Nota de editor:
Devido à
existência de erros tipográficos neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Jan. 2009)
Sociedade
de Geographia de Lisboa
SILVA PORTO
E
LIVINGSTONE
MANUSCRIPTO DE SILVA PORTO
ENCONTRADO NO SEU ESPOLIO
LISBOA
Typographia da Academia Real das
Sciencias
1891
Sociedade
de Geographia de Lisboa
SILVA PORTO
E
LIVINGSTONE
MANUSCRIPTO DE SILVA PORTO
ENCONTRADO NO SEU ESPOLIO
LISBOA
Typographia da Academia Real das
Sciencias
1891
Este trabalho foi encontrado entre os papeis do
illustre sertanejo portuguez que deram entrada na Sociedade de
Geographia de Lisboa, depois da morte d'elle.
Foi escripto no Bihé em 1868. Convém ter sempre
em vista esta circumstancia e esta data.
APONTAMENTOS SOBRE A OBRA
DO
EX.MO SR. D. JOSÉ DE LACERDA
«EXAME DAS VIAGENS DO DR. DAVID
LIVINGSTONE»
POR
UM PORTUENSE
Leitor
Uma das testemunhas avocadas na obra do ex.
mo
Sr. D. José
de Lacerda, devo explicações sobre muitos dos
seus
artigos, pois que a recusa d'ellas, seria crime de
lesa-nação, em
aggravo do bom nome portuguez.
O reverendo dr. David Livingstone mereceu, sem duvida, a
corôa que seus concidadãos lhe votaram pelos
serviços
prestados n'estas partes de Africa; no entretanto, força
é
confessal-o, ella foi desfeita pelo illustre viajante, visto havel-a
manchado com a peçonha
da calumnia.
Quiz chegar aos fins importando-se pouco com os meios.
Em abril ou maio de 1853, no dia em que teve noticias minhas, um raio
que lhe cahisse proximo não causaria a
impressão que lhe produziu semelhante nova, porque,
necessariamente havia de comprehender
que, mais cedo ou tarde, teria de se achar em face de um competidor,
obscuro pelo seu fraco talento, sim, mas testemunho vivo de prioridade
nos mesmos logares em que o dr. se julgava com direito a chamar-se o
primeiro europeu que os visitou. Ella não me
pertence inteiramente, é certo, visto que outras pessoas
percorreram
esses mesmos logares antes de mim e muito antes do illustre viajante,
mas
pertence-me de facto, pois que essas pessoas eram enviadas por mim,
existiam, e existem ainda, presentemente, no maior numero, ao meu
serviço: umas naturaes de Loanda, outras de Golungo-alto,
outras de Ambaca, outras de Pungo-andongo, outras, finalmente, do
Bihé.
O illustre auctor do
Exame
não tem porventura provado até á
evidencia que ella pertence desde epocha remota aos portuguezes?
Mas, modernamente, pelo que me diz respeito, e em
relação ao illustre viajante, creio
não estar em erro dizendo que, a
prioridade no interior do continente Africano é minha.
[8]
Para o provar poderia reportar-me á epocha de 1840; mas como
não pretendo exaggerar nem sequer allegar
serviços, trarei unicamente para a arena a data de 1845, da
primeira viajem ao Lui, muito anterior á
apparição do illustre viajante e
seus companheiros, em 1 de agosto de 1849, no lago Ngami, percorrendo
então, as pessoas que
acabo de designar, o Rianbeje em todas as
direcções, como
adeante terei occasião de mostrar.
Oppondo muitos nomes áquelles de que se serve o illustre
viajante para designar coisas e pessoas, não faço
mais do
que servir-me dos termos empregados pelos indigenas, a fim de designar
essas mesmas coisas e pessoas, visto que pela maior parte, se forem
interrogados sobre o assumpto, não obstante darem por
alguns, outro tanto
não acontecerá em relação a
outros; e nem
faço mais do que servir-me da orthographia da minha lingua
materna, bem assim como o illustre
viajante usou da liberdade de se servir da sua. Outro tanto
não direi
da situação geographica dos logares aqui
indicados, attendendo a que não
são marcados com a bussola, mas sim segundo a
posição em que nasce e se põe o sol;
para me subtrahir a taes inconvenientes
dirigi a carta que abaixo segue ao illustre viajante, julgando-o
então em
Rinhande.
Hoje mesmo, que o governo portuguez se delibere a enviar uma pessoa
pratica nas sciencias naturaes e geographicas, e eu, com muito gosto me
promptifico a acompanhal-a a todas as paragens d'esta parte da Africa
para o indicado fim, que será o unico meio de
pôr termo, de uma vez por todas, a invectivas menos justas de
naturaes e estranhos.
Eis a carta a que me refiro.
Meu illustre amigo.
Bihé,
22 de setembro de
1861.
Os grandes heroes que a historia proclama, a mór parte das
vezes o são, assolando a terra, e devastando a
raça humana. A esses,
pois, tal titulo significa uma blasfemia! Em identicas circumstancias,
mas por fórma
diversa, que é por certo maior gloria, ao vosso zelo,
perseverante vontade, e á
custa de immensos sacrificios a prol das sciencias, e a favor da
humanidade, ella com
justiça e verdade, vos terá de acclamar de seu
heroe.
Poderei ser tão feliz que tenha a dita de vos tornar a
vêr? Se assim se verificar desde já ponho a minha
gente ás ordens do meu
illustre amigo, para estas paragens, e n'ellas, ou mesmo para qualquer
parte que pretenda seguir,
a minha pessoa fica desde já tambem á sua
disposição.
Assigno-me com toda a consideração
|
|
De
V. S.a
Amigo attencioso
Antonio Francisco Ferreira da Silva
Porto |
Disse e repito que, o illustre viajante quiz chegar aos fins
importando-se pouco com os meios; vejamos se assim não
é.
A carta que acabo de transcrever e que lhe dirigi julgando encontral-o
em Rinhande, é a confirmação plena da
minha boa vontade,
[9]
quando, puz os
meus bons serviços á sua
disposição. A tel-os acceitado, a sua
missão seria completa, porque eu levava-o, facilmente,
ás nascentes dos seguintes rios: Riambeje, Quango, Cubango,
Cunene, Quanza, e outros que vão desaguar no atlantico ao
sul de
Loanda até Benguella. Regeitou, porque não quiz
que uma segunda pessoa
partilhasse tal gloria, muito principalmente sendo essa pessoa estranha
á sua nacionalidade; preferiu occupar-se exclusivamente, e
mais de
espaço, em pintar com sombrias e carregadas côres,
o hediondo quadro dos incorrigiveis traficantes de carne humana; da sua
prioridade no descobrimento do interior do continente Africano, e
finalmente na
pregação da Biblia, como palavra descida do
Céo.
Deixou o rio Lunga, affluente do Cabombo, e esteve na
povoação do soba Machico. Devia de saber alli que
d'esse local á
nascente do Riambeje, apenas se contam dez dias de viagem, como affirma
o actual soba do paiz, que por vezes foi á caça
dos
elephantes para essas partes; parece-me que valia a pena accrescentar
esses dias na ambicionada viagem de Loanda, embora se tornasse mais
demorada, a fim de marcar com precisão a latitude e
longitude da nascente do manancial
de mais longo curso, conhecido aqui em Africa, se é que o
rio
Cubango se não dirige para o mar, e põe termo
á sua carreira no
lago Ngami, como é a opinião do illustre
viajante. Proseguiu
ávante, deixando tudo em trevas, como quer fazer acreditar
aos olhos do mundo civilisado,
fazendo-nos passar por inteiramente ignorantes; e note o illustre
viajante que falo em marcar com precisão, e não
em
descobrir o que ha muito já se acha descoberto.
Poderia eu dirigir-me ás nascentes d'esses mananciaes que
ficam descriptas a fim de que se viesse no conhecimento das suas
verdadeiras origens, mas attendendo a que a sciencia exige mais alguma
cousa,
além de uma simples descripção, por
este motivo tenho
desistido da empreza aguardando que de futuro pessoa competente na
materia, venha resolver o problema.
Pondo remate a esta minha introducção,
peço indulgencia para algumas phrases menos mal cabidas, que
porventura se encontrem no decurso dos meus apontamentos; mas, sendo
ellas tão
amiudadas na descripção que o illustre viajante
nos apresenta,
seria necessaria a paciencia de um santo para deixar de respostar ao
pé da
lettra.
Lui, 14 de
setembro de 1868
Antonio Francisco
Ferreira da Silva
Porto
Principiaremos pelas nossas coisas, e vem a ser que, tratando o
illustre auctor do
Exame a ps. 12,
das missões, diz o que segue:
«A
extincção das ordens religiosas,
e
com ella a de todas as missões, foi perda irreparavel para
as nossas possessões africanas, que tanto
podiam e deviam ter com ellas aproveitado. As funestas consequencias
estão-se
experimentando, e desde logo tinham de prever-se: de certo, porque de
todo o ponto
é fóra de duvida que, missões
regularmente constituidas, e d'onde hajam a
esperar-se effectivos e avantajados resultados, só por via
das
corporações religiosas podem obter-se. O que,
n'este intuito, podem fazer as corporações
religiosas, só ellas podem fasel-o, porque só
ellas podem preparar, escolher e ter
á mão, mediante os votos monasticos, os obreiros
mais competentes; as
condições tão especiaes,
proporcionadas pelos votos, mormente pelo da obediencia, não
ha nenhum
outro modo de serem suppridas. É por isso que tanto fizeram
outr'ora os
nossos missionarios em uma e outra Africa, e na India, e na America, e
na China, e no
Japão, e na Cochinchina, e em toda a parte; e é
por isso tambem que
tão pouco têem feito quaesquer outros missionarios
não pertencentes ás
congregações religiosas: estes vão
aonde querem ou aonde podem, aquelles aonde os mandam:
para estes, tudo são estorvos e tropeços, para
aquelles, sem
familia, sem bolsa e sem vontade propria, não ha obstaculo,
porque obdecem: estes hesitam, porque
deliberam; aquelles obram, porque não carecem de
resolver-se. etc.»
Assim o creio no que diz respeito ás missões,
visto que os missionarios que então existiam pelas colonias
nada tinham com a politica
seguida na metropole, não dizendo outro tanto dos seus
ultimos tempos em Portugal, porque os factos praticados pelos membros
de que se compunham as differentes ordens religiosas durante o periodo
de 1828 a 1833, são de todos conhecidos, e foram o que deram
causa á sua extincção. Os ministros
que representam Jesus
Christo na terra devem occupar-se unicamente da missão
sagrada do seu
ministerio, e não de negocios mundanos, inteiramente em
desharmonia com
ella.
[12]
É indubitavel o incremento do nosso poder no interior d'este
vasto continente, sob a acção das
missões, e
a sua decadencia depois da extinção d'ellas; o
Bihé gozou dos seus beneficos effeitos tendo por
capitão-mór Antonio Francisco da
Conceição e Mattos, nomeado
em 11 de maio de 1791, no governo de Manuel de Almeida e
Vasconcellos,
[1]
e a missão dirigida por um barbadinho
italiano, que
celebrava os officios Divinos n'uma casa apropriada ao fim, na
povoação
do dito Mattos, baptizou grande numero de sertanejos que ao tempo
existia no paiz, uns naturaes da Europa, e outros do Brazil, outros
finalmente indigenas, mas todos portuguezes, ministrando egualmente o
mesmo Sacramento, a grande parte do povo Bihano, o qual, na falta de
sacerdote no seu territorio, tem por habito receber o baptismo na
cidade de S. Filippe de Benguella.
Em 1842 conheci egualmente n'esta cidade o seu vigario (padre Manoel),
que tambem exerceu o ministerio no Bihé, e em
Caconda. A sua benefica influição devia de ter
chegado
ás terras da Lunda, Luvar e Lui, attendendo a que os
habitantes d'estas regiões
são tão sociaveis como o povo Bihano,
não se podendo dizer outro tanto em
relação a grande parte da tribu Quimbunda, a que
pertence a Bihana, visto que os quimbundos se conservam no estado
primittivo de selvagens, e bem assim a raça Ganguella, cuja
familia se pode dizer composta
de diversas tribus, como aquella.
Finalmente, venham missionarios para as nossas possessões,
mas missionarios portuguezes. Com o intuito de se reparar o erro, foi
restaurado o collegio de S. José do Bombarral, sendo do
dever do
governo lançar vistas para assumpto tão
momentoso, a
querer que conservemos a importancia que nos compete como
nação de
grande consideração colonial.
A paginas 30 e 31 o seguinte:
«Vou occupar-me do lago
Ngami, um dos descobrimentos de
que
tão grande alardo fez o dr. Livingstone.
No
capitulo
3.º lê-se a pag. 65 o seguinte: Doze dias depois que
nos
apartámos dos wagons em Ngabisane chegamos
á extremidade nordeste do lago Ngami; e no 1.º de
agosto de
1849 descemos todos à
bacia do lago, e,
pela primeira vez, observaram
europeus este magnifico lanço de agua.»
Sendo interrogado pelo illustre viajante sobre se conhecia o Cubango,
respondi affirmativamente, ao que retorquiu alimentar o lago
mencionado; disse eu então que não omittia
opinião segura, mas que me parecia não limitar-se
ao lago unicamente, visto ser um
rio de grandes dimensões.
No dia 22 de maio de 1846 digo o seguinte:
«Continuámos a viagem, e fomos fazer quilombo nos
mattos, na margem direita do rio Cutato dos Mangoias. Caminho plano,
mattos fechados, em partes, em outras despovoado de arvoredo, falta de
riachos, terreno fertil. Uma hora de marcha distante d'esta paragem,
existem as nascentes de dois rios caudalosos: Rio Cutato dos Mangoias,
dirigindo o seu curso para
[13]
o norte a desaguar no rio Quanza, e o rio
Cubango, dirigindo o seu curso para o sul a desaguar no mar para o
nascente.»
Ora, comprehendendo as vertentes d'este grande manancial até
ao lago Ngami, não quero discutir se com effeito
é ahi o seu termo, ou se segue ávante como acabo
de transcrever no trecho acima
da minha Viagem, no citado anno, á cidade de Benguella, o
que fica
para ser resolvido por pessoas competentes, mas sim fazer ver que os
portuguezes de Quilengues, desde antiga data, mantem não
interrompido commercio pelo interior para o sul e sueste,
comprehendendo o lago em questão.
Os portugueses de Caconda, Quingollo, Galangue, e Caquingue,
só mais tarde é que principiaram de transitar
para esses mesmos logares; e finalmente os portuguezes do
Bihé; todas as paragens do
interior d'este vasto continente, desde antiga data, e até
ao
presente teem sido, e são por elles percorridas em
não
interrompido commercio com os indigenas. Em virtude do que,
não teem
razão de ser a pretensão do illustre viajante
á descoberta do
lago, visto que em setembro de 1841, achando-me na cidade de Benguella,
ahi encontrei já grande movimento commercial para as terras
que acabo de
designar: e para que parte seguiriam essas fazendas, a não
ser para
esses logares que ficam indicados? Regressando ao Bihé
n'esse mesmo mez e anno, o mesmo presenciei, e para que parte seguiria
esse commercio, a não ser para o Ribebe, e terras
circumvisinhas,
Ganguellas, Luvar e Lunda, onde a concorrencia era immensa para cera,
marfim e escravos, mas com especialidade para estes ultimos, pelas
grandes vantagens que então se davam, mas que tinham de ter
termo como todas as cousas o teem n'este vae-vem terrestre? E a
concorrencia continuou de affluir á terra da Lunda, depois
d'elle; porque
não obstante a extincção do trafico,
sempre foi um grande mercado de marfim, explorado de antiga data pelo
povo de Cassange; da mesma sorte a terra já citada do Ribebe
e circumvisinhas, situadas nas vertentes
do Cubango; em identicas circumstancias as terras da grande familia
Ganguella sob diversas denominações, que
não
obstante a extincção do trafico, sempre se
tornaram uns grandes mercados de cera, n'umas, e d'este mesmo producto
e marfim, egualmente, em outras. Finalmente, temos as diversas terras
da grande familia Quimbunda, tambem sob diversas
denominações, cujo commercio consta
unicamente de escravos, e que em virtude da sua visinhança
ao litoral, sempre foram
habitadas, de antiga data, por europeus que n'ellas fixaram residencia,
e hoje por seus filhos, netos e bisnetos, sobrepujando a todas, a terra
do Bihé, grande centro de todo o commercio do interior, na
epocha em que o trafico era licito, e annos depois por contrabando
até
1845. Ellas não bastavam a abastecer o mercado do litoral, e
os sertanejos á
porfia procuravam e percorriam as terras que acabamos de designar para
o indicado fim: acabado o trafico hediondo da escravatura, pelos
principios philantropos e humanitarios, assim chamados, são
da mesma
fórma procuradas as terras do interior, onde apparece a cera
e o marfim.
Que fosse pois até essa epocha, que o illustre viajante nos
quizesse expor á censura geral como entes desmoralisados,
vá: advertindo que,
[14]
ainda lhe restava a
presumpção do parallelo entre
portuguezes e inglezes; considerando que estes depois do aprisionamento
de qualquer navio negreiro, conduziam os desgraçados
africanos para as
suas possessões, e não os vendiam por toda a
vida, e por preços
fabulosos, como faziam os infames contrabandistas, mas sim por uma
modica quantia e por um determinado espaço de tempo no fim
do qual,
o filho de Africa se tornava livre!
Mas presentemente, e tanto de espaço tratar de uma
questão que se póde dizer extincta, parece
incrivel que a tanto se
aventurasse!
Esteve no meu estabelecimento em Catongo: quantas correntes cheias de
infelizes encontrou?
Se tal se desse teria materia de sobejo para um volume.
E se me desviei do assumpto que me tinha proposto, de mostrar a
prioridade dos portuguezes no lago Ngami, assim era de necessidade a
fim de mostrar que para a permutação de
escravos não era necessario sahir de territorio Quimbundo do
anno de 1845 por deante.
A paginas 62 sobre a mosca
tse-tse,―os Macorrollos
dão-lhe a denominação de
Zeze,
o povo Lui
dá-lhe a denominação de
Madinda, e finalmente, o povo Bihano
dá-lhe a
denominação de
Bisumangalla ou
Apopullo,―eis
o que digo a respeito
d'este insecto damninho, no dia 26 de junho de 1853:
―«Continuámos a viagem, e fomos fazer quilombo
nos mattos, logar denominado Maranhati. Caminho plano, mattos fechados,
terreno fertil, legoas andadas 6, rumo de sul.
«Encontrámo-nos com tres
grandes
manadas de gado, que se dirigiam com destino a Quiceque
e Rinhande, tendo sahido poucos dias antes da minha partida da capital
do Lui. Seguiam pois os conductores munidos de escudos e azagaias,
pelos lados do gado, este, formando o centro, carregando, sobre a
cabeça, e ligado entre a
armação, os couros preparados, e que servem de
cobertura aos mesmos pastores; seguindo manso e vagaroso, o som do
apito de um unico pastor como guia, na sua frente: os chefes da
comitiva seguiam por ultimo, para que não se desgarrasse
alguma creação.
«Quando chegam na margem de alguma lagoa ou rio, tiram os
couros que o gado conduz, e este principia de pastar, isto pelo
espaço de duas horas, pouco mais ou menos, tempo em que o
geral do povo se entrega a tomar tabaco, a fumar, a comer, e finalmente
ao
descanço; e, ao cabo de cujo espaço tornando de
pôr os
utensilios em cima dos animaes, continuam a marcha encetada, que, no
maior rigor,
não excede jámais a cinco horas diariamente,
excepto por certas e
determinadas paragens, nas quaes se torna indispensavel a marcha
nocturna, em consequencia de uma mosca de mordedura venenosa que, sendo
em grande abundancia se torna o flagello (do gado) visto seguir-se a
morte
ao cabo de determinado periodo. Por estas paragens é
denominada de Zeze, e pelos bihanos de Bisumangalla; é um
pouco mais
comprida que a mosca ordinaria, mas muito mais dura de pelle, pois que
para se matar é necessario pizal-as com os pés,
bem
assim, andar o viajante munido de ramos nas mãos para as
afugentar do corpo, pelos
mesmos logares
«Quando chegam na margem de alguma lagoa ou rio, tiram os
couros que o gado conduz, e este principia de pastar, isto pelo
espaço de duas horas, pouco mais ou menos, tempo em que o
geral do povo se entrega a tomar tabaco, a fumar, a comer, e finalmente
ao
descanço; e, ao cabo de cujo espaço tornando de
pôr os
utensilios em cima dos animaes, continuam a marcha encetada, que, no
maior rigor,
não excede jámais a cinco horas diariamente,
excepto por certas e
determinadas paragens, nas quaes se torna indispensavel a marcha
nocturna, em consequencia de uma mosca de mordedura venenosa que, sendo
em grande abundancia se torna o flagello (do gado) visto seguir-se a
morte
ao cabo de determinado periodo. Por estas paragens é
denominada de Zeze, e pelos bihanos de Bisumangalla; é um
pouco mais
comprida que a mosca ordinaria, mas muito mais dura de pelle, pois que
para se matar é necessario pizal-as com os pés,
bem
assim, andar o viajante munido de ramos nas mãos para as
afugentar do corpo, pelos
mesmos logares onde se tornam abundantes.
[15]
«Verificada a occasião da marcha nocturna, um
pastor na frente, servindo de guia, e tangendo uma frauta, o mais povo
dos lados, e na retaguarda os chefes com tições
accesos, fecham o
sequito de uma numerosa manada de gado; logo que chegam no logar
destinado para o curral, este é feito n'um momento, de paus
e ramos das
arvores, que cortam para o indicado effeito: no centro repousa o gado,
em
circulo, e encostado ao cerco o mais povo da comitiva para evitar
qualquer assaltada do rei das selvas, e em virtude do que
não deixam
de velar continuamente.»
N'essa occasião, levando a cavalgadura do meu uso, por me
livrar de um excesso, vim a cahir no excesso contrario: livrei-me de
um, deixando de costear o Riambeje por causa dos rios seus affluentes
que forçosamente tinha de passar em canoas, e cuja passagem
se
tornava perigosa para ella; deixando por esse motivo de visitar a
catarata Chungo ou Mosioatunia cuja descoberta então teria a
regalia
de disputar ao illustre viajante, mas não assim aos meus
concidadões, fosse qual fosse a sua côr e
condição;―comtudo,
visitei-a mais tarde como terei occasião de mostrar―e
cahindo por consequencia no excesso
contrario por causa da mosca de que acabo de falar, visto que fui
obrigado a deixar ficar a cavalgadura no dia 30 d'esse mesmo mez e
anno, n'uma das povoações do povo Guete, fazendo
por tal
motivo a jornada a pé d'esse local para Rinhande, e
vice-versa, para o que me não
achava preparado.
A paginas 71 o seguinte:
«Contando-nos a sua marcha
para o interior do continente
africano, e o seu encontro com Sebituane, celebre chefe indigena, em o
esboço
que desveladamente d'elle nos bosquejou, diz o dr. Livingstone:
«Tendo
conquistado todas as convisinhanças do lago Kumadau (Mculadau),
ouvio
fallar dos homens brancos, que viviam na costa occidental; e esporeado
pelo que parece ter sido o sonho de
toda a sua vida, o desejo de abrir communicação
com os
brancos, passou ao sudoeste.» Mais adeante se lê:
«Sebituane
(Xabitane?) formou o designo de
descer o Zambeze até ás terras dos homens
brancos. Tinha a
idéa fixa, que não sei d'onde
lhe viera, de que, se possuisse uma peça de
artilharia, lhe seria possivel viver em paz. Sebituane passara a vida
na guerra, e todavia ninguem mostrava
desejar a paz tanto como elle. Um propheta o persuadiu a voltar de novo
para
oeste. Aquelle homem, por nome Tlapano, era chamado
«Senoga», isto
é, que trata com deuses... Tlapano apontando para o oriente,
exclamou: Alli, Sebituane, vejo fogo:
evita-o: é fogo que pode abrazar-te. Os deuses dizem que
não vas alli.» Voltando-se para o oeste, exclamou:
«Vejo uma cidade e uma
nação de homens negros, homens da agua: o seu
gado é vermelho: a tua tribu está
a acabar, e toda será destruida: tu has de governar os
homens negros, e depois que os teus guerreiros
tiverem captivado o gado vermelho, não consintas que os
donos d'elle
sejam mortos. São elles a tua futura tribu, elles
hão de formar a tua cidade.
Sejam poupados, para que te obriguem a edifical-a. E tu, Ramosini, sabe
que a tua
aldêa será totalmente arruinada. Se Mokari se
apartar d'aquella aldêa elle
perecerá primeiro, e tu, Ramosini, perecerás ao
depois.» Com respeito a
si proprio accrescentou. «Os deuses foram causa de que outros
homens tivessem agua para beber;
porém a mim só me concederam a pessima bebida do
chakuru
(rhinoceros.) Chamam-me para si. Não posso demorar-me
mais.»
[16]
Disse que para provar a nossa prioridade ao illustre viajante, traria
unicamente para o caso a data de 1845 da primeira viagem ao Lui, o que
passo a demonstrar.
A minha perigrinação por estas paragens data de
1840, tendo partido da Cidade de S. Paulo
d'Assumpção de
Loanda; porém em 1841, dirigindo-me á cidade de
S. Filippe de Benguella, como
já tive tambem occasião de dizer, os meus
commissionados dirigindo-se pelas
terras do interior que ficam designadas, passavam e repassavam o
Riambeje, no dominio da Lunda, e nas terras dos Ganguellas; o ponto a
que se dirigiam era para a terra do Lutembo, povo assás
turbulento,
e mescla das tribus Bunda e Zambueira, com o intuito de se obter
passagem para a terra do Lui, já de grande nomeada pelas
amiudadas
incursões que fasia o seu povo ás terras
circumvisinhas a fim de se
assenhorear do gado que na epocha abundava por todas. Eram taes as
maravilhas que circulavam d'esta California em prespectiva, que se
tornava
necessario lá chegar, fossem quaes tivessem de ser os
sacrificios a
fazer.
O soba Cabitta, então senhor da dita terra, ou porque
quizesse o exclusivo do mercado do marfim que negociava com o soba do
Lui (Cacoma Mulonga ou Sanduro), e permutava com sertanejos do
Bihé, semelhantemente ao Jaga de Cassange, com o
Matiamvo,―ou receioso de ser aggredido mais amiudadamente depois de
franqueado o caminho aos da mesma procedencia, é certo que
sempre se recusou a
prestar o seu consenso; porém no anno de 1845, mediante
extorsões inauditas, e a clausula de dois empregados que
foram constrangidos de ficar comprando os generos por preços
fabulosos, foram abertas as
portas de par em par á comitiva para a terra da
promissão, e obtida esta primeira conquista, restava ainda
outra de não menos
difficil empenho e vinha a ser o pôr termo as excessos do
senhor de Lutembo,
visto que as extorsões se foram grandes na ida, se tornaram
muito
maiores no regresso, exigindo-se dentes de marfim como tributo da
passagem concedida para o Lui.
Prompta, pois, a comitiva para a partida, recommendei ao seu chefe,
Francisco Monteiro da Fonseca, um diario da dita viagem, e bem assim,
procurar por todos os meios ao seu alcance, passagem para o Lui que
não fosse a da terra já citada.
No anno de 1847, na segunda viagem á dita terra, eis o que
digo a este respeito:
«A terra do Lui propriamente dita, é habitada
presentemente pelo povo Genge, (synonymo de audacioso, posto pelos
indigenas aos
Macorrollos, e pelo qual se ficou denominando o paiz,) o qual se
assenhoreou do paiz pela imbecillidade do soba Riumbo, antigo senhor do
mesmo. Este se bem que tarde conhecesse a sua fraqueza,
jámais quiz ser tributario d'aquelles a quem o havia
entregue, e por esse motivo, expatriando-se, com parte do seu povo, se
veiu refugiar n'esta terra denominada Locullo, antigamente sua
tributaria, e hoje sua
côrte, denominada Lui. O soba Riumbo tem seguros sessenta
annos de idade, e não obstante a mesma, ainda não
depôz
as armas de guerreiro, pois se tarde conheceu a sua fraqueza entregando
o paiz aos seus inimigos; presentemente não lhes tem cedido
um palmo de terra.
É paiz de grande
[17]
extensão, com immensas terras que lhe são
tributarias, cujos sobas seguidos do seu povo, annualmente vem prestar
tributo ao soba Riumbo, com os seguintes generos: marfim, escravos,
canoas, pelles de todas as qualidades, mantimentos, carnes de
caça, peixe, mel e
sal; não ha gado domestico de especie alguma, visto que o
possuido antigamente, ficou em poder do povo Genje; a unica
creação
domestica que possuem são gallinhas.
«É pois este povo, d'entre o geral do gentio, de
costumes simples e não corrompidos; o unico instincto que
possuem é
o de Deus e nada mais: usam trajar pelles dos differentes animaes
bravios, as quaes
são por elles mui bem preparadas; as suas armas,
são: arcos e
frechas, lanças curtas e compridas.»
Pelo que diz respeito ao soba Cabitta, as coisas continuaram da mesma
fórma, e relativamente a buscar differente caminho,
não foi possivel persuadir os Bihanos para tal fim.
No anno de 1849, da terceira viagem, falleceu o soba Riumbo,
succedendo-lhe seu primogenito Machico, e de cujo acontecimento nenhum
damno resultou para os viajantes, attendendo á boa indole do
povo, e attendendo egualmente ao estylo seguido alli
tambem:―
Morreu o rei: Viva o rei.―pois que o
defunto soba
não passa além de vinte e quatro horas insepulto,
e o herdeiro já existe
occupando o seu logar, passando por consequencia o acontecimento
desapercebido como qualquer outro.
As extorsões do soba Cabitta, já para com as
pessoas da comitiva, já para com dois empregados que de
rigor eram obrigados de
ficar, como tive occasião de dizer, continuavam da mesma
maneira,
dando logar n'esta occasião a ter eu de lançar
mãos das armas para repellir do quilombo o dito soba e a
turba de que se fazia acompanhar a fim de lhes infundir respeito aos
viajantes; para evitar taes disturbios
aquelles se fitavam mutuamente, concorrendo cada um com o peculio
indispensavel,
e em proporção das fazendas que cada contribuinte
recebia da minha mão, e depois de entregue, segundo o
preço
imposto pelo insaciavel e turbulento soba, e de bem examinados todos os
objectos, respondia este:
agora sim, estão
desempedidos; podem
seguir viagem quando quizerem.
No entretanto, estes vexames não eram praticados unicamente
na ida; no regresso, apresentava-se o licencioso soba no quilombo
exigindo
dentes de marfim de tributo, e segundo o que cada pessoa conduzia,
visto que assistindo á passagem da comitiva no rio Lutembo,
em cuja margem esquerda se acha situada a libata grande, que vem a ser
a povoação principal ou chefe da terra, contava e
recontava as cargas de marfim que do porto eram conduzidas para o
abarracamento, dizendo sem rebuço em tal acto, que era para
que o não
enganassem; tornava-se necessario pôr termo a taes
excessos, mas, como
vamos vêr, a um acaso providencial se deve semelhante
successo.
No anno de 1850, da quarta viagem, ainda o soba Cabitta gozou na ida da
comitiva o direito de passagem, porém chegando
ella na margem direita do Riambeje, como era de costume dispararam-se
as armas a fim de dar aviso da chegada de hospedes na terra, e a cujo
[18]
signal de prompto acudiam os
canoeiros; o silencio n'esta
occasião, bem assim no dia seguinte, foi a resposta que os
viajantes obtiveram; acto continuo formaram conselho sobre o que
restava a fazer, e o
accordo foi geral de que Machico tinha sido guerreado pelos intrusos
visinhos, e por consequencia havia mudado de local, e então
que se devia descer o rio com o intuito de se entabolar
negociações com o chefe dos Macorrollos; para
este effeito deram caça a dois
pretos da tribu Nhengo, que depois de presos para não
fugirem,
serviram de guias á comitiva até ás
povoações de Ribonda, ao noroeste do Riambeje, e
situadas na sua margem direita, onde, depois de postos em liberdade e
gratificados, regressaram ao logar da sua nacionalidade.
Por ordem do chefe do local foi a comitiva impedida, julgando-a povo de
invasores, até ulterior decisão da libata
grande do paiz, para onde tinham seguido emissarios com a
participação
da sua chegada, regressando ao cabo de dois dias com outros enviados do
soba, a fim de a conduzir para o local que lhe era indicado para fazer
o
estabelecimento, ou Quibango, como o denominam na lingua Bihana, em
frente a Nariere, então corte do povo Macorrollo no Lui.
Esta povoação ficou inteiramente deshabitada
depois da revolução de setembro de 1864, que
elevou ao poder Hipopa, actual senhor do paiz, e ultimo filho de Cacoma
Mulonga ou Sanduro, muito conhecido do illustre viajante, visto que
esteve ao seu serviço por
concessão de Hiquereto, então sob o nome de
Lutango.
Recebeu o chefe da comitiva á sua chegada no local, um dente
grande de elephante, um boi, e grande porção de
mantimento, e no dia seguinte, seguida dos seus companheiros,
apresentou-se em Nariere, que, como era de esperar, estava
litteralmente apinhada de povo, avido sempre de novidades.
Na praça, ou centro da povoação,
Hebitane; Pepe, seu logar-tenente no Lui; Hiquereto, seu filho e
successor, pastoreando então
o gado n'esse tempo; Borollo, seu irmão;
inclusivè
as pessoas do sexo masculino da familia, e mais optimatos da tribu
assentados em bancos rasos a curta distancia da residencia do soba; os
viajantes proximos, e a turba na praça se achava apinhada,
como já
disse, assentada no chão; sendo recommendado silencio,
levantou-se o chefe da
comitiva, e no idioma Ganguella deu conta de todas as particularidades
relativas á viagem; da terra da sua naturalidade; por quem
eram
enviados, e finalmente as suas intenções de
manter
relações de amizade com o chefe do paiz, o que
foi transmittido a Pepe, e este, acto continuo,
passou a transmittir a Hebitane, o qual respondeu achar-se de accordo,
visto serem esses os seus desejos.―«A Quiceque, disse elle,
chegaram Macuas do Oriente, apontando para o indicado ponto, (No dia 12
de
março de 1853 falo d'esta gente, procedente de Inhambane ou
talvez de
Quelimane), mas havendo-se retirado, não teem regressado.
Por
differentes vezes, continuou elle, tenho ouvido falar de Macuas do
Occidente em Locullo, sem que se apresentassem no local, o que tinha
dado logar a mandar guerrear Machico, a fim de vêr, se,
continuariam de o
procurar, ou então se vinham ao local como acabava de se
realisar, e
por cujo successo todos se deviam congratular.»
[19]
Findo o que, teve logar a entrega de presentes, mutuamente, e o
dispersar de actores e espectadores para seus logares; e agora, que o
soba Cabitta desappareceu da scena, visto que morreu em 1854, e visto
egualmente que d'elle nos não tornaremos a occupar, porque a
comitiva na torna viagem passou pela terra do Cutti: permitta-me o
leitor que desviando-me do assumpto, relate um caso que tem
relação com uma heroina, mãe d'este
mesmo soba fallecido, e em cuja
familia é innato o despeito.
No dia 30 de maio do corrente anno, na margem direita do rio Cubangui,
emissarios de Muene Gambo ou Muene Calunga, (a mãe
de Cabitta) me vieram da sua parte pedir um dia de demora no local, a
fim de fazer negocio do dente direito de um elephante, e de cujo animal
já tinha comprado o dente esquerdo na cabeceira do dito rio;
respondendo affirmativamente, esperei, e eis o que digo a este
respeito:
―«
31 de maio de 1868.
Pelas duas horas da tarde chegou Muene Gambo com uma comitiva excedente
a duzentas pessoas, não
trazia marimbas, mas trazia os tambores que é de uso fazer
concerto
com os ditos instrumentos, e o indispensavel farcista ao estylo do
Luvar e da Lunda, cujo unico serviço consiste em ser
varredor, fazer
visagens, e repetir continuamente a saudação
usual do dito
povo:
Averié!
Averié!
«Tendo feito alto fóra do quilombo, (arraial), dei
ordem para que fosse introduzida, e hospedada n'uma barraca que lhe
tinha destinado, e depois de haver descançado algum tempo,
mandei
comprimental-a, e saber se queria fazer negocio do dente de marfim, que
já a
tinha precidido; respondeu negativamente, dizendo que: o seu
cancaço era grande, em virtude da jornada que
já não
comportava a sua edade; e em presença de semelhante
decisão, lhe mandei dar
algumas gallinhas, carne de vacca secca, e farinha de massango, para o
seu jantar:
concluido este dever, tratei egualmente de apromptar os generos
necessarios para o negocio em questão, a fim de estar
prevenido para o
dia seguinte.
«Frio, e vento forte de Nordeste.»
«
1.º de junho. Eram oito
horas quando mandei comprimentar Muene Gambo, e saber se estava
disposta a tratar do negocio,
apresentou-se pessoalmente com seis dos seus macotas (conselheiros),
fazendo-me vêr que, o seu fim tinha por objecto conhecer-me,
e o dente de marfim, era presente que me fazia: retorqui agradecendo a
visita; e dizendo que não tinha por habito receber presentes
de
valia, e então seria melhor tratarmos do negocio, attendendo
a que se não
daria mal. Com effeito, sendo esta gente bastante impertinente em
assumptos de mutua troca, com esta velhinha ainda robusta, eram nove
horas quando o negocio estava concluido, muito a seu contento e dos
seus
conselheiros, jurando ella que de futuro, cera ou marfim que lhe fosse
possivel obter, teria o cuidado de conservar a fim de me ser enviado
para o dito effeito; não necessitando dizer que, o direito
de
passagem que teria a fazer ao seu subdito Muene Camgamba, (soba do
local, mas que nada recebe de tributo dos viajantes, em virtude de
n'elle vir
situar muito posteriormente á passagem de comitivas para
Lui) o fiz
a ella em mais avultado quinhão, mas não exigido,
e
dado com muito gosto.
[20]
«Esta mulher deve com effeito ufanar-se da sua existencia,
visto que tem sido mãe de treze filhos que por seu turno
reinaram
em diversas partes, sendo, seis do sexo masculino, e sete do sexo
feminino, existindo apenas Chiella sua filha, actualmente em Cangilla,
e
avó do actual soba da dita terra, de que falei a 22 do mez
proximo findo; presentemente então governando os seus netos
e bisnetos de
ambos os sexos, sendo os seguintes de maior
consideração: Soba Liatto no
Lunguébungo, de quem é feudatario o soba da terra
de Muatamjamba; sobas das terras de Cangilla, Gonga e Lutembo; o
celebre Catongotongo, hoje situado proximo das vertentes do rio Cutti,
tambem é
seu neto.
«Concluindo, direi que, Muene Gambo tem para mais de oitenta
janeiros, estatura baixa, e reforçada de corpo; cabellos
brancos, cheios de missanga branca grossa, entretecida de maneira a
dar-lhe
á cabeça a apparencia de coberta com um capacete.
Uma especie de baculo de canna, de que ha abundancia nos bosques da
Lunda, imitante a canna da India, lhe servia de arrimo; trajava pannos
de zuarte, e sobre o hombro direito, trazia um especie de
enxó bastante
enfeitada. Notei que tinha o passo firme, não obstante a sua
avançada edade; e, como acabo de dizer, eram nove horas
quando o negocio estava concluido; depois de nos haver-mos despedido,
dei ordem para alevantar a comitiva.
Continuámos a viagem, passámos o rio
Cubanguí*, e proseguindo a marcha, fomos entrar no quilombo
sito na sua margem esquerda, onde nos encontrámos a 14 de
novembro do anno passado, eu, e
o meu amigo Bonifacio José Rasquete.
Tempo frio e vento forte de Nordeste.»
Agora, voltando ao assumpto de que me tinha desviado, direi que da
quinta viagem no anno 1852, está o illustre viajante
bastante ao facto, visto que n'ella tive a honra de o conhecer, o que,
hoje, em
virtude do que se tem dado julgo que melhor fôra se
não
tivesse realisado. O illustre viajante sabe perfeitamente que a
ingratidão
é uma dama que causa tedio! Quanto melhor não
fôra que
tivesse tratado simples e puramente da sua viagem no interior d'este
continente?
deixasse viver em paz os pobres traficantes? não tratasse
tanto de
uma ephemera superioridade, que hoje eleva para amanhã
abater? e
finalmente tratasse mais da Biblia, como palavra descida do
céo...
Hebitane, tinha tido conhecimento de viajantes portuguezes do Oriente e
do Occidente, muito tempo antes do illustre viajante
pôr pés em territorio africano. Os primeiros
vieram a Quiceque, e os segundos faziam parada em Locullo, apenas a
cinco dias de distancia de Nariere, como já tive
occasião de dizer; que sejam
classificados de negociantes, sertanejos, ou
mambari,
(áparte a côr) isso pouco importa. O illustre
viajante é conhecido commummente pelo seu nome:―O Reverendo
Dr. David Livingstone,―mas entre os indigenas simplesmente pelo
appellido de
Monare; a
peça de artelharia, encommenda de Habitane, na
occasião da retirada dos meus empregados, e que mandei
vir de Lisboa, teve-a seu herdeiro no poder, mais tarde, isto
é, em
1854, mas o destino que lhe deu, foi o de a mandar refundir para
manilhas dos braços e pernas, visto que era de bronze, e
pouco menos de calibre um;
[21]
o mesmo destino lhe daria
seu pae, a dar-se o caso de não
ter fallecido.
Admira pois que o illustre viajante perdesse o seu tempo com taes
futilidades, como a da prophecia; pense que ninguem é
propheta na sua patria, e muito menos na alheia: Hebitane tinha um
tanto de lunatico, e era um selvagem; nada mais natural do que
acreditar nos ditos do embusteiro Tlapano, que, em parte se realisaram
com a
revolução de setembro de 1864, preludio do
massacre de seu irmão
Borollo, regente na menoridade de seu sobrinho Ritari, de toda a sua
familia, e de toda a tribu Macorrollo, aqui no paiz, e que, como
já tive occasião de falar, elevou ao poder o
actual soba Hipopa,
filho de Cacoma Mulonga.
Esta terrivel catastrophe para a tribu em questão,
só poupou algumas mulheres que de bom grado acceitaram a
nova ordem de coisas, entregando-se voluntariamente nas mãos
d'aquelles que na
vespera curvavam a cerviz ao jugo estranho, e que no curto
espaço de vinte e quatro horas, trocando-se os papeis,
passavam de escravos a senhores. Á
excepção d'essas infelizes que inda
assim assistiram á tragedia, o massacre foi geral,
não poupou creança de peito!
Effeitos violentos de medidas que emanam sempre do terror, e que mais
tarde ou cedo fazem acabar os que as empregam ás
mãos do mesmo
terror, mas não de vaticinios sem connexão, nem
mesmo com o merecimente da
novidade.
Senhor do mais bello paiz central do continente africano, que o acaso
havia deposto a seus pés, sem que lhe custasse a mais
minima gotta de sangue, Habitane não o soube gozar, nem
mesmo soube
aplanar o caminho para os seus, a fim de que para o futuro o viessem a
desfructar; principiou por ordenar o exterminio d'elles, não
obstante o
seu já reduzido numero; até que a morte o veiu
colher em 1851, em
Rinhande de Muanamgombe ou sitio Dumbua, capital que havia fundado, e
onde jaz sepultado. Uns dizem que de morte natural, outros, e d'estes o
maior numero, dizem que envenenado; o que deixo para ser averiguado por
pessoas competentes, que de futuro se occupem com as nossas coisas de
Africa.
Hiquereto, seu primogenito, assumindo o poder, transferiu a capital
para Rinhande, local mais ao Sueste, e a oito horas de distancia,
porém, trilhando a mesma vereda de seu pae, pode dizer-se
que o seu governo foi um continuo sorvedouro de vitimas, mandadas
assassinar sob a mais leve apparencia de suspeitas, já ao
supremo arbitrio,
já em virtude de feitiços contra a sua pessoa.
Depois de uma longa
enfermidade do mal de Lazaro, foi mandado estrangular no leito da
agonia por seu tio Borollo, segundo o pregão da turba, em
1863, e sepultado
n'esse mesmo local de que foi fundador, e que durante os primeiros
annos do seu governo, se tornou um grande centro de
animação e movimento.
Borollo, vendo que o poder, depois da morte de Hiquereto, passava
ás mãos de sua mãe, apresenta-se em
Rinhande a fim de o disputar (1863), o que consegue depois de uma
grande batalha, em que a victoria depõe a corôa de
vencedor a seus
pés, assumindo por essa occasião a regencia
durante a menoridade de seu sobrinho Ritari e
[22]
recolhendo á
terra do Lui que torna a readquirir a sua
antiga preponderancia da capital do paiz. No entretanto, em logar de
poupar os da sua tribu a fim de equilibrar a
governação entre
elles e os indigenas ao contrario de seu irmão e sobrinho,
continua o seu
exterminio sem descanço, a fim de desaggravar as injurias
porque havia
passado no governo d'este ultimo: o que visto pelos naturaes, foi o
signal de
alarme para sacudir o jugo dos Macorrollos em setembro de 1864, como
acabei de dizer.
A paginas 72 e 73 o seguinte:
«Conta o Dr. Livingstone que,
tendo-se dirigido de Naliele
a
Sesheke (deve ser de Rinhande), cento e trinta milhas ao nordeste, e
descoberto o
Zambeze no centro do continente, e visitado o paiz limitrophe,
fôra
procurado, e o seu companheiro Oswell, por muitos individuos, que
trajavam baetas de differentes
cores, e um d'elles algodão pintado; e nos informa de que
taes
mercadorias eram obtidas por via dos Mambari, que demoram nas
proximidades do Bihé,
os quaes as tinham trocado por creanças de ambos os sexos.
Accrescenta que, em
1851, se realisara um rasgate de duzentos rapazes de 13 a 14 annos de
idade por
espingardas portuguezas, as quaes tinham a marca de Ligitimo
de
Braga. Ora os Mambari eram, por assim dizer,
commorcãos do Bihé, e estavam em
intimas relações com os portuguezes, com quem
traficavam em escravatura, e de quem eram corretores, e a quem, como
é sabido, e, como veremos, attesta o mesmo Dr.
Livingstone, acompanhavam nas suas excursões commerciaes
pelo interior de todas
aquellas regiões. Não póde pois deixar
de ter-se por certo, porque
se torna incrivel o contrario, que tinham dado os Mambari largas
noticias do Zambeze central.»
No já citado anno de 1845, os negociantes da
praça da cidade de Benguella que até
então depositavam inteira
confiança nos seus sertanejos do Bihé, e de
futuro continuaram, entregavam as suas
fazendas a estes sem condições previas, quer
dizer: que as
dividas até essa data fossem solvidas em escravos, em cera,
ou em marfim, isso não
era questão, esta limitava-se a que se fizesse o pagamento,
em
prazo mais ou menos longo, não obstante o estipulado na
escriptura que
era de seis meses; no entretanto, no já citado anno, foi
imposta
condição positiva de taes dividas serem pagas em
cera e marfim, o que sempre se tem verificado até ao
presente.
Não necessito dizer que isto foi motivado pelo rigoroso
cruzeiro então estabelecido para a total
suppressão do
contrabando.
Disse egualmente que as diversas terras de que se compunha a tribu da
grande familia Quimbunda, e á qual pertence a
Bihana, faziam o seu exclusivo, de escravos, e, a ser possivel a
exportação d'elles, sendo a praça da
cidade de Benguella o grande centro de
affluencià do commercio do interior, n'um
momento dado em que lhe fosse
necessario, mil, ou dois mil escravos, não tinha mais do que
enviar
emissarios pelo interior, para que no curto espaço de um
mez, tal
numero se apresentasse. O Bihé demora apenas a dez dias de
distancia d'esta cidade, e d'aqui para baixo as mais terras da tribu
designada. Ora, os sertanejos em questão, não se
podiam afastar de
uma condição imposta muito antecipadamente ao
contrahimento da divida, e na mesma
escriptura, que, para todos os effeitos reputavam de sagrada, e dada
tal hypothese, significaria faltar á fé dos
contractos, a que por certo se
[23]
não queriam expor; menos, quando fosse possivel a
exportação de escravos no litoral por qualquer
circumstancia fortuita como acabei de falar.
Porque haviam de aventurar-se então a um mercado de tal
natureza, tão longiquo como a terra do Lui, Luvar, ou mesmo
da Lunda,
tendo-o á porta, e por todo o interior nas differentes
terras de
grande familia Ganguella, depois de se transpor os rios Cuquema e
Quanza,
comprehendendo o quadrante do norte e sul, a limitar por leste com as
tres terras acima, nas quaes, muito antes das medidas suppressores do
trafico, o melhor escravo não excedia jámais dez
lenções, (medida de cinco covados cada
lençol,) e d'este preço para baixo
até tres lenções.
E sendo o primeiro preço, aquelle porque regula qualquer
escravo entre a tribu Quimbunda, não necessito dizer que,
cahe por
terra qualquer argumento em contrario ao que acabo de expender.
No Lui, os escravos eram comprados pelos Bihanos com os pagamentos que
se lhes fazia, que nunca excedeu para todas as terras do interior,
além de tres lenções, na ida
(para a cidade de Benguella regulava o mesmo preço na ida,
porém na recolhida em seis
lenções;) e outros tres na recolhida, fazenda que
dava perfeitamente para dois
escravos, que serviam de carregadores ao senhor, em quanto que elle
passava a carregar a carga do sertanejo. E hoje que se não
dão negocios taes n'este paiz, e se realisam na terra da
Lunda, os Bihanos seguem á porfia para esta.
Relativamente ao resgate ou melhor diremos compra, de duzentos rapazes
de 13 a 14 annos de edade, pelas taes espingardas denominadas
portuguezas, não teem qualificação
possivel tal asserto; no entretanto, notaremos que é um
excessivo numero de instrumentos
mortiferos para quem lhes sabe o valor intrinseco, mas não
na
mão d'esta gente que, ao menor desarranjo em qualquer mola,
e na falta de mestre para o concerto, as vendem por um
lençol de fazenda ou um
macete de missanga. Qualquer sertanejo procedente do Bihé
quando se
dirige para este paiz, nunca traz mais de uma até duas
caixas de espingardas, segundo a quadra do anno, que vem a ser no
primeiro caso, trinta, e no segundo, sessenta armas; uma parte d'este
numero fica no caminho permutado por cera e marfim; nas comitivas, de
ordinario, sempre veem um numero muito maior, mas é para sua
defeza.
D'onde, sahiu pois o numero indicado pelo illustre viajante?...
Emquanto ao rotulo, significa usurpação pura e
simples d'aquelle de que faz uso seu primitivo auctor, visto que a
procedencia d'essas
armas, hoje, é das fabricas da Allemanha e Inglaterra, que
as
mandam ao mercado por modicos preços e em virtude dos quaes
o
verdadeiro auctor não pode fazer competencia.
Até 1854 foram aquellas as armas que para aqui vieram, e
todas as tribus para o poente não fazem uso de outras,
porém, como os Macorrollos sympathisassem mais com as
raiunas, introduzidas pelo illustre viajante, principiaram estas,
d'essa epocha por deante até
1864, de affluir ao paiz, mas em consequencia dos acontecimentos
cahiram em desuso, para de novo darem entrada áquelles, as
quaes,
bem como polvora, chumbo em balas, e munição,
arame de
latão grosso, contaria
[24]
de diversas côres e qualidades, fazendas finas e
ordinarias, e finalmente roupas, finas e ordinarias, genero de grande
extracção, são de exclusiva
negociação com o soba, attendendo a que
este concentra na sua pessoa como senhor absoluto, todo o machinismo
mercantil,
negociação unicamente feito, por elle, e pelo
sertanejo que se apresenta. Concluida, ella tem logar a entrega do
marfim, e por consequencia a
distribuição dos generos pelos magnates em geral;
tem egualmente logar então a dispersão do povo da
comitiva para as
terras limitrophes, onde se permuta o marfim, egualmente os escravos,
sendo este segundo ramo da attribuição dos
Bihanos, que, se
dão melhor com elles, que não com os da sua
raça, em consequencia da humildade d'elles,
já para o seu serviço, já para
satisfazer Milongas (crimes),
já finalmente para permutar por cabeças de gado,
cujo preço é de
seis bois grandes (castrados) por um escravo, o que o possuidor decora
com o pompôso titulo
de sua manada de gado. E todo aquelle que possue esta, e, ainda
além d'ella, quatro ou seis escravos, sahiu da classe plebea
para a nobre;
já por ter maior numero de concubinas, que uma honraria
adquirida á
razão de um escravo ou um boi; e já finalmente
porque entra na
classe de pombeiro, recebendo fazendas dos sertanejos, pelo que
é
obrigado de acompanhal-os para toda a parte; sendo a isto que o Bihano
aspira unicamente, dando principio á sua carreira pelo
tirocinio de
carregador.
Pelo que fica dito se vê que o nome de
Mambari, applicado indistinctamente ao povo Bihano
pelos indigenas, e alternadamente
Himbari, e
Bimbari, pelo
povo Ganguella,
é synonymo de
Quimbar ou
Himbar,
com o qual são
designados os escravos pertencentes aos sertanejos, entre a
raça Qimbunda, á qual, como já
tive occasião de falar, pertence a terra do Bihé,
e mais terras para o poente
até á cidade de Benguella, comprehendo algumas
que demoram para o norte e sul. Em virtude do seu dialecto especial, e
unico assim denominado,
apresentando-se os sertanejos do Bihé pelo interior a tratar
de seus
negocios, os habitantes julgando o povo da comitiva como sujeito aos
mesmos, os ficaram designando de vez pelos nomes que ficam notados, e
com os quaes se não deshonram os Bihanos, povo
excencialmente
commerciante.
Nas mesmas pag. 73 e 74 o seguinte:
«Quando os Mambari (narra
Livingstone) divulgaram entre os
seus, em 1850, noticias favoraveis do novo mercado, aberto no Oeste,
muitos
mulatos portuguezes, dados ao commercio da escravatura, foram induzidos
a ir alli em 1853; e um, que similhava perfeitamente um
portuguez, chegou a Liniante
(Rinhande?) emquanto eu alli estava. Este homem
não trazia mercadorias,
e affirmava ter vindo unicamente com o fim de indagar que sorte de
fazendas teriam
sahida no mercado. Pareceu-me muito transtornado com a minha
presença.
Sekeletu (Hiquereto?), deu-lhe de mimo um dente de
elephante e um boi, e, tendo-se (o
portuguez) encaminhado a distancia de perto de cincoenta milhas a
Oeste, levou
comsigo uma aldeia inteira de Bakalahari
(Bacalaliari?) pertencente ao
Makololo (Macorrolos?). Trazia comsigo grande
numero de escravos armados; e como todos os habitantes da aldeia,
homens, mulheres e creanças foram
levados, e o facto ficou ignorado até muito tempo depois,
não se
sabe se elle realizou o seu intento por meio da força,
ou se mediante seductoras
promessas. Em todo o caso a escravidão foi a sua sorte. O
portuguez era conduzido n'uma
maca, dependurada de duas varas, de modo que tendo a
configuração
de um sacco, os Makololo, o nomeavam «o
pae-do-sacco.»
[25]
Este homem tão infamemente ultrajado, e que foi meu visinho
no Bihé, presentemente morador no concelho do Dombe, no
districto da cidade de Benguella, chama-se Caetano José
Ferreira, natural
do Barreiro, suburbio de Lisboa, e tem tanto de mulato, quanto o
illustre viajante tem de boa fé nos seus escriptos.
Sahindo comigo do Bihé a 20 de novembro de
1852,
e seu companheiro Norberto Pedro de Senna
Machado, natural de Setubal, a 16 de janeiro de 1853, a comitiva dos
ditos senhores tomou a
direcção do Sul, para as vertentes do rio Quando,
e a minha, a
direcção de Nordeste para aqui.
Caetano José Ferreira, por suggestões das pessoas
principaes da comitiva, foi levado a contrahir juramento com o soba do
local onde permutou seus negocios, dominio do então soba
Hiquereto,
como actualmente o é do soba Hipopa.
Este juramento que os
indigenas
denominam Cacendo, consiste na diabolica cerimonia dos contrahentes
fazerem uma pequena
incisão no peito, á qual depois de applicados os
labios, mutuamente
chupam o sangue que d'ella sae, e concluido tal acto, dizem-se
inseparaveis para a vida e para a morte; bem assim com direito
reciproco nos seus bens, havidos e por haver.
N'esta scena repugnante que rapido acabo de bosquejar, verificou-se,
porém, o contrario do que naturalmente era de esperar, visto
que um mez depois da retirada do mesmo senhor para o Bihé,
succede morrer o soba, e os selvagens affirmando ser proveniente do
sangue que tinha sorvido do europeu, em razão de tal
ceremonia
achar-se unicamente em uso entre os naturaes, aguardaram ensejo de se
apresentar alli em 1854 uma comitiva minha, para preparar o assassinato
de dois Bihanos, como represalia do acontecimento, notificando ao chefe
de dita comitiva, que, se Caetano José Ferreira se
não apresentasse, ou gente sua, a fim de pagar o crime da
morte do soba, os dois
assassinatos que tinham commettido, seria o preludio de
vinganças mais estrondosas na occasião em que no
local, ou
circumvisinhanças, apparecessem comitivas do
Bihé.
Effectivamente, os dois assassinatos foram
pagos pelo dito sr. no
Bihé aos parentes das victimas, e, acto continuo, foi
constrangido a mandar enviados seus com fazendas, para satisfazer ao
arguido crime da morte do soba em questão, a fim de evitar
maiores
complicações e prejuizos de futuro.
E sendo o caso que acabo de descrever a consequencia de uma imprudencia
irreflectida, qual não seria aquelle que
immediatamente se seguiria ao attentado do sequestro de uma
aldeia
inteira de Bakalahari?!! Eu vou dizer ao leitor: O chefe da
comitiva, o seu companheiro, inclusive brancos naturaes do paiz, e
brancos para mais de mil, seriam massacrados ao furor da turba de taes
paragens, sempre
[26]
avida de sangue,
attendendo a que para tal carnificina, seriam
sufficientes quarenta e oito horas, se tanto, de
communicação
pelo rio Quando, a fim do soba Hiquereto enviar a ordem, depois de
recebida a participação, no que não
seria
economico, muito principalmente tendo por mentor o illustre viajante
inglez.
Não appliques aos outros aquillo que, não desejas
te seja applicado, diz o rifão. De fado, o illustre viajante
não
pensou jámais que mui proximo teria de ser victima d'este
proloquiio, pois que recebendo debaixo da mais boa fé, do
dito soba, a gente que o conduziu
a Loanda, bem assim o marfim para alli lhe permutar, parte d'este
genero serviu de costeio á dita viagem, affectuada a qual
nos nivela com
zero; e tornando de receber identico beneficio na viagem premeditada e
realizada a Moçambique, tornou ainda a abusar da boa
fé do
mesmo soba, porque o actual senhor do Lui espera ainda pelo marfim e
gente que acompanhou o illustre viajante á mencionada terra.
Terminarei este paragrapho com duas palavras sobre a questão
das côres. Os inglezes sabem bellamente o quanto lhes teem
custado estes mesquinhos preconceitos. Os portuguezes estão
ao facto da
malquerença que entre elles e seus irmãos do
Brazil existe: no
entretanto, nem uns nem outros querem tomar o juizo perante os
exemplos, a fim de uma vez por todas acabarem com elles.
Nas mesmas pag. 74, 75, e 76 o seguinte:
«Mpepe (Pepe?) favorecia
estes commerciantes de escravos,
e
elles, segundo o seu costume, fundavam as esperanças de se
tornarem
preponderantes no bom resultado da rebellião meditada.
Conheceram que o apparecer
eu em scena havia de pezar na balança contra os seus
interesses. Um grande
golpe de Mambari tinham vindo a Liniante (Rinhande),
quando
eu andava herborisando nos prados ao sul do Chobe (Rio Quando?).
Chegando-lhes a noticia de eu estar alli proximo, mudaram de
rosto; e quando alguns Makololo, que nos tinham ajudado a
atravessar o rio voltaram com os chapéos que eu lhes dera,
os Mambari
fugiram precipitadamente. É do costume que os visitantes
peçam
licença com formalidade antes de se retirarem da terra do
chefe onde se acham, porém a
apparição dos chapéos fez que os
Mambari enfardassem á pressa. Os Makololo
informaram-se da causa da precipitada retirada, e lhes disseram que, se
eu alli
estivesse, lhes tomaria os escravos e as fazendas; e posto que Sekeletu
lhes assegurasse que eu
não era salteador, mas sim homem de paz, fugiram de noite,
achando-me eu a sessenta milhas de distancia. Marcharam para o norte,
sob a
protecção de Mpepe, construíram uma
forte estacada, d'onde alguns mulatos,
commerciantes de escravos, capitaneados pelo portuguez nativo,
continuaram no seu trafico, sem
fazerem caso do chefe, em cujo territorio tinham feito
incursão com
a maior semceremonia.»
«Accresce que, n'outro logar Livingstone, referindo-se a este
mesmo facto, accrescenta: Alguns Mambari nos visitaram
quando
estavamos em Naliele.» São da familia
Ambonda (Quimbunda?) que
habita o territorio ao sueste de Angola, e falla o dialecto bunda
(Quimbundo?) commum aos Barosse,
(Brose,
Bruse?) Baicie, etc. São tão
negros como Barosse, mas
vive entre elles grande numero de mulatos,
distinctos pela sua côr peculiar
de amarello doente. Os mulatos,
os portuguezes nativos, todos sabem lêr,
e escrever, e o
cabeça do bando, se realmente não
é portuguez, tem o cabello
europeu, e obrigado provavelmente pela carta de
recommendação do cavalleiro Duprat, arbitro por
parte do governo de S. M. F. na commissão mixta ingleza
e portugueza na cidade do Cabo,
mostrou-se sinceramente desejoso de apresentar-me todos os bons
officios ao seu
alcançe. Estas pessoas, estou certo,
foram os primeiros
individuos de sangue portuguez, que viram o Zambeze no centro do paiz,
e chegaram lá dois annos depois
da nossa descoberta em 1851.»
[27]
Ja tive occasião de dizer que, o soba como senhor absoluto
do paiz concentra na sua pessoa todo o poder, todos affirmam, mas
ninguem se aventura de reprovar a minima de suas
acções;
elle, e o sertanejo, são as duas pessoas que unicamente se
entendem sobre
negocios: feliz d'este se á primeira partida de marfim que
recebeu lhe
paga a factura, porque todo o mais que fôr apparecendo de
tributo
até ao dia da sua retirada, pertence-lhe, porque o vae
recebendo
proporcionalmente ao passo que fôr chegando.
O tributo de escravos á sua chegada, depois de escolher os
melhores para o seu serviço, é distribuido pelo
povo da
localidade, verificando-se a mesma particularidade nos mais ramos
tributarios, com excepção das canoas, e redes de
pescar; aquellas
para o serviço geral, e estas para distribuir pelos
pescadores. De tal regalia gozaram Pepe, em virtude dos seus poderes
illimitados; mais tarde Hiquereto; mais tarde Borollo; e goza
actualmente Hipopa. Esse grande numero de rapazes
de 13 a 14 annos de edade que tanto deram no goto do illustre viajante,
tambem disse só poderia ser
transacção dos Bihanos. O sertanejo quando
dá as suas fazendas ás diversas pessoas de
que se compôem a comitiva, é para a
permutação de
marfim e jámais de escravos.
Agora, rebellião de quem, a favor de quem, e contra quem?...
Eu teria tudo a perder com ella, e nada a ganhar; no entretanto posso
affirmar ao illustre viajante que, effectivamente, tive propostas
do infeliz soba Pepe de cooperar com elle para o extreminio do soba
Hiquereto, a que respondi negativamente, fazendo-lhe vêr que
tinha vindo
tratar dos meus negocios, e não ingirir-me em outros que me
não diziam respeito.
Propostas identicas me foram mandadas fazer da parte do soba Machico,
que rejeitei egualmente; ora se eu fosse natural de Zamzibar, e,
quiça, que inglez, tendo como tinha sufficientes meios de
que dispor para o effeito, talvez me inclinasse a acceitar taes
offerecimentos que
na realidade eram brilhantes; mas sendo de opinião
differente, não quiz acceitar o que por tres vezes me foi
offerecido: uma pessoalmente pelo infeliz soba Pepe, e duas por parte
do soba Machico, como acabei de dizer. As medalhas teem verso e
reverso, e quem assim
não pensar arrisca-se de cahir de muito alto.
E eu dava tanta importancia ao apparecimento do illustre viajante em
scena, ou melhor direi á sua sem razão no
assumpto a que se refere, que por elle sou justificado na minha
semceremonia de transitar em
todas as direcções, n'um paiz que não
era
meu, mas onde, no entretanto, para usofruir de tal regalia, havia
comprado esse direito, contribuindo com o competente tributo, como
é de uso em todas estas paragens.
Quereria talvez o sr. Levingstone o exclusivo d'elle como Mentor do
soba Hiquereto?!
[28]
Dependeria eu d'elle em alguma coisa?!
Mas os Bihanos fugiram de que? Pela apparição dos
chapéos, ou pela noticia que tiveram de se achar proximo o
illustre viajante, visto
que andava como diz: «herborisando nos prados ao sul do
Chobe?»
Responderei que nem por uma nem outra coisa. Retiraram-se mas foi
realmente pelo illustre explorador andar
«herborisando»... na boa fé do soba
Hiquereto, que a não ser tal
circumstancia, talvez este se resolvesse a vender o marfim que possuia,
e que não vendeu por
insinuação sua, dirigindo-se então
elles para Quiceque, e logares
circumvisinhos, bem assim para territorio do dominio da tribu Batebere,
onde permutaram as fazendas pelos dentes de elephantes, e
não:
«Marcharam para o norte, onde, sob a
protecção de Mpepe,
construiram uma forte estacada.» Esta estava concluida em
fevereiro, quando a
dispersão do povo da comitiva teve logar em março
de 1853, como passo a
demonstrar. Ella, e a bandeira das quinas que dei ordem de arvorar
á sua
chegada, causariam ao illustre viajante sem duvida, a
impressão de um raio, qual a da minha
apparição no Lui, como
já tive occasião de dizer.
Por esse lado não tem razão, como effectivamente
a não tem na maior parte dos seus escriptos, attendendo a
que a prioridade das descobertas em Africa pertence de facto e de
direito aos portuguezes. Agora, que na terra a força
disponha da justiça,
o reverendo Dr. David Livingstone, sabe perfeitamente que acima de
nós existe um
poder superior a nós, perante o qual todos teremos de ser
julgados.
Relativamente á celebre estacada de Catongo, ou muro de pau
a pique, de que acabei de falar, responderei que querendo eu ficar na
margem d'além do Riambeje, por estar ao facto das
desintelligencias do soba Pepe com o soba Hiquereto, aquelle fez-me
vêr que tal
passo não era do seu agrado, em virtude do que, dei ordem
para se passar para a margem d'aquem. N'esta, foi-me destinada a
montanha denominada Catongo, para fabricar o estabelecimento, local
verdadeiramente bello pela elevação que occupa, e
pela prespectiva que
apresenta da sua sumidade. Dei principio e conclusão
áquelle fabrico em
fevereiro do já citado anno, seguindo o povo da comitiva
para os differentes pontos do paiz no mez de março seguinte,
bem assim a comitiva de
Moçambique, e isto depois de recebida a ordem do soba
Hiquereto para o indicado effeito, quando ainda o illustre viajante
não tinha chegado
da sua tão apregoada segunda viagem.
Desgostoso pelos acontecimentos, fiz formal
tenção de não voltar ao Lui; despachei
os meus empregados no anno seguinte de 1854, porém
regressando elles ao Bihé junto a
emissarios do soba Hiquereto, e de sua ordem, tanto insistiram commigo
que resolvi seguir viagem em 1858. Chegando no paiz fiquei na margem
d'aquem do Riambeje, no estabelecimento de Luiz Albino Rodrigues, e
local dos primeiros, onde continuou fluctuando a bandeira das quinas,
além da que
nos era inseparavel, quotidianamente, na frente da comitiva, sendo
então logar-tenente de Hiquereto, seu tio Borollo, com quem
communiquei no que dizia respeito aos meus negocios, attendendo a que
aquelle era apenas um automato da vontade d'este, e o Lui,
Broze, e
Bruse dos
indigenas,
[29]
era simplesmente a sombra de sua passada
grandeza. O movimento, e a vida do paiz, estava litteralmente falando,
em Rinhande.
Depois de ter despachado a comitiva para os seus differentes pontos, e
de ter chegado a esta capital, n'um dia, em
occasião de conversar com Hiquereto, disse-me elle que: o
illustre viajante lhe havia dito não approvar no paiz a
presença de
Macuas de Oeste, pois que pretendiam apossar-se d'elle, havendo as
provas do que
avançava, na estacada por mim feita em Calongo!!
Respondi ser falsa semelhante asserção, tendo
elle provas mais convincentes do contrario na minha recusa de voltar ao
paiz, e quem pretendesse assenhorear-se de qualquer dominio,
não dava,
por certo semelhante passo, nem, ainda, se apresentaria com a
força
com que eu me apresentava; poderia pois socegar por este lado, porque
não seria da minha pessoa que lhe resultaria o menor damno.
Podendo inferir-se de um tão insolito procedimento, a
razão de ser que existe na
confrontação de portuguezes e
inglezes, descripta a ps. quinze da introducção,
68 e 231 do
Exame, accrescentarei, que não levei
jámais a audacia a ponto de malquistar
meus irmãos perante os selvagens, considerando como meus
irmãos todos aquelles
que andam peregrinando por estas paragens seja qual fôr a sua
procedencia e naturalidade.
Em presença do que acabo de dizer, perguntará o
leitor para que dirigia a carta de offerecimento dos meus
serviços ao
illustre viajante; responderei que então não quiz
dar credito ao que
Hiquereto me disse, attribuindo a revelação a
intriga dos familiares;
hoje, porém, verifica-se o contrario em presença
dos factos que se apresentam.
É menos exacto egualmente o que o illustre viajante diz
sobre dialectos, isto é, ser commum a lingua Quimbunda ao
povo Lui
e Baieie; Como a ps. 191 do
Exame se trata
mais detidamente do assumpto, responderei que, é commum a
lingua Quimbunda a grande parte
do territorio Africano, podendo fazer-se egual parallelo entre ella, e
o dialecto Bunda (de Angola e suas dependencias) áquelle que
se dá entre a Portugueza e a Castelhana: mas já
não assim em
relação aos dialectos Cafrial, Ganguella, Humbe,
Macorrollo, e Mullua; não
menciono a tribu numerosa dos
Cassaqueres,
especie de ciganos, de côr pardo claro, e errante pelo
interior do continente, em virtude do seu estado vagabundo. Aquelles
tribus espalhando-se com o correr do tempo pelo extenso e vasto solo
que lhes deu o berço, vieram mais tarde
a mesclar-se umas com as outras, formando nações
diversas, e
taes como existem presentemente. Os sabios de futuro terão
de resolver
o problema.
Reservando para aqui as palavras que de proposito sublinhei de:
«
Alguns Mambari nos visitaram quando
estavamos em Naliele.» direi que não
têem qualificação
possivel, visto que o illustre viajante foi visitado por mim, e
não pelos Bihanos, faltando por consequencia ao que deve a
si como cavalheiro, nivelando um outro com os selvagens.
A
paginas 77 e 78 o
seguinte; ouçamos o que diz ao ponto o Dr. Livingstone, e
ficaremos desenganados:
[30]
Mr. Oswell e eu nos dirigimos para
Sesheh
(Quiceque?) a cento e trinta milhas ao Nordeste,
e, no fim de junho de 1851, fomos recompensados das nossas
fadigas com o descobrimento do Zambeze no interior do continente. Isto
era de grande momento, porque d'antes não se sabia que
existisse
alli aquelle rio. Os mappas portuguezes todos o representam como tendo
origem muito mais a
Éste do lado onde nos achavamos, e se em algum tempo tivesse
existido coisa
que semelhasse uma serie de postos commerciaes atravez do paiz, entre
as latitudes
12.° e 18.° Sul, esta magnifica
porção
d'aquelle rio
devia ter sido conhecida. Nós o vimos no fim da
estação estiva, tempo em que o rio
está mais diminuido, e comtudo levava então
corrente de agua profunda na largura de tresentas a
seis centas jardas. Mr. Oswell declarou que nunca vira rio
tão formoso
(que não tem em tal logar formosura, visto ser
despido de arvoredo), nem mesmo
na sua India. No tempo da sua inundação annual
eleva-se
perpendicularmente vinte pés e alaga quinze ou vinte milhas
de terras adjacentes ás suas
margens.»
Não obstante repizar n'um objecto que não admitte
controversia, como seja o Riambeje visitado em antiga data pelos meus
concidadãos; anteriormente a 1845 pela minha gente em
territorio do dominio da Lunda, e d'esta data por deante no Lui,
lembrarei a feira de Cassange estabelecida de antiga data, e da qual
ainda me não occupei.
Os portuguezes ahi estabelecidos enviavam e enviam suas fazendas pelo
interior, tomando diversas direcções, e em
algumas, segundo
os pontos a que se dirigem, passam e tornam a repassar o Riambeje. Em
identicas circumstancias temos os portuguezes residentes nas Pedras de
Pungoandongo, as suas fazendas seguem da mesma fórma para
todos os pontos do interior, em alguns passam e tornam a repassar o
Riambeje,―
Riambei e
Riambeje,
nomes empregados
commummente pelos indigenas por estas paragens, para designar o grande
rio, e cujas terras banha com as suas aguas, o qual, como já
tive
occasião de falar, é o manancial de mais longo
curso conhecido aqui em Africa.
No dia 20 de janeiro de 1848 na viagem dos meus empregados, eis o que
digo em relação a este rio:
―«Passámos o Riambeje para a margem opposta, ao
qual se torna impossivel marcar as braças que
poderá ter, em
consequencia de ser um grande descampado todo cheio de agua na presente
estação; o rio dirige o seu curso pelo centro, as
canoas largando da margem direita para a esquerda, gastam seis horas de
bom remar na ida e volta. O Riambeje tem a nascente na terra do dominio
da Lunda denominada
Musso-candanda, e vae
desaguar no
mar para o Oriente.»
Na actual viagem encontrei no estabelecimento Bonifacio José
Basquete e o seu empregado João Francisco da Silva; aquelle
senhor na
sua viagem do Bihé para Cazembe-mucullo, passou, a um dia de
distancia d'aquella terra, o Riambeje, com agua pela curva da perna;
accrescentando o dito seu empregado, que, a gente da
povoação
Namoanna Hicungo, do já citado dominio de Musso-candanda,
está situada na cabeceira do rio em questão,
d'onde tiram agua para seu uso diario. A povoação
de um dominio qualquer pode existir
hoje, e amanhã desapparecer em virtude da sua
fórma de governo, mas já
não a terra de Musso-candanda, ou mesmo outra qualquer em
dominio poderoso; mudam apenas os sobas. Concedendo porém
que assim não seja como acabo
[31]
de transcrever, é fóra de toda a duvida que
qualquer rio caudaloso aqui em Africa, vadiavel que seja com a agua
pela curva da perna, d'ahi á sua cabeceira não
podem distar mais de
quatro dias de jornada, a experiencia assim m'o tem ensinado. Fica pois
demonstrado que não tem razão de ser a
pretensão
do illustre viajante á descoberta do Riambeje no interior do
continente, em 21 de junho de 1851, querendo ainda corroboral-a com a
presença de mr. Oswell,
attendendo a que muito anterior á sua
apresentação no dito local, isto é, de
fins do seculo passado até ao presente, os portuguezes o
teem passado e repassado em todos os pontos banhados pelas suas aguas.
A paginas 79 e 80 o seguinte:
«Fallando do reino de
Matiamvo, e do desejo que tivera de
visitar este potentado, diz o dr. Livingstone: Que lhe asseguram, assim
os commerciantes
indigenas, como os naturaes de Balonda
(Calundas?) que um braço
consideravel do Zambeze, corre no territorio a leste da capital, e
caminha ao sul.
«Todo este braço (accrescenta o dr. Livingstone)
incluindo o ponto, d'onde toma a oeste,
para Masiko (Machico?) está
assignalado no mappa (d'elle Livingstone) provavelmente em demasia ao
nascente. Foi assim marcado quando eu pensava que o Matiamvo
e Cazembe ficavam mais a leste do que tive ao depois motivo para
julgar.
Sendo todas estas indicações derivadas do
testemunho
dos indigenas, eu as dou com desconfiança, e como carecendo
de ser verificadas por novos exploradores.
Machico acossado por Pepe, e mais tarde seu tio Rimbúa, que
habitava as lagoas do rio Nhengo, onde se tinha exilado, depois de
Hebitane se assenhorear do paiz, foram fixar domicilio no mesmo local a
oito horas de marcha, de distancia um do outro, onde vinham permutar
seus negocios as comitivas procedentes das Pedras de Pungo-Andongo, de
Cassange e do Bihé; mas depois de ser assassinado por seu
tio Hipopa, este assenhoreou-se do dominio, que desfructou
até o momento de ser acclamado senhor do Lui, e por esse
motivo aquelle ponto presentemente é dominio seu feudatario,
dando logar a
que não seja tão concorrido.
É d'esse mesmo local que eu disse por occasião da
passagem do illustre viajante para Loanda, achar-se apenas a dez dias
de distancia da nascente do Riambeje, segundo as
indicações de
Hipopa, que por vezes foi á caça dos elephantes
para essas
partes. Com effeito, no espaço que medeia entre Machico e
Catende para o sul e sudoeste, que são necessarios dez dias
para percorrer, deve effectivamente
encontrar-se a nascente do grande rio.
De Catende para Catema, temos cinco dias, d'esta terra para Chaquilembe
outros cinco dias; estas tres terras são tributarias do
Matiamvo, e n'ellas limita o seu dominio com a tribu do Lui, do Luvar e
do Quiboco, sendo em Chaquilembe que as comitivas procedentes das
terras que acabei de designar, se refazem de mantimento para continuar
a sua viagem mais para o centro, e quem, seguindo por ellas, tomar a
direcção do nordoeste e leste,
não passa o Riambeje porque o deixa ao sul e sudoeste, como
acabei de dizer.
Agora, as comitivas da mesma procedencia tomando esta ultima
direcção, teem necessariamente de passar pelas
terras de Musso-candanda
[32]
e Canunguessa, egualmente do dominio Matiamvo, e passar o Riambeje na
sua nascente, a vau ou em ponte, segundo as localidades a que se
dirigir.
Se, pois, o illustre viajante, pondo de parte preconceitos mesquinhos e
futeis puerilidades, tratando com mais afinco dos objectos em immediata
relação com a sciencia, partisse de
Machico com destino a estas ultimas terras, e n'ellas tratasse de
investigar o que tanto
prendia com o seu dever, teria sem duvida achado a chave do enigma,
como seja a nascente do Riambeje, deixando por consequencia de luctar
n'aquella duvida do ser e não ser, como infelizmente se veiu
a realizar para a sua pessoa.
A mesma pagina 80 o seguinte:
«Expondo a extranheza que lhe
causou o phenomeno de um rio
correndo em duas direcções oppostas, nota o dr.
Livingstone que não advertira, quando tinha atravessado o
Lotembua, qual direcção toma a
corrente d'este rio; mas que, tendo feito reparo, ao achar-se da outra
banda do lago Dilolo, de que
seguia para o sul, presumiu que nascia no grande paúl, que
observara
indo para o nordeste, e continuava correndo para o meio dia;
porém que chegando
á margem meridional, ali o informaram de que a parte do rio,
que tinha acabado de
atravessar, caminha ao norte, e não desagua no lago Dilolo,
mas sim no rio
Kasai. Posto que eu não observei a corrente (adverte
Livingstone) de nenhuma
sorte duvido de que seja exacta a asserção, que
aliás
me foi confirmada, nem de que, por conseguinte, o lago Dilolo sirva de
reservatorio commum dos rios que vão
correndo uns para o nascente, outros para o poente.»
A este respeito só a sciencia geographica pode apresentar um
trabalho completo, o que não está em
relação com os meus conhecimentos; no entretanto,
apresentarei aquillo de que posso dispor, dizendo que os rios de uma
mesma origem, e com direcções
oppostas, abundam aqui em Africa:―aquelles de que tenho conhecimento
segundo as informações obtidas, são os
que
seguem descriptos nas minhas differentes viagens:
Rio Loengue, na terra de
Miqueselumbue.
Rio
Lunguébungue, no territorio Ganguella, das tribus
Luchiaje e Bunda.
Rio
Quando, no territorio Ganguella, das tribus Zambueira e
Bunda.
Rios Cuito da
Zambueira, Cuime e
Cuiba, no
territorio Ganguella, entre as tribus Luchiaje, Zambueira, e Quiboco.
Rios
Caquema,
Cuito e
Cunhinga, no territorio Quimbundo, do dominio do
Bihé, descampado denominado Inhana
Umbolobulo.
Rios Cubango e
Cutato dos Mangoias, no territorio
Quimbundo proximo ás terras de Candumbo e Sambo, descampado
denominado
Acaca e Acatumbo.
Rios Quebe
(
Cubo na sua foz ao sul de Loanda) e
Cunene,
no territorio Quimbundo, na
terra do Ambo, montanha denominada
Ecunjo, e
assento da libata grande
da dita terra, podendo dizer-se que, é ella e suas
circumvisinhanças, a paragem
onde têem origem todos os rios que deitam suas aguas no
Atlantico, comprehendendo
todo o litoral ao sul de Loanda até Benguella.
Não falo do Cunene, visto que segue curso mais longiquo pelo
interior, até
á sua foz ao Sul de Cabo Negro. Tambem é voz
tradiccional que n'ella existem
min, e
assento da libata grande
da dita terra, podendo dizer-se que, é ella e suas
circumvisinhanças, a paragem
onde têem origem todos os rios que deitam suas aguas no
Atlantico, comprehendendo
todo o litoral ao sul de Loanda até Benguella.
Não falo do Cunene, visto que segue curso mais longiquo pelo
interior, até
á sua foz ao Sul de Cabo Negro. Tambem é voz
tradiccional que n'ella existem
minas de oiro, explorado em principio do seculo actual pelo sertanejo
de Benguella João Pedro Costa.
[33]
A paginas 91 depois de fazer vêr o illustre auctor do
Exame que, o conhecimento da
navegação e do curso do Zambeze
pelos portuguezes, já é de antiga data, conclue
como segue:
«Eis aqui as palavras do
homem tão competente,
como insuspeito a que me referi, fallo de mr. V. A. Malte-Brum, que
dando noticia do mappa de
Zambezia e Sofalla do sr. visconde (hoje marquez) de Sá da
Bandeira,
que vae publicado no fim d'este volume (do exame) assim se explica.
«
A carta que
temos á vista
comprehende a parte da Africa Austral, que se estende do 10.º
ao 24.º
grao de latitude meridional, e do 25.º ao 41.º
gráo de
longitude
oriental do meridiano de Greenwich.
O mappa representa o curso do Zambeze desde Seshek, capital dos
Makololos, até á foz do rio, e tem por objecto
fazer
conhecido, qual é sobre as suas duas margens, e no interior
do continente africano austral, os estados dos
conhecimentos e dos dominios portuguezes.
Não ha duvida em que, por esta costa oriental da Africa, os
portuguezes hajam ha muito penetrado muito mais ávante do
que nenhuma
nação europea; mas tambem nada mais certo do que,
quer fosse por motivos politicos, quer
fosse por indifferença
relativamente
aos interesses scientificos, haver-se guardado silencio
ácerca de descobertas que só o engodo commercial
tinha provocado. Hoje os portuguezes parece que soffrem o castigo
d'este silencio premeditado; silencio que deu naturalmente
occasião ao esquecimento; e comtudo elles
reclamam a prioridade das descobertas feitas pelo reverendo David
Livingstone sobre as
margens do Chire e do Nhanja... O mappa permitte que se faça
idéa exacta da extensão que tinha adquerido o
dominio portuguez sobre a costa de Sofalla, e
sobre as margens do Zambeze, e contem indicações
uteis,
que debalde se procurariam n'outra parte.»
A prioridade das descobertas pelos portuguezes, está
demonstrando até á saciedade que lhes pertence de
facto e de
direito, faltando unicamente para que fossem o que deviam ser, e era de
esperar, que, o governo ou mesmo sociedades scientificas, enviassem
homens praticos nos conhecimentos dos differentes ramos da sciencia
humana, a fim de explorar, investigar, e descrever tudo o que teem
immediata
relação com essas descobertas, e quando tivessem
a desgraça de serem
seifados pela morte, como succedeu ao dr. Francisco José de
Lacerda e
Almeida, era do dever não desanimar, proseguindo sempre na
obra
encetada até o seu complemento. As honras, as grandezas, e
os premios, foram
instituidos para renumerar taes feitos, visto que como diz Mr.
Matte-Brun, o engodo commercial obriga a grandes reservas, e distrae os
espiritos para a sordida avidez dos interesses.
Mas que é o que pode prosperar sobre a terra sem esse agente
que se chama commercio?! Aquelles, que vivem exclusivamente d'elle,
não são competentes para metter hombros a taes
emprezas, e os
exemplos temol-os de casa.
Se a minha obra fosse o que deveria ser, ha muito que estaria
publicada, e talvez que em diversas linguas, obrigando o illustre
viajante, a se tornar mais commedido nos seus
escriptos; não o tem sido pela falta de valor litterario,
nunca é tarde
porém Se a minha obra fosse o que deveria ser, ha muito que
estaria
publicada, e talvez que em diversas linguas, obrigando o illustre
viajante, a se tornar mais commedido nos seus
escriptos; não o tem sido pela falta de valor litterario,
nunca é tarde
porém para se emendar e corrigir erros.
[34]
As pag. 96 e 97 o seguinte. No cap. 12 escreve o dr. Livingstone:
«Procurando certificar-me se
por ventura Santura
(Sanduro?) tinha sido visitado em algum tempo por
homens brancos, não pude achar vestigios
de tal visita: não existe prova de que alguem da tribu de
Santura tivesse
visto um homem branco antes da minha chegada e de Mr. Oswell em 1851.
Aquelles povos não tem, é certo,
recordações escriptas; porém os
acontecimentos notaveis são commemorados por nomes, como
Parke observou ser costume nas terras por
onde viajara. O anno da minha chegada foi honrado com o nome do anno em
que
chegou o homem branco. Depois da primeira visita de minha mulher muitas
creanças tiveram o nome de Ma-Roberto
(applicado á mãe e não ao filho,
synonimo das primeiras lettras; depois do traço é
o nome do
filho. A tribu Quimbunda serve-se das lettras Ma, para designar
Mãe) ou mãe de
Roberto, nome do seu filho mais velho, outros tiveram o nome de
Espingarda, Wagon, Monare, Jesus, etc,
porém posto que os nossos nomes e os dos nativos
portuguezes, que vieram em
1853, foram adoptados, não ha vestigio de que tivesse logar
cousa
semelhante mais cedo entre os Barotse: a visita do homem branco
é acontecimento
tão notavel, que, se tivesse occorrido durante os ultimos
cem annos, devia ter d'ella ficado
tradição.»
«É muito para notar esta insistencia do dr.
Livingstone em que não eram os portuguezes conhecidos dos
Barotse. Esta demasiada insistencia faz
desde logo nascer suspeitas no animo do leitor desprevenido, e
mórmente
se porventura está familiarisado com a maneira de escrever
do celebre missionario: n'elle
a insistencia longe de significar segurança, quasi sempre
indica
hesitação, e não acontecerá
agora o mesmo? Examinemos.»
«Em uma nota ao logar citado diz o dr. Livingstone:
«Os Barotse dão a si o nome de Buloiana, ou
pequenos Baloi, como procedendo do Loi ou Lui,
segundo a commum pronunciação. Lui tem sido
visitado
pelos portuguezes, porém como a
posição de Lui não está
bem fixada, voltaram-se as minhas indagações para
verificar se porventura era a mesma que a de Naliele. Perguntando ao
cabo dos Mambari, chamado Porto, se tinha ouvido dizer que Naliele
tivesse
anteriormente sido visitada, respondeu negativamente, e declarou
«que por
tres vezes tentara elle ir alli do Bihé, porém
que sempre lhe
tolhêra o intento a tribu dos Ganguellas.» Elle
quasi o conseguiu em 1852, porém foi repellido. Agora
(1853) tentou ir ao nascente de Naliele, mas retrocedeu para Barotse,
não
podendo ir além de Kamko, povoação
situada junto ao rio
Bashukulompo, a oito dias de distancia. A gente de Porto desejava com
ardor obter a recompensa promettida pelo
governo portuguez. O não ter sido elle bem succedido,
confirmou-me
na intenção de ir para Oeste. Porto benevolamente
se offereceu a acompanhar-me, querendo
eu ir com elle ao Bihé, porém, não
acceitando eu, precedeu-me a Loanda, e, estava publicando o Diario
da sua viagem,
quando cheguei áquella cidade. Ben-Habibe contou-me que
Porto tinha remettido cartas para Moçambique
pelo arabe Ben-Chombo, que eu conheci; e depois assegurou, em Portugal,
que elle mesmo
fôra a Moçambique com as suas cartas.»
O illustre viajante sendo menos exacto na
exposição dos factos, taes, como se deram,
permitta-me de os narrar como se passaram.
No dia 1.º de fevereiro de 1853, cheguei na terra do Lui,
margem
direita do Riambeje, isto é, ao estabelecimento feito pelos
meus empregados em 1850, sendo n'este mesmo mez que passei para a
margem esquerda, e dei principio e fim ao novo estabelecimento, e
ficando por consequencia depois da sua conclusão, esperando,
que chegasse a
[35]
licença do
soba Hiquereto, para a comitiva tomar os seus
differentes destinos.
Com effeito, ella não se fez muito demorada, porque a 12 de
março chegaram os emissarios do soba Pepe que tinha partido
para Rinhande á nossa chegada no paiz, juntos a outros do
soba
Hiquereto, que acompanhavam doze dentes grandes de elephante para
permutar por polvora, com ordem para a comitiva transitar por onde bem
lhe conviesse: o que logo se levou a effeito, visto que tudo se achava
prestes para o dito fim; bem assim a partida da comitiva de
Moçambique, realizada a 25 do já citado mez e
anno, como egualmente tive
occasião de falar.
Projectando Pepe, em fins de maio, prestar homenagem ao seu Suzerano, e
em attenção, á qualidade de seu
hospede com que era tratado, convidou-me para a jornada, que,
gostosamente acceitei, em virtude da recente noticia da chegada de um
homem branco com carros a Rinhande. Este homem era o illustre viajante.
Partimos a 20 de junho, eu por terra, o soba Pepe pelo Riambeje, em
companhia de quem enviei Jorge José Motta meu empregado, com
dois fardos de fazendas, (esta fazenda voltou intacta para o
estabelecimento) para permutar por marfim, segundo a
indicação d'aquelle.
A 3 de julho cheguei a Quiceque, onde, os primeiros emboras da minha
recepção foram a noticia do assassinato do
soba Pepe, traiçoeiramente, ás mãos de
seu primo Hiquereto, e victima por
consequencia da sua bonhomia e boa fé.
Confesso que bastante impressionado fiquei com tal acontecimento,
fazendo-me luctar na alternativa de retroceder, ou de proseguir
ávante, mas vencendo esta fraqueza, optei em proseguir a
minha jornada,
chegando a Rinhande a 12 do já citado mez, onde fui
minuciosamente
informado, pelo dito meu empregado, do homicidio em questão,
o qual o illustre viajante em virtude dos seus usos, teria o cynismo de
attribuir a connivencia nossa e os mais que após se seguiram
na
desditosa familia da victima, quando o pequeno leão senhor
do Lui
fosse assistido de qualquer portuguez, como era assistido da sua
pessoa.
Pela minha parte não lhe quero arrogar semelhante injuria.
No dia 13 estava prestes a seguir para a libata grande ou
povoação do soba, comprimentar este, reservando
para depois a mesma cerimonia para com o branco, que os indigenas
appellidavam geralmente de
Monare (synonymo de
negociante ou
sertanejo, como o illustre viajante me disse), quando, inesperadamente
se apresenta o primeiro seguido de um numeroso sequito, como
é de costume entre os
Macorrollos, e após elle, o illustre viajante, pelas nove
horas da
manhã.
Depois de trocados os comprimentos do estylo, puzemo-nos a conversar;
segundo as minhas indicações falava o interprete
Joaquim Marianno, conhecido dos indigenas pelo appellido de
Hindere (synonymo de branco na lingua quimbunda),
com Hiquereto, já seu
conhecido da viagem de 1850, pastoreando elle ao tempo o gado no Lui,
como
já tive occasião de falar, e eu, com o illustre
viajante que,
dirigindo-me a palavra sobre se eu falava inglez, francez, latim, etc.,
respondi negativamente,
[36]
não dissimulando o meu constrangimento em
presença de taes interrogações.
Apresentei-lhe papel e lapis a fim de inscrever o seu nome, o que fez,
fazendo eu outro tanto por baixo, bem assim, passei a inscrever o de
Caetano José Ferreira, segundo a
indicação do illustre viajante, trabalho a que se
não quiz dar na occasião da
visita do mesmo senhor no local, pelo julgar,
quiçá, de superfluo;
retirando-se o soba e o seu sequito, bem assim o illustre viajante,
eram onze horas.
No dia 14 recebi dois dentes grandes de elephante e um boi, presente do
soba Hiquereto, que retribui na occasião, e mais tarde,
na minha retirada para o Bihé, e n'este dia, pelas dez
horas,
fui retribuir as visitas recebidas na vespera, a primeira ao soba por
ter a certeza de que não seria tão demorado, e a
segunda ao
illustre viajante, onde me demorei bastante tempo e tive a honra de
jantar.
Antes porém de proseguir ávante, permitta-me o
illustre viajante, que passe a transcrever os trechos que seguem, e que
vem aqui muito a proposito; o primeiro tem
relação com o
assassinato do infeliz soba Pepe, prova de que nada diz a seu respeito,
e é este:
«
10 de julho de 1853.
Continuámos a viagem, e fomos fazer quilombo nas
povoações de Rinhande. Caminho plano, mattos
de espinheiro, e palmeiras, abundante de sal, terreno fertil, leguas
andadas 6, rumo de oeste. Este local serviu de theatro ao mais atroz
attentado, no assassinato do infeliz soba Pepe, perpetrado por seu
primo o soba Hiquereto. O homicida não tendo a menor
consideração para com aquelle que espontaneamente
lhe havia entregue o poder, tão cobarde
se mostrou, que o commetteu á traição,
e revestido
do seguinte facto: Em maio do corrente anno, partiu Borollo da capital
do Lui, dizendo ao seu superior que seguia para Rinhande a visitar
Hiquereto; na realidade
assim se verificou, porém, o objecto da sua visita teve por
fim a ambição do poder em mira, servindo-se das
armas
da calumnia, para levar a cabo seus malevolos intentos contra quem o
havia salvo da morte, livrando-o da azagaia de seu irmão o
defuncto soba
Hebitane; diz o rifão que «quem seu inimigo poupa
nas
mãos lhe vem a morrer». Tendo a calumnia na mente
do inexperto soba sortido o desejado effeito,
com a sua inexperiencia de moço e selvagem, não
quiz recorrer a provas para a salvadora
justificação da victima, mas
sim, servindo de juiz e algoz a um tempo, saciou a sede de sangue
n'aquelle que lhe apontavam
de rival. Foi, pois, n'este local, que sahindo ao encontro da sua
victima, e a titulo de obsequio, a deshoras, commetteu o homicidio,
degolando o infeliz. Egual sorte espera no futuro o calumniador, muito
principalmente n'este paiz, em que a vontade do chefe é a
lei suprema.»
Os dois paragraphos que seguem é para que o leitor possa
avaliar o cavalheirismo do illustre viajante, na linguagem empregada
nos seus escriptos em relação á minha
pessoa.
«
13 de julho. Fui visitado
pelo soba Hiquereto, que esteve a conversar perto de duas horas no
quilombo, ao cabo de cujo espaço, e seguido do seu sequito,
se retirou á sua
povoação. Ao mesmo tempo tive a honra da receber
a visita do dr. David Livingstone, missionario
[37]
inglez, enviado pela Sociedade da propaganda
da fé em
Londres, a fim de explorar o interior de Africa.»
«
14 de julho. Fui visitar
o dr. Livingstone, e vendo até que ponto pode chegar a
industria dos inglezes, completamente admirei o seu arrojo. A comitiva
do dr. é composta de oito pessoas, e em
geral, bem como elle, falam perfeitamente a lingua dos macorrollos;
dois grandes carros de quatro rodas cada um, e puxados cada qual por
seis juntas de bois, transportam uma immensa bagagem, que, a ser
conduzida por pretos, indispensavel seriam sessenta carregadores.
Sahindo, pois, do Cabo da Boa Esperança, até
á capital
do povo Macorrollo, gastou seis mezes de viagem, passando unicamente
dois rios caudalosos, Orange, proximo do Cabo, e Quando, proximo de
Rinhande; havendo ao mesmo tempo paragens, nas quaes não
encontrava agua em cinco dias
consecutivos. É, pois, esta a segunda viagem do dr. David
Livingstone a Rinhande, e a querer emprehender viagem para o Occidente
com taes carros, inteiramente se tornava impossivel, em virtude dos
mattos
fechados a percorrer, serras a transpor, grandes paues, e finalmente
abundancia de rios caudalosos. Teve a bondade de me fazer ver todos os
seus mappas, uns completos e outros incompletos, e ao mesmo tempo, que
desejava seguir em minha companhia até á
capital de Angola, ao que annuindo, lhe fiz ver que com muito gosto
acceitava a sua
companhia; depois de nos havermos despedido, retirei-me ao
quilombo».
Tornando ao assumpto de que me tinha desviado. Depois dos comprimentos
indispensaveis, o illustre viajante apresentou-me os seus mappas, uns
completos e outros incompletos, e um mappa antigo
portuguez, de pequeno formato, contra cujo auctor se mostrou o illustre
viajante agastado, por não haver marcado precisamente como
era do seu dever, a posição e largura do rio
Loanja,
apresentando-o muito fóra do seu natural.
Objectei que os rios na estação invernosa,
são uma cousa, e na estação secca,
outra, talvez que essa mesma
circumstancia se desse em
relação ao rio Loanja, sendo visitado na primeira
d'essas estações pelo auctor do dito mappa, o que
o fizera cahir em erro, mas que tendo eu transitado pela sua margem
direita, tres dias consecutivos, e trazendo a
direcção do sul para Quiceque, lhe assignalara
tres braças de largo, sem comtudo o haver passado, e com a
particularidade de ser na
estação secca; não insistindo mais
sobre este ponto, aqui terminou o
incidente, do qual me tornarei a occupar. Disse mais se tinha conhecido
o soba Hebitane. A uma proposição tão
insolita, respondi indicando o interprete Joaquim Mariano; a isto nada
retorquiu.
Perguntou mais quantos dias eram do Bihé ao logar em que nos
achava-mos; respondi que só apresentando o Diario da minha
viagem poderia dizer alguma cousa com precisão.
Fomos jantar, e depois d'este, apresentou-me o illustre viajante um
mappa em branco, que desenrolou; deu-me um lapis, a fim de marcar a
posição do Bihé, e pontos
principaes por onde tinha transitado. Mais um vexame para mim, por me
fazer passar por ignorante aos olhos do illustre viajante, visto que
tive mais de uma vez de lhe responder negativamente, dizendo
não ter os conhecimentos necessarios
[38]
para tal. Enrolou o mappa, que guardou, bem assim a bussola, e depois
apresentou-me a carta do cavalheiro Duprat, especie de circular
ás auctoridades e subditos de S. M. F., recommendando o
illustre viajante, a qual, depois de ter acabado de ler, dobrei e
entreguei; e como fossem já cinco horas da tarde despedi-me
e retirei ao
quilombo.
No dia 15 de julho, fui percorrer a povoação de
Rinhande, e tendo sido prevenido de que Hiquereto partia no dia
seguinte para o Lui, pelo Riambeje, em companhia do illustre viajante
(foi n'esta
occasião que elle visitou a catarata Cungo
(
Chungo) ou Mosioatunia, e que
tiveram logar os assassinatos de que acabei de falar, na desditosa
familia do infeliz soba Pepe) dispuz a minha partida para o mesmo dia,
mas por terra, e pelo mesmo caminho da vinda, em consequencia de ter
ficado a minha cavalgadura no caminho, a quatro dias de distancia de
Quiceque, por motivo da mosca
Zeze em que abunda as margens do Loanja, do que
já tive occasião de falar.
A 16 de julho parti de Rinhande, e depois de vinte dias gastos no
caminho, em marchas e demoras, cheguei ao estabelecimento a 4 de
agosto. Acto continuo á minha chegada mandei chamar a gente
que tinha partido para Moçambique a 25 de março,
a fim do
seu chefe dar conta dos motivos que originaram o aborto da viagem,
cujos se acham
descriptos no logar competente. Após esta audiencia tambem
mandei
chamar as pessoas principaes da comitiva, a quem expuz os pormenores
relativos á viagem que acabava de fazer, bem assim a
tenção immediata de continuar jornada para o
nordeste, a fim de me encontrar com os pombeiros de Miqueselumbue,
unicos que faltavam no estabelecimento. Isto era um dever a que me
não podia eximir, segundo a
pratica estabelecida, e concluido elle, dei por terminada esta segunda
audiencia, e ordem para os preparativos de partida.
No dia 5 de agosto apresentei-me na libata grande, onde pernoitei, a
fim de comprimentar Hiquereto, bem assim o illustre viajante;
retirando-me no dia 6, visto haver cumprido esse dever de civilidade.
N'esta povoação denominada Nariere, entre outras
coisas de que falámos, veiu a do illustre viajante fazer
menção dos
recentes assassinatos, consequencia do trama preparado por Borollo;
respondi que egual sorte aguardava este no
futuro.
Disse mais que desejava viver retirado, e, se, com este
intuito não haveria para o occidente uma
terra para n'ella residir; respondi negativamente, visto que o illustre
viajante havia delineado um segundo paraiso. E, interrogado mais sobre
se em Loanda haviam hospedarias, e inglezes, respondi affirmativamente,
accrescentando elle que, pretendia dirigir-se a Ribonda fazer algumas
observações, e que no seu regresso aproveitaria o
ensejo para me visitar; a que retorqui achar-me ás suas
ordens.
No dia 7 alevantei com direcção ao nordeste a
encontrar-me com os pombeiros de Miqueselumbue nas margens do Loengue,
unicos que faltavam no estabelecimento de entre o grande numero que
tinha
despachado para diversas paragens, como acabei de dizer, e prompto para
despachar pela segunda vez a comitiva para Moçambique, isto
depois de ter recommendado o bom agasalhado do illustre viajante, como
á minha propria pessoa.
[39]
Nos mattos, a dois dias de distancia, da terra de Miqueselumbue, isto
é, depois de dezaseis dias de marcha, e no dia 22 de
agosto, encontramo-nos, passando acto continuo a tomar contas aos
diversos negociadores sobre a permutação que
haviam feito. No
entretanto, a minha missão não estava terminada;
tinha vindo ao
encontro d'esta gente, é certo; mas no seu numero faltava a
arabe Ben-Habibe, a quem eu queria confiar a minha gente para a viagem
de Moçambique, pelo
julgar mais habil que seu tio Ben-Chombo, que já se tinha
recolhido ao
estabelecimento, e ambos haviam recebido fazendas minhas. Mas havendo
ficado ainda á retaguarda, e não me sendo
possivel ter
mais demora, no dia seguinte 23 de agosto retrocedendo para o Lui,
cheguei ao estabelecimento a 6 de
setembro,
tendo a noticia de que o soba Hiquereto, bem assim o illustre viajante,
tinham partido para Rinhande cinco dias
antes da minha chegada. Acto continuo mandei chamar Ben-Chombo ao qual
propuz a commissão de Moçambique em companhia da
minha gente, mediante o perdão da quantia em que tinha
ficado
alcançado, e a gratificação de cem
pezos, no caso de bom exito, acceitando promptamente e ficando por
consequencia á minha
disposição; (ainda não satisfiz esta
divida em virtude de se não ter apresentado o arabe depois
que desempenhou a commissão) tratando-se unicamente n'este
meio tempo dos preparativos das duas viagens: a de
Moçambique realisada
a 22, e a minha para o Bihé levada a effeito a 30 d'esse
mesmo
mez.
Posto isto, direi que, em referencia á terra não
ser visitada por branco algum, antes, e mesmo no tempo de Sanduro, se o
illustre
viajante se désse ao incommodo de visitar o local onde jaz
sepultado
este mesmo soba, (todos os sobas depois de acclamados têem
por
habito construir a sua respectiva povoação, ahi
residem,
e ahi são enterrados, e sempre no valle de Lui) alli
encontraria vestigios do contrario
n'umas campainhas que foram do dito Sanduro: eis o que digo
relativamente:
«
15 de setembro de 1867.
Hoje fui ao local de romagem dos sobas primitivos d'este povo, e,
tambem dos senhores intrusos durante o seu dominio no paiz, que nada
teem a admirar, exceptuando as
Eçandeiras e Palmeiras que contam para mais de seculo de
existencia, seguindo a posição das mesmas a
fórma oval, como
são todas as povoações dos selvagens;
hoje, apenas apresenta a fórma semi-circular,
visto que o tempo destruindo algumas da parte de sueste, damnificou de
alguma maneira o todo pittoresco do local, em consequencia da
situação que occupa no meio d'este descampado
immenso, e despovoado de arvoredo, que, tem uma
elevação de dez pés acima
do nivel terreo, onde nunca chegou a agua, mesmo em annos de grande
inundação; e que segundo
informações dos velhos que me assistiram,
foi mandado entulhar pelo soba Sanduro.
«Proximo do mesmo, sobranceiro ao Riambeje pequeno, do lado
do norte, e junto, do lado de leste, existem duas
povoações a cargo de cujos habitadores
está confiada a sua limpeza; no centro,
e junto de uma corpulenta Eçandeira, está a
sepultura do
fundador que com facilidade se distingue em virtude de oito grossas
forquilhas de pau ferro com as hastes bastante compridas e agudas, e
nas quaes o soba manda depositar uma peça de fazenda fina,
(é primeiramente rasgada
[40]
aos pedaços) logo que na terra faz entrada qualquer comitiva
de sertanejos, e que ahi é consumida pelo tempo. Tambem ahi
encontrei quatro campainhas antigas.
«Como fosse prevenido para o effeito, depositei egualmente
quatro jardas de algodão e quatro campainhas pelos ditos
paus,
presenteando egualmente o chefe do local, velho de oitenta janeiros,
com duas jardas de baeta, e missanga aos seus companheiros e para a
turba que me rodeava; após o que me retirei, deixando todos
satisfeitos da minha visita, quiçá, que anhelando
outras identicas
pelo proveito que d'ellas lhes resulta. Spleen de Londres, e vento
vario de dia e de noite.»
De que parte sahiram essas campainhas antigas de que acabo de fazer
menção: do Oriente ou do Occidente?
Quem é tambem o auctor do mappa de pequeno formato, antigo e
portuguez, cujo auctor tanto tinha attrahido a colera do illustre
viajante, pelo erro relativo ao rio Loanja?
O povo Lui segue o costume de beijar as palmas das mãos, e
tambem o de se oscular, costume que ainda não vi reproduzido
entre as mais tribus d'estas paragens; isto quando por qualquer
circumstancia
se avistam parentes e amigos, ou mesmo por caso fortuito se encontram;
se o soba segue para a guerra, e dada a circumstancia de regressar
victorioso, o povo de ambos os sexos acode pressuroso ao seu encontro
para o victoriar. Como emblema da victoria, cada individuo
previne-se de dois ramos verdes de arvore especial, que leva em cada
uma das mãos, e chegado na margem de qualquer rio, lago
ou lagôa, mettem-n'os como emersão na agua,
tirando-os acto continuo, e espargindo-se á
imitação de agua
benta, e como que purificando-se.
Concluida esta primeira cerimonia, a um tempo, e seja qual
fôr o numero de pessoas, todas em ala, com os ramos sempre
nas
mãos, canto monotono e candenciado, mas que tem um tanto de
agradavel e harmonico, em louvor do soba e dos seus, pela victoria
acabada de alcançar, a passo grave e candenciado, dirigem-se
em ala
para elle. A um tempo tudo se prosta de joelhos, dando principio de lhe
beijar as palmas das mãos, alternadamente a direita e
esquerda;
primeiramente as pessoas de elevada jerarchia, seguindo-se
após estas, as
pessoas plebeias, isto por tres vezes successivas, tendo
logar
primeiramente a esparsão da agua, a fim de ter logar
após a
mesma, o beijar das palmas das mãos. Os osculos teem logar
entre pessoas de
egual jerarchia; o soba é tão sómente
osculado por pessoas da sua familia, ás quaes tributa alguma
consideração.
Dado o caso de ser em occasião do seu regresso, e depois de
transpor os limites da capital, que a turba venha ao seu encontro, o
soba pára, e egualmente o povo da guerra, a fim de ter logar
a cerimonia que acabo de descrever: continuando da mesma
fórma na libata
grande, até que o povo em geral, da capital, tenha cumprido
tal dever, acompanhado de tributo segundo o custume do paiz, mas
tributo que se não torna oneroso, visto que cada pessoa
deposita aos
pés do soba aquillo de que pode dispor, e em virtude do
habito de que ninguem se lhe apresenta sem que leve alguma cousa.
[41]
D'onde, pois, veiu tal habito ao povo Lui: dos missionarios catholicos
ou protestantes? creio que d'aquelles e não d'estes, em
presença de não haver exemplos em contrario.
Finalizo dizendo que na digressão por mim feita a
encontrar-me com os pombeiros de Miqueselumbue, gastei até
ao logar do
encontro, dois dias áquem do rio Loengue, 16 dias. Para
Moçambique, da primeira vez em que a viagem abortou, sahindo
a minha gente como já
disse do estabelecimento a 25 de março de 1853
até
á terra do soba Camgomba, além do rio Lohunje, em
7 de junho do citado anno, 75 dias, sendo 46 de viagem e 23 de demora
nos differentes pontos por onde transitou; recorrendo, pois, o illustre
viajante ao seu mappa, e no
qual grandes modificações teem a fazer,
virá no conhecimento da falta que commetteu em se deixar
levar das informações
menos bem cabidas de Ben-Habibe.
Em identico caso estamos na minha precedencia ao illustre viajante a
Loanda, bem assim na minha ida a Portugal. As minhas viagens
até o presente, a partir da epocha em que tivemos a honra de
nos conhecer-mos, teem-se limitado unicamente: da terra do
Bihé para a cidade de Benguella, e vice-versa, e da terra do
Bihé para
o Lui, e vice-versa. E que, á imitação
do
illustre viajante poderia eu egualmente desmentir as suas palavras sob
a asserção de ter
visitado o Riambeje em companhia de Mr. Oswell, em 21 de junho de 1851,
mas sim haver realisado tal excursão na sua segunda viagem
em
1853, da qual data a sua visita á catarata Chungo ou
Mosioatunia,
visto que assim me foi affirmado por Hipopa, dizendo que na
occasião
em que o illustre viajante e Mr. Oswell, se dirigiam para Quiceque,
tivera
logar o seu encontro com a comitiva de Pepe e Hiquereto, que se
dirigiam para Rinhande, em consequencia da morte do soba Hebitane, e
que regressando, se retirára poucos dias depois para o Cabo,
fazendo tal excursão na segunda viagem como acabo de dizer.
Faço simplesmente a narração, tal como
me foi affirmada; mas não respondo por ella.
A paginas 120, o seguinte.
«Por occasião de
encarecer a
affeição dos Bechuanas aos filhos, quando estes
ainda em tenra edade, diz o dr. Livingstone: «Tive
conhecimento de varios casos de avós que amamentaram os
netos. Masina de Kuruman
não tinha tornado a ter filhos desde o nascimento de sua
filha Sina, e não tinha
leite depois que Sina fora desmamada, o que costuma ter logar quando a
creança tem dois
ou tres annos de edade. Sina casou quando contava dezesete ou dezoito
annos, e teve
dois gemeos. Masina, decorrido o intervallo pelo menos de quinze annos
desde que
amamentara o ultimo filho, pegou de uma das creanças e a poz
ao peito,
e o leite correu em tal abundancia, que ella poude só por si
alimental-a. Masina contava então pelo menos quarenta
annos.»
Vou egualmente corroborar o facto apresentado pelo illustre viajante.
No Bihé havia uma familia oriunda de paes europeus,
fallecidos muito tempo antes da minha chegada ao paiz; o chefe era
homem que sustentava a mãe, velha sexagenaria, e duas filhas
que
vinham a ser netas da velha; das quaes, tendo-se amancebado a mais
velha, que foi
[42]
habitar para a
companhia d'aquelle que a tinha escolhido para sua companhia, veiu a
constar a familia unicamente de tres pessoas.
Acontecendo porém este mesmo homem ter a desgraça
de ser
arguido de feiticeiro por um europeu, que levou a barbaridade a ponto
de o mandar assassinar, segundo o estylo do paiz, ficou por
consequencia a familia sem chefe, seguindo a avó, e a neta
por tomar estado, para a
companhia d'aquelle que, ainda não havia decorrido um anno
tinha
elegido para sua companheira a filha do homem barbaramente assassinado,
e o qual cumprindo os deveres d'este, veiu a ser o arrimo da familia,
succedendo por essa occasião dar a sua companheira
á luz um
infante, mas fallecendo poucas horas depois do parto.
A pobre creatura ferida no amago d'alma por dois golpes, se pode dizer
repetidos, a perda do filho que era o seu arrimo, e
após ella a perda da neta, sabendo ser delicto entre a tribu
Quimbumda que reduz á escravidão a familia que em
virtude de um tal
acontecimento entregasse a creança a peitos estranhos para
amamentar: toma o bisneto recemnascido em seus braços, e
trata de cumprir o dever do
amor maternal, alimentando-o a seus resequidos peitos, a que acorde
copiozo alimento, o qual serve de conservar a existencia ao innocente
por
espaço de um mez, no fim do qual expirou, mas em virtude de
doença que lhe sobreveiu.
Por egual extraordinario, talvez, em tal acontecimento, é a
natureza ter produzido um ente em paiz culto, que em Africa, pela falta
absoluta de conhecimentos, de mistura com a sua fraqueza veiu a
adquirir os habitos dos selvagens, tornando-se uma fera como aquellas
que habitam as selvas, por suggestões d'aquelles que o
rodeavam. E para honra da humanidade taes actos apontam-se.
A paginas 158 o seguinte.
«As aldéas dos
Barotse são
construidas
sobre defezas, algumas das quaes dizem que foram elevadas
artificialmente por Santuru,
antigo chefe dos
Barotse, e, durante a inundação, todo o valle
toma a
apparencia de um grande lago, com as aldêas sobre as defezas
como ilhas, do mesmo modo que
succede no Egypto com as aldêas dos egypcios.»
Já tive occasião de falar d'este local onde jaz
sepultado o pae do actual soba do paiz, unico que foi mandado aterrar
por elle, e tambem de que ha exemplo; os mais logares ficam pelo
descampado ou valle, onde
residiram e foram enterrados os antecessores do actual soba, (a sua
povoação corre de noroeste para sueste,
é a maior que tem existido, e
approximadamente contém duas mil pessoas; por
occasião da inundação d'este anno
não fizeram mudança, visto que a agua
se conservou a vinte passos de distancia do local) e do povo Lui
propriamente dito que em parte habita os lados marginaes ou encosta dos
mattos, e em parte o descampado, sobre monticulos de maior ou menor
ambito e elevação, nos quaes pela maior parte
tambem
cultivam o grão, que fica sempre de vez em antes de se
realisar o periodo da
inundação, á
excepção dos logares proximos aos mattos, e mesmo
por estes em ambas as margens do descampado, bem assim as dos
monticulos de que acabei
[43]
de falar;
este povo não tem por habito cultivar a terra nos
logares baixos do valle; emquanto a inundação vae
tomando
incremento, não lhe dão importancia, mas no
momento em que principia a
chegar ás povoações, e só
n'este
caso, então dão immediatamente logar á
sua mudança para ambas as margens do descampado, porque
é indicio da inundação tomar maior
incremento, o que de
ordinario tem logar nos mezes de janeiro e fevereiro, tendo logar o
regresso nos mezes de abril e maio, nos quaes a agua vae diminuindo
progressivamente. Para este effeito estão de ordinario
prevenidos com as canoas,
porque então se pode dizer um mar ou grande lago o geral do
descampado, formando ilhas de maior ou menor ambito os monticulos como
que espalhados por elle, e como seja o seu elemento favorito, e pelo
qual de ordinario almejam; a caçada ao hipopotamo, e a de
toda a
especie de aves, em que então abunda, torna-se o seu
divertimento de
todos os dias: ao passo que a gente do sexo feminino passeia de uma
para as outras povoações. Porém
não
havendo indicios de que a inundação vá
em progressivo augmento, conservam-se nas suas
localidades, sendo n'este caso o gado o unico objecto que
não admitte de
longar, porque effectuam de ordinario a sua transferencia no mez de
dezembro, para ambas as margens do descampado; reservando unicamente
aquelle de tirar leite, do seu uso diario, o qual, é mudado
no caso de
se verificar a mudança do proprietario, visto haver logares
conhecidos
dos indigenas por onde pode passar sem perigo.»
Foi pois Sanduro que mandou aterrar o local em que habitou, o qual
não tem mais de uma milha em toda a sua circumferencia,
isto provavelmente por ter escolhido para sua residencia, justamente
uma ilha formada por um braço do Riambeje, a partir do lado
de
noroeste, a desembocar no de nordeste, e que tem a
designação de Riambeje pequeno; paragem mais
baixa que o geral do descampado. Na mesma ilha, em egual
direcção, e na distancia de uma
legoa, existe o local denominado Nariere, antiga côrte do
povo Macorrollo, hoje
inteiramente deshabitada como já disse. Fóra da
dita ilha, em
egual direcção, e na distancia de uma legoa
egualmente, existe a
povoação de Hipopa, da qual tambem acabei de
falar.
A paginas 162 e 163 o seguinte:
«Terça feira 17 de
janeiro (1854) fomos
honrados
(narra Livingstone) com uma grande recepção por
Shinto. Sambanza reclamou
a honra de nos apresentar, porque Manenko se achou um tanto doente. Os
portuguezes nativos e os
Mambari iam armados de espingardas a fim de darem uma salva a Shinto,
fazendo o
tambor e o trombeteiro todo o ruido que lhes era possivel com
instrumentos
muito velhos. O Kotta, ou logar da audiencia era uma praça
de perto de cem
jardas, e viam-se em uma das extremidades dois agradaveis specimens de
uma especie de
Baniána, (arvore, cujos ramos pendem para a
terra, e, tomando
n'ella raiz, engrossam e formam novos troncos, etc.,
«Eçandeira, ou ulemba
dos Quimbundos; existem seis especies.») Debaixo
de uma d'ellas
estava assentado Shinto, sobre uma especie de throno, coberto com uma
pelle de leopardo; trajava com
véstia variegada, saiote de baeta vermelha agaloada de
verde, pendiam-lhe do
pescoço muitos fios de contas grossas, e os
braços e as pernas enfeitadas de
braceletes e varios ornamentos de ferro e de cobre, na
cabeça tinha posto uma sorte de
capacete feito de contas de
vidro entretecidas com primor, e coroado de grande penacho de
pennas de pato. Proximo a elle estavam assentados tres mancebos com
grandes
feixes de settas sobre os hombros, etc.»
[44]
Admiramos unicamente a belleza do estylo empregado pelo illustre
viajante no trecho que acabamos de reproduzir, e seguintes, descrevendo
a recepção que lhe fez o soba de Catema, que a
falar a verdade nem merece as honras do titulo, não porque o
queira
humilhar, mas pelo papel que representa, elle e todos os mais do
dominio da Lunda perante o seu Suzerano, ou dado o caso de virem
enviados d'este a exigir-lhes tributo, como adeante terei
occasião de falar.
Entre as tribus Ganguellas ou Quimbundas constituidas pela maior parte
sob a fórma republicana, poderiam gozar das
prerogativas de estados de segunda ordem, porque então
poderiam taes sobas
dizer-se,
senhores do
quero,
posso e
mando; mas debaixo do jugo ferreo do Matiamvo, tornam-se
simples automatos da sua vontade.
O illustre viajante deve de estar ao facto do tratamento dado por
Hiquereto áquelles potentados que se lhes apresentavam com
tributo, ou mesmo teria ouvido falar das extorsões feitas
pelos seus
emissarios, quando, enviados em qualquer commissão aos ditos
sobas, que,
por via de regra, vinha a ser pela tardança de tributo,
faziam e
fazem ainda presentemente (e quando deixarão de o fazer!)
pelas suas
localidades: pois n'uma e n'outra terra é identico o
tratamento; com a
differença porém de que, no Lui não
fazem
ostentação dos assassinatos prepetrados e
mandados perpetrar; ao passo que na Lunda é um acto de
glorificação do Matiamvo. Posto isto, passaremos
a narrar os factos taes como se passam, e cujos significam o reverso da
medalha.
Os sobas Chinde, Catema e Catende, que são precisamente
aquelles por onde transitou o illustre viajante, em antes da
extincção do trafico e quando os elephantes
percorriam os seus respectivos dominios, vendiam
escravos, e tributavam com elles o Matiamvo, correndo-lhes tudo por
esse motivo ás mil maravilhas, monteando-se aquelles animaes
á imitação dos outros, para seu
alimento, ficando, por consequencia, os dentes no mesmo local em que
era morto o elephante, expostos á
deterioração e sem que ninguem os procurasse,
(presentemente ainda se dá
esta celebre anomalia para o sul além do rio Cubango, nas
paragens
percorridas pelos Cassaqueres); mas findo o trafico as coisas
tornaram-se outras; o marfim teve principio de ser procurado, os
indigenas deram principio egualmente de o pôrem debaixo de
guarda; e tendo
finalmente logar d'essa epocha por deante o tributo de escravos e
marfim para o Matiamvo, em virtude das suas ordens.
Os caçadores Quibocos como fossem conhecendo o valor d'este
genero em presença dos concorrentes, principiaram no seu
paiz de mover guerra de exterminio aos mesmos animaes, que afugentados
por esse motivo, se foram internando pelo interior, onde da mesma
fórma se lhes continuou tal guerra, pela
ambição a que o marfim tinha dado origem, ficando
o caçador com o dente esquerdo e dando
o direito ao senhorio em cujo dominio era morto o elephante. A
perseguição não diminuiu; pelo
contrario, foi em progressivo augmento, visto
[45]
que já se não falava em escravos pelas mesmas
terras, mas sim a ordem do dia era marfim, porque ao passo que affluia
ao mercado do littoral, ia tendo alta de preço; dando-se por
consequencia
a mesma circumstancia pelos differentes pontos do interior. A isto se
deve a
descoberta de novos mercados, de outras terras, e finalmente de outras
tribus, até então desconhecidas. Os elephantes
foram escaceando no dominio dos tres sobas que acabei de designar, e
outros, até
o seu total desapparecimento; e como era forçoso de
apresentar tributo
annualmente ao Matiamvo, faziam-no com escravos, fazenda, missangas,
pelles e alguns dentes de marfim, quando os podiam obter dos
caçadores; em presença de que, se tornava
excessivamente oneroso tal
encargo, visto que para arranjar fazendas e missangas sufficientes, se
lhe
tornava necessario dispôr de dez escravos, termo medio,
além d'aquelles com que tributavam o seu suzerano. Por este
motivo a
decapitação de taes sobas principiou a ter logar
mais amiudadamente, já na
occasião em que se apresentavam com o tributo na
côrte, já
mandando o Matiamvo saber porque motivo se demorava o tributo
além do tempo
marcado; se por um lado quando se apresentam, ficavam por via de regra
desempedidos, pelo outro ficavam detidos de permeio com o povo de que
eram acompanhados, empregando-os em todo o serviço que
lhes era destinado, até que ao cabo de um ou dois mezes, e
ás vezes mais tempo, lhes era permittido regressar aos
logares de suas naturalidades.
Se, pelo contrario na occasião em que se
apresentavam
com o tributo, o Matiamvo não
ficava satisfeito com qualquer dos
apresentantes, em acto continuo o mandava decapitar, depois de lhe
tiraram do pulso a insignia do poder, que vem a ser uma manilha ou
bracellete de metal, envolvida em certos e determinados preservativos
do seu conhecimento e superstição, que acto
continuo
vão depositar aos pés do Matiamvo. Este, pegando
n'ella e depois de ter mandado vir
á sua presença o successor immediato da victima,
porque
necessariamente deve acompanhal-a, depois de lhe recommendar o bom
regimen do seu dominio, e o que deve fazer em
relação ao
tributo, entrega-lhe a insignia do poder, que o investe no mandato do
seu decapitado parente, ficando por consequencia habilitado para o
exercer, se por acaso
não vier a ter egual sorte.
Verificando-se porém o caso de que o Matiamvo envie
emissarios ao dominio de taes sobas, estes tornam-se martyres das
extorsões que lhes são feitas, e emquanto
não são
despedidos, a sua auctoridade torna-se nulla na
povoação; havendo alguns, como tem
acontecido, que fazendo observações contra
tão
insolito procedimento, o enviado puxando do
Mucuale(facão
de dois
gumes) decepa-lhe a cabeça sem mais ceremonia que a sua
vontade, e sem opposição da parte do
povo da povoação, tira-lhe do pulso a insignia do
poder,
que entrega ao successor immediatamente, dizendo-lhe simplesmente que
seja mais pontual que o seu antecessor no desempenho das ordens do
Matiamvo; depois de mandar preparar o craneo, isto é, raspar
por
dentro e por fóra a fim de lhe serem extrahidas todas as
particulas
admissiveis de putrefacção, para ser guardado
cuidadosamente com
outros que teem egual sorte, e que na sua retirada para a
côrte, apresenta como tropheus
[46]
na presença do senhor, que lhe diz simplesmente ter
cumprido o seu dever, dando-lhe a maior importancia proporcionalmente
á maior porção de objectos de valor,
lhe fosse possivel
conduzir á sua presença.
Algumas vezes subornados pelos ambiciosos do poder, estes mesmos
enviados do Matiamvo, a que dão o nome de
Cacoattas, ao entrar na libata grande do dominio a
que se dirigem, intimam o soba existente a fim de abandonar o logar
para que o seu successor o possa occupar, o que executa acto continuo
sem mais
observações, não lhe sendo permittido
levar coisa alguma, além das pelles ou
pannos que tinha no corpo, e com os quaes o encontraram na
occasião;
porque lhe advertem immediatamente, que, tudo quanto existe na
povoação pertence ao Matiamvo. As pessoas que lhe
são
affeiçoadas só depois da retirada do enviado
é que se lhe vão aggregar,
e, se na occasião da expulsão se não
lembrou de entregar a insignia
do poder, seguem logo emissarios em seu alcance para que a restitua, e
no que tambem não faz a menor
objecção, visto que
por felizes se reputam aquelles a quem a sua boa estrella concedeu
semelhante graça.
Finalmente, taes atrocidades são frequentes, e os Cacoattas
tornam-se os flagellos dos sobas secundarios; taes
oppressões teem
dado logar a que alguns se tenham rebellado, mas não obstam
ellas, os pretendentes ao poder são muitos, e não
são exemplo a causar-lhes a menor impressão,
visto que do acontecimento de hoje
já ninguem fala ámanhã; advertindo,
que, não
é só entre os Mulluas que ellas se dão
e repetem, os mesmos episodios são identices no Batebere, no
Cazembe, no Lui e entre o povo Macorrollo, potentados poderosos para
estas paragens.
Para além, isto é para o Oeste, entre a
raça Quimbunda que se pode reputar excepcional, temos as
seguintes terras de potentados
poderosos: Bailundo, Bihé, Gallangue e Quiaca; mas n'ellas
as unicas barbaridades que se dão, vem a ser o assassinato
de quatro
pessoas, o maximo, no governo de cada potentado para differentes
preservativos, em virtude da arreigada crença de seus
antepassados, bem
assim a de feiticeiria, que, leva a perpetrar o assassinato por
differentes
fórmas, na pessoa do desgraçado que fôr
arguido de tal
epitheto.
A paginas 175 e 176 o seguinte:
O dr. Livingstone censura Manuel
Caetano Pereira de ter exagerado
egualmente o seu poder. «Indagando eu, escreve Livingstone,
se ainda se
faziam sacrificios humanos no reino de Cazembe, como no tempo de
Pereira, informaram-me que taes sacrificios nunca tinham sido
tão communs como
Pereira os representara, e que só tinham logar
occasionalmente, quando o chefe
carecia de certos encantamentos, porque então era morto um
homem por serem para aquelle
precizas algumas partes do seu corpo.» N'outro logar
accrescenta:
«O Cazembe além de ser visitado por Lacerda,
tambem o foi por Pereira, que deu do poder
d'aquelle chefe grandiosa informação, a qual
não
foi confirmada pelas minhas
investigações».
Se bem que tenha acabado de tratar da materia, e, se bem que sob
differente assumpto, o volver a ella nunca se torna demasiado.
[47]
Assassinar sob que pretexto
fôr, sempre é
commetter o homicidio; o illustre viajante esquece aquelles que
continuamente commettia
Hiquereto, não obstante a sua assidua assistencia entre os
Macorrollos,
a quem, se não diariamente, ao menos uns dias por outros,
fazia ouvir a palavra da Biblia, como descida do ceu, para se dar ao
incommodo de investigar o que outros escriptores, muito tempo antes,
relatavam sobre o assumpto, no qual pecca como em todos os outros, por
menos veridico nas asserções.
Como pode ser que taes assassinatos tenham logar occasionalmente, dada
a circumstancia de se tornarem necessarios para os preservativos
d'esses mesmos poderosos potentados?! Se o seu instincto é a
sede de sangue, com elle são ammamentados, e
n'elle iniciados, até que assumindo o poder se fartam
á
semelhança do tigre que habita as selvas! E, porventura, se
taes crueldades não fossem
continuas, o seu poder não seria ephemero? Decerto que o
seria, visto
que para se sustentarem n'elle, ellas são perpetradas com
assiduidade, até que uma conspiração
urdida nas trevas, em
presença de uma indisposição qualquer
que elles sintam, lhes põem termo á
existencia, já propinando-se-lhes veneno, já
torcendo-se-lhes o pescoço, e
já finalmente a decapitação, se um
chefe audacioso preside á
conspiração. O herdeiro assumindo as redeas do
governo, não modifica estas
disposições tradicionaes do seu codigo,
cumpril-as-ha á risca, se porventura se
não tornar mais sanguinario.
Enviando uma expedição qualquer contra um estado
rebellado, o chefe e seus adjuntos devem apresentar no regresso o sacco
dos craneos do soba e mais pessoas de subida jerarchia do mesmo estado,
que despejam com grande ceremonial aos pés d'esses grandes
potentados (Matiamvo e Cazembe), e que acto continuo vão
designando a quem pertenceram, porque é n'isto que se cifra
a sua maior
vaidade; após este acto segue-se a entrega do despojo, que,
por via
de regra é o que reservam para o fim do ceremonial. Se, pelo
contrario, em logar d'estes signaes de victoria, foram derrotados,
apresentando-se dando conta do successo, sejam quaes forem as
razões que possam
allegar, ellas tornar-se-hão baldadas perante o suzerano,
porque a um
signal seu particular, são mandados retirar da sua
presença, a fim de serem decapitados, um a um, sem o menor
queixume da sua parte por lhes ter chegado a sua ultima hora.
Este ceremonial de caveiras, tem logar unicamente no Cazembe, e na
Lunda, na terra do Luvar, entre a raça Ganguella, se o
soba segue para qualquer excursão, bem assim por
occasião da
sua morte; agora, entre o povo Batebere, Lui, Macorrollo,
não se
dão ao incommodo de decepar cabeças, o
assassinato sendo perpetrado
á azagaia, e na presença do soba; o
cadáver é
arrastado para fóra da povoação, onde
é consumido pelos animaes; e sendo commetido
fóra, ahi mesmo o deixam ficar para ter egual destino; que
seja proximo ou distante
é coisa que pouco importa.
Finalmente, em relação ao poder do Cazembe, direi
que é elle muito fraco para affrontar o poder do Matiamvo,
mas muito forte para o repellir em caso aggressivo. O illustre viajante
sabe perfeitamente o
[48]
proverbio: Duas aves de rapina
não se fazem companhia; no
mesmo caso temos ambos os chefes indigenas e consanguineos.
A folhas 203 o seguinte:
A situação do
Bihé não
é bem conhecida. Estando nós em Sanza,
asseveraram-nos, que demora ao sul d'aquelle ponto, a oito dias de
distancia. Esta
noticia pareceu confirmar-se pelo facto de encontrar-nos muita gente,
que vinha
do Bihé para o Matianvo (Sobre este ponto
consulte o Diario de Joaquim Rodrigues á sahida do
Bihé) e para
Loanda. Toda esta gente veiu reunida até Sanza, e alli se
separou, tomando uns para o nascente, e outros para oeste. A
nascente do Coanza por conseguinte não fica provavelmente
longe do
Bihé.»
«A 10 de dezembro de 1853 digo o
seguinte―«Continuámos a viagem, passamos o rio
Quanza em ponte e a vau; n'esta paragem de quatro braças de
largo, e d'ella á sua nascente
dois dias de viagem. Proseguimos a marcha, e fomos fazer quilombo nos
mattos, margem direita do dito rio. Caminho plano, mattos fechados,
abundancia de
riachos, terreno fertil, legoas andadas 3, rumo de leste.»
Mais tarde pude colher a seguinte informação: Que
o rio Quanza procede de um lago sito no local denominado Gunda-angongo,
povo de raça Ganguella da tribu Nhemba. Em
relação ao Riambeje disse já o
seguinte: «Concedendo, pois, que assim não seja
como acabo
de transcrever, é fóra de toda a duvida que,
qualquer rio
caudaloso aqui em Africa, vadiavel que seja com agua pela curva da
perna, d'ahi á sua
cabeceira não pode distar mais de quatro dias de jornada, a
experiencia assim m'o tem ensinado.»
Posto isto, direi ser applicavel o que fica dito ao rio de que nos
estamos occupando, e que concordamos inteiramente com a
opinião do illustre viajante, pelos exemplos que passamos a
apresentar.
Rio Nhengo,
Ninda na sua cabeceira:
Direcção de Oeste para Leste, leito de areia e
pedra, e de margens apauladas; da sua nascente
á sua desembocadura no Riambeje, nove dias de marcha;
vadiavel nos quatro primeiros dias a partir da mesma, d'ahi por deante
a partir para a sua foz, percorre-se em canoas.
Rio
Cutti: Direcção do Norte para o Sul,
leito de areia e argilla, e de margens apauladas no
espaço de duas milhas, isto é da margem direita
para a esquerda do matto;
da sua nascente á sua desembocadura no rio Quando, oito dias
de
marcha; vadiavel nos quatro primeiros dias, a partir da mesma, e d'ahi
por deante a partir para a sua foz, é percorrido em canoas.
Rio Cubangui: Direcção do
Norte para o Sudoeste, leito de
argilla, pedra e areia, e de margens apauladas; da sua cabeceira
ávante quatro dias;
já não dá vau, tornando-se necessario
construir ponte para se passar para a sua margem esquerda; dirige o seu
curso para o rio Quando.
Rio Quando: Direcção do
Norte para Sueste, leito de argilla e
areia, e de margens apauladas; da sua nascente ávante quatro
dias, offerece
passagem em ponte e a vau; d'ahi para a sua foz no Riambeje proximo a
Quiceque, é percorrido em canoas.
Rio
Caimbo: Direcção de Nordeste
para Sueste, leito de argilla, pedra e areia, e de margens apauladas; a
sua nascente
procede de um lago, e d'ella ávante dois dias, offerece
unicamente passassem
[49]
em ponte e a vau, com difficuldade, pelo motivo da sua corrente
veloz; d'esta passagem á sua foz, no rio Quando,
é percorrido em canoas.
Rio Cuttau:
Direcção de Sudoeste para Noroeste, leito de
areia, e de margens apauladas; espraia muito, e por este motivo se pode
dizer vadiavel até á sua foz no rio
Lunguébungo; este dirige o seu curso Para o Riambeje.
Cuito
da Zambueira:
Direcção do Norte para o Sul, leito de argilla e
areia, e de margens apauladas; da sua nascente ávante cinco
dias offerece passagem a vau, e em ponte, e
d'ahi para a sua foz no Cubango, é percorrido em canoas.
Rio Varia:
Direcção do Sul para o Norte, leito de argilla;
da sua nascente ávante
cinco dias, offerece unicamente passagem em ponte, e ávante
tres dias na
sua desembocadura no rio Cuime, (este tem a sua foz no Quanza)
é percorrido em canoas.
Rio Quanza:
Direcção do Sul para o Norte, leito de argilla e
pedra, e margens de argilla; oito dias da sua nascente
ávante, no porto do Cuio, onde se passa em canoas.
Rio
Cuquema: Direcção de Nordeste para
Sudoeste, leito de argilla e pedra, e margens de
argilla; cinco dias ávante da sua nascente, no porto do
Bissongue,
onde se passa em canoas, dando-se a mesma circumstancia d'ahi para a
sua foz no Quanza, nos dois dias a percorrer. Finalizo dizendo que os
rios que ficam notados, existem a partir do Lui para o Bihé,
e
vice-versa, e aquelles unicamente cujas cabeceiras se passam, ou
existem distantes do caminho do transito os dias que ficam marcados; o
que julgo sufficiente a provar o que fica dito em
relação
aos rios Quanza e Riambeje.
A ps. 256 o seguinte:
«Chegado ao rio Loembua, no
proseguimento da marcha
começada, refere o dr. Livingstone, que a
presença de um homem branco
infundio terror nas mulheres, e que, n'estes casos, pareciam muito
contentes quando elle dr.
Livingstone acabava de passar sem se ter apoderado d'ellas; que o
espreitavam das
fendas das portas, atê que elle se approximava, e
então se
recolhiam fugindo para o interior da casa.»
O illustre viajante quiz mostrar mais uma vez, a
degradação a que chegou por estas paragens o
immoral e escandaloso commercio de
escravos, dando logar a que o bello sexo horrorisado nem se atreva de
apparecer aos olhos dos desmoralisadores traficantes de entes humanos,
verdadeiro flagello da humanidade n'esta parte do mundo chamado Africa.
Mas isto em relação á
situação reciproca de duas partes mutuantes na
acção de contrahir um negocio
qualquer; jámais no caso de aprisionamento de pessoas, que
se torna muito mais melindroso como aconteceria com a
aldeia
inteira de
Bakalakau; tal procedimento daria causa a graves
represalias, como então tive
occasião de fazer ver, e ao facto de correrem muito risco
todos os sertanejos do
Bihé, Caconda, Cassange, Pungoandongo, de Quilengues, que
não obstante
partirem de pontos oppostos, muitas vezes se encontram pelo interior
d'este vasto continente; mas quando se não desse essa mesma
circumstancia, quem deixará de ignorar que piratas
não necessitam de
negociar?
Aqui tem o illustre viajante o reverso da medalha. Depois de se
transpor os rios Cuquema e Quanza, as comitivas do Bihé
são honradas
[50]
na pessoa do seu chefe, pelas pessoas de ambos os sexos em massa, das
povoações dos Ganguellas das tribus
Luchiajé, Bunda, e Zambueira, nas terras por onde passa, da
maneira que segue:
O
nosso senhor veiu! O nosso branco veiu! O nosso amigo veiu!
Isto
á apparição do chefe da comitiva,
batendo palmas continuamente, e fazendo-lhe um cerco entre o qual com
difficuldade caminham os conductores da tipoia. E no momento
em que elle tenha transposto a povoação, o povo,
da mesma sorte corre precipitadamente para a frente, a fim de repetir a
mesma
ceremonia que finda depois de terem acompanhado o negociante na
distancia de uma a duas milhas, retrocedendo então depois de
cançados ás povoações
d'onde sahiram.
Entre a tribu dos Quibocos, estas demonstrações
de jubilo excedem muito além do que acabo de referir, porque
aturam pelo
espaço de dois a tres dias, acompanhando a comitiva com seus
generos, que permutam logo que se acha concluido o trabalho de
construir o quilombo,
retrocedendo ás suas povoações ao cabo
do dito espaço; agora, se o illustre viajante não
recebeu applausos semelhantes,
muito principalmente tendo effectuado a sua passagem pela terra d'esta
tribu, é isso devido ao pequeno numero de pessoas de que se
compunha a sua comitiva, limitando-se por consequencia a vel-o pelas
frestas das
portas, como diz; mas não com receio de que aprisionasse
pessoa
alguma, ou mesmo de que fosse anthropophago, como as mães
persuadem
ás creanças indicando-lhes a
approximação
de qualquer europeu, á maneira de papão, a fim de
as adormecer.
Finalmente, não tendo o condão de adevinho,
não obstante achar-me no paiz onde em larga escalla se
exercita essa arte, quer-me parecer que foi a obra do illustre viajante
que em 1866 ou 1867 deu logar a tanto alardo na camara alta em Portugal
para a total
suppressão da escravatura em todas as possessões
portuguezas,
não reflectindo jámais os nossos legisladores que
é um negocio
assás melindroso de um traço de penna acabar com
ella, e que além
d'isso temos uma lei que fixa para 1867 a mesma suppressão.
Quaes são as medidas já adoptadas depois do
celebre decreto de 22 de abril de de 1858, para que aquelles que podem
mandar, tenham aquelles que sabem obedecer?
Responderão: o trabalho livre! Esperemos e veremos.
A ps. 261 o seguinte:
«Como d'este ponto (do
Zambeze interior) deviamos
separar-nos
para o nordeste, resolvi-me a visitar na seguinte manhã a
catarata Victoria,
chamada pelos
indigenas
Mosioatunia, e mais antigamente Shonguê
(
Chungo?) Tinha-mos ouvido fallar d'ella desde que
entramos n'estas terras, e uma das perguntas
que me fez Sebituane foi «Tendes na vossa terra fumo que
faça
estampido? Elles (os indigenas) não se atrevem a
approximar-se tão perto que
possam examinal-a; porém, referindo-se ao vapor e ao
estrondo «Mosi-va-tunia»
o fumo alli estrondea. Outr'ora a catarata chamava-se
Shonguê, mas nunca pude saber a
razão de lhe darem este nome. A palavra que entre elles
designa a vasilha de cozer a
comida tem similhança com aquella, e acaso quereriam
significar uma
caldeira a ferver, comtudo não tenho certeza d'isto.
Persuadido de que Mr.
Oswell e eu fomos os primeiros europeus, que visitámos o
Zambeze no interior do
paiz, e de ser esta catarata o annel que prende as duas
porções,
conhecidas e desconhecidas,
d'aquelle rio, decedi-me a usar da mesma liberdade com que se
auctorisaram os
Makololo, e lhe dei aquelle nome inglez, sendo esta a só
occasião em que appliquei um nome da minha
nação a alguma parte das terras que
investiguei...»
[51]
Chungo,
namatittima,
imbôto ea mahenza:
«D'aquelles local (o abysmo) sae fumo, que molha a gente, e
que atemoriza como o fragor do trovão,» dizem os
indigenas do local, tribu
Baleia ou Guete (nome generico pelo qual é denominada esta
numerosa familia
composta de diversas tribus) d'estas paragens.
«
Mosi-oa-tunia:―«O
fumo alli estrondea», diziam outr'ora os Macorrollos, ao
approximarem-se do local d'onde sahem as columnas de fumo da catarata,
e que por assim a terem chrismado, assim se ficou denominando.―
Victoria
falls, repete o illustre viajante á
imitação dos intrusos
senhores, querendo coroar a obra da sua gloria na parte conhecida e
desconhecida, do grande
manancial.
Eu penso, e creio não me enganar, que se os Macorrollos a um
tempo se fossem precipitar no abysmo da catarata que chrismaram como
acabei de dizer de Mosioatunia, o illustre viajante não
os seguia, visto que a sua prudencia assim lh'o aconselhava, mas
já o
amor proprio lhe não permitte recusa na
denominação
em paiz estranho, a objectos, applicando-lhes nomes do seu paiz natal,
porque ao passo que o quer engrandecer, tambem engrandece a sua pessoa!
Vaidade das vaidades, e tudo vaidade.
Eis os nomes que lhe são applicados pelos indigenas aos
differentes pontos do seu curso a partir do Lui para Quiceque, e
vice-versa.
Sioma.
Povoação proxima da catarata;
Gonhe. Principio da catarata, e no
qual as canoas são conduzidas por terra em virtude dos
escolhos.
Cale. Local mais ávante
por onde passam as canoas com praticos.
Luço. Local mais
ávante por onde passam as canoas com praticos.
Gambue. Local mais
ávante, no qual as canoas são conduzidas por
terra em virtude dos escolhos.
Lucibe. Local mais ávante
por onde passam as canoas com praticos.
Molele. Local mais ávante
por onde passam as canoas com praticos.
Acicuti. Local mais
ávante por onde passam as canoas com praticos, bem assim
onde habitou o fundador de que ha
tradicção, do mesmo nome, e chefe da tribu
Baleia.
Chungo. Mosioatunia, synonymo do
primeiro nome; fim da catarata e local do abysmo, e no qual as canoas
são conduzidas por
terra em virtude dos escolhos.
E, eis o que digo egualmente em 23 de julho de 1858 sobre o assumpto:
«23. Continuámos a viagem por mattos fechados, e
chegamos na cachoeira do Riambeje, sitio Catongo, onde se fez quilombo.
Paragem de transito sem inconveniente algum, terreno fertil, horas de
marcha 9
1⁄2,
rumo de sul.
«Estamos nas margens do magestoso rio sem rival n'estas
paragens,
[52]
que banha com
suas aguas os contornos de Senne, Tete e
Quilimane; o seu curso é apenas interrompido por tres
cachoeiras,
prestando no mais do seu transito, livre e seguro apoio
áquelles que
com as suas canoas, sulcam as suas aguas. N'esta paragem que
terá de extensão seis legoas, as canoas em partes
são
carregadas por pretos, e em outras proseguem na sua carreira pelos
differentes
braços que sahem do rio; formando este aqui e alli, ilhas de
maiores ou menores dimensões, cheias de arvoredo secular, e
em outros logares
de cannaviaes impenetraveis; bem assim, os contornos cheios de arvoredo
gigante. O rio comprimido aqui pelas suas margens alcantiladas, em
partes cobertas de areia mui fina e clara, que as enchentes
vão accumulando segundo a direcção do
seu curso, formam um
contraste inteiramente sublime; o terreno contiguo n'esta
estação todo
gretado, bem assim algumas lagoas cheias de pedras, acham-se cobertas
de espessas camadas de sal, que os naturaes preparam com alguma
perfeição. Finalmente, o dr. David Livingstone,
penna intelligente a toda a prova,
e que bastantes serviços tem prestado á causa das
sciencias, e a prol da humanidade, por vezes tem percorrido estas
paragens em
investigações scientificas, ninguem, pois, melhor
que elle, poderá
apresentar o quadro completo da topographia do paiz, cousa muito
fóra
da esphera dos meus conhecimentos, como o meu amigo leitor facilmente
deverá comprehender, e que me não envergonho
confessar.»
A ps. 286 o seguinte:
«N'outro logar conta
Livingstone que, achando-se na tribu
de
Mpende, cujo chefe lhe difficultára o passo, dous velhos
vieram, de ordem
d'este, perguntar-lhe quem era. E que lhes respondera. «Sou
inglez.» A
isto replicaram os velhos que não conheciam aquella tribu, e
que suppunham que elle e os
seus eram Muzungos (portuguezes) com os quaes n'outro tempo haviam
combatido.
«Então (accrescenta Livingstone) como eu ainda
não sabia que a palavra Muzungo
era applicada aos portuguezes, e pensei que queriam com ella designar
os mulatos, mostrei-lhes o meu cabello e a pelle do meu peito, e
perguntei se os
Muzungos tinham o cabello e a pelle como eu? Como os portuguezes
costumam cortar
o cabello rente, e são além d'isso menos claros
de que
nós, os velhos responderam. «Não,
nós nunca vimos pelle como essa
tão branca.» E continuaram «Ah!
vós decerto pertenceis á tribu que tem
coração para os homens pretos.» Eu com
satisfação lhe respondi que sim, etc.»
Diz inconsideradamente o illustre viajante: «Sou
inglez»! Julgaria por ventura que a Inglaterra enviasse a sua
esquadra e desaggravar o seu assassinato, dado o caso de que os
selvagens o tentassem?!
Felizmente que taes arrogancias áquem Bihé,
não
se podem contar e apontar, ao passo que além, a partir da
mesma terra para o litoral,
não só se apontam, como infelizmente se contam
repetidas! E, ai quando tal se realizasse na pessoa do illustre
viajante, em presença do
seu caracter um tanto irrascivel, não teria por certo
direito a melhores
honras, que aquellas que tiveram tantos outros portuguezes, cujas
ossadas
insepultas por essas mesmas paragens, reclamam incessantemente dos
transeuntes a oração funebre pelo eterno
descanço
de suas almas, já que outra cousa não podem obter
em desaggravo do seu desastrado
fim.
[53]
O sr. Gamitto diz-nos no seu
Muata
Cazembe que, os chefes designam os portuguezes por Muzungos.
Segundo o mesmo sr. a raça de Cazembe dá-lhes
egual denominação.
A raça da Lunda chama-lhes
Hinder oe comema;
a raça
dos Ganguellas,
Sungo, e a
antecedente, bem assim,
Hinder ea numba; a
raça do Luvar dá-lhes aquellas
denominações, a raça dos Quimbundos,
Sungo; a raça Bunda, de
Angola e suas dependencias:
Sungo, e
Cangundo; a raça Lui e
Macorrollo:
Macua do Oriente, e
Macua do occidente, indicando as
ditas partes do globo. Pela mesma maneira designarão o
Allemão, o
Belga, o Hespanhol, o Francez, o Inglez, e finalmente o Russo, em
virtude da sua
côr, de natos da mesma parte do globo, de filhos de
além mar; mas
não que sirva a distinguir uma raça qualquer,
como o illustre
viajante quer fazer acreditar. Que nos venha dizer que, este ou aquelle
regulo se
não chame Hiquereto, sua segunda Providencia, e que em
virtude da sua indole, fizesse menos preço da sua pessoa,
levando a audacia
ao ponto de o querer impedir na jornada, é cousa que se
entende, mas
não a insinuação opprobriosa sob o
nome portuguez,
simplesmente pela circumstancia de alguns membros da mesma familia
empregarem-se, no odioso trafico de escravos; o que não
está em
harmonia com a posição que occupa na sociedade, e
muito menos com o caracter de que se acha revestido. A não
ser essa sua segunda Providencia,
torno a repetir, o illustre viajante teria effectuado a sua viagem a
Loanda auxiliado por esses mesmos a quem amiudadamente pretende expor
no pelourinho da irrisão publica, como empregando-se n'um
genero de vida que já de ha muito deixou de ser. Teria
egualmente
effectuado a sua viagem a Moçambique auxiliado pelo bom
governo portuguez, a
cuja fraqueza deve o bom exito da sua viagem de Costa a Costa, para
mais tarde o escarnecer, como effectivamente o fez;... a
retribuição seria sempre a mesma!
Oh! se esta bella joia engastada como está na
corôa de Portugal, pertencesse á de
França ou da Inglaterra, o
commercio da escravatura far-se-hia sempre, então,
não direi que para
possessões estranhas, mas sim nas proprias; havendo a
certeza de que uma potencia não
tomaria contas á outra por semelhante procedimento. O
illustre viajante percorrendo Africa como acaba de realisar, diria
então: Acabo de fazer a
minha digressão na terra por excellencia denominada a oitava
maravilha do mundo, visto que está ainda por vir
á luz. Mas
se bem que lhe pese, ella pertence a Portugal, e isso é
sufficiente para a desacreditar, não obstante os obsequios
com que por toda a parte foi honrado.
As vicissitudes do acaso são assim, um tanto inconstantes
para os individuos como tambem para as nações, e
para
fortuna sua e dos seus, um Pombal é como um meteoro;
apparece de tempos a
tempos, para desaggravar e elevar a sua patria.
Qual será o potentado poderoso ou secundario em Africa, que
abomine o trafico da escravatura? Se d'ahi lhe provém a sua
grandeza, que se pode dizer ephemera, porque para se sustentar no
poder, tem necessariamente de ser prodigo!... E a prodigalidade
é exercida em virtude dos pleitos que quotidianamente
decidem, e dos
quaes são provenientes os escravos, o gado, a fazenda, as
enchadas, a cera, alguma
[54]
ponta de marfim, e finalmente toda a especie de
creação miuda, fonte principal do seu rendimento;
visto que nem todos se podem chamar senhores da Lunda, Lui, Cazembe,
Batebere, Risucatebe e Macorrollos, onde abunda o marfim; os
Ganguellas, onde apparece o marfim e abunda a cera; o Humbe, onde
apparece o marfim e abunda o gado, mas que tambem permutam os escravos
em maior ou menor escala, attendendo a ser a força principal
da sua
população.
Embora a total suppressão se approxime do termo, o illustre
auctor do
Exame pode ter a certeza de que o
trafico não cessará jámais
além do dominio das Quinas, visto que ahi se dão
egualmente lucros para especuladores; compram escravos para o
serviço, para a
troca do marfim, da cera, do sal, do gado e finalmente para satisfazer
Milongas (crimes), como já tive occasião de
falar.
E como poderá deixar de ser assim, se os escravos e o gado,
são os unicos dois elementos que fórmam a riqueza
principal e
unica de todas as classes, aqui no interior d'este grande continente?
Estudem primeiro o caracter, a indole, as leis tradicionaes, usos e
costumes dos seus habitantes, e depois falem-nos do odioso trafico da
escravatura, visto, repito, que não ha nenhum potentado
poderoso ou secundario que o abomine.
É certo egualmente que sem restricções
o condemna a doutrina de Jesus Christo, mas tambem não
é menos verdade
que ella manda illuminar os pobres de espirito, a fim de que venham no
conhecimento dos beneficios recebidos e por receber.
E, já que desgraçadamente em tudo imitamos o
extrangeiro, imitemol-o egualmente na formação de
companhias para o bem
estar das nossas possessões, no tocante a
religião,
civilisação e progresso; a fim de não
estar-mos unicamente com a mira no governo. Agora,
prestar-se-lhes taes beneficios sem o previo conhecimento d'elles,
é,
creio-o, do intimo da minha alma, procurar a nossa ruina. Quem
lá
chegar o reconhecerá, como diz o rifão.
Acabo aqui o meu trabalho bastante desagradavel pelo motivo que lhe deu
origem, e, logo que o illustre viajante traz para a arena o
incidente de triste recordação para os
portuguezes do
Charles e George, responderei que, sou da
opinião d'aquelles que preferem
morrer na brecha, a ver a sua patria ludibriada, visto dizer-nos o sr.
conselheiro Bastos que: «Antes inveja que piedade, vale mais
ser invejado
que lastimado». N'este ultimo caso existe a infeliz e
desditosa Polonia! E, mal da Inglaterra se todos os seus filhos
nutrissem sentimentos eguaes aos do illustre viajante, porque
então seria a unica dominadora
do mundo, ou riscada do mappa das nações.
Fim
Passo agora a transcrever o documento a que me referi, e que devo
á bondade de João Francisco da
Conceição e Mattos, filho do agraciado; por elle
se virá no conhecimento, que a
nomeação de capitães móres
do paiz é muito anterior a 1791.
Manoel de Almeida e Vasconcellos, Cavalheiro da Sagrada Ordem de S.
João de Jerusalem de Malta, do conselho de Sua
Magestade Fidelissima; Governador e capitão general d'este
Reino, e suas
Conquistas, etc. etc. Faço saber aos que esta Minha Carta
Patente virem,
que por justas considerações do Real
Serviço, e do bem dos povos, é absolutamente
necessario prover-se o posto de Capitão mór, e
Juiz da Provincia do Bihé, povoação do
Amarante, freguezia de Nossa Senhora do Desterro, e S.
Gonçallo,
jurisdicção da Capitania de Benguella, que vagou
por fallecimento de Joaquim José Rodrigues, que o
exercia, em Pessoa de satisfação, e merecimentos,
que bem o
haja de exercer; e tendo consideração aos de
Antonio Francisco da
Conceição, ter servido a Sua Magestade no posto
de Capitão Mór e Cabo da
dita Provincia do Bihé, com aptidão, e prestimo;
e me pertencer
este provimento pelo cap. 9.º do Regimento d'este Governo: Hei
por bem
de o prover (como por esta o provo) no dito posto de
Capitão-mór, e
Luiz da Provincia do Bihé, povoação de
Amarante,
freguezia de Nossa Senhora do Desterro, e S. Gonçallo,
jurisdicção da
Capitania de Benguella, em quanto a Rainha Nossa Senhora não
mandar o contrario, e eu entender
he
[56]
conveniente ao seu
Real serviço; com
a
declaração de que será
obrigado a
residir na dita Provincia, e a guardar todos os Regimentos, Leis, e
ordens, que se lhe communicarem, dilatando o commercio, a agricultura,
e a industria, quanto permittirem as forças da
mesma Provincia, e as Regras da Justiça, e de que
não
será reconhecido por tal Capitão-mór,
fóra da dita Provincia,
não fazendo guerra aos Negros, nem acto nenhum de
hostilidade, sem expressa ordem Minha, e dos meus Successores, e que
attrahirá e dilatará os
Vassallos, e Dominios de Sua Magestade, pelos meios justos e suaves, da
paz, da
justiça, e do commercio, fazendo que a cada um se pague os
serviços que
fizer, ou os generos que vender, e que escuzando-se, não
sahirá do Governo sem que primeiro seja rendido por aquelle
que Eu nomear. Pelo que mando ao Governador da Capitania de Benguella
conheça ao
dito Antonio Francisco da Conceição por
Capitão-mór, e Juiz da Provincia do
Bihé, e como tal o honre, estime, deixe servir, e exercitar
o dito posto, dando-lhe d'elle Posse, e juramento na fórma
costumada, de
que se fará assento nas costas d'esta Carta Patente; e as
pessoas
suas Subordinadas, que em tudo lhe obedeção,
cumprão, e
guardem suas ordens por escripto, e de palavra, no que pertencer ao
Real
serviço, como devem, e são obrigados. Na
Thesouraria Geral das Tropas
ordeno se lhe faça o seu Assento nos livros competentes,
para
delles tirar sua Fé de officios quando lhe convier. E por
firmeza de tudo
lhe mandei passar a presente por mim assignado, e sellada com o sello
das Minhas Armas, a qual será registada nos livros da
Secretaria do Estado deste Reino, e aonde mais tocar. Dada nesta cidade
de
São Paulo da Assumpção a onze de Maio.
Hippolito
Fernandes Pinto official menor da mesma Secretaria, a fez.
Anno de mil setecentos
noventa e um, Joaquim José da Silva,
Capitão-mór encarregado do expediente da
Secretaria do Estado a fez escrever.
Manuel de Almeida e
Vasconcellos.
Carta Patente porque V. Ex.
cia ha por bem prover
Antonio Francisco
da Conceição, no Posto de Capitão
Mór, e Juiz da Provincia do Bihé,
Povoação de Amarante, Freguezia
de Nossa Senhora do desterro e São Gonçallo,
Jurisdicção
da Capitania de Benguella, como nella se declara.
Para V. Ex.cia
ver.
Por Despacho de S. Ex.a
de 11 de Maio de 1791.
Reg.da af. 39 do
L.o 25
de Patentes e af. 41 do L.o 5.º dos
Postos para fora fica assentada a sua Praça.
Thesouraria Geral das Tropas 12 de
Maio de 1791
Manuel Pinto Delgado
Cumpra-se e registe-se.
Q.el de Benguella 25 de maio de
1791.
Francisco Paym da Camara
e
Ornellas
[57]
Reg.da af do
L.o 21 de Patentes que deve
n'esta Secretaria do Estado d'este Reino. São Paulo da
Assumpção a 11 de Maio de 1791.
Joaquim
José da Silva
Reg.da af.
111 do Registo Geral d'esta Capitania. Benguella 26 de julho de
1791.
Francisco Bermesso
Principiei pelas nossa cousas, e por um
acaso findei egualmente por ellas, visto ter-me vindo á
mão o documento que acabo de transcrever, accrescentando,
que, somos bastantes pigmeos para não seguir-mos a vereda de
nossos antepassados. Então, procuravam, elles, estender e
dilatar o nosso poder. Presentemente, não só se
trata de o incurtar, como tambem abandonar! Assim se verificou com a
Feira de Cassange, terra subjugada em 1850 pelo bravo Francisco de
Salles Ferreira, e mandada abandonar pelo sr. João Baptista
de Andrada em 1862...
Bihé 2 de março
de 1869.
Antonio Francisco
Ferreira
da
Silva Porto
Notas:
[1] Veja-se o
diploma no fim.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos: