntar-se aos aventureiros, que anciosos os esperavão. Ouvida a narração do successo, deu Matheus Chagas ordem para se demorarem ahi um dia e uma noite, afim de darem tempo aos gentios inimigos de se afastarem para longe das margens do rio. Passado o prazo marcado, embarcárão-se de novo nas suas canôas, e proseguírão na sua derrota empregando todo o cuidado e vigilancia.

Mais de dous mezes terião gasto já, navegando o Tieté sem que outras aventuras os houvessem perturbado, quando começárão a aperceber que o rio se alargava desmedidamente,{71} assoberbavão as suas aguas campinas extensas, cobrião parte das florestas, e corrião com maior violencia.

Appareceu-lhes pela frente dous dias depois como que uma lagôa de dimensão extraordinaria, além de cujas margens se avistavão difficultosamente as terras.

—É o grande rio Paraná,—disse um dos Carijós.—Entramos agora n'elle.

É impossivel descrever-se a magnificencia do soberbo rio. Depois de atravessar as terras de Matto-Grosso, Minas e parte superior da capitania de São Vicente, e de se ter engrossado com tributarios não menos possantes, e extremamente caudalosos, absorvia no sitio descoberto pelos aventureiros as aguas do Tieté por um lado, e as do Sucuriu, e mais o Pardo do outro, formando uma vasta e grandiosa bahia. Cosêrão-se com as suas canôas á riba esquerda do Paraná, para se não expôrem ao arrebatamento das aguas. Transpuzerão{72} outros arroios importantes, e alguns poderosos, como o Aguapehi e Santo Anastacio. Approximando-se do Paranapanema, ordenou Matheus se desamparasse a corrente do Paraná, e se tratasse de subir este seu tributario encostando-se á ribanceira do lado esquerdo. Foi então mister empregar a força das varas e remos para vencer as aguas que descião. Quatro dias de esforços bastárão para se appropinquarem á embocadura do Pirapó, que se despeja no Paranapanema.

Ao descansar das suas fadigas, partírão gentios a pesquizar os terrenos em que se achavão. Participárão na sua volta a Matheus Chagas, que havião descoberto indicios certos de taba proxima de gentios, galhos de arvores cortados, ausencia de caça e signaes de pisadas humanas. Aproveitou o chefe os avisos e destacou de novo espias para melhor e mais cuidadosamente examinarem as localidades.{73}

Dias depois regressárão os exploradores, declarando terem encontrado uma aldeia grande e vasta, com igreja, campos lavrados, bois, cavallos e carneiros pastando, e abonos visiveis de que não erão os seus habitadores gentios selvagens e errantes.

Pensou logo Matheus Chagas que estavão os aventureiros perto das povoações castelhanas de Guayrá, e raiou de alegria por notar a felicidade com que tinhão percorrido todo o Tieté sem a perda de um homem, e nem lutas com os gentios, e chegado a salvo a uma das aldeias de Guaranys catechisados, que, conforme as noticias espalhadas em São Paulo, devião conter immensas riquezas de prata e ouro, que se podião arrebatar aos Castelhanos em paga das que elles havião roubado aos Portuguezes de Aleixo Garcia.

Formou logo uma especie de campo militar com a sua pequena tropa, escondendo-o no seio das mattas mais proximas da aldeia. Tomou todas{74} as providencias que reputou precisas, e preparou-se para lhe dar o assalto, almejando encher-se de despojos e carregal-os para São Paulo.{75}

CAPITULO IV

Chamava-se Loreto a aldeia que tinhão em presença os aventureiros paulistas. Fôra uma das mais modernamente creadas e edificadas pelos Jesuitas, e a mais conchegada ás fronteiras que dividião os territorios conhecidos de Portugal e Hespanha. Havia o governador do Paraguay fundado Villa Real em 1557 na juncção dos rios Paraná e Piquiri, e em 1577 Villa Rica sobre o Ivahy, chamando para povoal-as os gentios guaranys; Não parecendo marchar a catechisação e{76} civilisação dos indigenas com o dominio das autoridades civis, cedeu o governo da metropole aos missionarios jesuitas as duas mencionadas aldeias, e os autorisou a organisarem outras, com que formassem a provincia denominada de Guayrá, submeltida á corôa hespanhola.

Tomárão conta os Jesuitas da direcção das duas povoações, e augmentando o numero dos indigenas que adoptárão a religião catholica, e se declarárão promptos a obedecer-lhes, estendêrão para as margens superiores do Paraná a largueza das suas posses, e a dominação da sua provincia. Santa Maria Maior sobre o rio Iguassú, São Francisco Xavier na embocadura do Imbiberalá, Arcanjos em Tayoba, Santo Ignacio no Iquatemy, São Pedro nos Pinhaes e Loreto no Pirapó, devêrão o seu nascimento aos primeiros annos do seculo XVII, e aos trabalhos exclusivos dos intrepidos discipulos de santo Ignacio.{77}

Não se poupárão os padres a fadigas. Sorria-lhes a idéa de attrahir ao catholicismo almas de gentios, e de protegê-los nos seus direitos e liberdade. Encontrando fertilissimo solo, rasgado por numerosos cursos de agua, e collocado nas duas margens do Paraná desde o Iguassú e o Igurey até o Paranapanema e Pardo, e copiosa quantia de gentios mansos e submissos, que por alli residião, começárão o edificio de um Estado independente no proprio centro dos dominios portuguezes e castelhanos da America.

Lográrão da corôa hespanhola prohibir a entrada na provincia de Guayrá a Europêos, qualquer que fosse a nação a que pertencessem, afim de lhes retirar o contacto dos innocentes indigenas. Á frente de cada uma aldeia collocárão um cura e tanto mais padres e irmãos quantos necessarios para a sua administração e regimen. Era o cura a autoridade principal, e poder executivo da missão,{78} tanto na parte civil como na ecclesiastica. Prestavão-lhe preito diversos funccionarios escolhidos d'entre os gentios, e incumbidos de funcções distinctas. Um corregedor, um lugar-tenente, dous alcaides, um porta-bandeira, sete administradores, um secretario e varios caciques possuia cada uma aldeia, além de officiaes de corpos milicianos, que os padres organisavão e disciplinavão. Dividião-se os gentios em officios. Applicavão-se á agricultura, que se compunha da canna de assucar, matte, trigo, algodão, feijão, milho, anil e tabaco; a fabricas de farinha e officinas de serralharia, carpintaria e outros misteres. Aprendião o manejo das armas de fogo. Formavão uma communidade em que erão iguaes os deveres e direitos.

Recebião os padres nos seus armazens todos os productos da industria dos habitantes da aldeia. Remettião-nos pelos rios e em balsas para Santa-Fé, Buenos-Ayres e ás vezes directamente{79} para Hespanha, aonde erão vendidos, e aonde se compravão os objectos precisos para as necessidades e commodidades dos gentios. Do saldo tiravão a quantia correspondente ao imposto de um peso annual por cabeça de gentio catechisado, o qual competia e se entregava ao governo de Hespanha, segundo a estatistica organisada pelos curas, que para defraudar a corôa não incluião nas listas os menores de vinte annos, as autoridades em exercicio, e os proprios doentes. O que restava ainda se remettia ao geral do Instituto residente em Roma.

Separavão-se nos trabalhos as mulheres, os homens e as crianças, fixando-se a cada um a parte que lhes cumpria executar no dia. Os sós casados vivião na mesma choupana, formando-se quarteirões destacados e particulares para os solteiros e viuvos, para as donzellas e meninos.

Dominava sobre os curas das aldeias de{80} Guayrá o collegio dos Jesuitas fundado na Assumpção, ao qual prestárão obediencia todos os varios nucleos da companhia estabelecidos nos territorios do rio da Prata e seus tributarios até que em Cordova se creou a séde principal do Instituto, e se deliberou a residir ahi o seu principal, assistido por quatro consultores ordinarios e tres extraordinarios, estendendo a sua autoridade sobre os demais collegios espalhados pela America meridional. Existião nos collegios seminarios de instrucção primaria e secundaria, e os dominios hespanhóes de Buenos-Ayres, Paraguay e Tucuman chegárão mais tarde a contar em seu seio cerca de trezentos padres e cem irmãos, além de numerosos noviços.

Erão semelhantemente, e segundo o mesmo plano, edificadas todas as aldeias. Uma grande praça, quadrilatera na extremidade, terminada na ultima linha pela igreja no centro, tendo ao lado direito uma torre,{81} a casa dos Jesuitas, e os armazens que guardavão as mercadorias, e á esquerda o cemiterio, e a habitação das viuvas e donzellas, que se separavão desde a infancia da companhia dos pais e da familia. Quatro cruzes grandes, postadas nos cantos, e uma columna elevada no centro, coroada pela estatua da santissima Virgem, ornavão a praça, á qual em linhas regulares e direitas communicavão as differentes ruas em que se partia a aldeia, povoadas de ambos os lados por predios iguaes na architectura exterior e interior, e cobertos de telhas vermelhas.

Usavão os varões de camisa, calça, ponche e barrete de algodão, e as mulheres de camisa comprida, chamada tipay, sem mangas, apertada ao pescoço e á cintura. Andavão todos de pé no chão, e se permittia apenas aos caciques e funccionarios trazerem os bastões designatorios dos seus cargos particulares.

Mantinha-se a mais perfeita igualdade nos{82} trajos e objectos concedidos aos gentios, nas rações e trabalhos que se lhes fixavão.

Praticavão os corpos milicianos exercicios de guerra aos domingos, ensaiando-se no esgrimir as espadas, disparar tiros, despedir frexas, e atirar com fundas pedras lavradas á maneira de bola. Terminado o exercicio, se recolhião as armas aos armazens, e se conservava a população sem o menor elemento de defesa.

Além da escripta, leitura e arithmetica, ensinavão os padres a musica e o canto, e formavão artistas para as solemnidades e festas da Igreja e da communidade, com a que captivavão os gentios, que se mostravão, em geral, propensos ás artes liberaes.

Acordavão os gentios ao som do sino da igreja, que lhes annunciava a alvorada do dia. Reunião-se para as preces. Seguião depois para os seus trabalhos respectivos guiados pelos seus fiscaes. Erão os castigos infligidos aos{83} delinquentes por um tribunal composto das autoridades da aldeia, sob a presidencia do cura.

Andava assim governada a provincia de Guayrá na época em que Matheus Chagas penetrou em seu territorio com a bandeira ao seu commando, e que foi uma das primeiras dirigidas pelos aventureiros paulistas contra as missões jesuiticas do Paraná superior, e cujos assaltos posteriores as destruírão por tal fórma, que os padres convencêrão aos gentios da necessidade de abandonal-as inteiramente, retirar-se para territorios inferiores do rio, e formar ahi novas aldeias, aonde escapassem ás correrias dos seus inimigos, que elles denominavão de mamelucos.

Observámos já que Loreto era a mais afastada reducção dos dominios castelhanos. Conteria oito ruas com uma população de duas mil almas de ambos os sexos e todas as idades.{84} Estavão cultivados os campos em roda, e offerecião abonos claros de prosperidade. Pastavão tranquillamente animaes domesticos. Vivião quietos os gentios da aldeia, sob o regimen communista dos missionarios, e nem-um acontecimento alterára ainda a paz de Loreto desde a sua fundação.

Não tinhão porém os Portuguezes de São Paulo, e nem portanto os aventureiros exploradores, o menor conhecimento dos feitos dos Jesuitas e da situação e estado das reducções da provincia de Guayrá, desde que passárão para o poder temporal, espiritual e exclusivo da companhia. Pensavão ainda, dando credito ás ultimas noticias espalhadas, que os gentios desejavão soccorros dos Portuguezes para combater os Castelhanos, e estes possuião ahi prata e ouro em quantidade, produzida pelos terrenos proximos sem grande trabalho do homem. Não excedião as idéas moraes dos colonos portuguezes de então{85} as idéas dos Hespanhóes, posto fossem menos crueis e barbaras. Nutrião porém aquelles contra estes grandes sommas de odio, quer pelos interesses contrarios de vizinhança na Europa e America, quer por estar o reino de Portugal avassallado n'esse periodo ao de Castella, e formar uma provincia da monarchia hespanhola desde o anno de 1580, em que Felippe IIº o acurvára ao seu jugo pela força e violencia, e o mantivera e legára aos seus successores castelhanos com tradições de terror, que irritava o povo lusitano, e o desesperava cada vez mais contra o dominio do captiveiro, incitando-lhe constantemente os brios para se levantar e recuperar a sua independencia.

Repousava portanto a razão principal dos assaltos dos Portuguezes de São Paulo contra as missões de Guayrá no desejo de guerrear mais aos Castelhanos que aos gentios, ainda que não poupassem a estes pela cobiça de escravisa-los{86} e vendê-los, afim de lograrem vantagens proveitosas.

Scientificado Matheus Chagas pelos seus espias da situação do Loreto, prohibio aos companheiros dessem o mais pequeno indicio da sua presença, afim de não levantarem suspeitas, e nem alterarem o socego de que os inimigos gozavão. Incitou os aventureiros a atacarem a povoação, que em sua opinião possuia riquezas extraordinarias. Applaudirão-no todos, á excepção de Manuel de Moraes, que exigia reconhecer primeiro se erão contrarios ou amigos, pois que o ultimo caso lhe parecia acção má e digna de castigo do céo. Desprezárão-lhe os companheiros o aviso, e ao amanhecer de um dia, logo que Matheus Chagas notou que a maior parte dos habitantes estava occupada fóra da aldeia, e descuidados os que n'ella permanecião, deixou a guardar o campo alguns que lhe parecêrão mais fracos, e entre elles o proprio{87} noviço, e partio com a sua gente aprestada para o combate.

Encontrárão primeiramente no campo cerca de cincoenta gentios, que reconhecendo inimigos deitárão a fugir para a aldeia. Perseguírão-nos os aventureiros, e entrárão todos na povoação quasi ao mesmo tempo, no meio de um infernal alarido. Tentárão os indigenas defender-se, e comquanto resistissem com furor e denodo, achando-se sem armas, por estarem ellas guardadas nos armazens da companhia, cortava vigorosamente o ferro dos aventureiros por seus corpos, e bastárão poucas horas aos Portuguezes para se apossarem da povoação, que a maior parte dos gentios abandonou logo. Amedrontára os padres e os Guaranys o inopinado do ataque, e cahira em poder dos aventureiros cópia numerosa de gentios, que forão a pouco e pouco amarrados e trancados nas casas, havendo corrido sangue bastante{88} na luta e na perseguição dos fugitivos.

Senhores os aventureiros da povoação, cuidárão em examina-la. Descobrírão nos armazens mantimentos de boca, armas de fogo, munições de guerra, instrumentos de combate, roupas e vestes, aguardente, e muitos outros objectos de valia. Encontrárão na igreja lampadas, castiçaes de prata, e preciosidades agradaveis. Saudárão com vivas estrepitosos o seu triumpho assignalado. Espantárão-se porém de não deparar com Hespanhóes, que pensavão dever alli existir igualmente.

Passou Matheus Chagas ordens apertadas para que se regularisasse o serviço. Mandou vir do seu campo os individuos que lá deixára. Contou e separou os prisioneiros, pela maior parte caciques velhos, mulheres e crianças, que se não tinhão podido evadir, e dividio os presos por diversos sitios guardados{89} com sentinellas. Tratou de recolher e ajuntar os objectos, e tomou providencias e cautelas para responder aos que ousassem retroceder, e roubar-lhe os fructos da victoria.

Conhecendo porém que estava em paiz inimigo, e se não deveria prudentemente alli conservar, applicou toda a sua attenção ao aproveitamento do que pudesse conduzir comsigo, tencionado a desamparar quanto antes a aldeia. Cumprindo partilhar os despojos, consistentes em preciosidades, armas, roupas, animaes, e prisioneiros, manifestárão-se pretenções oppostas, que quasi degenerárão em uma luta civil, teimando cada um dos aventureiros no desejo e cobiça de receber o mesmo objecto. Conseguio o chefe pôr cobro ás pretenções exageradas, fazendo approvar a ideia de uma especie de loteria ou sorte para a divisão immediata dos prisioneiros, animaes e vestimentas, guardando-se em{90} deposito as cousas de valor para serem rateadas em São Paulo.

A cada um tocára um numero correspondente a lote quasi regular e igual. Declarou Moraes que se contentava pela sua parte com os prisioneiros velhos, mulheres e crianças, que erão incapazes de ser transportados, porque náda queria aceitar na partilha, e preferia conceder-lhes a liberdade, e deixa-los em socego. Não entrou assim na loteria organisada, e cuidou logo em dar mantimentos e consolar aquelles infelizes, que lhe agradecêrão fervorosamente a caridade, tanto mais espantados quanto lhes aterrorisavão as imaginações as noticias que entre elles propalavão os padres de que os mamelucos de São Paulo ajuntavão á cobiça ferocidade exaltada, e não tinhão a menor idéa de religião e piedade.

Accommodados os aventureiros, e tomando cada um conta do que lhe pertencia, preparou-se{91} Matheus Chagas para deixar a aldeia. Não raiavão ainda os primeiros arrebóes da madrugada quando começou a bandeira paulista a sua marcha retrograda, collocando-se gente armada na frente, os prisioneiros amarrados, aggrupados, e cercados no centro, os cavallos e bestas carregadas na retaguarda, defendidos e guardados pelos mamelucos.

Não tinhão ainda sahido de todo da povoação, quando estouros fortes e prolongados se ouvírão, e logo após signaes de incendio que rebentára em varios pontos extremos da aldeia. Crescêrão os fogos amiudados, e uma nuvem espessa de fumaça encheu ao principio os ares, que se aclareárão paulatinamente com as luzes do incendio.

Dir-se-hia dia claro, posto a atmosphera se tornasse cada vez mais pesada e quente. Amedrontárão-se os aventureiros, ignorando se o acaso ou deliberada intenção dos gentios causára o incendio ameaçador. Apressárão-se{92} em desamparar a aldeia, recommendando Matheus Chagas aos aventureiros se prevenissem de ciladas.

Multiplicavão-se as chammas, incitadas por um vento fresco do Norte que rijamente assoprava. Illuminárão-se horrivelmente a aldeia, os campos e florestas adjacentes. Gritos espantosos atroárão os ares como se formassem uma infernal orchestra. Estalavão os tectos e portaes das casas, rolavão por terra pedaços dos edificios, telhas soltas, paredes desmoronadas. Atopetavão-se as ruas com destroços, que impedião a livre passagem, e davão immensos trabalhos aos aventureiros para as atravessarem.

Parte d'elles se semeava já por fóra da povoação, e a retaguarda tentava dentro ainda evadir-se ao perigo, e ajuntar-se aos que marchavão adiante.

A numerosos gritos soltados de longe, e cujo sibillo augmentava o pavor produzido{93} pelo incendio, e causado pelas ruinas do fogo, e pelas chammas, que esclarecião a aldeia e envolvião a parte superior do horizonte em nuvens negras, descortinárão os olhos dos aventureiros paulistas massas armadas de Guaranys, que se lhes puzerão por diante; lhes atacárão os flancos, apparecêrão por detrás, e lhes circumdárão os caminhos.

Travou-se uma peleja sem ordem, sem direcção, e nem regularidade. Cada um dos aventureiros tratou de combater como pôde, apercebendo-se emfim da cilada que lhes tinha sido traçada, e descobrindo que se havião introduzido surrateiramente na aldeia e durante a noite, gentios de fóra, para coadjuvarem os que devião correr em soccorro do arraial. Nem lhes era dado avaliar o numero dos inimigos e adivinhar o resultado do combate. Balas de espingardas, settas disparadas, tiros de funda, abrião-lhes as fileiras, zunião-lhes pelos ouvidos, ferião-lhes companheiros,{94} matavão-lhes amigos, ao lado, atrás, adiante, e perto. Pancadas de tacapes pesadas, golpes vibrantes de espadas, sangrias de faca e punhal, succedêrão ao primeiro ataque, e lhes trouxerão a luta de corpo a corpo, e de homem a homem, que é a mais cruel e ceifadora de vidas.

Terrivel espectaculo, que illuminavão por vezes as chammas estridentes do incendio devorador da aldeia, que parecia desabar, estorcendo-se em angustias doridas. Echoavão gemidos, exclamações, algazarras, sons de ferros, e estrepito de fusilaria.

Tropeçava-se por cima de homens vivos e de cadaveres. Esbarrava-se com cavallos e mulas carregadas. Cutilavão-se mutuamente Portuguezes e mamelucos, Carijós e Guaranys, sem quasi se conhecerem. Durou a peleja até que a aurora radiou risonha, e embranqueceu de todo o firmamento.

Notou-se então uma scena tristissima de desolação.{95} Desde as ruas extremas da aldeia até não pequena distancia do campo contiguo, aonde chegára a vanguarda dos aventureiros, cobrião o solo cadaveres de homens e de animaes sem conta; misturados com cargas, armas dispersas, e objectos desgarrados; inundados de sangue, e cobertos muitos com restos do incendio, elevados pelo vento ao ar, e cahidos depois sobre os proprios combatentes.

Poucos aventureiros lográrão salvar-se pela fuga. Sua maior quantia ficou estendida e morta no campo da peleja; raros forão os prisioneiros, e todos feridos mais ou menos gravemente. Havião os Guaranys vencido, e vingado a sua anterior affronta. Tratárão as suas autoridades de dar fim á luta, e de restaurar a aldeia, apagando o incendio, tomando posse d'ella, recolhendo o que pudessem salvar das garras dos aventureiros, pondo ordem no povo, e fazendo enterrar as victimas do combate.{96}

Achavão-se numerosos individuos de um e outro partido entre os cadaveres. Matheus Chagas, Antonio da Costa, e varios outros dos principaes aventureiros perecêrão na peleja. Quatro ou cinco Paulistas feridos se tirárão do meio do campo, e se recolhêrão á prisão. Era Manuel de Moraes um d'estes ultimos infelizes. Recebêra uma frexada no braço, e uma bala de espingarda na perna. Não o ameaçava perigo, mas soffria dôres agudas e penetrantes.

Confiárão-se os prisioneiros aos fiscaes do hospicio, com instrucções para os curarem e guardarem até que se decidisse a sentença dos competentes juizes, incumbidos do seu julgamento. Quando se restabeleceu Moraes das suas feridas, soube com dôr e magoa que os proprios companheiros, que tinhão ficado igualmente prisioneiros, havião já expirado nas prisões respectivas por não poderem resistir á gravidade dos seus ferimentos.{97}

CAPITULO V

Não foi longo e nem demorado o processo de Manuel de Moraes. Depuzerão em seu favor varios caciques e mulheres, que summariárão os seus actos de humanidade durante a occupação da aldeia pelos Paulistas aventureiros. Valêrão-lhe tão significativos testemunhos, e o proprio habito com que se cobríra, e o fizera reconhecer por membro da companhia de Jesus. Determinou a sentença lavrada pelo tribunal respectivo que fosse expulso da aldeia, enviado para Santa-Fé, e{98} ahi entregue ao provincial dos Jesuitas para lhe impôr as penas que julgasse necessarias, attenta a sua qualidade de noviço que abandonára o Instituto de santo Ignacio, e se alistára nas bandeiras dos aventureiros paulistas.

Acompanhado por Guaranys armados seguio Moraes por terra para Villa Rica, que distava não menos de sessenta leguas de Loreto. Conservárão-no ahi preso os padres da povoação por mais de dous mezes, esperando que se apromptassem as balsas que tinhão de expedir para Villa Real com generos e objectos de mercancia.

Embarcou-se emfim Manuel de Moraes, confiado a um irmão da companhia, por nome Cialdini, e a mais de trinta Guaranys, que servião de guardas, e marinheiros dos barcos numerosos que partião carregados de productos da industria das reducções. Descêrão o rio Ivahy, povoado de arvoredos{99} frondosos. Penetrárão no Paraná, e logo que descobrírão a ilha grande, tomárão a embocadura do Pequiri, e atracárão á Villa Real, que repousava docemente á margem d'este rio, e constituia a reducção mais importante e populosa da provincia de Guayrá, governada pelos Jesuitas. Não podião ahi as balsas continuar a descer as aguas do Paraná, porque começava um enormissimo salto, conhecido pelo nome de Sete Quedas.

Nem-um espectaculo, por mais soberbo e admiravel, extasiava tanto os olhos dos viajantes como o da famosa cascata que n'este sitio formavão as aguas do rio Paraná. Dividião-se para deixar erguer-se do seu seio uma ilha espaçosa, coberta de florestas espessas e sombrias, que contrastavão magnificamente com a claridade das aguas, precipitadas á roda. Reunindo-se de novo as massas poderosas do liquido elemento, recuperavão uma largura e extensão de mais de duas mil braças. Ião-se{100} depois estreitando, aprofundando o solo, e aterrorisando com rumores espantosos e roncos estridentes. Apertavão-se em menos de quarenta braças, e arrojavão-se então de uma altura superior a quatrocentos palmos até cahirem em uma bacia estupenda, que formava um lago de quasi duas milhas de diametro.

A oito leguas de distancia se percebia o ruido da cascata. Uma poeira humida levantavão as aguas á elevação grandiosa, formando atravessada pelos raios do sol os arcos iris mais harmonica e variadamente coloridos que se podião imaginar.

Pullulavão na enormissima bacia coroada de densas e phosphorescentes nuvens de vapor ilhéos numerosos, repletos de arvores gigantescas, que matizavão a scena com delicias ineffaveis.

Rolavão ainda de novo as aguas por sete precipicios seguidos, carregando comsigo{101} jaguáras pardas e pintadas, antas, serpentes hediondas, e toda qualidade de animaes do sertão, que se acoutárão nas ilhas durante as seccas, e não tiverão tempo e nem forças para nadar e evadir-se, apenas começárão as aguas a avultar e engrandecer-se. Acolhia-as com gemidos profundos, ecchos dolorosos e repetidos, uma segunda cratera, inçada de picos e rochedos, que parecião erguer-se, e pretender, como os Titães antigos, escalar os céos, resvalando-lhes pelos flancos raios repentinos de luz, que produzia o reflexo do sol por entre a fumaça das aguas, e que se afiguravão de longe verdadeiros coriscos durante o dia, e edificios de pedra alvissima através da escuridão da noite.

Não se podia ahi fallar, porque se sumia a voz humana ao estrondo rouco, monotono e sombriamente horrivel da cascata portentosa.

Mais de tres mezes se demorou Moraes em Villa Real, occupado, pelos padres que a dirigião,{102} no serviço da Igreja e das cousas sagradas, posto persistisse em assegurar-lhes que não volveria mais para o Instituto de santo Ignacio, comquanto guardasse no peito as mais gratas e saudosas reminiscencias pelo acolhimento que recebêra, instrucção que adquiríra, e sympathias que alcançára.

Seguio então por terra com copiosa caravana de gentios, e animaes carregados de mercadorias, para a povoação de Santa Maria Maior, edificada á margem quasi da barra do rio São Francisco na sua absorpção pelo Paraná, e abaixo do salto das Sete Quedas. Tornárão todos a embarcar-se n'este sitio em novas e numerosas balsas, que dirigir-se devião directamente para Santa-Fé, visto que a navegação não offerecia obstaculos mais e nem perigos. Conservava-se Moraes guardado tão cuidadosamente como o fôra desde o Loreto, gozando comtudo da companhia do irmão Cialdini, cùja pratica interessante lhe ganhára{103} cada vez mais o affecto e sympathia.

Cerca de um mez gastárão na descida do Paraná até onde elle recebe o curso do Paraguay engrossado pelas aguas do Vermelho, e cujas barras se denominão das Tres Bocas.

Extasiára-se Manuel de Moraes diante d'essas scenas variadas e sublimes da natureza, e da magnificencia deslumbrante do rio. De um e outro lado florestas virgens, copadas e gigantescas, que provavão a uberdade do solo; rios poderosos que se vinhão ajuntar ao Paraná, que já por si assoberbava os olhos e a imaginação com as grossas e caudalosas massas de agua que rolava, e que se dirião de um vasto oceano; aves de todos os tamanhos, fórmas e coloridos, guarás, anuns, e garças, esvoaçando ao rumor dos remos, e grasnando amedrontadas, para se esconderem nos galhos viçosos do resplendente arvoredo ou se entranharem nos brejos reconditos; jacarés enormes, dormindo ao calor{104} do sol, e que saltavão de subito das ribanceiras, e mergulhavão no vasto pego, como em fortaleza segura.

Mais que o dia claro e limpido deslumbravão as noites deleitosas no seio das solidões. Que painel primoroso e divino quando os raios merencorios da lua, entornando uma luz melancholica por entre as folhas do arvoredo, que sombreava as aguas do rio, scintillavão phosphorescentemente por cima da sua superficie, formavão espelhos estrellados de ouro e prata, e reflectião o horizonte com todos os seus toques magistraes e voluptuosas ondulações!

Atravessárão-se sitios desertos e inexplorados então, e aonde os proprios Jesuitas fundárão depois missões novas, para acolherem os Guaranys atropelados constantemente na provincia de Guayrá, que abandonárão por fim aos Paulistas aventureiros. Em uma e outra margem existem hoje os povos de Corpus Christi,{105} Candellaria, Itaqui, Santa Clara, Trindade, São Cosme, e outras aldeias edificadas pelos famosos missionarios, quando na época a que nos referimos formavão apenas esses territorios immensos, escondrijos e asylos de animaes ferozes.

Descêrão os viajantes das Tres Bocas para Santa-Fé, e acolheu ahi o provincial do Instituto a Manuel de Moraes com carinho paterno, recommendando-lhe penitencias e cogitações serias afim de decidi-lo a volver para o serviço da companhia, que o receberia com os braços abertos, esquecendo-lhe as faltas commettidas.

Em despeito porém das exhortações e conselhos dos padres, apezar de mais de tres annos que foi coagido a demorar-se no convento, persistio Manuel em sua deliberação anterior, e firme proposito, que se não modificava com as circumstancias e eventos.

Concordárão então os padres em remettê-lo{106} por Hespanha para Roma, esperando que o geral da companhia fosse mais que elles afortunado, e se não perderia assim para o Instituto um moço, cujos talentos variados, e solida instrucção, divisavão todos que com elle se entretinhão.

Seguio portanto de Santa-Fé para Buenos-Ayres em uma lancha, que praticava regularmente a navegação entre os dous portos do Paraná e Prata. Residio na casa da companhia o tempo que necessitárão os aprestos de um comboio de embarcações que se tinha de dirigir para Cadix, acompanhado por dous bergantins de guerra hespanhóes, e incumbidos de amparar e defender os vasos do commercio contra as esquadras e corsarios hollandezes, que infestavão os mares.

Ajudou aos navegantes um violento pampeiro, que os tirou em pouco tempo das aguas perigosas do rio da Prata, e os precipitou no seio do oceano Atlantico. Achava-se Moraes{107} em face do outro assombro da natureza, o mar immenso, profundo, tranquillo, ou agitado segundo as crises das correntes e as violencias do vento. As florestas virgens, os rios selvagens e inavegados, os animaes bravios, as cataractas estupendas, os sitios pittorescos, as planicies e montanhas, constituia tudo isso o deserto americano, e formava ao certo uma maravilha, em que o bello, o sublime, o grandioso e o infinito se abraçavão sem que a arte cooperasse para o quadro magestoso. Contrapunha-se-lhe agora o oceano, que sabia gemer tambem como as mattas reconditas, alvoroçar-se como a cratera dos saltos, roncar e enfurecer-se como o jaguára, e o surucucú, e mudar constantemente de physionomia, situação, e colorido, como a varia atmosphera que rodeia a creatura humana.

Corrêrão velozmente os navios para o Norte assoprados pelas aragens frescas de galernos favoraveis, posto fossem coagidos os mais veleiros{108} a reter de quando em quando a sua marcha, afim de esperarem pelos mais pesados, e não se desligarem do comboio, que pelo numero e união dos seus vasos lograria conter piratas e inimigos.

Estavão já pela altura da ilha de Fernando de Noronha, semeiados os navios como uma frota, e communicados constantemente por meio de signaes com os dous bergantins de guerra que os escoltavão, quando velas estranhas rasgárão o horizonte, e apparecêrão aos olhos, ainda que a grande distancia. Deu rebate ao coração dos navegantes o inopinado do caso, e sustos geraes se lhes incutírão nos animos. Serião inimigos? Pretender reconhecê-los não equivaleria a expôr-se mais aos perigos? Fugir-lhes não significaria medo, e os não animaria no seu proseguimento?

Organisou-se conselho a bordo dos bergantins de guerra, que se approximárão um{109} do outro. Decidírão os commandantes preferivel evitar o encontro, e afastar-se o comboio, largando todas as velas para que corressem os navios com maior velocidade. Estavão infelizmente a barlavento as embarcações suspeitas. Percebêrão a manobra, e suspeitando o comboio, e imitando-lhe o exemplo, se precipitárão sobre elles a pannos abertos. Muitos do comboio, por mais veleiros, se forão sumindo, e escapando no seio do oceano e na immensidade do firmamento. Menos felizes, vírão outros os seus perseguidores ganhar-lhes a cada momento em distancia, e cerrar-lhes o espaço que os havia a principio separado. Figurava entre os ultimos o galeão Santo Ambrosio, a cujo bordo se achava Manuel de Moraes.

Ao approximar-se, içárão os navios desconhecidos bandeira dos Estados Geraes de Hollanda, e apresentárão um costado de guerra que mais contribuio para amedrontar{110} os Hespanhóes do comboio. Tiros de artilharia disparados logo após lhes intimárão o dever de parar, e sujeitar-se á inspecção e visita. O commandante do Santo Ambrosio pensou incutir-lhes sustos descarregando sobre elles a metralha de duas peças que o guarnecião, e esforçando-se no entanto em evadir-se. A este signal acompanhárão igualmente com tiros outras embarcações do comboio. Mas infelizmente para ellas não ficou muda a artilharia dos Hollandezes, que posto apenas oito vasos, se mostrárão mais bem tripulados e armados. Nuvens de fumo, cortadas ás vezes por fuzis de fogo, e o estrondo das peças, assoberbavão inteiramente a atmosphera. Abrio agua pela pôpa o galeão Santo Ambrosio, despedaçado por uma bala certeira. Mandou subito o commandante arreiar a bandeira hespanhola que levantára no começo da acção, e dar signaes de render-se para não ir ao fundo do oceano.{111}

Percebidos os signaes pelos Hollandezes, acudírão-lhes incontinente com lanchas ao mar para tomarem conta do navio vencido. Antes que ellas chegassem, rebentou infelizmente a bordo do Santo Ambrosio um incendio do paiol de prôa, que ameaçou devorar-lhe a tripolação, inquietada assim, e ao mesmo tempo pelas aguas do oceano que pela pôpa submergião o galeão desditoso. Achavão-se portanto os navegantes entre dous perigos fataes e horrorosos. Echoárão pelos ares gritos estridentes de desesperação, ais sentidos clamando por soccorro e misericordia. Reinou a bordo infernal anarchia, ninguem mais governando, ninguem mais obedecendo. Lançárão-se uns desordenadamente no seio das vagas do mar, cogitando salvar-se melhor no meio d'ellas que dentro do navio. Saltárão outros nos escaleres pendurados aos lados, cortando-lhes as cordas que os prendião, e arriscando-se{112} a quaesquer eventualidades. Agarrárão-se alguns a bancos de madeira, e com elles se deixárão resvalar pela superficie do oceano.

Conseguírão as lanchas hollandezas salvar bastantes desgraçados, posto crescido numero de Hespanhóes perecesse nos arrancos da dôr, e no jogo sorvedor das ondas. Contou-se entre os escapos Manuel de Moraes, mas nem presa pôde ficar dos Hollandezes o galeão Santo Ambrosio, que as labaredas do fogo e os ultrages das vagas destruírão totalmente em pouco tempo. Lográrão todavia os Batavos audaciosos colher ás mãos dez dos outros vasos do comboio, que não tiverão a fortuna de evadir-se, e com que applaudírão estrondosamente o seu feito e triumpho.

Chamava-se Henrique Long o chefe da frota hollandeza que aprisionára as embarcações referidas. Era um famoso marinheiro, que desde 1630, succedendo a Willekens,{113} Pict Heyne e Padrid, limpava os mares de navios hespanhóes e portuguezes, mercantes e de guerra, causava destroços inauditos no oceano, apoderava-se de cópia numerosissima de galeões adversos, e espalhava os sustos e terrores por toda a immensidade dos mares.

Ordenou Henrique Long que se levassem para o Recife as presas de valor e fossem entregues ao governo que administrava a colonia hollandeza do Brazil, queimando-se immediatamente os galeões imprestaveis. Dos dez vencidos escapárão quatro apenas, para cujo bordo se transferírão as cargas retiradas dos outros, os prisioneiros infelizes, e novas tripolações hollandezas. Deu-se então ainda um espectaculo merencório e attristador para os que se não havião a elle habituado. Lançou-se fogo ás seis embarcações condemnadas, que ardêrão no meio de robustas e estrepitosas chammas, e ao som de vivas partidos{114} dos navios hollandezes, que assistião alegres á scena miseranda.

Executadas as determinações do commandante, seguírão os quatro galeões para Pernambuco. Entrárão no porto do Recife, e derão contas ao conselho director da Companhia das Indias Occidentaes, que governava a conquista hollandeza.

Forão soltos todos os prisioneiros e abandonados a plena e inteira liberdade para procurarem á sua vontade meios de subsistencia e vida, já que havião sido despojados de quantos bens lhes pertencião. Corria o anno de graça de 1632 quando se achou Manuel de Moraes lançado no meio da povoação do Recife, dominado então pelos Hollandezes. Sob os mais infaustos auspicios se lhe abria o mundo livre, a que elle aspirára imprudentemente. Raiava-lhe a aurora da vida anuviada por clarões sinistros de amarguras e dôres physicas. Iniciava assim a sua marcha{115} debaixo das impressões mais crueis e sombrias, já que, por capricho do espirito, ou indefinidos impetos d'alma, desamparára a quietação e santidade do claustro para correr adiante de peripecias e aventuras que lhe preparavão o seu fatal destino e a sua estrella desventurada.{116}

CAPITULO VI

Desde que a nação portugueza, conquistada em 1580 pelos exercitos do duque d'Alva e pelas trahições da nobreza nacional degenerada, fôra reunida á monarchia hespanhola como sua provincia, timbrárão constantemente os Felippes de Castella em suffoca-la, arruina-la, e esbroa-la sob seus pés, quebrando-lhe os brios, sopitando-lhe os vôos de regeneração, e sumindo na miseria e na degradação as reminiscencias das passadas glorias e faustos heroicos. Cuidárão igualmente os Hollandezes,{117} inimigos de Hespanha, em roubar-lhe possessões transatlanticas, empossar-se das suas colonias, e estragar-lhe inteiramente o commercio maritimo.

Hespanholas se reputavão as terras americanas, asiaticas e africanas, que havião a Portugal pertencido quando constituíra um Estado independente. Não as poupou Hollanda, incitada pelas riquezas do solo. Da Asia e Africa lançou vistas igualmente sobre o Brazil. Organisára-se em 1631 uma Companhia de gente e capitaes pelas varias cidades dos Paizes Baixos afim de conquistar e usufruir as possessões americanas outr'ora portuguezas. Lográra approvação do governo dos Estados Geraes para os estatutos que a constituião sob o titulo de Companhia das Indias Occidentaes, e lhe concedião o direito de invadir, occupar e desfructar os territorios que conquistasse, pelo espaço de trinta annos a começar de 1624, com a obrigação de{118} entregal-os no fim do prazo ao governo, e receber em indemnisação o valor dos navios que possuissem, estabelecimentos que lhe pertencessem, e munições de guerra que lhe restassem.

Formárão-se os capitaes necessarios com a emissão de titulos ou acções, espalhados em Hollanda. Concorria o Estado com a somma annual de um milhão de florins para ajudar a Companhia, e com o auxilio de vinte navios de guerra para o seu serviço. Participava por este motivo da metade dos beneficios liquidos que lhe resultassem das suas emprezas.

Residia alternativamente em Amsterdam e Midelburgo a séde ou conselho director principal e supremo da Companhia, composto do stathouder de Hollanda como presidente, e de dezoito membros escolhidos pelas camaras e secções de accionistas de Amsterdam, Rotterdam, Groningue, Zelandia e Frisa. Competião á administração superior as attribuições{119} politicas e administrativas da Companhia, e d'ella partião as ordens necessarias para expedição de frotas e tropas, e augmentos das conquistas, como se fôra a Companhia um Estado e governo proprio e independente.

Traçára a Companhia encetar o seu dominio na America portugueza apoderando-se da Bahia de Todos os Santos. Conseguira em 8 de Maio de 1624 vencer e domar a cidade, aprisionando-lhe o governador Diogo de Mendonça Furtado. Teve porém de abandona-la no anno seguinte, diante das massas numerosas de gente armada que se formárão no reconcavo da capitania, e assediárão os invasores entrincheirados nas linhas da sua capital, ao passo que uma esquadra hespanhola, commandada por D. Fradique de Toledo, os punha em rigoroso bloqueio maritimo.

Não se desanimára todavia, e expedindo contra o Brazil novas forças em 1630, lográra{120} fazer saltar em terra no Páo Amarello o coronel Wanderburgo com cerca de tres mil soldados, que cahindo sobre Olinda, capital de Pernambuco, e apossando-se d'ella inopinadamente, obrigárão Mathias de Albuquerque, governador da capitania, a desamparar o porto do Recife, atacado por terra e bombardeado pelo mar, afim de achar abrigo no interior das terras, e fortificar-se no arraial do Bom Jesus, depois de ter queimado os armazens do Recife, e os navios ancorados no porto, para que não pudessem servir ao inimigo.

Estendêrão-se a pouco e pouco as posses dos Hollandezes em Pernambuco, em despeito da resistencia heroica dos naturaes e habitadores portuguezes do paiz, que valentemente commandava Mathias de Albuquerque, e dos gentios alliados, que o indigena Felippe Camarão denodadamente dirigia.

Reduzíra-se a cinzas o glorioso forte de{121} São Jorge, arrasára-se o heroico arraial do Bom Jesus, incendiára-se a fermosa Olinda; mas a Companhia progredia em sua conquista, e os Portuguezes e Brazileiros se forão recolhendo para o Norte e Sul, abandonando aos Hollandezes o territorio invadido, para o qual expedia a Companhia das Indias incessantes e poderosos auxilios de armas e soldados, e nomeára chefes activos e bravos.

Curvavão-se ao jugo hollandez os naturaes do paiz, que não puderão ou lográrão evadir-se, posto lhes prohibisse o conselho director da Companhia a celebração do seu culto religioso nas igrejas e templos que possuião, e que forão transferidos para o protestantismo, logrando apenas a faculdade de ouvirem missa catholica, e praticarem as suas preces no meio dos campos e praças, ao ar livre e publico. Passára-se o commercio para os agentes exclusivos da Companhia, consentindo-se unicamente aos Portuguezes o{122} cultivo das terras, e os trabalhos da industria agricola.

Era esta a physionomia do Recife quando desembarcou alli Manuel de Moraes, e tratou de procurar meios de vida. Partia-se a povoação em tres quarteirões distinctos. Os armazens, arsenaes, casas de negocio, fortalezas, e habitações officiaes e particulares, occupavão a lingua de terra que forma o rio Biberibe na sua juncção com o Capiberibe. Avassallava o segundo quarteirão a ilha de Antonio Vaz, creada no seio d'este ultimo rio, deserta e abandonada ainda. Além do Capiberibe e Biberibe estendia-se a capitania para o centro das terras, sem que nem-umas pontes o communicassem ainda com a ilha, e nem com o Recife. Atravessavão-se os rios em canôas e jangadas, que conduzião assucares e aguardentes que produzia a lavoura, e que vinhão a entregar-se aos agentes da Companhia, que os compravão pelo preço previamente estabelecido{123} nos seus regulamentos e annuncios.

Não lhe podendo valer a instrucção que adquirira no Instituto dos Jesuitas de São Paulo, e nem os dotes primorosos da intelligencia com que o mimoseára a Providencia, comprehendeu Moraes que o só trabalho manual lhe forneceria elementos de existencia, e cuidou portanto em applicar-lhe os seus recursos. Entregou-se aos misteres agricolas, alugando os seus serviços a um Portuguez que possuia terrenos á margem esquerda do rio Biberibe, no sitio em que se edificou posteriormente o notavel bairro da Boa Vista.

Corrêrão os dias, os mezes e os annos sem que lhe deparasse a sorte com meios de modificar a sua situação e estado miseravel e penoso. A varios generaes e chefes do conselho civil substituíra a Companhia em 1656 o principe Mauricio de Nassau, que tomando as redeas do Estado, prestou nova vida á{124} colonia hollandeza, augmentou-lhe os dominios até além do rio de São Francisco para as partes do Sul, e quasi no Maranhão as possessões do Norte. Tratava-se Nassau como soberano. Trouxera comsigo naturalistas para estudar as riquezas do paiz, como Piso de Leyde e o celebrisado Macgraff, historiadores como Barlous, litteratos como Francisco Plante, architectos como Pieter Porter, e pintores sahidos da escola flamenga, que já gozava de nomeada na Europa. Conseguio que a Companhia cedesse aos particulares hollandezes a liberdade do commercio, guardando unicamente monopolios em generos determinados, afim de augmentar a povoação do Recife, e enriquecer a colonia. Perseguio funccionarios prevaricadores. Pôz ordem nas finanças. Melhorou a administração publica. Reorganisou as forças militares. Acabou com arbitrios e abusos das autoridades subalternas. Permittio aos judêos levantar as{125} suas synagogas, e aos Portuguezes celebrar a sua religião e culto divino, e praticar conforme a antiga solemnidade as suas procissões apparatosas. Fundou escolas para os gentios. Mandou restituir os escravos fugidos a seus donos portuguezes, comtanto que estes prestassem juramento de obediencia ao governo de Hollanda. Levantou fortalezas no Penedo, Porto Calvo, na ilha de Antonio Vaz, e outros lugares. Traçou uma nova cidade n'esta ilha, delineando-lhe as ruas, e construindo n'ella um palacio para si com o nome de Wryburgo, com torres nas azas, e um observatorio astronomico ao lado. Communicou a ilha com o Recife por uma ponte lançada sobre o Capiberibe e Biberibe, que já ahi correm juntos e unidos. Á nova cidade edificada sobre a ilha deu o titulo de Mauricia, e em pouco tempo se cobrio ella de edificios e predios. Attrahíra assim o seu governo cópia numerosa de naturaes do paiz,{126} que não temião já perseguições e vinganças dos invasores, e não raros forão os que aceitárão então o dominio hollandez, notando-se entre elles João Fernandes Vieira, que fôra um dos bravos defensores do forte de São Jorge, e acompanhára Mathias de Albuquerque ao arraial do Bom Jesus, preferindo agora a vida socegada e industriosa, e tornando-se até um dos agentes financeiros da Companhia.

Trabalhava Manuel de Moraes uma tarde á margem do rio, limpando e arando a terra, quando gritos doridos lhe chamárão a attenção para a ilha de Antonio Vaz. Partião de dous cavalleiros que a todo o galope dos seus corseis corrião após uma dama cavalleira, que cada vez se afastava mais d'elles, vencendo-os na marcha veloz e precipitada. Estavão longe ainda, e se não podia adivinhar o motivo dos clamores. Ao approximar-se porém mais o ginete da dama que{127} vinha adiante, percebeu Manuel com susto que fugia o animal á redea solta, e não era mais domado pela cavalleira, que com difficuldade se sustentava na sella. Gravissimo perigo a ameaçava se mão estranha não segurasse o freio do cavallo disparado, e lhe não cortasse os impetos força de braço vigoroso.

Descobrir a scena, e acudir-lhe incontinente, cogitou Moraes no mesmo instante. Atravessar o rio em canôa equivalia a perder tempo, e nem canôa se encontrava perto. Posto as aguas estivessem crescidas, não hesitou um minuto em atirar-se no seu seio, vencê-las, e transpo-las, vestido como estava, para chegar ao sitio fatal, e servir aos seus intentos.

Bastárão-lhe poucos momentos para passar de uma para outra margem, da terra firme para a ilha. Precipitou-se sobre o cavallo disparado, agarrou-lhe as redeas e freio, e o conteve de subito. Esbraveceu o ginete de{128} raiva, vendo-se acurvado, e fortes tremores lhe agitárão o corpo. Com um dos braços sacou Moraes de cima dos arções a dama, que desmaiada depositou no chão, e cujos sentidos cuidou em avivar, tranquillisando-a com palavras animadoras. Chegárão no entanto os dous cavalleiros da comitiva. Era um d'elles um velho Hollandez, Guilherme Brodechevius, membro do conselho politico, amigo do principe Mauricio, e pessoa abastada e importante da Companhia das Indias. Apertou amigavel e fervorosamente a mão de Manuel de Moraes, perguntou-lhe por seu nome, officio e residencia, e prometteu-lhe lembrar-se do serviço assignalado que prestára á sua filha. A pouco e pouco recobrou a dama os seus sentidos, e quiz ver o homem que a salvára da morte, e exprimir-lhe de viva voz o seu reconhecimento.

Não tardárão em vir soccorros de gente, e uma liteira, que recebeu a dama, e a transportou{129} para a sua casa, emquanto Manuel tratou de recolher-se ao seu mesquinho alvergue.

Ou o proprio feito, ou a humidade das vestes, que tanto tempo conservára sobre o corpo, lhe não deixára conciliar o repouso. Com o correr da noite um insulto de febre violenta lhe quebrou as forças, agitou os membros, requeimou-o de fogo e arrancou-lhe o somno.

Horas tormentosas se passárão para Moraes até que o dia raiou, e linhas quentes do sol lhe rasgárão as frestas da janella do seu alvergue, sem que uma mão amiga lhe procurasse allivio ao mal que o suffocava, visto como só e isolado residia.

Tentou levantar-se, mas sentio fraqueza inexprimivel. Esperava resignado que o calor da temperatura lhe trouxesse recobramento de forças, quando ouvio bater á porta, e fallar uma voz meiga posto{130} desconhecida. Pôde a custo erguer-se, e abrir o miseravel ferrolho, volvendo logo depois para a velha marqueza, que lhe servia de leito.

Entrou o velho Hollandez, cuja filha salvára na vespera. Com difficuldade pôde responder-lhe Moraes ás perguntas, reconhecendo-se extremamente abatido e prostrado. Deixou-lhe Brodechevius um criado, que o havia acompanhado, para tratar o enfermo, munindo-o de dinheiro e instrucções no intuito de cuidar de Moraes, compromettendo-se a mandar-lhe immediatamente um facultativo que o examinasse e medicasse.

Regressado o velho á sua casa exigio-lhe a filha fizesse transportar para alli o enfermo, dando-lhe pouso na sua propria morada, porque ella propria desejava pagar-lhe a vida que lhe devia.

Não sabia Brodechevius recusar-se á vontade de sua filha Beatriz. Era o fructo unico{131} que lhe restava da sua finada e querida esposa, e dominava-lhe o animo e o coração com poder extraordinario. Desesperado com a morte da companheira, abandonára Amsterdam, aceitára um emprego no conselho director da Companhia das Indias, passára-se para o Recife, e ahi se estabelecêra, vivendo só para Beatriz, e cercando-lhe a vida com todas as delicias, que sóem adivinhar e descobrir o carinho e amor paterno.

Foi portanto Manuel de Moraes conduzido em uma padiola para a casa de Brodechevius, e recolhido a um aposento excellentemente preparado, aonde um facultativo se incumbio de trata-lo.

Tomou a febre um caracter maligno e proporções assustadoras. Visitava a miudo Beatriz o infeliz enfermo compellindo-o ás vezes a tomar os medicamentos aconselhados pelo facultativo, quando Moraes se recusava ao enfermeiro, animando-o com maneiras{132} gentis e expressões doces e sympathicas, e extasiando-o como um anjo, que lhe raiava á cabeceira, e lhe dirigia a vontade.

Tinha Beatriz estatura elevada. Era a sua idade de vinte annos. Longos e louros cabellos ondeavão-lhe por sobre a cabeça altiva, denunciando a sua origem do norte da Europa. Fronte larga e pura, physionomia oval e expressiva, olhos grandes e feições regulares, lhe davão ares de magestade mais que de delicadeza e doçura. Impunha o respeito pela seriedade do porte, como as antigas rainhas, que convertêra o catholicismo em santas da sua Igreja, tão graciosas na sua dignidade quanto imponentes na sua attitude.

Faltavão a doçura, a fineza delicada, e a suavidade meridional das imagens traçadas pelos Raphaeis e Murillos. Manifestava porém uma d'essas figuras grandiosas de sacerdotisas dos Gaulezes, como as cria a imaginação. Não resplandecião os seus olhos{133} voluptuosamente, inundando-se de paixões deleitosas. Mas dizião admiravelmente que se um dia sentissem os assaltos do amor, não serião estes transitorios e mundanos, inconstantes e ligeiros; elevar-se-hião á altura de dedicação firme e permanente.

Acostumava-se Moraes á direcção que lhe dava Beatriz, descobrindo pela primeira vez de sua vida o valor e poderio de uma mulher, que curva as vontades, e converte os seus admiradores em escravos submissos. Melhorava, considerava-se quasi restabelecido sempre que se pregavão os seus olhos n'aquelle semblante admiravel. Recahia e definhava na sua ausencia, parecendo chama-la constantemente para perto de si, se ella queria que elle não morresse. Fallava-lhe já o coração que era Beatriz indispensavel á sua existencia, e a pouco e pouco violenta paixão lhe tomou posse de todas as faculdades, e assoberbou-lhe todo o espirito.{134}

Não deixava a donzella de admirar igualmente a gentileza do moço, as suas maneiras nobres, que lhe não parecião coadunar com a condição em que o achára, as conversas delicadas, instructivas e interessantes, que manifestavão uma educação superior á sua profissão, e os pensamentos moraes e religiosos, que soía exprimir, e que abonavão uma alma pura e honesta, e um animo primoroso.

O que foi n'elle desde o principio paixão amorosa, iniciou-se em Beatriz como sympathia razoavel. Borbulhavão no peito de Manuel sentimentos fogosos e delirantes, que lhe assoberbárão o espirito. Deixou-se arrastar a donzella por uma affeição moral, que lhe descrevia as qualidades selectas do mancebo e o seu trato agradavel, passando da razão para o peito, e cavando-lhe a pouco e pouco o coração, como gottas d'agua, que esbroão a pedra progressivamente. Vagarosa, diremos mesmo razoavelmente, tomou a affeição{135} o caracter de amizade, e este o gráo de amor, acompanhando as phases da reflexão em luta com os sentimentos naturaes, até que estes conseguírão sobre aquella um triumpho decidido.

Mais de tres mezes durou a molestia de Moraes, aggravando-se e diminuindo alternativamente até que entrou em plena convalescença. Bastou esse tempo para criar e firmar nos corações de ambos os jovens o sentimento mutuo, que os prendeu um ao outro para todo o sempre.

Fizera-se Moraes conhecer e apreciar como um homem de raro merecimento, e que o só destino cego conservava em trabalhos inferiores á sua educação e intelligencia. Arranjou-lhe Brodechevius um emprego conveniente na administração da Companhia, em cujo exercicio entrou, sahindo-lhe de casa, e estabelecendo-se com decencia no Recife. Sem que suspeitasse o velho os mysterios{136} que lhe escondia o coração, abrio-lhe a sua sociedade, e continuou a dar-lhe os abonos mais evidentes de verdadeira estima.

Ao passo que o contacto incessante de Beatriz lhe aprofundava cada vez mais os sentimentos de amor que nutria, e lhe affeiçoava as vontades da donzella, sorvendo ambos a tragos saborosos a atmosphera incitante da paixão, ganhou Moraes relações com personagens importantes da Companhia, e se habituou aos costumes severos e puritanos de muitos Hollandezes distinctos, extremosa e convencidamente dedicados ao seu culto calvinista, e arreigados profundamente ás virtudes domesticas, e á vida intima e pura do lar e da familia.

Resistíra sempre o seu espirito altivo e independente á disciplina imposta e forçada. A instrucção que adquiríra dos dogmas da religião catholica não lhe havião ganho a razão, como elle proprio o desejára, para que{137} com a razão lhe sorrisse a fé que lhe cumpria ter na orthodoxia de Roma. Conservava já o seu culto mais por habito e instincto que por convicção, porque se impregnára de duvidas o seu animo, não distinguindo nas religiões senão as idéas moraes e as virtudes praticas. Mais convencidos e respeitadores do culto lhe parecião em geral os protestantes que os catholicos, avaliando os Hollandezes do Recife pelos Portuguezes de São Paulo.

A cogitações tão fataes lhe ia seguindo a indifferença espiritual e o scepticismo cruel e destruidor, que lhe abalava e estragava as fibras da alma. Concorreria o amor para esta phase desgraçada, que o desprendia da religião pura e santa de Roma, que melhor falla ao homem para a vida eterna, e mais perfeitamente lhe mostra a humildade e natureza da creatura diante do supremo autor do mundo?{138}

CAPITULO VII

Corria o tempo veloz e feliz para Manuel de Moraes. Cumpria com as obrigações do seu emprego. Applicava-se ás lettras e ás artes. Engolfava-se na contemplação do seu amor. Espirito e coração nadavão em prazer e delicias ineffaveis.

Sem que os dous amantes se tivessem mutuamente rasgado os segredos do peito, e confessado as suas ardencias apaixonadas, parecião comprehender-se entre si, porque no trocar dos olhos os feria a chamma, e nas{139} conversações familiares denunciavão as palavras de ambos os seus intimos sentimentos. Notámos já que o amor de Manuel de Moraes tendia a idéas e instinctos mais sensuaes, emquanto que o affecto de Beatriz se sumia no espiritualismo de um animo raciocinador, e menos dedicado ás cousas do mundo. Mais firme devia de ser o da donzella, porque nascia da convicção e da razão que o aceitárão, e dos pensamentos sublimes que ella nutria. Resplandecia como uma aureola celeste, e uma aspiração pura e santa. Dominava a paixão de Moraes os sentidos materiaes exclusivamente, avassallava-o pela fascinação, curvava-o pelo enthusiasmo, e pertencia mais á terra e á realidade, fragil e inconstante como o homem, exaltada e attribulada como todos os seus impetos.

Amavão-se, e bastava o mutuo sentimento para approxima-los, sem que percebessem as differenças que os arredarião mais tarde.{140}

Preparára no entanto Mauricio de Nassau uma poderosa expedição para augmentar os dominios dos Hollandezes no continente brazilico. Reunindo uma frota de vinte dous vasos de guerra, mandou embarcar tres mil e duzentos soldados hollandezes e mil gentios de Pernambuco, com quem entretinha relações amigaveis e excellente alliança, e passou ordens para se dirigirem para a Bahia do Salvador, e tomarem á força conta d'esta praça importante.

Partíra a frota, e penetrára na Bahia, descarregando gente que por terra coadjuvasse os navios na redição da cidade. Foi o assalto terrivel e medonho. Defendêrão-se com denodo os habitantes da praça. Tomárão os Hollandezes os fortes Alberto, Felippe, Bartholomeu, e Rosario. Pretendendo escalar o convento dos Carmelitas descalços, fortificado cuidadosamente, soffrêrão todavia resistencia tão azeda e pertinaz, que os compellio a recuar.{141} Tinhão perdido já cerca de mil e cem homens, quando conhecêrão que lhes não restava recurso, para não morrerem todos, senão no levantamento do sitio, e no abandono da praça. Volvêrão vencidos para o Recife os restos da famosa expedição effectuada pelos Hollandezes em Maio de 1637. Amargurára-se extremamente o principe de Nassau com este evento desastroso dos seus projectos. Traçou todavia ajuntar meios mais fortes e poderosos para os levar avante, não perdendo a esperança de annexar a capitania da Bahia aos demais territorios de que já estava de posse no continente americano, que se intitulava n'esse tempo de Brazil hollandez, para se distinguir do que sobrava ainda aos Portuguezes.

Tramava porém na Hollanda contra o principe um seu decidido inimigo, Christovão Artichfsky, Polaco de nascimento, general ao serviço dos Estados Geraes, e que{142} governára militarmente Pernambuco antes que se tivesse confiado a administração do paiz a Mauricio de Nassau. Proezas praticára Artichfsky, serviços distinctos commettêra, fama de valentia e coragem ganhára, durante as guerras em que anteriormente laborava a Companhia das Indias Occidentaes. Retirado do Recife ao chegar Mauricio, conservava creditos excellentes na Hollanda, e procurava vingar-se da preterição que reputava injusta, e da sua substituição pelo principe Mauricio no cargo principal da Companhia em seus territorios de Pernambuco.

Aproveitando-se da derrota soffrida pélas armas hollandezas diante da Bahia do Salvador, levantou opposições contra Mauricio no conselho director de Amsterdam. Logrou que sem se lhe tirar a autoridade civil e administrativa, confiasse o conselho a Artichftky o commando em chefe das forças militares, com o titulo de mestre general da artilharia.{143}

Chegado ao Recife, e empossado do seu novo cargo, encetou Artichfsky uma serie de correspondencias para Hollanda, censurando os actos do principe de Nassau, e pretendeu manobrar em Pernambuco independentemente da sua autoridade, e fóra da acção superior de Mauricio.

Exasperou-se o principe com o procedimento de Artichfsky, e reunio o seu conselho secreto e politico. Expôz-lhe a impossibilidade da existencia no Brazil hollandez de duas autoridades em luta e dissidencia. Manifestou intenções de retirar-se para Hollanda, e abandonar o Recife.

Erão porém todos os membros do conselho amigos do principe, e justos apreciadores dos seus talentos administrativos. Assentárão unanimemente em fazer uso das suas faculdades extraordinarias e superiores, decidindo em favor de Mauricio, e reenviando para Hollanda o astucioso Polaco, com communicações{144} francas á Companhia a respeito dos motivos que os levavão a adoptar essa anormal resolução e alvitre.

Partíra constrangido Artichfsky, e ficára o principe senhor da situação, e livre do seu inimigo. Mas o perspicaz e atilado conselheiro Brodechevius, pressentio logo que as intrigas do Polaco em Amsterdam arrancarião por fim ao principe o governo de Pernambuco, e os odios concentrados dos naturaes do paiz recomeçariam as lutas e guerras nas terras já possuidas pela Companhia, e lograrião expellir do solo americano as armas hollandezas. Conservava-se tranquillo o Brazil hollandez com a moderação, experiencia e tino de Mauricio de Nassau. Regimen diverso arrastaria tudo para a perdição.

Deliberou-se Brodechevius a abandonar o Recife, e recolher-se a Amsterdam com a sua familia. Communicou á sua filha os seus intentos para que se preparasse a seguir na{145} primeira frota que para Hollanda se fizesse de vela.

Recebeu Beatriz a noticia com tristeza e amargura, mas não oppôz duvidas á resolução de Brodechevius. Tornou-se mais reservada com Manuel de Moraes, escondendo-lhe todavia os projectos paternos.

Não escapou a Manuel de Moraes a nova phase por que passava o trato da donzella. Diminuir-se-lhe-hia o affecto que, sem lhe haver sido jámais declarado, elle não deixára de perceber? Que causas lhe teria dado? Quando de soffrimentos intimos resultasse a frieza calculada, mas triste e pensativa de Beatriz, d'onde partia a sua origem?

Atormentava-se Moraes com serias cogitações, sem que pudesse rasgar o véo que encobria a dôr de Beatriz, que cada vez mais o acabrunhava com o seu procedimento reservado. Corrêrão alguns dias nebulosos e enlutados após tantos dias alegres, felizes,{146} perfumados de amores, de estremecimentos risonhos e de sonhos vaporosos.

Resolveu-se Manuel a um passo atrevido. Não podia conservar-se n'aquella situação miseranda depois da anterior e aventurada posição. Sentio que a franqueza se tornava necessaria, qualquer que fosse o seu resultado. Preferivel era abrir a Beatriz o intimo do seu peito, dirigir-lhe uma declaração leal do seu amor, manifestar pelos labios o que com mais eloquencia havião os olhos propalado, já que uma nuvem se interpuzera á linguagem muda com que mutuamente até então se correspondião.

Não lhe faltavão occasiões para se achar a sós com a donzella. Tomou forças para a acção, e arrojou-se a pratica-la. Perguntou-lhe decidida e resolutamente pelo motivo da sua tristeza, que desgraça lhe houvera acontecido, ou que calamidade estava a elle reservada. Tentou Beatriz esconder-lhe a verdade.{147} Apertando-a cada vez mais, sem que lograsse ser satisfeito, arrancou do coração um grito de dôr, e disse-lhe estremecidamente:

—Dizei-m'o, dizei-m'o por piedade. Não sabeis já, com que força vos amo e adoro!

Não espantou a confissão á donzella. Conheceu porém que após ella feita tão solemnemente, melhor fôra fallar-lhe com lealdade. Posto pretendesse apparentar-se calma e tranquilla a physionomia abatida trahia-a, e a voz se lhe embargava ás vezes, correndo vagarosa e como perturbada por entre os tremulos labios que a desprendião.

Declarou-lhe que seu pai lhe annunciára que pela primeira frota, que do Recife seguisse para a Hollanda, deverião ambos partir, deixando por uma vez as terras de Pernambuco.

—Partir! partir!—exclamou elle attonito;—E eu que fico aqui fazendo? que vida posso esperar?{148}

Subírão-lhe ao espirito todos os impetos da paixão. Fallou mais alto o sentimento do peito que a reflexão, o respeito e a conveniencia.

—Para que me apparecestes?—continuou desasocegadamente.—Para que mostrastes a meus sentidos absortos, quietos e indifferentes, o que era amor, que elles nunca tinhão conhecido.

Estava Beatriz acostumada a ler-lhe a paixão nos gestos, no trato, nos olhos, no fogo, e no enthusiasmo. Não escapa a mulher nem-uma o mysterio de um coração apaixonado, qualquer que seja o trabalho que se empregue em occulta-lo. Impressionou-se todavia com a força e vehemencia com que elle fallava. Fingíra a principio que o não comprehendêra. Empregára esforços para divergir do assumpto do colloquio. Não conseguindo porém que Moraes o abandonasse, disse-lhe Beatriz com sombrio, mas calculado enternecimento:{149}

—Razão maior encontro eu agora na necessidade de separar-nos. Não vos quero enganar. Amo-vos tambem, e não menos profundamente do que me asseverais ser para comigo o vosso sentimento! Serei desditosa igualmente. Devem apartar-nos mares, distancias, terras, espaços. Tentarei esquecer-vos... Procurai igualmente riscar do vossa espirito a minha lembrança... Poderá talvez o tempo abafar idéas que a loucura nos creou, e que a razão condemna...

—Não vos entendo,—interrompeu-a Manuel de Moraes.—Porque condemnará a razão o que lhe não é contrario?

—Não o pensastes, e nem eu ao principio—repetio-lhe Beatriz, pegando-lhe na mão, erguendo humedecidos os olhos para o céo, e empregando um tom de ineffavel ternura.—Deixámos imprudentemente que a paixão se infiltrasse pelos nossos corações, sem que pressentissemos a impossibilidade de{150} uma união legitima. Sois catholico, eu protestante. Distancia fatal e insuperavel nos arreda um do outro. Não podem meus pais esquecer as violencias que dos vossos soffrêrão. Gottejão feridas profundas entre os dous cultos...

—Impossivel! impossivel!—prorompeu Moraes.—Emquanto me não convencia de ser correspondido, poderia realisar-se a separação. Tragaria eu só a minha dôr, matar-me-hia ella sem duvida. Agora que me raiou o céo diaphano, que me sorrio a natureza toda, que me fallão os anjos no paraiso—é impossivel.—Partis, eu parto. Em qualquer parte, lugar ou sitio que vos abrigue, quaesquer mares que atravesseis, estarei ahi tambem, encontrar-me-heis como quem respira com o vosso sopro, vive com a vossa vida, e exhalará o ultimo suspiro da existencia por vós, ou comvosco!

—De que serve tudo isso,—replicou-lhe Beatriz agitada igualmente, posto esforçando-se{151} em parecer serena,—se jámais podemos unir-nos, se nos separão para sempre os homens, os cultos, as tradições e os costumes? Eu não posso tornar-me catholica. Não poderieis renegar a vossa religião, e quando o amor em um momento vos desvirtuasse a razão, e vos coagisse a renegar, não vos atormentaria eternamente o perjurio, não ralaria o remorso todos os dias da vossa vida? Não se murcharia com elle o amor que exigio sacrificios superiores á alma e á fé? Não o quebrantaria o arrependimento, reputando-o capricho insensato? Pensai melhor. Tratemos de cicatrizar o que o peito soffre. Somos como dous viajores que se encontrárão no deserto, repousárão ambos á sombra do mesmo oásis, refrescárão os seus labios nas aguas da mesma fonte, e se despedírão depois, seguindo cada um para horizontes diversos. Este valle de lagrimas em que andamos errantes não é eterno. Transpomo-lo apenas. Mais tarde nos{152} encontraremos. Como o filho de Abrahão atravessastes a Mesopotamia. Não vos seguirá porém a filha de Labão.

—Quereis que eu morra?—perguntou-lhe Manuel assombrado por essas palavras quasi mysticas, e accentuadas tristemente, que lhe dirigira a donzella.—Melhor fôra que me houvesseis deixado perecer quando Deos me mandou aquella febre terrivel, que me consumiria de certo se os vossos cuidados e carinhos me não tivessem salvado!

—Deos—repetio-lhe Beatriz—nos concedeu um coração para amar, mas acima do coração collocou o espirito, que é a sua emanação divina, e a razão que deve dominar sobre tudo e todos. Emmudeça a paixão diante da reflexão. Não nos é permittido unir-nos honestamente. Ficai em Pernambuco. Eu parto. Assim devia sê-lo, logo que nos descobrímos mutuamente os sentimentos.{153}

—Não, não,—gritou Manuel.—Mato-me antes. O que é a vida? o que vale para o homem solitario e abandonado na terra? o que é a religião, quando a creatura não tem fé intensa e profunda, e reconhece que pertence igualmente ao mundo, e á sociedade humana?

Aterrou-se a donzella com esta declaração inopinada. Percebeu logo que a paixão cegava Moraes, e o precipitava para destinos desconhecidos. Mas essa paixão se manifestava com uma força que lisongeava de certo o seu amor-proprio, e exaltava a seus olhos o amante capaz dos maiores sacrificios. Não era todavia Beatriz tão sensivel ao arrastamento dos instinctos do seu sexo, que não deslumbrasse ao longe, e no tempo as consequencias fataes que poderião resultar do enthusiasmo.

—Mudança de culto,—disse-lhe ella,—exige convicção firme, e não subito hallucinamento.{154} Deve ser obra da razão, não do coração. O espirito confirma e garante. O amor é passageiro. Quando lhe desapparece o encanto, e murcha-lhe o viço, bate á porta o arrependimento. Eu propria me condemnaria se causasse a vossa eterna desgraça...

—Não a temais,—retorquio-lhe Manuel.—Permitti que eu vos acompanhe para Hollanda, e provar-vos-hei por meus actos a sinceridade de minhas palavras.

Prometteu-lhe Beatriz pensar no que elle lhe dissera, pedindo-lhe um momento de socego. Cortou-se a conversação, separando-se na maior agitação do espirito.

Dominava a paixão exclusivamente em Manuel de Moraes. Subordinárão-se-lhe todos os mais sentimentos moraes e intellectuaes. Acurvou-se como convencido, ou melhor como escravo que se liga ás suas cadeias e ferros, reputando-os como a sua felicidade,{155} considerando-os como sorte inevitavel e unica que lhe está reservada, e a que o attrahem delicias particulares, sonhos dourados, e voluptuosos imans.

Reflectia mais Beatriz. Folgava-lhe o coração com o amor profundo de Moraes. Fallava-lhe porém a razão, denunciando-lhe perigos futuros. Luta de amor risonho, e de tristes pressentimentos, se lhe travou no espirito, e o apouquentou bastante.

Resolveu-se a fallar com seu pai. Confessou-lhe que amava Moraes, lhe seria impossivel esquecê-lo e abandona-lo; e resistiria o seu animo a aceitar por marido outro qualquer homem, porque lhe pertencia toda a sua alma. Não deixou igualmente de manifestar-lhe os seus temores sobre a sinceridade da declaração do amante, que preferia trocar o catholicismo pelo culto calvinista, no intento de acompanha-la, e viver para ella.{156}

Estimava Brodechevius o homem que salvára a sua filha. Prezava-o como intelligencia distincta, espirito dotado de raras qualidades, e capaz dos feitos e acções mais honrosas. Não lhe repugnava aceita-lo por genro. Não erão para elle distincções a riqueza, e nem o nascimento desigual ou humilde. Arredava-o a só diversidade dos cultos religiosos, que se poderia sanar abandonando Manuel a religião catholica, e adoptando por patria a Hollanda. Cumpria porém em seu parecer verificar igualmente a convicção com que praticaria Moraes a difficultosa mudança. Aconselhou a Beatriz, que, esperando do tempo a prova da sinceridade do amante, lhe consentisse acompanha-la para Amsterdam, aonde se observaria mais cuidadosamente o procedimento de Moraes, para ser ao justo apreciado.

Deixou a frota hollandeza as plagas de Pernambuco no principio do anno de 1639.{157}

Embarcárão-se todos, abandonando as terras brazileiras. Despedio-se Manuel de Moraes da America, na intenção firme de nunca mais revê-la.{158}

CAPITULO VIII

Não decorrêra um anno inteiro em Amsterdam, para onde se havião retirado Brodechevius e sua filha, e já havia Manuel de Moraes abjurado a religião catholica, abraçado o protestantismo com o consentimento do velho Hollandez, celebrado os seus desposorios com Beatriz, e fixado emfim a sua residencia na nova patria que adoptára.

Venturosos dias se passárão a principio no seio d'essa familia tranquilla e socegada. Posto nem-uma convicção arrastasse Moraes{159} para o novo culto, seguia-lhe os mandamentos com exactidão, e cumpria escrupulosamente com os deveres que a Igreja calvinista recommendava. Não lhe pesavão no espirito, porque não era ainda chegada a hora do arrependimento e dos remorsos, e o prendião com doces e agradaveis laços os encantos da esposa, que cada vez manifestava mais finas qualidades, e correspondia ao seu amor fogoso com uma dedicação admiravel e extremosa.

Frequentavão-lhes a casa familias distinctas, affeiçoavão-lhes a amizade pessoas selectas, attrahião-lhes os cuidados relações agradaveis.

Conheceu e relacionou-se Moraes com muitos judêos portuguezes, evadidos de Portugal diante das perseguições do governo e do Santo Officio da Inquisição. Numerosas familias d'essa raça condemnada por injustos preconceitos e prejuizos loucos da opinião publica da época, abandonárão as terras luzitanas,{160} e achárão abrigo, e liberdade para os seus cultos, na judiciosa Hollanda, que se engrandeceu e gloriou com a sua industria e fortunas.

Primavão entre os judêos portuguezes homens de merito notavel. Havião muitos acquiescido em Portugal a trocar a sua religião pela catholica, afim de se lhes consentir a residencia na patria, que não admittia o culto israelita. Bastava porém a mais pequena suspeita, a menor denuncia, para que fossem presos, encarcerados, processados, e condemnados aos tormentos e fogueiras do Santo Officio. Entrárão alguns para as ordens monasticas, tomárão habitos de sacerdotes, empregárão-se no proprio tribunal da Inquisição, como seus famulos e servidores. Não lhes valêra a metamorphose do culto e dos costumes. Ninguem acreditára na sinceridade da sua abjuração. Após os que, por não quererem renegar as suas crenças religiosas,{161} forão compellidos a expatriar-se, seguírão aquelles que, convencida ou hypocrita e simuladamente, adoptárão o catholicismo, por mais evidentes e claros abonos de sinceridade e dedicação aos dogmas e disciplina da Igreja romana.

Bastava ser judêo, tê-lo sido, ou descender de sangue judêo, para que se lhe não poupassem insultos, prisões, miserias, violencias, assassinatos juridicos e barbaros. Não os isentava o sexo, e nem a idade. Perdeu Portugal com a sua emigração um povo rico, industrioso, trabalhador, activo, intelligente, e capaz de grandes emprezas.

Figuravão entre os judêos estabelecidos por esse tempo em Amsterdam tres Portuguezes, considerados como capacidades elevadas, e que deixárão fama nas lettras e sciencias. Isaac Orobio de Castro, que fôra medico notavel em Lisboa, e professor em Sevilha, escapo dos carceres do Santo Officio graças a{162} um disfarce de vestes, e nomeado para um dos chefes da communhão israelita da Hollanda[4]. Manassé ben Israel, oriundo de Arabes e judêos, naturalista distincto[5]. Uriel da Costa, que exercêra cargos civis em Lisboa, convertendo-se á religião de Roma, e que nem por isso fôra poupado pelo cruento tribunal, que anciava por purificar a fé religiosa nas fogueiras que levantava para queimar vivas as victimas da sua atrocidade supersticiosa[6].

Perseveravão as familias israelitas em guardar na Hollanda os seus costumes, e a lingua portugueza, formando uma communhão livre e levantando as suas synagogas, celebrando os seus actos religiosos, solemnisando o seu dia do sabbado, e as suas festas tradicionaes.{163}

Tudo o que víra Manuel na Hollanda entre os protestantes, e a historia e situação dos judêos portuguezes exilados, parecião fortifica-lo a principio no seu novo culto, demorando o tempo do infallivel arrependimento.

Rebentára por esse tempo a revolução portugueza de 1640. Applaudírão todos os judêos portuguezes o levantamento glorioso do povo luzitano para recuperar a sua independencia, e libertar-se do jugo de Hespanha. Enthusiasmou-se Manuel de Moraes pelo evento feliz, e incitado pelas reminiscencias patrias, escreveu e publicou uma memoria, defendendo os direitos de Portugal e do duque de Bragança elevado ao throno nacional, com o nome de Dom João IVº, e offereceu-a ao diplomata portuguez nomeado para Hollanda, Diogo de Mendonça Furtado[7].{164}

Começárão estas occurrencias a avivar no espirito de Manuel de Moraes reminiscencias do que fôra, e de onde proviera. O proprio escripto que traçava lhe insinuára saudades da patria, e forão com ellas vindo timidas duvidas a principio ácerca da honestidade e dignidade da sua abjuração religiosa, e a pouco e pouco e com o tempo depois um como que arrependimento do que praticára, e que condemnava-o no fôro interno d'alma.

Ninguem se podia reputar no entanto mais feliz na sua domesticidade. Um sogro que o estimava e prezava, cheio de bondade e affecto; uma esposa bella, meiga, amorosa, devotada; abastança de meios de fortuna; renome de homem intelligente e serio; amigos que o procuravão, e acolhião com urbanidade e respeito; que lhe era mais preciso para a felicidade na terra?{165}

Assim o pensára elle proprio no começo. Não descobríra na existencia senão socego, doçuras, risos, prazeres, delicias, encantos, flôres e perfumes. Passados os primeiros tempos da felicidade, que se deverião reputar a lua de mel dos noivos, uma voz surda e intima, que partia da alma, lhe iniciou uma agitação paulatina no espirito, que se foi entristecendo e cobrindo de luto, e perdendo a vivacidade anterior, como a rosa que murcha a olhos vistos, apenas cortada da haste, que lhe dava viço e vida.

Tratou de occulta-la Moraes aos olhos do mundo, e com mais cuidados da consorte adorada, que se lhe afigurava ainda o unico ente sobre a terra por quem dera e daria sempre a vida. Não escapou porém á perspicacia de Beatriz a metamorphose espiritual e moral que se passava no marido. Não tardou muito a adivinhar por si, á custa de seu unico trabalho, e sem a menor confidencia{166} de Manuel, posto o interrogasse por todas as fórmas sobre o motivo verdadeiro da lamentavel transformação que se ia operando no seu animo.

Estremeceu. Realisára-se o seu pressentimento. Após o saborear dos prazeres, entornava-se o fel do arrependimento. Destruirião os remorsos posteriores aquelle amor fogoso, aquella paixão enthusiastica, que correspondêra mais aos sentidos physicos que aos dotes da alma e do espirito.

Desapparecia-lhe toda a felicidade domestica, como um sonho agradavel que o acordar interrompêra, e a realidade supprimíra. E se não podia queixar de ingratidão. Elle não professava outro amor; não a abandonára por outra mulher; dedicava-lhe o mesmo affecto extremoso e fino; adorava-a sempre com o coração, mas laborava já em lutas intimas das idéas religiosas dos arrependimentos do espirito, dos remorsos d'alma contra esse amor{167} e paixão a que sacrificára o que agora lhe ia parecendo não dever e nem poder ser jámais sacrificado, como superior que era á razão e á vida.

Volveu contra si propria a setta, por se haver mostrado tão fraca, aceitando o sacrificio, e não apreciando no seu justo valor a sua grandeza invencivel. Communicou-se a Beatriz a tristeza e abatimento moral de Moraes, e seguindo cada um vereda differente, se convertêrão ambos em entes isolados e solitarios, que o mundo e a sociedade approximárão, e as paixões latentes separão, como remorsos vivos de crimes, que arredão um do outro os seus complices respectivos.

Fugião já ás confidencias mutuas. Mas o contacto intimo, o lar domestico a vida regular, as devião trazer naturalmente, posto as temessem reciprocamente.

—Sou eu causa,—disse-lhe Beatriz um dia,—dos tormentos do teu espirito?{168}

—Tu?—respondeu-lhe Moraes.—Enganas-te. És antes o unico anjo que me ampara. Ainda esta noite sonhei: Um monstro lançava-se sobre mim; tinha eu conhecimento da minha critica situação, como se estivera acordado; paralysava-me porém a inercia do somno—chegaste,—fugio o monstro,—salvaste-me!

—Sacrificaste por mim tua vida,—continuou ella.—Sei que isso te não peza. Mas sacrificaste igualmente o teu culto religioso, e eu aceitei o que não podia aceitar, e d'ahi provém o arrependimento que te tortura o espirito!

—Ama-me sempre,—replicou-lhe Moraes,—e tudo isso é nada, porque só vivo para ti, e ás dôres que me assomem ao espirito, desconhecidas, precipitadas, anciosas, mas que me obscurecem e assoberbão ás vezes, não vejo remedio ou allivio senão em teu amor. Arranca-m'as tua presença,{169} como a do anjo tutelar e da guarda.

—Moraes,—tornou-lhe ella,—conheço-te, admiro-te, adoro-te. Sei que sacrificio enorme commetteste por meu amor. Culpa minha foi, e não tua, em que se realisasse. Não ha mais remedio; suas terriveis consequencias apparecem agora, e Deos deixa-me solitaria. Vês como os astros gravitão um para os outros, em extases communicativos e innocentes? Um laço ineffavel prende ao creador a creatura. A floresta que geme, o lago que dormita, a torrente que se despenha, o vento que sibilla, a cidade que sonha, o passaro que canta, a aurora que resplandece, tudo tem uma voz no hymno da universal harmonia. Eu porém considero-me discordancia inutil no concerto immenso da natureza. Sou no meio do immortal poema d'arte como um membro cortado, e estranho ao movimento que lhe imprimio o architecto supremo. Dir-se-me-hia semelhante á superficie{170} incolor das aguas que reflecte apenas o brilhantismo das arvores, das flôres e do firmamento.

Impressionou-se seriamente Manuel de Moraes, ouvindo essa linguagem mysteriosa, mas que denunciava o fundo cavado no peito da esposa pelo sentimento forte da dôr e da amargura.

—Ó santa creatura!—exclamou, abraçando-a e beijando-a com effusão,—desterra imagens tristes e aterradoras. Se não sou o que fui, se não passo de uma sombra de homem, se soffro paralysia intellectual, só tu podes alliviar-me as dôres, e salvar-me, porque és o unico ente que me ampara na terra. Restitue-me tua alma, dá-me a fé que é a vida, a fé no teu amor!

—Pensei,—interrompeu ella,—que encarariamos a felicidade sob a mesma feição e aspecto. Encanta-me a paz e tranquilidade da vida intima, mas teu espirito se{171} revolta, e eu considero-me culpada. Dize que sacrificios queres que eu faça para superar os que por mim commetteste!

—Nem-um, nem-um,—respondeu-lhe Moraes.—Cumpre-me a mim repetir todos para te provar minha dedicação. Se queres que eu exista, não soffras, minha alma! Perdôa-me, serena-me estes impetos involuntarios do espirito. Não és culpada,—nem eu,—ninguem o é. Abandona sonhos e pressentimentos infaustos.

Enlutava-se cada vez mais a existencia mutua de Moraes e de Beatriz com a falta de filhos, que são prisões no mundo, e tomão pela sua affeição a dianteira a todos os sentimentos humanos, vencendo-os em superioridade e força, e obrigando os pais a ligar-se á terra, e a applicar-se á sorte e felicidade da sua prole querida.

Definhavão assim cada um para o seu lado os dous esposos, que se adoravão no entretanto.{172} Excedia a prostração em que cahíra Beatriz ao abatimento que Moraes manifestava. Cifrava-se o sentimento d'este no espirito e n'alma. Provinha do arrependimento, acarretára remorsos, que ralando inteiramente, não lhe offendião todavia as forças physicas. A intensidade da dôr de Beatriz se passára porém para o corpo, que minguava a olhos vistos. Empallidecião-se-lhe as faces, outr'ora roseas e rubicundas. Cavavão-se-lhe os olhos, em outro tempo vivos, penetrantes e espirituosos. Quebravão-se-lhe as forças paulatinamente. Tomava aquelle aspecto todo, tão esbelto e levantado como a palmeira do deserto, tão elegante e primoroso como o cysne deslisando-se gentilmente pelas aguas do lago, proporções graves, tendencias á decadencia e ruina, ares de soffrimentos physicos, que assustavão a todos que com ella convivião, e a estimavão e amavão.

Lamentava-se o velho Brodechevius, percebendo{173} finar-se a filha adorada, sem lhe conhecer o mal que a minava, e adivinhar-lhe a cura necessaria. Chorava Moraes como uma criança, esquecendo quasi diante do seu amor a propria dôr, que lhe acabrunhava o espirito. Procurava engana-la, asseverando-lhe que não sentia mais as primeiras impressões que o havião assaltado, e convencido cada vez mais do bem que procurára, e da utilidade moral que lhe proviera dos seus actos, não poderia existir longe d'ella, e sem ella. Esforçava-se em chama-la á ventura e á vida pelo amor que Beatriz lhe consagrava, e por piedade para com aquelle que se lhe dedicára com todas as forças do coração e faculdades d'alma.

—Moraes—disse-lhe ella um dia ao cahir da noite, encostando-se a uma janella que dava sobre o braço de mar que banha Amsterdam, e olhando para uma pallida estrella que bruxuleava no horizonte sombrio e{174} tristonho do norte.—Vês aquella estrella merencoria? É a minha existencia. Breve se sumirá ella no firmamento, e o negro manto da escuridão a cobrirá de todo. Fui feliz emquanto te senti feliz a meu lado. Causei a tua desventura, e devo receber do céo o castigo merecido. Sonhão-te pelo pensamento idéas de deveres nobres e patrioticos. Ruminão-te pelo espirito os insensatos sacrificios que por mim praticaste. Torturão-te a alma os remorsos crueis que acompanhão sempre quem abandona o seu culto, e a religião de seus pais. Não tardará o momento em que fiques livre de mim para volveres ao gremio da tua Igreja, e recuperares o socego pela penitencia e santidade de vida, desprendendo-te das cousas terrestres, que nos afastão da Divindade.

—Por compaixão por ti e por mim—atalhou elle.—Que me importa a religião de Roma, se é christão igualmente o culto{175} ensinado por Calvino, e mais consentaneo com a liberdade e o arbitrio do homem! Não me arrependi; não soffro remorsos. Asseverei-t'o tantas e repetidas vezes, e porque m'o não acreditas?

—Leio melhor que tu no fundo do teu peito—continuou Beatriz.—Fez-me Deos de modo que, ou não devia amar, ou possuindo amor, deveria elle assorberbar-me de sorte que o ente que escolhesse o meu coração me pertencesse inteira e exclusivamente, e não nutrisse idéa que se não cifrasse em mim. No dia em que notei que involuntariamente—sei-o bem, não precisas repetir-m'o—te impressionavão sentimentos, reminiscencias, saudades doridas do passado—afastavas de mim um pensamento, que te ia acommettendo, e dominando o espirito, posto me dedicasses o mesmo amor do coração, não mais porém as faculdades d'alma, entendi que devia desamparar a terra, e que meus dias{176} estavão terminados no mundo, para só entregar-me a Deos.

Pretendeu Moraes replicar-lhe; ella porém largou-o, e retirou-se para o interior do seu aposento.

Não durou muito o seu soffrimento. Á decadencia do corpo ligou-se uma febre nervosa. Inuteis e infructuosos cuidados se lhe applicárão. Nem-um medico lhe adivinhou a molestia. Reclamou-a a eternidade. Forão os seus ultimos momentos tristes, mas affaveis, despedindo-se enternecidamente do pai e do esposo, e entregando a sua alma fervorosa nos braços do Deos eterno!{177}

CAPITULO IX

Achava-se de novo Manuel de Moraes só, e isolado no mundo.

Quando se separára do claustro, dos pais e da familia, o fortalecião muito ainda o viço, a imprudencia afouta e audaciosa, e a esperança propria da idade juvenil. Ao faltar-lhe agora a consorte querida, ente unico, por quem se lhe cifrava a ventura no mundo, roçavão já os seus annos pelos quarenta, e a vida se lhe annunciava com o peso da experiencia e dos soffrimentos.{178}

Não guardára reminiscencias profundas na primeira época. Os acontecimentos repentinos que lhe succedêrão, as viagens que effectuára pelo sertão da capitania de São Vicente, as aventuras que encontrára no meio dos gentios errantes, e na provincia de Guayrá, os rios poderosos, a natureza esplendida do interior da America, o mar com as suas furias e os seus gemidos estridentes, lhe havião exaltado a mente, em vez de abatê-la e curva-la.

Diversa physionomia lhe raiava agora, em idade mais avançada, e fulgurava em torno d'elle. Idéas differentes o acommettião, e lhe corroião as fibras da alma e os segredos do espirito. Saudades sinceras da esposa mortificavão-no e torturavão-no. Havião corrido em companhia d'ella dias tão alegres, tão prazenteiros, tão socegados, tão felizes! Amor puro e sem igual, dedicação primorosa e exclusiva, possuia aquelle ente adorado, que{179} se deixára morrer quando percebêra falta de uma inteira correspondencia da sua parte!

Longe igualmente da patria, cuja lembrança lhe sussurrava a miudo; sem noticias dos pais e da familia que abandonára, e que agora lhe mortificavão o peito com doridos impetos; abjurado da fé catholica, que mitiga as dôres humanas, e falla ao coração com mais eloquencia que qualquer outro culto religioso; atirado no seio de uma socidade, na qual não nascêra, e nem encontrava parentes e amigos intimos, tão necessarios á vida, como companheiros leaes e devotados; que miseria o cercava, que esperança lhe poderia sorrir, que futuro devia antever?

Deixou a casa em que morava, por se lhe partir o peito com o aspecto que ella lhe offerecia já. Separou-se do desditoso Brodechevius, abandonando-lhe as riquezas, que lhe podião pertencer por direito. Recolheu-se a um sitio solitario, nos arredores de Amsterdam,{180} para com liberdade se entregar á expansão da sua dôr.

Era já Amsterdam uma cidade importante pela industria e commercio. Cortavão-na mil canaes, ornados de magnificos edificios, povoados de numerosos navios. Prosperava com o trato mercantil das colonias que roubára Hollanda a Portugal, durante o tempo do seu captiveiro dos sessenta annos, sob os tres Felippes de Castella. Expedia carregamentos continuos e importantes para a Asia, para o Brazil, para o cabo da Boa Esperança. Agglomerava-se-lhe pelas ruas e dentro dos muros um povo emprehendedor, activo e industrioso, que sabia curvar uma natureza ingrata e um clima agreste, e criar bellezas ficticias, e espantosas riquezas, que lhe davão o aspecto de commodos e magestade.

O que admirára Moraes nas obras dos homens começou a perder os seus encantos e fulgor, á proporção que a memoria lhe avivava{181} scenas do passado. Não era mais soberba a natureza dos tropicos, e não extasiavão mais aos olhos as florestas virgens da capitania de São Vicente, os rios caudalosos do Paraná, Tieté, e Prata, e a physionomia esplendida do firmamento com a sua doce e arrebatadora temperatura? Em concepções e obras não superava a natureza á arte? O que valia o panorama de uma Cidade artificial, coagida a oppôr diques ao mar, para que o mar a não engolisse e absorvesse, diante da planicie alegre em que assentava o Recife, ou as alturas em que repousava a povoação de São Paulo?

Á terra seguio-se a raça dos homens na comparação que o espirito lhe foi formando. A taciturna gravidade do Hollandez, posto industrioso e emprehendedor, a avareza dos judêos, ainda que activos e trabalhadores, não estavão abaixo do caracter jovial e vivo dos Portuguezes, e da innocencia e bondade dos gentios americanos? As virtudes e qualidades{182} dos padres protestantes casados, homens do mundo, dos negocios e do trato mercantil, poderião correr por acaso parelhas com a dedicação mystica e santa dos Jesuitas, que parecião não pertencer á terra, mas ao céo, e que na terra cuidavão só e exclusivamente em praticar feitos meritorios e exercer a caridade e a philanthropia moral, expondo-se aos maiores perigos e á propria morte, em beneficio dos gentios desgraçados e nomades?

Subio dos objectos mundanos para os espirituaes. Encarou os dous cultos, calvinista e catholico, mais como philosopho que propriamente como religioso. Lobrigou desenhado ás claras n'aquelle o orgulho do homem, que, a pretexto de liberdade da razão, queria elevar-se directamente a Deos, dispensando intermediarios, e interpretar a capricho os santos Evangelhos, e os livros da lei divina, emquanto que o catholicismo, organisando{183} uma igreja gradual, e erguendo os homens segundo os seus merecimentos, curvava a creatura na humilhação do creador supremo, e lhe explicava os dogmas do culto e os textos das Escripturas sagradas sob a formula mais simples, a da obediencia a uma intelligencia só, para a unidade e regularidade da fé.

E quanta ousadia na affrontação da Divindade; quanta arrogancia na exclusão das pompas dos templos; quanto desprezo na repulsa dos varões virtuosos, dedicados ao ascetismo e ás doçuras da vida eterna, que com razão se canonisárão de santos; quanta rebeldia para com o successor de São Pedro, cuja autoridade negavão os protestantes, que aceitavão no entanto a direcção de qualquer ente levantado do pó, despido de prestigio, e que se erigia por si em propheta e chefe de seita, como Luthero ou Calvino! Resplandecião-lhe pela imaginação a physionomia e o caracter grave, sereno e attrahente da Igreja Catholica,{184} que com o fausto de suas solemnidades irradiava de jubilo; com a melancolia dos seus canticos lembrava ao homem o nada que era; com a confissão e communhão lhe alliviava o peito e a alma; com os sacramentos finaes á hora da morte o levava para a vida eterna socegado e contricto, esperando o perdão da misericordia divina, que nunca desampara os seus filhos malaventurados.

Agglomeravão-se-lhe os remorsos com a consequencia das suas cogitações. Vida sem fé e sem esperança não era a do animal selvagem e embrutecido? Trocar o catholicismo, que nutre, sustenta e enche de fé, pelo calvinismo frio e interessadamente calculado, não constituia um crime, superior ao maior peccado contra a moral universal?

Não existia mais a esposa para lhe distrahir o pensamento amargurado, quando o martyrisava com agudos espinhos e sangrentas dôres. Nem-um amigo lhe apparecia{185} para lhe modificar a direcção espiritualista das idéas, e attrahi-lo de novo ás cousas do mundo. Arrastava-se de dia, estorcendo-se em amarguras. Velava de noite, atormentando-se em reminiscencias crueis e remorsos pungentes. Nem-um instincto o prendia mais á terra. Aborrecia a sociedade, e não encontrava allivio na solidão. Dias sem repouso, e noites sem somno, lhe avivavão cada vez mais os soffrimentos do espirito, ao passo que lhe arruinavão a saude do corpo.

Esforçava-se por respirar o ar livre dos campos, e notando-os todos lavrados artisticamente, cortados de canaes artificiaes e monotonos, divididos com regularidade exemplar, despidos de arvores naturaes e de vegetação espontanea, despovoados de passaros que gorgéão hymnos de amor, que devem subir agradavelmente ao throno de Deos, como harmoniosa orchestra que proclama e sauda a sua omnipotencia, cahia na maior tristeza e{186} prostração, recordando-se das planicies e veigas americanas, imagem e symbolo da Providencia divina pela sua grandeza ineffavel, encantos magestosos, e sublimes attractivos.

Que é das aguas, que corrião com a sua propria força, se desprendião de rochedos, brincavão com as pedrinhas alvas que lhes interrompião o curso, e engrossando, e recostando-se a leitos de flôres e perfumes, extasiavão os olhos, e denunciavão o poder ingente do organisador dos mundos?

Marchava assim meditabundo e só pela beira de um canal proximo a Amsterdam. Cahira a noite, e escurecêra com o seu manto o firmamento, rodeiando-o de trevas, sem que se apercebesse Moraes de que lhe cumpria suspender o seu passeio.

Fendeu os ares de repente uma voz enternecida de mulher, que cantava ao som de um instrumento que elle conhecêra na sua infancia, e que desde as plagas do Brazil não{187} ouvira mais tanger. Era uma guitarra portugueza, que, imitando a harmonia da harpa, gemia melancolicamente. Approximou-se Moraes para a casa de campo de onde sahião os melodicos accentos, arrastado por uma sympathia rapida que lhe sahio do peito. Applicando o ouvido ás palavras do cantico, estremeceu involuntariamente. Erão portuguezas, e pronunciadas por labios portuguezes. Quem seria o anjo que lhe sussurrava aos sentidos vocabulos da juventude? E que exprimião elles, affectos, paixões, ou delirios amorosos?

A pouco e pouco ouvio claramente as palavras, e não pôde suster-se em pé. Cahio sobre uma pedra, que lhe servio de abrigo.

Fôra para elle o cantico mais uma oração que uma lettra poetica; mais um estigma que uma rima musical; mais uma imprecação que um hymno. Formava-se dos versos{188} seguintes, que a boca que os proferia soltava com sonora e cadente melodia:

Ó doce e sagrado culto,
Que com o leite bebemos!
Tu nos sorris desde a infancia,
Com teus feitiços crescemos.
Antes carceres, exilios,
Antes barbaro tormento,
Antes cruentas torturas
Que esquecer-te um momento!
Antes a triste miseria,
A fome e a sêde mais dura;
Antes a morte em martyrios,
Em ancias de crua amargura!
Ó legado precioso
Confiado ao coração!
O penhor sagrado de honra,
Ó santa religião!
Quem póde a fé, que lhe derão,
Renegar impunemente?
Quem seu Deos e sua crença
Se arroja a arrancar da mente?{189}
Vagará no mundo inteiro,
Como um animal damnado.
Nem amigos—nem piedade,
Só, de remorsos ralado!

Ha no espirito do homem uma fibra mysteriosa, que Deos ahi depositou para o fim de impressiona-lo de quando em quando pelo supersticioso, extraordinario e fantastico, abater-lhe a vaidade, e manifestar-lhe a differença das duas naturezas que o compõem, uma fragil como o corpo e oriunda do pó, e a outra immaterial e eterna, como emanação da chamma divina, á qual deve annexar-se no fim da existencia, quando separada dos restos mortaes.

Por mais robusto e forte que seja o espirito, alli estremece diante de um cadaver que passa; acolá se curva contrito diante de uma sepultura; mais adiante se apodera de pensamentos sombrios ao avistar uma cruz no meio do deserto, ou á beira do rio, abandonada como foi{190} pelos povos de Israel o Deos homem, que se sacrificou pela salvação do mundo; um som repentino do sino de igreja; um cantico tristonho a deshoras perdidas da noite; um miserere solemne soltado debaixo das abobadas do templo; quem póde resistir á emoção, immediata e dorida que traspassa os membros do corpo, gela o sangue, sobe á mente, prostra o espirito, e arrasta a alma mais sceptica para cogitações philosophicas e reminiscencias merencorias?

Avassallárão Manuel de Moraes todas estas impressões, causadas pelo cantico e guitarra portugueza, repetidos sem duvida e tangidos por alguma judia expatriada que guardára a sua fé, e conservára a lingua pittoresca de seus pais nas ribas do mar do Norte, e sob os frios gelos de Amsterdam.

—Renegado, renegado!—parecia clamar-lhe uma voz sahida do seu proprio peito, entornando-lhe pela alma abatida uma nuvem{191} de remorsos crueis e dolorosos!—Renegado, renegado!—era o grito estridente que lhe soava os ouvidos. Sem amigos, nem piedade, ficára só e solitario na terra.—Não era este o seu estado? Não se diria o verso dirigido e applicado contra o seu procedimento? Não era um castigo do céo?

Não teve forças para aturar a violencia dos pensamentos. Perdeu os sentidos, rolou por cima da relva que matizava o chão humido, e horas e horas se passárão sem que se percebesse do seu estado, e nem-um individuo caritativo, que por acaso transitou, o descobrio, e cuidou em tira-lo do perigo.

Esclarecião-se já os horizontes com os primeiros raios da aurora, desprendendo-se das fumaças escuras da noite, desfazendo-as ao seu sopro vital, e derramando luz por sobre a terra e nas immensidades do firmamento celeste, quando a propria humidade do chão o acordou do lethargo soporifico, e lhe prestou{192} forças para levantar-se, e reconhecer a sua triste situação.

Encaminhou-se vagarosa e pausadamente para a cidade, estremecendo ao echoar-lhe ainda aos ouvidos o cantico fatal, que o condemnava, e lembrava a sua situação.

—Eu abandonei patria, e reneguei o culto, sem convicção nem consciencia!—dizia comsigo.—Aquelles fieis sempre á sua religião, e supportando por ella tormentos, mortes, exilios, fome e miseria! Ai, padre Eusebio de Monserrate! Não serieis o autor d'esses versos que me lanção sobre a fronte o estigma da trahição? Não me dissestes igualmente que desgraçado seria quem trocasse a Igreja pacifica de Deos pelo oceano tormentoso do mundo?

Faltava-lhe o ar para respirar, a luz para allumia-lo; a fé para lhe tranquillisar a alma agitada por commoções as mais desesperadas e violentas.{193}

Chamou-o o leito a repouso, mas o repouso lhe não appareceu no meio das tormentas do espirito, e o leito se lhe afigurou de espinhos, que lhe rasgavão o corpo, e lhe ferião dorida e profundamente as entranhas todas.

Molestia tenaz o assaltou, e levou-o quasi ás bordas do sepulcro. Resistio a natureza só, e dir-se-hia que ella o reservára ainda no mundo para provanças mais calamitosas.

Quando se ergueu do leito, e logrou sahir de casa, deliberou-se a procurar alguma igreja catholica afim de sentir o effeito que sobre o seu espirito produziria a solemnidade pomposa do culto, que desamparára imprudente, e a que o chamava de novo a agitação do animo.

Póde o homem nas primeiras idades da vida ser desdenhoso de crenças religiosas, philosopho sceptico, indifferente ao culto, mofador das cousas sagradas. Rodeião-no tantos encantos sensuaes, tantas ineffaveis delicias{194} e prazeres materiaes, que n'elles se deixa absorver, e por elles domar facilmente. Acena-lhe o mundo com scenas prestigiosas, falla-lhe a natureza com attractivos, doura-lhe o horizonte tantos quadros alegres, cantão-lhe tão agradavelmente as aves, enfeitição-no as flôres com tantos perfumes, sorri-lhe a sociedade com tanta meiguice, extasião-lhe a existencia tantos mysterios e sonhos! Quando porém dobra o cabo de mais da metade do prazo provavel que tem de passar na terra, e para adiante alarga a vista, vê estreitar-se o espaço, e fulgurar-lhe perto o espectaculo da morte, a sepultura cavada no chão, o somno derradeiro... ai!... infeliz!... Precisa de religião que lhe allivie o peito, de fé que lhe alimente esperanças, de crença firme na eternidade e na misericordia divina, que unica póde perdoar-lhe os crimes!

Era este já o estado de Moraes, e procurando a Igreja de seus pais, quem sabe—fallava-lhe{195} o seu pensamento—se depararia com algum lenitivo aos seus males pungentes!

Custou-lhe a achar uma quasi choupana, sem aspecto e nem perspectiva de templo, aonde se celebrava o culto romano por alguns poucos fieis que residião em Hollanda, e não adoptavão o calvinismo, ou lutheranismo, que predominavão na maioria do povo.

Tremulo, convulso e submisso peneirou os umbraes da porta. Achou-se dentro da igreja, em face de tres altares ornados com imagens, cobertos de flôres allegoricas, scintillantes de luzes. Appareceu-lhe ao lado a pia com a agua benta para se purificar dos peccados. Celebravão os sacerdotes missas solemnes, com canto, coros e musica de orgão. Exaltavão-se as grandezas e o poder de Deos eterno, e anjos com azas brancas, santos prostrados, e parecendo interceder pelos homens, as vestes sagradas dos padres e assessores, e a linguagem mystica latina, formavão{196} um espectaculo imponente da magestade do culto.

Como alegra o viandante cansado e atormentado por sol ardente e areiaes abrazadores a vista de um oasis no seio do deserto da Arabia? Como sorri o encontro de uma fonte crystallina a quem arqueja de sede devoradora? Assomou assim á mente de Moraes uma sensação balsamica, deliciosa, salvadora quasi, que lhe borrifou o pensamento com idéas mais prazenteiras, com um raio de luz que lhe resplendeu nos arcanos d'alma, e allumiou-lhe o espirito.

Prostrou-se contrito como penitente. Raiou-lhe a esperança com as vozes dos sacerdotes, a presença dos altares, a vista dos santos, o aspecto das flôres e ornamentos, o som harmonico do orgão. Elevou até o throno de Deos o grito do seu arrependimento, e implorou-lhe a immensidade da sua misericordia.

Duas horas ahi passou, de joelhos, firme e{197} mais socegado, parecendo-lhe que durante esse tempo lhe concedia a Providencia divina uma vida nova, e promettia um melhor porvir. Para sahir do recinto do templo foi preciso que os empregados lhe annunciassem que tinhão de fechar-lhe as portas.

Descobríra porém o balsamo alliviador dos soffrimentos do seu espirito. Que lhe dizia agora a alma que fizesse para completar a cura, e trazer-lhe o socego?{198}

CAPITULO X

Ao amanhecer do dia immediato deixou Amsterdam, e partio para Haya. Chegado á capital dos Estados de Hollanda, indagou aonde residia o emissario e agente diplomatico portuguez, acreditado perante o governo do stathouder, e que era então o padre Antonio Vieira, Jesuita celebrisado, prégador excelso, e amigo particular de D. João IVº, rei de Portugal, incumbido de negociar pazes com os Estados Geraes, afim de poder sustentar{199} a guerra da independencia, em que laborava contra Hespanha.

Dirigio-se para a sua habitação, e pedio ser levado á presença da illustre personagem. Introduzido em uma sala simplesmente arranjada, brilhando mais pela modestia e decencia que pelos ornamentos de luxo tão proprios dos agentes diplomaticos, que nas apparencias assentão a sua dignidade e cuidão realçar o seu credito e caracter, descobrio a um canto sentado em uma poltrona um homem, revestido com a roupeta negra e comprida da companhia de santo Ignacio, tendo um pequeno barrete preto coroando-lhe a cabeça, e occupado em escrever sobre uma mesa singela e repleta de papeis, a que se encostava absorto, parecendo não prestar attenção ao que em torno d'elle se passava.

Contemplou-o Moraes cuidadosamente. Era a sua estatura mais que mediana. Fronte larga, espaçosa, manifestando protuberancias{200} salientes. Olhos vivos e scintillantes. Rosto e queixo povoados de barba espessa, que começava a embranquecer. Aspecto respeitoso e severo.

Aquella roupeta, aquelle barrete, que elle nunca mais víra desde que deixára o Rio da Prata, lhe avivárão reminiscencias de São Paulo, e anuviárão o pensamento com extraordinarios impetos. Fulgurou-lhe á mente a idéa que estava ainda na companhia de santo Ignacio, e perante esses varões respeitaveis, virtuosos e santos, cuja veneração guardava no intimo do peito.

Não ousava approximar-se ao Jesuita, e nem perturba-lo nas suas occupações. Esperou que o padre por si mesmo lhe percebesse a presença, e lhe dirigisse a palavra, o que não tardou em realisar-se, Virando-se por acaso Antonio Vieira, vio de pé, em attitude submissa e quieta, aquelle vulto, e perguntou-lhe{201} o que queria, sem fazer um gesto e nem mover-se do assento.

—Sou Portuguez, e preciso fallar á Vossa Reverendissima,—respondeu-lhe humildemente.

—Como vos chamais?—continuou o padre pela mesma maneira com que lhe fizera a primeira pergunta.

—Manuel de Moraes é o meu nome,—disse-lhe acanhadamente o desgraçado.

Levantou-se subito Antonio Vieira da sua poltrona, avançou alguns passos para o sitio em que estava Moraes, encarou-o com cuidado e perspicacia, e dirigio-lhe as seguintes palavras:

—Conheço-o bem. Tome banco, e communique-me o que deseja.

—Nasci em São Paulo,—proseguio de pé Moraes, não ousando obedecer ao padre, que lhe ordenára de sentar-se.

—Sei, sei,—interrompeu-o o Jesuita.—Não{202} precisa desdobrar paginas que o devem amargurar. Sei toda a sua vida.

—Pois se o reverendo padre a sabe,—continuou Manuel de Moraes,—inutil é que eu o incommode e roube o tempo.

E um signal de despeito se espalhou por toda a sua physionomia, o qual Antonio Vieira penetrou immediatamente, e traçou de desfazer com certo affecto, e sorriso meigo, que lhe morreu nos labios, apenas elles o denunciárão.

—Não tem razão,—disse-lhe o Jesuita.—Abanque-se, e conversemos. Eu pertenço ao Instituto de santo Ignacio de Loyola. Parece que da sua memoria se não varreu ainda o procedimento dos servos de Deos, que o educárão em São Paulo. Nutre contra elles algum motivo de queixa?

—Oh não!—exclamou Moraes.—Deixárão-me gravadas eternamente no espirito e no coração as mais saudosas lembranças. Mas eu{203} reverendo padre, illudi-me, pensando que não nascêra para os santos misteres da companhia. Um espirito inimigo me arrancou do seu socegado e glorioso asylo. Aquellas virtudes primorosas, mas asceticas, aquella vida exemplar de sacrificios constantes e de devotação solitaria em pró dos homens, parecêrão-me superiores ás minhas aspirações e forças. Faltou-me a vocação, a fé, a persistencia do animo. Preferia servir a meus pais no lar domestico, coadjuvar minha familia nos meneios da vida, e pertencer ao mundo. Repellio-me meu pai... Entreguei-me ás aventuras. Atravessei desertos. Cahi prisioneiro...

—Isso nada é—cortou-lhe o Jesuita o discurso, carregando o sobrolho; apertando os labios, e reganhando o aspecto da severidade.—Ahi não ha crime ainda... ha desgraças apenas.

—Perdôe-me o reverendo padre,—gritou{204} soluçando Moraes, e atirando-se ao chão.—Tem razão. Tem toda a razão. Mas Deos não perdôa quando ha arrependimento sincero e firme? Arrependo-me, arrependo-me. Passou-se a época das loucuras. Estou preparado para todos os sacrificios que possão remir os meus crimes. Ancio por confessar-me, fazer quantas penitencias me recommendarem, soffrer as penas que me impuzerem, comtanto que volte á minha santa religião, unica que reconheço por verdadeira, e possa regressar para a minha patria, para o seio dos meus parentes, e para a santa companhia, acabando os meus dias no serviço de Deos, e esperando o seu perdão na eternidade!

Fixou n'elle o padre olhares vibrantes e perscrutadores. Quiz ler-lhe na consciencia, descer-lhe ao fundo d'alma, e descobrir a verdade da retractação e sua espontaneidade. Não se tratava de um gentio selvagem,{205} puro e innocente, nomade e ignorante, despido de idéas sociaes e religiosas, que Antonio Vieira encontrára em multidão errante no seio das florestas brazileiras, e que elle sabia tão perfeita e carinhosamente affeiçoar á grei catholica, chama-lo á religião santa de Christo, e fazer-lhe abraçar de um trago o baptismo com a fé, não guardando no coração pensamento adverso ou malicioso. Fôra Antonio Vieira um missionario magistral, e se habituára a considerar o indigena das solidões da Bahia, do Maranhão e do Pará como uma criança, que aceita sincera e convencidamente os conselhos do religioso provecto, e se lhe dedica com todo o fervor ingenuo da alma e do espirito. Outra era porém a situação de um Portuguez, que esquecêra o seu culto, postergára os seus deveres religiosos, e apostatára da sua fé, trocando-a pelas doutrinas dissidentes e schismaticas que perdião o mundo. Mais difficultosa e grave{206} era ainda a sua posição, tendo em presença um homem que elle sabia instruido, intelligente, e atormentado de paixões tumultuosas.

—Manuel de Moraes,—disse-lhe o padre, erguendo-se como o sacerdote, e tomando a attitude que cabia a quem não fallava já como homem, mas obrava como representante de Deos e da Igreja.—Como posso dar credito ás vossas vozes, quando contra vós proclama uma serie constante de procedimentos indecorosos, uma lista de crimes infamantes?

—Não proclama só, reverendo padre,—retorquio-lhe Moraes;—condemna-me até com força e verdade; sei-o eu mais que ninguem. Daria porém este passo por interesse? O que me falta na vida, se a pretendesse continuar como até agora?

—Sois ardiloso,—disse-lhe o Jesuita.—Conheço-vos muito pelos vossos escriptos, e pela fama dos talentos que Deos vos concedeu. Como patriota, não nutro a menor duvida,{207} porque a defesa que publicastes da nossa revolução de 1640 o certifica de sobejo. Não basta porém isso... não... A religião é superior a tudo. O que é patria, sociedade, familia, homem, sem a religião de Christo, dos seus apostolos, dos seus santos canonisados, da sua Igreja universal e eterna, do seu representante na terra, que é o Summo Pontifice de Roma? Fragil tudo, barro incolor e imprestavel, materia inerte, selvageria miseranda, animalia bruta. Aos interesses mundanos se antepõem as aspirações sagradas e as cousas divinas. Ao homem a familia, á familia a sociedade, á sociedade a patria, e á patria a religião unica e verdadeira de Deos, que é a catholica apostolica romana, da qual são servos humilissimos os socios e discipulos de santo Ignacio, que abandonastes e renegastes!

—É sincero, meu padre,—continuou Moraes,—é sincero o meu arrependimento. Torturão-me{208} os remorsos. Não me deixe morrer sem retractar-me, e expiar os meus crimes. Não me deixe finar nas penas do inferno, que me devastão, assolão e martyrisão já. Tenha piedade. Guie-me. Ensine-me o caminho da esperança, que allivia, quando mesmo não salve!

Forão estas palavras acompanhadas por tão abundantes lagrimas que inundárão o semblante de Moraes, e proferidas com accento tão enternecido e convencidamente profundo, que o Jesuita se impressionou em pró do penitente, e arrancando do pescoço uma enorme cruz pendida de um rosario que o ornava, apresentou-a a Moraes, que a beijou incontinente com fervoroso affecto, e dando evidentes demonstrações de arrependimento consciencioso.

—Levanta-te, peccador!—disse-lhe o padre, e abrindo uma porta, que lhe apontou com a mão, continuou:—Eis alli um oratorio.{209} Alli está a imagem de Deos. Curva-te diante d'elle, dirige-lhe tuas preces, e pede o teu perdão.

Ergueu-se Moraes de subito, correu para o oratorio annunciado, transpôz a porta, e atirou-se de joelhos diante de um altar allumiado por uma lampada de prata e quatro velas de cêra, que lançavão um clarão funebre e merencorio.

Estava em cima do altar um grande quadro representando Jesus crucificado. Gottejava-lhe o sangue das mãos, dos pés, e das numerosas feridas de que tinha o corpo atravessado. Serenidade celeste e magestosa lhe pairava por sobre as faces esbranquiçadas. Dos olhos amortecidos partião raios vivazes de innocencia, pureza e santidade ineffavel. Parecia proclamar ainda ao mundo as verdades eternas, a moral e a fraternidade humanitaria. Pintava-se agarrada aos pés da cruz a afflicta Mãi, carpindo a dôr que lhe{210} dilacerava o peito, e lhe raiava sublime pelas faces enternecidas. De um lado do quadro a grande figura de santo Ignacio de Loyola prégava a disciplina e o enthusiasmo para combater o protestantismo. São Pedro, do outro lado, mostrava as chaves do céo, e cingia a tiára augusta dos Pontifices de Roma, cabeça da Igreja catholica.

Sentio Manuel coar-lhe pelas veias como que um lenitivo, senão jubilo, diante d'essas santas imagens. Despio-se a sua alma do sopro frio e secco do calvinismo, aquecendo-se ás chammas mysteriosas do culto salvador e misericordioso. Não lhe esquecêrão orações enternecidas, preces da mocidade, e sinceras demonstrações de convicção e fé. Sorrio-lhe a esperança, a vida, a eternidade sob nova physionomia. Rasgou-se-lhe aos sentidos, e ao espirito, um vago, diaphano e indefinido futuro, que já não era o da desesperação, como até então antevia, e com que tanto se assustava.{211}

Tempo bastante deixou-o a sós o padre Antonio Vieira na posição de peccador e penitente. Aproveitou Moraes esse espaço, saboreando-o a tragos apraziveis, inundando-se de esperanças prazenteiras, e reganhando a fé perdida, que se lhe entranhou profundamente, e se apossou de sua mente inteira. Dir-se-hia outro homem, mudado, metamorphoseado, crente, e ancioso de entregar-se ao serviço de Deos eterno, e da sua Igreja universal, para remir por meio de todos os sacrificios, que o não aterrorisavão já, os seus peccados e crimes, e alcançar a sua salvação eterna.

Chegou-se a passos vagarosos para o pé d'elle o celebrisado Jesuita. Percebeu-o absorto na contemplação celeste, raiando-lhe o semblante com uma alegria extraordinaria, dedicado fervorosamente á adoração, entregue a pensamentos puros e divinos. Admirou-o na sua contricção, e convenceu-se de que provinha o seu arrependimento de espontaneidade{212} e sinceridade da consciencia, e que o catholicismo e a companhia de Jesus ganharião muito com a abjuração da sua apostasia.

Estava o padre acostumado a assistir a arrependimentos serios, e a devoções preciosas e inspiradas subitamente depois de uma carreira lamentavel de crimes, como se a Providencia divina prezasse sacar do mal infindo o prestimoso bem, e mostrar que a retractacão convencida e conscienciosa conseguia o esquecimento de peccados horriveis, e salvava os infelizes que, recuados dos seus impetos de loucura, se soccorrião á sua inextinguivel piedade.

Não iniciára o proprio santo Ignacio de Loyola a sua vida tormentosa no turbilhão de feitos escandalosos? Não se convertêrão em seus discipulos e se tornárão exemplares de virtudes selectas individuos exaltados repentinamente pelas obras meritorias e gloriosas dos padres da companhia? Não se recrutára{213} e resplandecêra o Instituto algumas vezes com peccadores que se reputavão perdidos, e que uma vida nova de sacrificios attrahira á salvação das suas almas, e ao serviço heroico e humanitario da companhia? Não conseguira Madgalena ser por fim canonisada santa da Igreja, após enormes acções, que a prostravão na miseria degradante e infima?

Era por demais avisado o Jesuita para se enganar em presença de manifestações tão expressivas, e para deixar perder-se uma occasião tão propicia, que offerecia ao Instituto recuperar uma intelligencia primorosa, e um sujeito ornado dos mais bellos e distinctos dotes e qualidades.

Não lhe bastavão os triumphos adquiridos nos sertões do Brazil sobre tribus inteiras de gentios desgarrados e errantes, que chamára ao gremio da igreja santa. Não se reputava o Instituto devotado exclusivamente á catechisação{214} e civilisação dos selvagens dos desertos americanos, como praticavão ainda os discipulos de santo Ignacio, expondo-se corajosos e enthusiasticamente á fome, á sede, ás perseguições, ás frexas envenenadas dos gentios, e á morte cruel, que alguns encontravão na solidão das mattas virgens; nem tambem a conseguir abjurações de rajahs e povos idolatras da Asia, como São Francisco Xavier, apostolo das Indias. Mais poderosa aspiração e ambição mais elevada lhe exaltavão e dirigião o animo. Anciava por ver a companhia alçar-se em prestigio na Europa, combatendo com denodo os schismas que rasgavão a Igreja Catholica, domando as autoridades civis, superintendendo os soberanos, e impondo-se ao poder temporal, e á marcha dos governos. Verdadeiro revolucionario politico e religioso, empregava a penna escrevendo constantemente e publicando umas sobre outras obras primorosas, e não poupava a palavra, fallando dos{215} pulpitos aos reis, aos nobres, ao clero, e ao povo, que se apinhavão nos templos para ouvi-lo prégar, e admirar-lhe a portentosa eloquencia, e a instrucção variada e interessante. Convencido de que a companhia de Jesus era um instrumento da Igreja e do Papa, não repousava em seus trabalhos. Conseguira fazer resoar os templos da Bahia, de Lisboa e de Roma sob os échos agradaveis e harmoniosos de sua voz admiravel, e gemer os prelos typographicos com a tarefa ininterrompida de manufacturar os seus livros. Recebêra missões secretas e politicas de Dom João IVº de Portugal para Roma, França e Hollanda, e em pró do seu paiz negociava ainda allianças de nações estranhas, que o ajudassem contra Hespanha.

Despedia a sua palavra o fogo sagrado. Queimava como incendio, feria como punhal afiado e agudo. Seduzia, arrastava, captivava, e enchia ao mesmo tempo de encantos os ouvintes{216} todos. Manifestava a sua penna uma logica cerrada, um estylo pomposo e correcto, uma cópia espantosa de erudição, e imagens apropriadas, interessantes e arrebatadoras.

Alma grande, sublime espirito, eloquencia superior, corpo affeito a trabalhos e fatigas, indifferente a perigos, devia justamente passar o padre Antonio Vieira, nascido em Lisboa, criado e educado na Bahia, por um dos homens mais extraordinarios que tem o mundo produzido: meio Portuguez e meio Brazileiro; meio civil e meio religioso; meio patriota e meio romano; gozou devidamente em sua vida de uma fama universal e legou á posteridade um nome de engenho selecto, grandioso e admiravel.{217}

CAPITULO XI

Notámos já que o padre Antonio Vieira, percebendo a sinceridade dos passos e desejos de Manuel de Moraes, se chegára para elle, posto o não interrompesse na sua adoração mystica. Logo porém que percebeu occasião opportuna, se apresentou-lhe á frente, lançou-lhe uma benção paterna com apparatosa solemnidade, e ajoelhou-se igualmente a seu lado, rezando com devoção, e implorando a misericordia divina em pró do acolhimento no gremio da sua Igreja da ovelha desgarrada{218} do rebanho, e que espontanea e convencidamente voltava para viver e morrer no seio d'elle.

Erguendo-se depois, disse a Moraes em tom resoluto:—Approxima-te do confessionario, ajoelha-te perante o sacerdote de Deos, e revela-lhe todo o teu coração!

Obedeceu-lhe Moraes. Sentou-se o Jesuita no confessionario, e a seus pés se prostrou o penitente. Longa foi a confissão com o summariar de aventuras, erros, peccados e crimes de acção e intenção que formárão a vida do renegado. Interrompião-na a miudo soluços magoados, abundantes demonstrações de dôr, e jorros de lagrimas que lhe saltavão dos olhos. Quando a terminou Moraes, levantou-se o Jesuita, cravou as suas vistas no altar, como quem lhe pedia conselhos ou auxilio, e balbuciou preces repetidas. Benzeu depois ao penitente, e designou-lhe a penitencia que lhe cabia para encetar a vida nova{219} que se lhe destinava. Deixou-o ainda no oratorio, e retirou-se para o seu aposento enternecido, e ao mesmo tempo contente e satisfeito com o que se passára, como de um feito importante que lhe devia augmentar os serviços e a gloria!

Mudou inteiramente Manuel de Moraes. Posto conservasse aspecto triste e meditabundo, recuperára o repouso d'alma e do espirito, e com elle o do corpo. Intima alegria lhe proclamava o acerto da sua nova abjuração, que tornou publica, segundo as ordens do padre Antonio Vieira. Cumprindo com os seus deveres religiosos, parecia-lhe que alliviava o animo de um peso insupportavel, que o acabrunhava outr'ora constantemente. Rompeu com o mundo que o rodeiava, cortou as relações e conhecimentos que possuíra, e o padre, a igreja e o estudo occupárão d'ahi por diante e exclusivamente todos os seus momentos. Estimava-o o Jesuita, prezava-o já,{220} e recommendou-lhe escrevesse uma historia da America portugueza, que elle conhecia perfeitamente, e com referencia em particular ás invasões e occupações dos Hollandezes, cuja lingua praticava, e cujos livros lia com facilidade. Quando lhe considerou completa a abjuração, annunciou-lhe a necessidade de partir para Lisboa, afim de ahi reentrando para a companhia de Jesus, e logrando o seu perdão do soberano, e permissão do provincial, passar-se para o Brazil, e dedicar-se com fervor á catechisação dos gentios.

—Cumpre rehabilitar-te,—disse-lhe,—n'aquella sociedade e n'aquelle governo. Encontras nas capitanias do Brazil trabalhos escabrosos, fadigas superiores, perigos incessantes, e talvez a morte cruel amarrado a algum cepo, ou ao sibillar de uma frexa de gentio selvagem. Mas liquidarás as contas dos teus peccados com os sacrificios e feitos honrosos que commetteres. O Deos misericordioso{221} te acolherá nos seus braços divinos. Não hão de ser só os Brazis que te hão de pôr á prova de calamidades e amarguras, de resignação e paciencia. Maiores incommodos te causaráõ os brancos europêos, e a sua raça americana, que anhelão unicamente accumular riquezas, captivando, roubando e destruindo os infelizes gentios, sem freio moral e religioso. Acima d'elles estão ainda o governador e as autoridades da colonia, insaciaveis, perseguidores, tyrannicos, despoticos, para quem não ha lei humana ou divina, e com quem terás de arrostar, no serviço da companhia de Jesus, e na pratica das virtudes christãs e dos dogmas e disciplina da Igreja. Precisas encher com feitos heroicos e meritorios do corpo e do espirito as paginas negras que lavraste no livro da tua existencia atormentada e virtiginosa. Não bastão a fé e a convicção conscienciosa para com Deos e os homens, volvendo dos erros e{222} crimes para o caminho da verdade. Tornão-se indispensaveis muitos exemplos de virtudes e serios sacrificios para te restaurarem no conceito geral, e perante o Eterno. Eu tambem atravessei desertos e mattas virgens, subi montanhas, transpuz rios caudalosos, avassallei distancias abandonadas, só, inerme, confiado na cruz de Christo que trazia ao peito, vigorado pela fé, e fortificado pelos desejos de commetter serviços em pró da religião. Avistei-me com tribus nomades de gentio desconhecido. Senti armar-se o arco, desprender-se a frexa, roncar a tacape por cima da minha cabeça, roçando-me os cabellos com sibillos horriveis e aterradores. Achei-me amarrado ao tronco da arvore, despido das vestes e exposto á morte mais tormentosa. Vi-lhes as velhas nojentas, chegando-se para mim com as suas cabaças, sequiosas do meu sangue, bezuntando-me o corpo com tintas vermelhas e pretas, dansando horrivelmente{223} em torno como megeras, retorcendo-se como serpentes damnadas, e gritando como espiritos do inferno. Escapei aos perigos por milagre de Deos, e catechisei numerosa cópia de Brazis desgraçados, que á minha palavra se ameigavão, á minha voz abandonárão a sua vida errante e seus costumes selvagens, e aos meus conselhos e exhortações recebião o baptismo, e abraçavão a religião catholica e a vida social, sahindo da miseria e da perdição. Formei muitas aldeias de indigenas catechisados, que se tornárão tão bons ou melhores catholicos e vassallos que os proprios conquistadores do seu paiz e das suas terras. Nada d'isso me curtio de dissabores, e nem me pareceu pesado sacrificio. Mas os Portuguezes aventureiros, e principalmente os governadores, capitães-generaes, capitães-móres, autoridades, e empregados publicos da metropole, forão,—sim,—a pedra de toque de minha humildade{224} e paciencia. Eis a vida do Jesuita missionario. Homem, não pertence á humanidade senão pelo lado espiritual, e á sociedade senão pela vida dos sacrificios. Padre, não vive no descanso do claustro e no repouso da communhão. É propriedade dos desertos, das missões longinquas, dos perigos, das almas perdidas dos gentios, da morte ingloria no meio das brenhas. Não são d'este mundo os seus bens e gozos. Lembra-te de José de Anchietta ou de Manuel da Nobrega. Caminha em vida para o céo através de cachopos levantados a cada instante diante de teus passos, e a teu lado, afim de te provarem a devoção, e te apurarem o sentimento humano. Avança sem dobrar o collo, sem perder a resignação evangelica, sem renegar a piedade, sem esquecer a caridade christã, sem conhecer o desanimo, e nem olhar para trás de ti. Envolve-te em manto novo, e regressando para a companhia de Jesus, ennobrece-te{225} e exalta-te no serviço da Igreja e na propagação da fé catholica com feitos meritorios e gloriosos. Será a penitencia reservada ao teu arrependimento, e o balsamo que mitigará os teus remorsos.

Aprazia a Moraes esta linguagem do padre venerando e insigne. Coincidia com os seus desejos. Nada o apegava mais á terra hollandeza. Havião findado os seus amores e os seus deveres sociaes, com o passamento d'aquella creatura humana que o encantára e enfeitiçára com tamanha força. Não o prendia o tumulo, que lhe cobrira os restos mortaes, posto ahi corresse de quando em quando a lançar-lhe flôres doridas de saudade, porque o coração lhe dizia que fôra a hallucinação apaixonada, que se havia apoderado de todos os seus sentidos, a causa da primeira e fatal abjuração religiosa, que lhe pesava constantemente sobre a alma.

Occorrêra além d'isso que Brodechevius,{226} a quem consagrava affecto filial pelas suas qualidades virtuosas, e pelo acolhimento com que sempre o favorecera, não lográra resistir á morte de Beatriz, e conservar-se no mundo. Arrebatára-o a morte mezes logo depois do infausto acontecimento. Que lhe restava em Hollanda, a que mais se chegasse?

Soárão-lhe os conselhos e exhortações do padre Antonio Vieira como uma esperança mais para se conciliar com Deos e com a Igreja. Abrindo-lhe a companhia de novo os braços, regressando para o seu gremio, dedicando-se ao seu serviço, volvendo para a sua patria, não conseguiria rever os pais e a familia querida, receber o seu perdão igualmente, e gastar os ultimos dias de vida de um modo util, proveitoso e santo?

Não o aterrorisavão os trabalhos e sacrificios que se lhe reservavão. Não temia os perigos da tarefa de missionario, porque elles o exaltarião no amor de Deos, e o{227} fortalecerião na fé do culto catholico. Não poderia commetter feitos que lhe remissem os peccados, e afeiçoassem a misericordia divina?

Preparou-se para partir, abandonando Hollanda para sempre. Não podendo seguir por terra e embarcar-se em qualquer porto de França, por causa do dominio castelhano na Belgica, tomou passagem em um navio hollandez que seguia de Rotterdam. Recebeu cartas de recommendação do padre Antonio Vieira para o provincial dos Jesuitas em Portugal, para alguns funccionarios importantes e fidalgos distinctos em Lisboa, e particularmente para Dom Francisco Manuel de Mello. Despedio-se do Jesuita seu protector, que tinha de partir para Munster, no serviço do seu soberano.

Não quiz esquivar-se á obrigação de dizer o ultimo adeos áquella que lhe dominára em vida o coração e o espirito, e o hallucinára{228} a ponto de perder a sua razão e comprometter a sua alma. Seguio para Amsterdam, que lhe recordava acontecimentos que lhe parecêrão felizes a principio, e se lhe tornárão depois tão dolorosos e infaustos. Dirigio-se para o cemiterio, aonde parava a sepultura querida. Ornava-a uma columna de marmore, cercada por uma grande cadeia de ferro. Em grandes lettras douradas se esculpira o nome de Beatriz de Moraes, com a data do seu nascimento e da sua morte. Pallidas roseiras lhe vicejavão em torno, e um cypreste sombrio lhe deitava por cima os galhos dispersos e desordenados. Rodeiavão a grade pequenos arbustos, brotando flôres merencorias nas estações competentes.

Impressionárão-lhe profundamente o aspecto do tumulo, o silencio que reinava, e as reminiscencias que lhe assaltárão o animo. Approximou-se com respeito, e rebentárão-lhe dos olhos prantos amargurados. Ajoelhou-se,{229} dirigio suas preces a Deos, e atirando-lhe em cima ramos de flôres saudosas, exclamou enternecido:

—Mulher adorada! uma fatalidade inesperada nos reunio, uma louca paixão nos enlaçou, um crime nasceu do nosso amor! Fomos mutua causa das nossas desditas e calamidades. Assim nos perdôe Deos no mundo da eternidade, para o qual já te passaste, e aonde não tardarei a seguir-te! Só Deos é grande!

Lançou-lhe um derradeiro olhar. Tinha cumprido com os seus deveres. Affrontára a provança cruel, e a dominára com força.

Embarcou-se em Rotterdam para Lisboa.

Atirárão os mares por vezes o miseravel baixel sobre as costas de França e de Inglaterra, ao atravessar o canal perigoso que as separa, e aonde os ventos se encrespão com tanta furia, e se desencadeião com espantosa e repetida violencia.{230}

Dobrado o cabo de Finisterra, não o poupou o golpho da Gasconha, celebrisado pelas suas constantes tormentas. Ondas precipitadas, correntes de agua, e furacões desordenados, parecião pretender devorar o galeão e os seus hospedes imprudentes.

Vencêrão os nautas todos os perigos. Ao entrarem porém no Oceano, dir-se-hia ainda que as costas de Portugal os repellião, enviando-lhes ventos impetuosos de leste, que os arrastavão para o largo. Mais de quarenta dias despendêrão até que lograssem avistar as montanhas de Cintra. Aproárão á barra do Tejo, com os mastros do galeão partidos, velas rasgadas, cortado em pedaços, e falta quasi completa de alimentos e aguada. Dobrárão felizmente o cabo, e penetrárão dentro das aguas mansas do rio, e no meio das fortalezas que o guarnecem e vigião.

Saltou Manuel de Moraes, e soffreu, como era habitual do tempo, infindos e minuciosos{231} interrogatorios, e visitas rigorosas. Dirigio-se para a casa da companhia de Jesus, e se apresentou ao provincial, que, ao tomar conhecimento das recommendações do padre Antonio Vieira, o acolheu com benevolencia e carinho, ainda que com sorpresa e susto.

Não terião decorrido duas horas depois que se abrigára ao Instituto de santo Ignacio, quando soldados armados, e fâmulos cobertos com as insignias do Santo Officio da Inquisição, se apresentárão á porta da casa santa, exigindo fallar ao provincial, e derramando espanto no claustro e em todo o povo da vizinhança.

Levados á presença do veneravel sacerdote, intimárão-lhe uma ordem do tribunal, reclamando a entrega de Manuel de Moraes, chegado de Hollanda, e asylado na companhia, réo dos crimes de abjuração e apostasia, e sujeito á jurisdicção do Santo Officio.

Conferenciou o provincial com varios padres{232} respeitaveis e illustrados sobre o que lhe convinha praticar em honra do Instituto e em defesa dos seus direitos. Concordárão todos unanimemente, que offendia os fóros e privilegios da companhia a ordem inaudita do tribunal da Inquisição, mas lhe não podia o provincial oppôr resistencia, cumprindo-lhe apenas entregar o preso, e dirigir os seus protestos ao governo e ao soberano, afim de reinvindica-lo como membro do Instituto, e julga-lo segundo os seus regulamentos, quando se lhe imputassem crimes dignos de punição e castigo.

Executou-se a ordem do Santo Officio. Sahio Manuel de Moraes da casa da companhia de Jesus, e se passou para o poder da Inquisição. Corria então o anno de 1645.{233}

CAPITULO XII

Estava então o edificio da Inquisição no largo do Rocio, assoberbando a praça com os seus muros tristes de pedra, e suas portas robustas de ferro. Formava uma massa disforme, mas grandiosa, sem bellezas architecturaes, mas de aspecto imponente e fortificado.

Destacado no fundo do Rocio, rodeiado de soldados e guardas, que velavão noite e dia, contendo as salas do tribunal, os carceres, as cellas dos presos, os quartos dos tormentos{234} e torturas, e os aposentos das penitencias, afugentava o palacio de perto de si e dos seus arredores as massas tranquillas do povo, que o não avistava sem benzer-se devotamente e tirar-lhe o chapéo com respeitoso acatamento, temendo suspeitas e castigo.

Nem pedras restão hoje do barbaro edificio. Uma por uma forão pela população exasperada de Lisboa distrahidas do seu lugar, arrancadas á força, e dispersas em desordem, quando as côrtes constituintes de 1821 abolírão a instituição do Santo Officio, e extinguírão para sempre o tribunal execrando.

Por cima do palacio da Inquisição levanta-se actualmente o lindo theatro de Maria II, fazendo substituir o riso, os prazeres e os divertimentos alegres, ás scenas de dôres e de sangue commettidas outr'ora dentro d'aquelles muros enfumaçados, e que nodoárão as paginas da historia portugueza.

Foi Manuel de Moraes para alli conduzido.{235} Ao penetrar os umbraes da porta principal por entre fileiras de guardas armados, ao avistar a enorme estatua de pedra da Fé, que resplandecia no topo da grande escada, sentio coar-lhe pelo sangue um frio intenso, e anuviar-lhe o espirito cogitações tenebrosas.

Atravessou varios páteos escusos e sombrios. Desceu e subio diversas escadas allumiadas apenas pelo frouxo clarão de lampadas pregadas no tecto. Ouvio ranger gonzos pesados de portas, que se abrião e fechavão. Respirava-se dentro um odor infecto, que parecia exhalação de cadaveres. Dir-se-hia que as paredes gottejavão sangue humano, e gemidos de infelizes creaturas echoavão pelos longos corredores abobadados. Trajavão os empregados vestes iguaes, resplandecendo-lhes ao peito uma grande cruz pintada de côr amarella, e cobrindo-lhes as cabeças um capuz que lhes escondia as faces.{236}

Reinava uma lugubre tristeza, um horror extraordinario, que se entornava por todos os sitios e reconditos do edificio, e amedrontava os sentidos dos entes malfadados que alli penetravão.

Depois de muitas voltas, e palavras baixas trocadas entre os guardas e empregados, achou-se em um negro corredor, aonde se não adivinharia caminho se o não aclareasse opacamente uma lampada acesa, collocada no centro. Abrio-se a um dos lados uma porta de ferro, e foi Moraes introduzido em um quarto pequeno, baixo, despido de ar e sombrio, que se reputaria antes um sepulcro, cavado como que em rocha viva e humida. Trancou-se-lhe a porta, apenas elle entrou para esta prisão solitaria, que com difficuldade agazalharia duas pessoas juntas. Não havia um leito, e nem-um traste. A unica cousa que se apercebia era um pucaro de barro, que parecia cheio de agua, a um canto{237} da cella. O chão de tijollo servia de assento e uma porção de palhas espalhadas formavão a cama. Negra escuridão o rodeiava, vasando-lhe ás vezes por uma fresta aberta na parte superior da muralha um ou outro raio da lampada do corredor contiguo, que descobria o preso aos guardas, que alli vigiavão todas as acções e gestos dos presos, e lhes ouvião os ais e palavras, por maiores cautelas que as victimas empregassem em abafa-los.

Só e n'esta penosa posição, se entregou Moraes a um exame minucioso do sitio em que se achava. Percorreu com os olhos o chão, o tecto, as paredes. Deslumbrou aqui e alli dispersas manchas vermelhas que se dirião de sangue borrifado no meio do colorido enfumaçado e sujo, e hieroglyphicos sensiveis que se afiguravão traçados por mãos humanas. Subírão-lhe á mente assombrada pensamentos amargos e tristonhos. Seria sangue dos réos do Santo Officio que{238} salpicava aquellas paredes? Serião adeoses ao mundo que elles alli escrevêrão, e que já nem erão decifraveis? Appareceria algum nome, alguma data, algum signal, por onde se descobrisse o segredo que pretendessem legar aos posteriores?

Não logrou comprehender nem-um d'esses mysterios. Arripiou-se-lhe porém todo o corpo com o seu aspecto merencorio, e assomou-lhe ao espirito a historia tenebrosa do tribunal da Inquisição, que lançava o susto por toda a parte, e sobre todo o povo, e era tão geralmente execrado pelos seus crimes monstruosos.

Trouxe-lhe o cansaço o somno, porque a consciencia repousava tranquilla, desde que abandonára o calvinismo, e volvêra á religião dos seus maiores. O tempo que dormio não apreciou exactamente. As noites se confundirão com os dias, sem que um signal de maior ou menor luz ou claridade as deixasse{239} verificar, no seio das trevas constantes que inundavão monotonamente a cella solitaria.

Imaginava comsigo que raiava o dia quando, sem lhe abrir a porta da prisão, rolava pelas paredes arranjadas adrede um novo pucaro de agua, e uns pães seccos e duros, avisando-o uma voz cavernosa de fóra para os receber, tira-los do lugar, e substitui-los pelo pucaro da vespera, que se sumia logo com as mesmas mysteriosas cautelas, não ouvindo resposta alguma á pergunta que dirigisse.

Lembrou-se de contar as vezes em que se verificava esta operação, e pensou encontrar no seu numero a quantia dos dias de prisão. Mais de quarenta erão já decorridos, quando sentio rumor mais sensivel de passos e palavras baixas trocadas fóra da cella.

—A mim,—disse comsigo,—ou a outra victima vizinha procurão e buscão para os tormentos e torturas.{240}

Percebeu minutos depois abrir-se a sua porta. Ergueu-se, e vio apparecer um vulto coberto de manto longo e escuro. Tornou a porta a fechar-se, e achárão-se os dous cerrados um junto ao outro, quasi sem poderem fazer livremente um gesto, pela estreiteza do aposento.

—Sois Manuel de Moraes? perguntou-lhe uma voz mansa e socegada.

Pensou rapido o preso que tinha diante de si um dos juizes encarregados do seu interrogatorio e processo. O accento meigo e sereno com que lhe dirigíra a pergunta, significava de certo um dos estratagemas empregados pelos inquisidores, afim de illudir os presos, e leva-los, pelas palavras seductoras e fallazes a confessar-lhes confiada e loucamente os seus segredos, ou a revelar-lhes falsas narrações de imaginarios crimes.

Deliberado porém a dizer a verdade inteira,{241} fosse qual fosse o resultado, e a se não deixar enganar com promessas fascinadoras, respondeu ao vulto em tom resoluto.

—Não ha duvida que me chamo Manuel de Moraes.

—É vossa patria a povoação de São Paulo na capitania de São Vicente dos Brazis?—continuou o vulto a perguntar-lhe.

—É verdade,—repetio Moraes.

—Fostes noviço na companhia de Jesus? Abandonastes o Instituto e o habito?—continuou o vulto.

—Não posso, não devo, e nem quero nega-lo,—proseguio Moraes.

—E me não reconheceis?—disse-lhe o vulto, approximando-se do espaço atravessado pelo raio da lampada do corredor, e mostrando uma face macerada pelos annos e povoada de alvissima barba, uma cabeça despida inteiramente de cabellos, e a roupeta de Jesuita de que estava cingido.{242}

Encarou-o Moraes em vão. Não lhe recordárão os seus olhos o homem que tinhão diante de si. Traçou chamar em seu auxilio reminiscencias passadas. Nem-uma idéa o coadjuvou nos seus intentos.

—Não me é possivel,—respondeu-lhe amarguradamente; e depois de alguns momentos de silencio e de visivel anciedade, continuou:—Sem duvida querem os santos padres castigar-me pela minha fuga da sua casa, e vos envião para interrogar-me?

—Afastai do espirito,—replicou-lhe o Jesuita,—idéas tão erradas quanto insensatas. Nossa companhia aconselha, convence, e influe pela persuasão e consciencia. Não dobra vontades com a força physica. Não castiga rebeldes ou criminosos com penas corporaes, tormentos ou carceres. Deos todo poderoso é o unico juiz que reconhece para os delictos dos homens. Não estais preso por ordem do Instituto de santo Ignacio de{243} Loyola. Sois réo do tribunal do Santo Officio da Inquisição. Venho visitar-vos como amigo e antigo companheiro, conseguindo com custo as licenças necessarias para penetrar até esta prisão.

Profunda impressão produzírão sobre o desditoso Moraes essas palavras pausadas, e proferidas com uma uncção tão aprimorada, que lhe levárão certeza ao animo de robusta expressão de franqueza e verdade. Mas quem era esse homem que lhe fallava? Partia-lhe e agitava-lhe o espirito a idéa de não podê-lo descobrir e conhecer.

—Que quereis pois de mim?—disse-lhe meigamente.—Cheguei de Hollanda, trazendo cartas de recommendação do veneravel padre Antonio Vieira, que me protegeu e salvou do precipicio e da perdição eterna. Se sois Jesuita como proclamais, encontrareis na casa da companhia esses papeis e documentos, que lá deixei quando os famulos da Inquisição{244} me arrancárão da santa morada.

—Tomou o nosso provincial conta de tudo—proseguio o vulto com tristeza.—Entregou a cada um a carta que lhe era dirigida, afim de affeiçoar vontades e dedicações em pró de vossa pessoa e defesa. Infelizmente porém não vo-lo devo occultar, parecem-me inefficazes todos os esforços!

—Tenho de morrer!—proseguio Moraes.—Sinto-o tão cedo porque não expurguei ainda os meus grandes peccados e crimes. Desejára conservar-me no mundo o tempo só preciso para as penitencias e sacrificios. Mas Deos ouve o meu sincero arrependimento, e será de certo misericordioso para comigo!

—Ignorais que já vos condemnárão?—retorquio o vulto.

—Condemnado sem ser ouvido?—perguntou-lhe.

—Fostes denunciado ao tribunal do Santo Officio de Lisboa como herege e apostata,—continuou{245} o Jesuita.—Formou-se o processo, e lavrou-se a sentença. Apezar de ausente e refugiado em Hollanda, fostes relaxado comtudo em estatua no auto de fé de 6 de Abril de 1643, e inscripto o vosso nome no livro dos condemnados á morte.

—Nada me resta portanto no mundo?—exclamou Moraes.—Deixai-me então rogar a Deos tranquilamente nos poucos instantes que me sobrão de vida, para que me conceda a sua graça infinita!

—Ereis assim um réo já, e sujeito ao tribunal da Inquisição—proseguio o velho—quando ousastes vir a Lisboa, confiado na vossa nova abjuração, e na protecção do veneravel padre Antonio Vieira. Soube o Santo Officio que vos havieis recolhido á nossa casa, e reclamou-vos com a sua justiça.

—E o Instituto de santo Ignacio entregou-me, e abandonou-me?—murmurou Manuel com indicios visiveis de despeito.{246}

—Que póde contra a Inquisição a companhia de Jesus?—repetio-lhe o padre.—São tão diversas as funcções respectivas das duas oppostas instituições! Aquella cura da purificação da fé, e da orthodoxia romana, constituindo um poder temporal, formando um tribunal civil, com juizes, guardas, empregados, força publica, instrumentos de tortura, fogueiras, processos e execuções. Limita-se esta ao espiritual, e ás cousas sagradas, apenas incumbida de derramar as luzes e os dogmas pelo mundo. Quantos trabalhos lhe não tem custado salvar os Brazis da inquisição, que desejaria lá como em Portugal estender o seu dominio? Vivem a Inquisição e a companhia separadas por insuperaveis barreiras, em luta constante, porque uma deseja destruir e cortar a arvore molesta, emquanto pretendem os filhos de santo Ignacio que se cure apenas a parte imprestavel, e se aproveite e salve o tronco e os ramos{247} sãos, que podem dar ainda viço e fructos.

—Mande-me ao menos—interrompeu Moraes—um padre, um amigo fiel para me ouvir de confissão, e acompanhar-me nos derradeiros arquejos da existencia!

—E que vim eu aqui fazer?—perguntou-lhe o Jesuita em tom de queixa—para que penetraria por entre estes negros corredores, e chegaria até aqui, se não houvera recebido encargo particular do nosso provincial, e logrado licença do Santo Officio, para ver-vos, fallar-vos, e entreter-vos como membro da companhia de Jesus, que não desampara os seus discipulos?

—Obrigado! obrigado!—proferio Moraes, deixando-se cahir aos pés do padre, e esforçando-se em abraça-los com fervor.

—Levantai-vos, filho—continuou o vulto, tentando erguer o desgraçado e apertando-o nos braços—não é tempo ainda de confissão e preparativos do ultimo instante. Sou por{248} ora um amigo, que procura consolar-vos, e basta para que me presteis toda a vossa confiança recordar-vos de quem sou... lembrar-vos do passado...

Observou Manuel que sahírão estas palavras no meio de suffocados soluços, e inundava o rosto do amigo desconhecido um pranto amargo e copioso.

Por mais tratos porém que désse á memoria, não lhe foi possivel ainda assomar ao espirito pensamento algum que lhe recordasse aquella figura arruinada pelo tempo, aquella veneranda cabeça, aquella voz doce e attractiva, aquelles gestos bondadosos, que o convencião no entanto de que não o enganavão as expressões sinceras do seu respeitavel interlocutor.

Decorreu um silencio de alguns instantes, sem que nem-um d'elles ousasse interrompê-lo, até que o desconhecido, encostando-lhe a face, e imprimindo-lhe um beijo paternal na fronte, perguntou-lhe em voz clara e sonora:{249}

—Não me reconheces ainda? Continuava o animo de Moraes a embrulhar-se com o emmaranhado dos eventos da sua vida errante, sem que pudesse atinar com uma reminiscencia qualquer, que lhe rasgasse o véo que o assombrava de todo.

—Olha—proseguio o vulto, fallando vagarosamente, no intuito de avivar-lhe a memoria—olha em cima d'aquelle outeiro a casa da companhia de Jesus, com o seu risonho sobrado, a sua igreja contigua e a sua torre pittoresca. Adeja-lhe ao lado o arraial com suas casas de telha vermelha, e suas choupanas de palha amarellada, com suas ruas e beccos tortuosos, que trepão e descem outeiros um aos outros pendurados. Divisa do outro lado a cerca plantada de arvoredos fructiferos, de larangeiras, jaboticabeiras, e cajueiros, em cujos galhos canoros sabiás e pintados gaturamos saudão a aurora que nasce, o dia que desapparece, e o poder e a{250} grandeza de Deos, que se estende por toda a parte. Descobre abaixo da cerca, que povoa o outeiro até a sua base, esse riacho, que alli corre sereno e limpido, rumorejando sobre pedrinhas e humedecendo flôres sylvestres, que lhe brotão das margens alegres e festivas. Lança para mais longe os olhos, e lá pairão a planicie com suas mattas poderosas; o grande rio Tieté, que lhe rasga as entranhas; os morros da Penha, que em distancia arrebatão os sentidos, e terminão em soberbo amphitheatro. Sente essa atmosphera perfumada com as folhas movidas e balouçadas pelo brando zephyro, e que se não escapão jámais dos galhos das arvores carinhosas, e nem jorrão murchas pelo chão como succede na Europa durante a estação do outono. Nota esses gentios, côr de cobre, que enchem os templos em multidão, orão devotamente, respeitão e obedecem aos padres da companhia, e formão procissões religiosas. Não avistas a povoação{251} de São Paulo pelas lembranças, já que a não vêem mais os teus olhos? Não me reconheces ainda?

—Meu Deos, meu Senhor!—gritou Moraes.—Que feridas me rasga este padre, e não posso recordar-me d'elle!

—Alli em cima de um outeiro pousava tranquilla e retiradamente uma casinha branca, de telhas vermelhas,—continnou o vulto.—Morava n'ella José de Moraes com sua familia. Chamou-o Deos para perto de si antes que lhe perdoasse a imprudencia que commetteu, expellindo-te do seu alvergue.

—Morto é já meu pai!—desgraçado!—Basta, basta!—interrompeu-o Moraes.—Tende piedade de mim! dizei-me quem sois por compaixão!

—Não descobriste ainda?—repetio o padre.—Conto está obsecado o teu espirito com os successos portentosos da tua vida transviada!... Lembra-te, filho, do padre{252} que te disse: Desgraçado serás, porque a Igreja calholica é a razão divina, a unica salvação da creatura humana. Não encontrará descanso quem a trocar pelo oceano insondavel do mundo das miserias!

—Eusebio de Monserrate!—prorompeu em ancias afflictas Manuel de Moraes, e agarrando-se ao velho, foi desfallecendo, perdendo os sentidos, e cahindo sobre o chão frio do carcere.{253}

CAPITULO XIII

Apenas deixou o padre Eusebio de Monserrate os paços da Inquisição, encaminhou-se para a casa da companhia, e procurou o provincial.

Expôz-lhe com lealdade o que tinha succedido com Manuel de Moraes. Era sua opinião que a sua conversão ao catholicismo se baseava em sinceridade e espontaneidade d'alma, e fôra o seu arrependimento verdadeiro e consciencioso: poder-se-hia tornar um excellente discipulo de santo Ignacio, e prestar{254} relevantes serviços á religião e ao Estado.

Em relação no entanto ás suas pesquizas ácerca dos intentos do tribunal do Santo Officio, perseverava em desconfiança de que confirmaria a primeira sentença proferida em ausencia do réo, e não seria poupado o infeliz no primeiro auto de fé que a Inquisição designasse.

Lembrou ao provincial a necessidade de empregar todos os esforços e empenhos afim de salvar o noviço, avocando-o a companhia como sujeito á sua jurisdicção, e transfuga do claustro, para arranca-lo ao tribunal do Santo Officio. Para se conseguir esse fim, ninguem era de mais: Jesuitas, funccionarios publicos, ministros, nobres, bispos e officiaes da Igreja. Cumpria a todos promover os meios possiveis para attrahir a cooperação e a autoridade d'el-rei e da rainha.

Concordárão em procurar todos os seus{255} amigos, e aquelles individuos para quem trouxera Moraes cartas de Antonio Vieira, e pedir-lhes os seus auxilios efficazes. Escreveu o provincial ao padre Vieira, summariando-lhe os successos, e mostrando-lhe a urgencia de implorar do proprio soberano o perdão do noviço por uma missiva sua directa, empenhando todo o seu valimento.

Uma quantia numerosa de personagens importantes se achou dentro de poucos dias em movimento, e trabalhando em pró de Manuel de Moraes. O confessor d'el-rei e da rainha, Duarte Nunes de Leão, desembargador da casa da Supplicação, João Pinto Ribeiro, secretario privado do monarcha, e varios individuos mais de influencia. Não pôde infelizmente Dom Francisco Manuel de Mello concorrer, porque um fatal acontecimento o roubara á liberdade, e o arrastára aos carceres. Ninguem valêra mais que elle á sua chegada a Lisboa. Considerado pelos{256} seus escriptos primorosos, pelos seus feitos guerreiros no Brazil, Flandres e Catalunha, e pelos seus sentimentos patrioticos de nacionalidade e independencia portugueza, sacrificando honras e riquezas em Hespanha, e expondo-se a perseguições do governo de Castella, de cujas prisões lográra evadir-se, comprando os guardas que o vigiavão, e recolhendo-se a Portugal, travára por um acaso infeliz uma rixa em Belem com o aldeão Francisco Cardoso, e o matára exasperado. Estava por esse motivo processado e preso, cumprindo-lhe cuidar mais da sua salvação que do beneficio alheio.

Virão-se el-rei e a rainha circumdados de pedidos e empenhos para salvarem a Manuel de Moraes. Hesitava porém Dom João IVº em intrometter a sua autoridade, ainda não solidamente estabelecida em Portugal, em questões inherentes ao tribunal do Santo Officio.{257}

Saltára a sua corôa do meio de uma revolução. Sahíra o seu throno de um movimento popular, que fôra unisono no povo, e em maioria apenas na nobreza e clero. Era compellido a todos os instantes a abafar reacções e levantamentos dos que lhe não adherião ao governo, e perseveravão em obediencia a Castella. Via-se obrigado a castigar e punir com severidade fidalgos e bispos, que se lhe oppunhão, e tramavão contra a sua autoridade. Por demais forte se mostrava ainda Hespanha em referencia a Portugal, achando-se felizmente occupada em varios pontos dos seus dominios igualmente insurgidos, e laborando em guerra contra os seus exercitos numerosos, que divididos assim e dispersos, não alcançavão victorias assignaladas.

Cumpria portanto a Dom João IVº praticar na sua administração interior uma tal moderação, que não augmentasse a somma de difficuldades e perigos que lhe surgião{258} por toda a parte. Que valia a salvação de um noviço dos Jesuitas diante dos despeitos e lutas do Santo Officio, que exercia influencia nos animos populares, e ajudava até o seu governo nacional?

Sabia que os proprios fidalgos e principaes ecclesiasticos se honravão de pertencer á Inquisição, e de lhe servir de famulos. E não estremecia o povo todo diante dos seus actos e jurisdicção, reputando-a mais divina que humana?

Mais politico que sentimental se esquivava el-rei aos rogos dos seus mais dedicados amigos e conselheiros dilectos. Recusava-se as vozes da propria rainha Dona Luiza de Gusmão, que tomava o partido dos Jesuitas, apezar de quanta affeição e confiança tributava el-rei á sua extremosa consorte.

Sem a intervenção directa do soberano comprehendia Eusebio de Monserrate que perdidos serião todos os esforços empregados.{259} Esvoaçava por cima da sociedade portugueza da época o poder aterrorisador do Santo Officio. Ninguem o ousaria affrontar impunemente a não ser el-rei em pessoa, graças ao seu prestigio pessoal, e á necessidade que reconhecião os Portuguezes de sustentar-lhe a autoridade para poderem resistir ás forças de Castella, e restaurar a sua autonomia e independencia.

Espalhavão-se por toda a parte espias da Inquisição, adivinhando acções, gestos, palavras, pensamentos, para os denunciarem ao tribunal execrando. Dir-se-hia que as paredes tinhão ouvidos, olhos os trastes das casas, e lia a propria atmosphera no fundo d'alma os mais reconditos segredos, porque chegavão todos ao conhecimento do Santo Officio, que não tardava em expedir mandados de prisão, ordenar castigos, applicar torturas, formar processos, lavrar sentenças rigorosas, preparar forcas e fogueiras, espantando a{260} multidão supersticiosa com os espectaculos horriveis dos autos de fé, acreditados como sacramentos da Igreja.

Não escapavão á sua jurisdicção condições, nem classes da sociedade. Era o unico tribunal judiciario diante do qual desapparecião fóros e privilegios, e que curvava á sua autoridade velhos, moços, crianças, mulheres, aldeões, populares, obreiros, commerciantes, padres, frades, fidalgos, grandes officiaes da Igreja, titulares e validos do soberano.

Não desanimou todavia o padre Monserrate, e quantas mais difficuldades surgião adiante dos seus passos, quanto mais seus projectos se nullificavão, mais tratos dava ao espirito para lembrar-lhe novos meios a empregar, no intuito de conseguir o triumpho. Ardia-lhe no peito o amor-proprio de Jesuita, que não queria consentir na affronta de arrancar a Inquisição ao Instituto um seu noviço e membro, para o julgar e condemnar livremente.{261} Movia-lhe igualmente os affectos a sympathia que lhe ganhára Moraes desde os seus mais verdes annos. Accrescia a essas duas razões poderosas outra ainda de grande importancia para o padre. Não fôra sincero o arrependimento de Moraes? Não estava prompto a commetter todas as penitencias e sacificios que lhe exigissem? Não podia prestar serviços relevantes á religião, á companhia, ao Estado e aos gentios do Brazil? Não o perdoára Deos quando espontaneamente lhe infiltrára no animo a idéa de abandonar riquezas e posições honrosas em Hollanda, trajar de novo o habito da companhia, dedicar-se á vida trabalhosa e miseravel do missionario, volver á sua antiga fé e crenças religiosas, como a ovelha desgarrada que regressa para o rebanho, ou o filho perdido que reganha a casa paterna? Quando Deos se mostrára tão misericordioso, haveria justiça nos homens em condemna-lo?{262}

Proseguíra no entanto o tribunal no julgamento de Moraes. Revendo o antigo processo instaurado na sua ausencia, e annexando-o a novo summario, passou aos interrogatorios necessarios do réo, que por mais de seis dias seguidos fôra tirado do seu aposento e conduzido á sala dos juizes. Perguntas insinuantes a principio, argucias preparadas adrede e geitosamente, lhe forão dirigidas para o apanharem em contradicções, e confissões do que lhes convinha. Mas o preso se conservou inalteravel, sereno, sincero, igual e verdadeiro. Expôz com franqueza toda a sua vida, todos os seus erros e hallucinações, todos os seus peccados e crimes, e os seus remorsos e arrependimento espontaneo, que a propria alma gerára, robustecêra, e lográra verificar particular e publicamente.

Persuadidos os juizes de que conseguirião maiores esclarecimentos, ou factos que mais correspondessem aos seus intentos, com a{263} applicação dos tormentos usados contra as suas victimas, passárão das declarações voluntarias ás arrancadas por meio das dôres resultantes dos instrumentos de tortura.

Começárão pelos anginhos, doce e mimoso nome dado por irrisão a ferros que se collocavão aos dedos dos pés e das mãos, e os apertavão tão cruelmente que causavão soffrimentos horrorosos. Exigírão-lhe confessasse que volvêra apparente e maliciosamente á religião catholica, no intuito de se passar para o Brazil, e servir aos interesses dos Hollandezes, com os quaes se unira, para coadjuva-los nas suas invasões e conquista da America. Resistio Moraes com estoica resignação á barbaridade dos castigos, arrasando-se-lhe os olhos de lagrimas, e escapando-lhe dos labios o nome santo do Christo, que pela salvação dos homens padecêra martyrios superiores.

Não alcançando os juizes o seu fim, adiárão{264} para mais tarde a applicação de novos instrumentos, insinuando a Moraes que lhe era preferivel revelar a verdade espontaneamente a confessa-la á custa de soffrimentos agudos.

Não se apressava a Inquisição nos processos e julgamentos. Annos inteiros se demoravão em seus carceres presos innocentes ou culpados, accusados sem fundamento, suspeitos apenas, e ás vezes mesmo despidos do menor indicio de crime, sem que cuidasse o tribunal em adiantar-lhes as sentenças!

Não se contentando com factos materiaes, e procurando adivinhar intenções e pensamentos, carecia de ganhar tempo, rodeiando as suas victimas com uma espionagem vigilante, que visse e ouvisse o que ellas praticavão ou dizião. Aquelle por recusar-se a comer carne de porco em certos dias; este por soltar uma expressão de raiva ou despeito; um por commetter qualquer gesto que se interpretasse{265} malignamente; outro por não se benzer, ou rezar em horas determinadas: tudo lhe servia de inducção e prova para descobrir crimes, que imaginava o Santo Officio.

Seguírão-se aos interrogatorios e primeiras torturas os depoimentos de testemunhas, que declarárão ser voz geral e constante que Moraes se convertêra ao calvinismo, praticára nos templos protestantes todos os officios religiosos que lhes erão proprios, e se casára com uma mulher schismatica.

Anciosos de confissões mais amplas do réo, applicárão-lhe novos tormentos para o obrigarem pela violencia ás revelações necessarias. Suspendêrão-lhe o pescoço a uma argola pregada no muro, chamada gonilha, que levantando o corpo por uma fórma perpendicular, produzia-lhe uma posição dorida, difficil e quasi suffocadora, peior em soffrimentos que os mais barbaros castigos imaginados pelos tyrannos da idade média. Escalárão-lhe depois{266} as costas e os peitos com azorragues de arame, que o ensanguentárão todo.

Mas a victima se afigurava superior aos tormentos, e resignada á sua sorte. Repetia constantemente as mesmas declarações, e não offerecia elementos novos de duvida ou suspeita aos juizes cruentos.

Recebeu-o a final o leito de Procusto, larga taboa crivada de pregos agudos, á qual se lhe apertou o corpo estendido e deitado por cima. Desfalleceu ahi totalmente Manuel de Moraes, e perdeu os sentidos na cópia de sangue que lhe rebentava por todos os póros.

Foi carregado para a sua enxovia, e ahi deixado a repousar em uma esteira de palha mais macia, é tratado com mais cuidado para se lhe não esvair a vida antes da execução da sentença, e não escapar assim ao castigo publico e exemplar que lhe destinava o Santo Officio.

Lavrou-se a sua sentença. Confirmava em{267} todas as suas partes a do anno de 1643. Condemnava-o a sahir no primeiro auto de fé, coberto com as insignias do fogo, e a ser garroteado na praça publica por apostata, profitente e obstinado.

Chegou aos ouvidos dos Jesuitas a noticia da decisão. Intensa desesperação e despeito violento se apoderárão dos padres. Nem-um deixou de procurar os seus amigos, e de empregar os meios que lhe parecêrão proprios a nullificar a sentença do tribunal do Santo Officio. Applicárão-se os ultimos esforços para lograr d'el-rei uma ordem terminante em pró do infeliz noviço. Cartas do padre Antonio Vieira, conselhos e insinuações do confessor de Suas Magestades, avisos dos seus secretarios de estado, e do seu escrivão da puridade, rogos e empenhos dos fidalgos que o soberano mais prezava, nada alcançava todavia d'el-rei que sahisse da reserva que se havia imposto.

Assumio ao espirito de Eusebio de Monserrate{268} uma idéa aventurada. Conhecendo uma irmã de Moraes, por nome Dona Clara da Incarnação, viuva de um Portuguez que de São Paulo mudára a sua residencia para Lisboa, e carregada de numerosa familia, preparou-a para se lançar aos pés do soberano e da rainha, e implorar-lhe ella propria com todos os seus filhos o perdão do noviço. Concertou com o confessor d'el-rei em facilitar-lhe a entrevista no momento em que Dom João IVº e Dona Luiza de Gusmão seguissem para o oratorio a receber a communhão sagrada.

Combinado o projecto, cuidou-se em realisa-lo. Encaminhou-se para os paços reaes Dona Clara com seus filhos menores. Introduzidos por uma porta particular, achárão-se na passagem dos soberanos no momento designado.

—Piedade! piedade!—gritou toda a familia, arrastando-se aos pés de Dom João IVº,{269} e de sua augusta consorte, agarrando-os com força, e molhando-os com pranto acerbo e copioso.

Enternecêrão-se todos os circumstantes. Pareceu el-rei impressionado profundamente, e não pôde proferir palavra. A rainha, banhada em lagrimas, consolava a dama amargurada, que lhe entregou um memorial escripto, supplicando a graça de Manuel de Moraes. Representou-se a scena mais tocante e dorida. O confessor d'el-rei lhe lembrou que Deos era infinito em sua misericordia, e que os soberanos da terra não tinhão prerogativa mais bem aceita do céo e mais humana que o perdão, que os igualava quasi á Divindade. Prometteu Dona Luiza aos infelizes ouvir-lhes as vozes, e pedio-lhes se retirassem tranquillisados.

Não pôde então o monarcha recusar-se ás supplicas da sua consorte, e deixa-la faltar á sua palavra. Ordenou ao seu escrivão da puridade{270} expedisse ao tribunal do Santo Officio uma ordem terminante, em que, declarando haver el-rei perdoado Manuel de Moraes, lhe determinasse a entrega do preso á companhia de Jesus, como membro que era do Instituto, afim de que esta com penas menores o castigasse conforme julgasse conveniente.

Lavrado e assignado, foi o aviso entregue immediatamente ao Inquisidor geral, afim de executa-lo com o seu zelo reconhecido em pró da religião e do soberano.

Tremia no entanto o padre Eusebio de Monserrate. Obedecer-lhe-hião os juizes do Santo Officio? Não se consideravão superiores a todas as autoridades temporaes, baseando a sua alçada nos breves e determinações do Summo Pontifice de Roma? Não responderião a el-rei memorando-lhe a necessidade de expurgar a fé catholica, e de salvar o dogma; e se resolveria o monarcha a sustentar e fazer cumprir a sua{271} primeira deliberação, que mais ao sentimento intimo que á propria convicção lhe havia sido arrancada?{272}

CAPITULO XIV

Fixou e annunciou no entanto o tribunal do Santo Officio de Lisboa um auto de fé para o dia 15 de Dezembro de 1647.

Oito condemnados devião ser queimados nas fogueiras; dez se destinávão ao supplicio do garrote; trinta e quatro ao acompanhamento da procissão, cobertos com as insignias do fogo; tres relaxados em estatua por ausentes e fugidos.

Agitou-se e alegrou-se a população de Lisboa com o aviso do espectaculo que se lhe{273} preparava. Ninguem ousaria deixar de assistir a essa solemnidade religiosa e sagrada, que remia peccados, e valia perante Deos, abrindo aos crentes as portas do céo, e trazendo-lhes pelas indulgencias ganhas a salvação na vida eterna. Quem não tivesse fé no sacrificio divino não se arriscava a perseguições e tormentos iguaes aos das victimas condemnadas, no caso de faltar com a sua presença, e não apparentar jubilo?

Levantárão-se no campo de Santa Anna os cadafalsos e fogueiras. Prevenírão-se os réos que devião figurar na ceremonia. Concedeu-se a alguns a faculdade de chamar confessores particulares, e de receber uma ou outra pessoa da familia, com quem desejassem entreter-se uma vez ainda antes de abandonar o mundo. Transferírão-se todos os condemnados para prisões especiaes, aonde lhes cumpria passar o resto do tempo que lhes sobrava nos paços do Santo Officio.{274}

Intimada a Moraes a sua sentença de garrote, e communicada a noticia de que lhe era licito escolher um confessor, e receber uma pessoa da sua familia, declarou desejar o padre Eusebio de Monserrate para o acompanhar nos ultimos momentos, e sua irmã Dona Clara da Incarnação para lhe dizer o adeos derradeiro.

Forão-lhe satisfeitos ambos os desejos. Impossivel é descrever a sua entrevista com Dona Clara. Quebrantado de forças physicas, martyrisado cruelmente pelas chagas que lhe deixárão no corpo os instrumentos terriveis que supportára, decomposta a physionomia pelas dôres profundas, brancos os cabellos da cabeça e do rosto antes que o tempo lhes mudasse o colorido natural, mais se assemelhava a um decrepito ancião que anciava por descer ao tumulo e não pertencer mais ao mundo.

O tempo, os trabalhos, as peregrinações{275} e soffrimentos lhe havião por tal feitio transfigurado a physionomia, que o não conhecêra Dona Clara, e para o tratar como irmão necessitára de que lhe affirmassem estar em presença de Manuel de Moraes. Abraçando-se ternamente, entretiverão-se no meio de soluços repetidos e de lagrimas abundantes, ácerca dos pais já fallecidos, das irmãs, e parentes domiciliados em São Paulo, da familia que residia em Lisboa, da casa e ninho paterno, e das reminiscencias da mutua mocidade. Revivêrão saudades que pungião o coração, e o cortavão dolorosamente, tanto mais que o tempo feliz passado lhes manifestava a profunda miseria presente.

—Meu respeitavel pai! minha querida mãi e verdadeira santa,—exclamava a miudo Moraes.—Estais ambos já no seio da eternidade, e em presença de Deos. Breve vos irá ahi encontrar o vosso filho desgraçado. Perdoai-lhe... Perdoai a quem concorreu{276} sem duvida para os vossos males na terra, mas que padeceu tambem muito!

Durou a entrevista mais de uma hora, e foi seu resultado infallivel prostrar mais as forças do infeliz noviço, que só deixou a irmã quando os empregados do Santo Officio a coagírão a abandona-lo, e sahir dos paços terriveis da Inquisição.

Tocou a vez do padre Eusebio de Monserrate, que se apresentou no caracter de confessor do condemnado. Contou-lhe a ordem d'el-rei, posto lhe não occultasse o seu temor tanto mais fundado de que o tribunal a desattendesse, quanto até aquelle momento lhe não constára haverem os juizes respondido. Declarou-lhe que visto approximar-se o dia fatal designado para o auto de fé e execução da sua sentença, preferivel era que se preparasse para comparecer perante Deos, abrindo ao sacerdote a sua alma inteira, e recebendo a sua absolvição para se passar á{277} eternidade tranquillo e sacramentado.

Prostrou-se Moraes diante do seu confessor e amigo. Revelou-lhe com franqueza os desejos e aspirações mundanas que lhe havião assoberbado o espirito, os crimes que praticára no seu desvairamento, e as idéas e pensamentos sinceros de que se possuia o seu animo n'aquelle momento solemne. Orárão ambos fervorosamente, e de joelhos, diante da cruz sagrada, que symbolisava o martyrio do filho de Deos. Lançou-lhe o padre a benção consoladora, e recommendou-o á misericordia do Omnipotente.

Estava-se já em vesperas do auto de fé annunciado, e nem-uma deliberação tomára ainda o tribunal do Santo Officio ácerca do aviso expedido pelo escrivão da puridade d'el-rei em pró de Moraes, posto o provincial dos Jesuitas empregasse as maiores diligencias no seu cumprimento.

No dia porém anterior ao designado para{278} a horrenda ceremonia, quando os aprestos todos se havião já concluido, correu voz emfim que não ousára o tribunal do Santo Officio affrontar o perdão que Dom João IVº concedêra, bem que singular e desusado. Assentárão os juizes que darião execução ao aviso regio, depois de sahir Manuel de Moraes no auto de fé como penitente, e coberto com as insignias do fogo, e de assistir ao cumprimento das sentenças relativas aos demais accusados.

Raiou o dia fatal. Cobrírão-se desde a madrugada as casas dos habitantes de Lisboa sitas nas ruas e praças que devia atravessar a procissão, e ornadas de colchas adamascadas, cruzes, imagens de santos, e velas acesas. Guarneceu-se o chão, que nem calçado era n'aquelle tempo, com folhas viçosas de arvores. Brilhárão com velas e lampadas, e ornárão-se com flôres odoriferas os oratorios, que se semeavão pelos cantos das{279} ruas. Derão signaes repetidos de festa os sinos dos numerosos templos, que saudavão o triumpho da Igreja catholica, que salvava a fé e o dogma, castigando os máos, e amedrontando os tibios e descrentes. Desfilárão soldados, occupando varios pontos proximos á praça de Santa-Anna, e occupando-a cuidadosamente para que ninguem, afóra as pessoas do cortejo, penetrasse dentro do circulo reservado ás execuções das sentenças.

Fogueiras formadas com madeiros seccos e palha solta destinadas para os condemnados ás chammas, e cadafalsos erguidos ao lado para os que devião supportar o supplicio do garrote, aterrorisavão as vistas. Vultos cobertos com o manto do Santo Officio, mascarados, e reluzentes com grandes cruzes, que se lhes gravárão nos peitos, os rodeiavão em copiosa quantidade.

Á hora marcada, el-rei, a rainha, os secretarios{280} e conselheiros de estado, e a côrte toda, tomárão os seus lugares, occupando um edificio levantado na frente, conforme os usos supersticiosos da época. Por toda a parte adejava, rumorejava, e saltava, benzendo-se e rezando, uma multidão de gente miuda, que não falta a quaesquer espectaculos de dôr ou de alegria.

Ouvírão-se tiros multiplicados da artilharia dos arsenaes, fortalezas e navios de guerra. Repicárão de novo os sinos das igrejas, e girandolas pittorescas de fogos artificiaes subírão aos ares, e os partírão com mil riscos refulgentes, e ribombos repetidos. Era o signal de que partia dos paços do largo do Rocio o auto de fé e se encaminhava para o seu destino, segundo as formulas da mais rigorosa etiqueta. Marchavão adiante empregados do Santo Officio, montados a cavallo, armados, e segurando bandeiras negras com chammas de fogo, emblemas do tribunal sanguinolento.{281} Seguião-nos padres e frades de diversas ordens, recitando orações lugubres, com a cabeça descoberta. Guardas a pé com clavinotes, espadas e terçados, e vultos mascarados, e com os habitos da Inquisição, rodeiavão as numerosas victimas, amarradas umas ás outras, de pés no chão, e ornadas as cabeças com capuzes negros manchados de flammas luminosas, que lhes cobrião as faces, permittindo-lhes apenas a vista por dous buracos rasgados.

Ião depois os membros do Santo Officio, cercando o Inquisidor geral, que caminhava sob um pallio, e acompanhados por mais de duzentos famulos da Inquisição, que no dizer das tradições se compunhão de fidalgos das primeiras casas do reino, magistrados, altos funccionarios, capitalistas, industriosos, e gente de todas as condições e classes da sociedade.

Fechava o prestito um corpo de cavallaria,{282} com a sua musica e tambores tangendo constantemente.

Parava o auto de fé diante de todos os oratorios e imagens levantadas na sua passagem, e demoradamente chegou assim ao largo de Santa-Anna.

Levantárão-se as bandeiras, e rufárão os tambores. Occupára cada pessoa do cortejo o seu lugar competente. Leu o pregoeiro a lista dos condemnados ao fogo e ao garrote, e a dos penitentes que devião assistir á execução das sentenças. Figurava entre estes ultimos o nome do desditoso Manuel de Moraes, perdoado da pena capital por graça particular de Dom João IVº. Dirigio um sacerdote uma oração a Deos, ajoelhárão-se todos os circumstantes, e manifestárão a piedade dos seus sentimentos.

Derão-se as ordens derradeiras. Subírão ás fogueiras por meio de escadas preparadas as victimas reservadas ás chammas. Forão amarradas{283} a um poste de páo que se erguia no centro d'ellas. Incendiou-se a palha e o madeiro. Uma nuvem escura e ardentes labaredas brotárão immediatamente, e logo depois se ouvírão gritos doridos, e gemidos pungentes dos desgraçados, que se queimavão e desapparecião nas flammas.

Succedeu-lhe a operação do garrote, e algozes impedernidos cortárão os fios de vida, por meio da suffocação instantanea, aos desventurados réos, cujos restos se lançárão nas fogueiras ainda abrazadoras para o fim de se confundirem todos, que se havião condemnado.

Organisou-se por fim em torno das fogueiras e cadafalsos a procissão dos penitentes, sustidos a maior parte por famulos e empregados do Santo Officio, visto como lhes faltavão forças para se sustentarem por seus proprios pés.

Terminada a ceremonia, volveu o cortejo para os paços da Inquisição.{284}

Logo que passou os umbraes da entrada principal do edificio, deu ordens o Inquisidor geral para se tirar Manuel de Moraes d'entre os penitentes, e restitui-lo aos Jesuitas, que já alli se havião reunido, no intuito de recebê-lo, e recolhê-lo á sua casa.

Procedeu-se á entrega solemne, e lavrou-se termo, que assignárão as autoridades competentes. Não se podendo ter em pé o paciente, foi depositado em um assento de pedra, emquanto se cumprião as formalidades do acto.

Quando o padre Eusebio de Monserrate se approximou d'elle para lhe dar o braço, levanta-lo, e ajuda-lo a sahir dos paços do Santo Officio, escapou-lhe Moraes das mãos, resvalou do assento, e rolou pelo chão.

Tratou subito o Jesuita de rasgar-lhe a mascara e as vestes. Descobrio um cadaver. Já não pertencia ao mundo.{285}

Ajoelhou-se Eusebio de Monserrate, e disse enternecidamente:

—Senhor! Senhor! recebe no teu seio piedoso o peccador contrito, e perdôa com a tua infinita misericordia a quem tanto soffreu na terra!

FIM{286}
{287}

[1] O padre Techo na sua obra sobre o Paraguay, e a Historia Argentina, L. Iº, Capº. 5º narrão o facto de Aleixo Garcia mandado ao sertão por Martim Affonso, e morto por Gaboto, que se apoderou da prata que elle encontrára.

[2] Nos citados autores se falla do convite do cacique Taubixi para se defender contra os Castelhanos.

[3] O padre Techo conta a historia de Sedenho, que fôra em soccorro de Aleixo Garcia com 60 homens, dos quaes a maior parte pereceu com o chefe.

[4] Historico—V. René Saint Taillandier, les juifs portugais en Hollande.

[5] Barlius, de rebus variis.

[6] Taillandier acima citado.

[7] Publicada em Leyde, e na lingua castelhana, no anno de 1641, com o titulo de Prognostico y respuesta a una pergunta de un cabalero muy ilustre sobre las cosas de Portugal.

 

INDICE

 

 

 

 

PARIZ.—TYP. PORTUG. DE SIMÃO RAÇON E COMP., RUA D'ERFURTH, 1.

{288}
{289}
{290}

 

 

 

 

PARIZ.—TYP. PORTUG. DE SIMÃO RAÇON E COMP., RUA D'ERFURTH, 1.

 






End of Project Gutenberg's Manuel de Moraes, by João Manuel Pereira da Silva

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK MANUEL DE MORAES ***

***** This file should be named 29819-h.htm or 29819-h.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        http://www.gutenberg.org/2/9/8/1/29819/

Produced by Pedro Saborano

Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
http://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.