The Project Gutenberg EBook of Nova Sapho, by Visconde de Villa-Moura

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: Nova Sapho
       Tragedia Extranha

Author: Visconde de Villa-Moura

Release Date: August 20, 2008 [EBook #26371]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOVA SAPHO ***




Produced by Ricardo F. Diogo and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net






DO AUCTOR

A Moral na Religião e na Arte.

A Vida Mental Portuguesa.

Vida Litteraria e Politica.

Camillo Inédito annotado.

Nova Sapho.

Doentes da Belleza.

Bohemios.

Antonio Nobre.

Grandes de Portugal (com Antonio Carneiro).

Fialho d'Almeida.

Fanny Owen e Camillo.

As Cinzas de Camillo.

Os Ultimos.

VISCONDE DE VILLA-MOURA




NOVA SAPHO

TRAGEDIA EXTRANHA

SEGUNDO MILHAR





EDITORES
ANNUARIO DO BRASIL—RIO DE JANEIRO
RENASCENÇA PORTUGUESA—PORTO





  —«O Amor fundiu em mim—Deus, Perversão, Desgraça...

  O Bem e o Mal deram a figura que sou—um bronze de sentimento. Realizo o genio sensual da humanidade nevrosada e a vida suave de toda a Belleza humilde! Sou Shakspeare e Bandarra:—tenho no peito o cachoar tragico da muita miseria e altanaria heroica, que o inglês referveu em dramas que são a perpetuidade da Dor-genio; e, ao mesmo tempo, a simpleza ingenua da amargura delida por uma quasi inconsciencia—aquelle extranho sentir dos loucos que têem o sestro de viver alegres as suas e as tragedias dum povo, os bellos crimes, como as grandes melancholias duma raça!...»

Da Elegia da Morte.

MARIA PEREGRINA.

[9] 

I

MARIA PEREGRINA

Encontrei-a indolente, distrahida, em viagem pelo Minho.

Estou a vê-la!—mulher de trinta annos, cabellos negros, olhar ennevoado, sombrio, sobrancelhas luzentes, labios finos, mostrando a espaço os dentes brancos, rosto moreno, talhado em linhas puras, modelo de bronze precioso de casa antiga, com ademanes de adolescente e artista. Acompanhava-a uma extrangeira mais nova, de cabellos e olhos castanhos, muito branca, boca pequena, duma belleza vulgar, que abria em riso ingenuo, ar aventureiro de quem segue por um mundo de acaso, ao capricho doutra, da companheira, que a envolvia, ás vezes, num largo olhar complacente e tenebroso.

Percebi entre as duas a mais esquisita intimidade, a que a segunda parecia dar-se passivamente, [10]mas alegre, por comprazer, numa generosidade estulta de pessima lassidão. Iam quasi á vontade na carruagem, indifferentes á observação extranha, longe do mundo em que viviam, trocando olhares perversos, duma sensualidade doentia, ali, á face de desconhecidos, que só excepcionalmente podiam acceitar com benevolencia a vida que denunciavam.

Maria Peregrina pareceu-me uma esgotada, figura confusa, a contas com desequilibrios intimos, que lhe reflectiam fadiga e exotismo.

Eu sentára-me em frente da mais nova—a extrangeira de olhos côr de burel, muito apertada num costume de viagem, exaggeradamente cingido, de geito a denunciar-lhe as formas regulares, irreprehensiveis.

Quando entrei tinha ella sobre o logar que eu devia occupar uma caixa de couro negro, a que prendiam duas correias, unidas por uma fivela. Era a caixa do binoculo de tartaruga com lavrados de oiro que Peregrina tinha na mão.

Á minha chegada, a extrangeira levantou a caixa. E, como não visse melhor logar, lançou-a ao hombro esquerdo, com a correia.

Maria Peregrina interveiu:

—Deixa ver, Violet!

E, mexendo na correia:

—Apertaste a fivela ao contrario, vou compô-la... [11]

A inglesa inclinou-se para ella. Olhou em volta, derramando uma luz suave e quedou a olhar, agradecida, para a companheira. Depois, desviou a attenção para as arvores, que faziam a escolta da linha ferrea, a seguir para as pessoas da carruagem, que viu indifferente, como vira as arvores; disse a Peregrina palavras ingenuas de disfarce, ácerca do caminho, das horas da jornada; e acabou por tamborilar, a mêdo, nos vidros da janella.

Eu observava, interessado, aquellas figuras, que me pareciam tão differentes e que, no entretanto, se bemqueriam, mercê duma qualquer razão de fatalidade.

Maria Peregrina usava uma toilette roxo indeciso, sem enfeites, muito casada ás linhas do corpo, obra de qualquer costureiro de Paris ou Londres, que quizera honrar a mulher excepcional que fôra chamado a vestir, não lhe sacrificando o corpo magnifico, agora flexuoso de doença e cansaço.

Adivinhava-se nella a mulher de gosto que não discute preço e superioriza a toilette, elegendo os objectos de uso. Trahia-lhe levemente a gentileza um certo desmancho.

Estendeu a mão anemica, duma finura aristocratica, para as mãos vulgares de Violet, que, indolentemente, lhe palpava os diamantes de dois aneis antigos que lhe calçavam os dedos morenos. Usava um terceiro anel em [12]que abria um escudo minusculo de signaes heraldicos, que eu não podia ler pela distancia, e me parecia dispensavel como inculca de raça, pois que Maria Peregrina a revelava por si.

Tinha quedas bruscas, lassidões que reflectia num grande abandono. E foi num desses momentos que a vi sumida nas almofadas da carruagem, falando em surdina á companheira.

Percebi que se tratava duma pequena ordem, disfarçada em pedido.

De facto, Violet levantou-se, abriu um saco de camurça-creme, escolheu dentre outros um estojo pequeno de metal e offereceu-o a Peregrina.

Esta buscou um tubo comprido de lenticulas, tomou duas e entregou o estojo a Violet, que voltou a collocá-lo no saco de camurça. Pude ver o rotulo collado ao vidro-víoleta. Indicava um excitante invulgar.

—Não vaes bem? perguntou Violet, ao sentar-se, rente á companheira.

E mirando-a, com attenção:

—Estás doente? Tão pallida!

Na verdade, ella lembrava uma daquellas figuras em que o talento, a tristeza e a espiritualidade se fundem numa affirmação de decadencia.

Era um busto fim-de-raça o de Peregrina, [13]sombria, extenuada numa indolente indignidade, abandonando-se aos nervos, vencida, e pedindo á Chimica o emprestimo de excitantes, sophismas ruinosos da mocidade em desbarato. E, no entanto, só pude vê-la com piedade.

Era inferior julgar segundo a minha saude moral o caso infeliz da mulher extranha, que parecia reflectir nos seus quebramentos o drama lento duma vida exotica.

E, como quer que percebesse que pela primeira vez olhava para os passageiros que formavam a ala fronteira á sua, numa expressão de inquerito e vago pedido de soccorro, vendo o seu desassossego, lembrei-me de que podia este ser da posição que tomara e offereci-lhe o meu logar.

—Provavelmente, disse, ella ia mal no sentido da machina; que o meu logar era melhor e lho dispensaria.

Attentou-me com surpresa, e, depois de alguma hesitação:

—É verdade, supponho que me tem feito mal a posição que escolhi. Mas não desejo o sacrificio de v.

Levantei-me.

Por sua vez levantou-se; volveu a fitar-me, reconhecida, sorriu forçadamente, e sentou-se.

Percebi que o pequeno esforço lhe aumentara a fadiga; transfigurou-se.

[14]Os largos olhos escuros, habitualmente serenos, indecisos, moveram-se numa agitação de labareda intima, para logo quedarem, vagos.

Depois de curta hesitação, encostou-se ás almofadas e adormeceu.

Dormiu um somno pequeno, de tres quartos de hora.

Naquelle estado de abatimento, pareceu-me a unica maneira de sossegar.

De repente, o comboio estremeceu, galgando numa velocidade imprevista. Peregrina, que acordou aos primeiros solavancos, dirigiu-se-me:

—Fez-me bem mudar de logar. Estou melhor e muito reconhecida á gentileza de v. Dormi não sei por quanto tempo, o tempo bastante a cobrar forças que, de subito, me faltaram.

E eu, solicito e curioso:

—Mas V. Ex.ª soffre ainda? Talvez fatigada pela viagem...

—É certo, respondeu, animada pela minha curiosidade, estou fatigadissima. Venho de longe, de muito longe. Sabe v.?—ha um facto que se dá semelhantemente em todos os paizes. É a impotencia, a impostura da medicina em face da doença. Todo o seu empenho é encobrir as deficiencias do mister, illudir, mystificar os pobres doentes.

[15]—Emfim, sublinhou com um riso amargo, não podemos querer-lhe mal!

A despeito de todos os epigrammas com que temos flagellado os medicos—á menor coisa os procuramos. Não occorre chamar qualquer artifice... Na maioria dos casos valeria o mesmo.

Pergunta-me v. o que tenho? Sei lá o que tenho! Tenho o mal-de-viver—uma doença longe da medicina, que me lassa os nervos, cria desejos e sensações inconsumiveis, que me irrita e alheia das coisas consagradas e me afina a sensibilidade para coisas pequenissimas—as minhas futilezas preciosas. Sou indifferente ás trovoadas, e irrita-me o zunir duma abelha. Tenho o maior desprezo pela moral de toda a gente; faço do avesso dessa moral uma verdadeira religião, um culto fervorosissimo.

Envenenei-me outro dia com um ramo de flores de madre-silva. Tive um prazer doloroso na aspiração desse aroma, que sorvi cheia de sensualidade, até cahir sobre uma banqueta, tonteada, numa syncope que foi o espanto do medico que me tratou.

Quando cobrei animo e lhe expliquei o que se passára, suppoz-me doida; sobretudo quando lhe falei em envenenamento. Affirmou que a flor da madre-silva não era veneno catalogado. E, como o convidasse a explicar as minhas [16]perturbações—a syncope, a garganta em fogo, a sêde, os espasmos, o arrefecimento,—todo o cortejo da intoxicação violenta, pareceu resolver-se pelo diagnostico que aventei; fingiu tratar-me, e arrimou-se, em materia de explicação, ao velho bordão—de que eu era uma hysterica; que o meu caso, devia signalar, era curioso; que cada hysterica tinha, de facto, as suas particularidades, perturbações, exigencias, um tratamento proprio. E com isso me calou...

Que lucrava em amesquinhá-lo? Se nunca amesquinhara, conscientemente, alguem, menos me occorria maltratar quem, afinal, reflectia, segundo o rito da sciencia, uma trapaça intelligente que podia ter satisfeito outros, menos exigentes do que eu.

Maria Peregrina falava com enthusiasmo, mas de repente abrandou-se para dizer, quasi indolente:

—Agora reparo, estou a incommodá-lo. Que pode interessar-lhe a historia das minhas fraquezas?

Ainda na hypothese de que me ouça com vagar, os factos que illustram o meu caso, se lhe interessassem, magoá-lo-iam. E não tenho o direito de pagar a gentileza de ha pouco, lamuriando-lhe a minha vida, desagradavel. Mas esta não pode, não deve mesmo interessá-lo.

[17]Protestei, e fí-lo de forma que me pareceu conquistar-lhe a confiança.

Enquanto conversavamos, Peregrina mal se distrahia de Violet, para quem olhava a miudo, e que, a meu lado, deante della, seguia a conversa com meia attenção.

É quasi tão difficil encontrar quem ouça bem como quem fale bem. Violet abria clareiras de indifferença na historia da companheira, uma historia exotica, singularmente complicada, em que li todo um indice de miseria.

Pareceu-me que Violet, talvez pouco conhecedora de português, não podia ouvir bem. A maior parte dos esclarecimentos de Peregrina devia escapar á sua percepção; mas um não sei que de affinidade dava o traço de união entre aquellas almas, que eu suppunha fundamentalmente diversas.

O comboio parou.

—Estamos na Trofa, informou um passageiro.

Violet desceu da rêde o saco de camurça-creme, preparando-se para sahir.

—Já?!—perguntou Peregrina, esquecida dos trabalhos da viagem, ou na previsão de peores horas.

E, buscando um bilhete, entregou-me o nome lithographado e esclareceu:

—Vou para Lares, a quatro leguas de Guimarães. Tenho lá sombras e silencio. Venho [18]fugida á esturdia civilizada, ás grandes illuminações com que a cidade estraga a Noite. São as pragas que mais temo—o barulho e a muita luz!

Emfim, se algum dia quizer descansar, visitar a toupeira de Lares...

—Tambem desço, vou para Guimarães. Muito obrigado.

Sahimos rapidamente, e foi já no tramway de Guimarães que paguei a amabilidade de Maria Peregrina, dizendo o nome e explicando que passeava pelo Minho e ia áquella cidade tirar impressões novas das coisas velhas, visto andar muito ao avesso das glorias contemporaneas.

Fez-se silencio sobre a minha informação. Lemos a um tempo os nomes trocados. Verificamos que nos conheciamos. Ella lera um livro meu, com que sympathizara, disse, mercê das suas rebeldias. Por minha parte, esclareci, tinha lido os seus volumes—Nova Sapho e Emparedada. Este era um livro em que ella ampliára, segundo o seu caso, os desgostos dum poeta brasileiro—o Poeta Negro.

Este luctára contra o preconceito de côr, soffrera todo o desprezo geralmente votado á sua casta e fizera deste desprezo um capitulo de Evocações, doloroso.

Maria Peregrina Alvares de Lorena e Villa-Verde, que eu conhecia pelas revistas e por [19]aquelles livros urdira a Emparedada—a sua obra prima, para editar dores intimas.

As paredes que mostrava ao publico—a um pequeno publico, eram os preconceitos de toda a ordem que lhe entravavam a acção.

Soffrera más vontades, vexames e desabafára em paginas notaveis, mau grado serem decadentes, doentias. Para toda a parte para que voltava o espirito encontrava paredes, escuras e espessas, tatuadas de obscenidades, allusivas a predilecções suas.

A sociedade destinára-lhe uma cella estreita, quando a natureza lhe dera um talento largo e uma sensibilidade enorme, caldeados dum certo fatalismo sensual, que lhe abarcava e impopularizava a obra.

Assentava, plena de orgulho, que essa impopularidade era o contraste do seu genio aventuroso. Mas a sensibilidade abria conflicto com a moral média; e dahi as torturas. Não pretendia que a seguissem e admirassem nos seus delirios; aspirava a que a respeitassem em homenagem ao genio dos seus defeitos, que amava acima da sua obra.

Ora este conflicto, os vôos, as quedas bruscas, tudo o que no temperamento pode haver de grande, e tudo o que a carne pode dar de vil—taes eram os themas dos seus versos geniaes, enfiados naquelle dizer extranho.

[20]No fundo, o livro era a sua historia—uma autobiographia.

Alludi, com enthusiasmo, aos Sonetos, prêsos num lindo aro, a uma titulação leal e exacta:—Procurando alguem...

Expliquei que a unica superioridade que me arrogava sobre o grande numero de confrades era a de acompanhar a propria Belleza que eu não sentia.

Tinha uma concepção de Belleza que prendia ao meu temperamento—era a que naturalmente mais exteriorizava. Mas não me era difficil descer ao intimo duma alma exotica, para viver tempestades alheias.

Conversamos até Guimarães.

Seguiu os dados que incidentemente lhe forneci, e inquiriu, amavel, da minha orientação não esclarecida pelo livro que lêra.

Falamos do debate intellectual do momento. Vieram a proposito velhos cultos.

Cada um de nós tinha concertado um Ceu para os seus santos—um Ceu de Arte, limitado, que mal encheria duas paginas de Folhinha...

Falei da obra revolucionaria de Dostoïewsky, D'Annunzio, da cruzada de Anatole, Maeterlinck, Nietzsche, Wilde e outros; confrontei a aspiração dos recem-cruzados da idéa-nova com o positivismo estreito dos ultimos cincoenta annos.

[21]—Que os novos, affirmei, se propunham esbandalhar os diques, mal cimentados, do bolorento realismo; que a grande obra do homem, era, afinal a alma do homem, utilizada, praticada, alem-fronteiras do vulgar.

Que Zola, por exemplo, apontára todas as grossarias, os aleijões do corpo, mas não comprehendera os delicados aleijões da Alma, excessos do sentido; materializára o talento numa causa rude. A sua alma não déra a expressão duma Arte superior e exacta segundo o espirito.

Assim tambem Eça, entre nós, negativista e bolandeiro, bizarro e dispersivo: no fundo um homem de letras, com technica extrangeirada, cortada á feição dos seus fraques, segundo os modelos de Paris, terra incaracteristica, cosmopolita, transportada a Portugal em amostras da sua prosa de contrastes, duma rhythmica forçada.

Por isso o genio de Camillo, mais o de Fialho haviam batido o seu talento relativo, que liquidou numa reduzida memoria, concebida com macula do peccado original de Teixeira Lopes—o doloroso artista.

Que a pelle da geração passada—a que vestira o realismo—era uma pelle espessa, escamosa e aspera como a do crocodilo.

A missão nova era outra.

O nosso empenho devia ser, parecia-me, [22]archivar todas as descobertas que vão além do commum, tomá-las como factos, fazer da duvida uma força, caminhar sobre a idéa conquistada, formular novas theses, acceitar o bem e o mal, a vida creada e latente, tomar os proprios devaneios como factos, pois que a imaginação é tambem um facto e primordial, notavel.

Assim, á Belleza do sentimento succedera na ordem critica, a escola do motivo averiguado. Para nós,—sentimento, os dados positivos, segundo a escola anterior, toda a elementação, creada ou latente, vão dar a uma escola nova, religiosa, universal, compativel com todas as razões e servindo a concepção da Vida, segundo os processos mais largos e alevantados. Primeiro a Literatura da Belleza, medida a compasso, feita precisão; a esta seguiu-se uma Arte exclusivamente sentimental; nós assistimos ao exaggero inverso, que quasi nos deu a negação do sentimento. O papel dos escriptores de hoje, apostolava eu—quasi ao findar da viagem—era apagar os preconceitos, aproveitando tudo e partindo da Literatura das idéas e dos factos para a Literatura das imagens, caminhando, confiadamente, sem exclusivismo e sem pressas.

—Sim, é verdade, confirmou Peregrina, o que perdeu os passados foi pretenderem fazer girar a terra em volta delles.

[23]—Veja V. Ex.ª, continuei, os nossos liliputianos do Positivismo.

Theophilo Braga, por exemplo, deixa este mundo com a idéa de que esgotou a especulação mental; escreveu, suppõe, a ultima palavra da grande synthese poetica e philosophica da Nacionalidade; e a sua morte, parece-lhe, porá ponto na vida de Portugal, enchendo e fechando o Pantheon...

—Guimarães! gritou o empregado.

Chegáramos.

Maria Peregrina, ao despedir-se, insistiu:

—Que fosse a Lares, passar algumas horas ou dias, consoante a minha disposição.

E tão interessadamente o fez que prometti visitá-la, apenas me desobrigasse de Guimarães.

—Pois veja se tira tempo para mim, e vá com vagar. Se fôr com tempo e na disposição de ouvir-me, prometto contar-lhe episodios, que até agora tenho calado.

E sabe? disse com tristeza, talvez que estes episodios—o romance dos meus erros e amarguras—valham a Historia, que prende ao bandoleirismo dos Affonsos.

Liga-o á minha sensibilidade, a philosophia serena que usa, mau grado ser austera. Prometto fazer-lhe as minhas confissões, que marcam mais ousio, verá, do que as celebradas confissões de Rousseau.

[24]Quero mesmo que tome commigo o compromisso de dizer um dia, em publico, o que lhe communicar. Reproduzirá religiosamente o que souber de mim, isto é, tudo o que lhe contar ou tenha por verdadeiro a meu respeito. Quero que os que estão por vir apprendam no meu caso a coragem da verdade.

Saberá, então, quem fui e sou.

Até Lares!

II

Foi por uma tarde de junho, quente e avermelhada, que tomei pacientemente um carro, indicando ao boleeiro o nosso destino—a Casa de Lares, mais de legua para além das Taipas.

De Guimarães ás Taipas viajámos com dia. Anesthesiavam-me dos tratos da jornada a tarde e a paisagem.

Ao lado havia milheiraes espessos; perto, alas de giesta, florindo as curvas mal lançadas da estrada; na borda dos campos—choupos nodosos, a apoiarem vides grossas, de cachos verdes, cerrados; mais para além, nos panos altos—renques de pinheiros bravos, que pareciam tocar o ceu, fogo e madre-perola.

[25]Nas Taipas demorámo-nos. Quando seguimos era noite; recolhiam os aquistas aos hoteis, na mira das dansas e da intimidade dos salões. A estrada, a partir dahi muito guardada pela ramaria das carvalheiras, que bracejavam fóra das divisorias, era pouco passeada á hora em que a percorriamos. O carro seguia extenuado, vagaroso, denunciando a má rodagem; ouviam-se os arreios folgados, de encontro ao corpo magro dos garranos, o estalejar do chicote, as pragas do cocheiro, teares abrindo falsete na toada crepitosa da noite.

A uma legua das Taipas o carro inclinou para a direita; os solavancos multiplicaram-se. Interroguei, receoso, o boleeiro:

—Que rumo levamos?

E, dando por um pontão, que pouco mais dava ao carro do que uma tarja de palmo—pedia-lhe cuidado, aconselhando-o a parar, pois me não convinha ir ter ao leito do ribeiro, muito cavado e pedregoso.

—Que eu era um dorido, commentou o homem, sereno; que aquelle era o caminho velho, o mais curto, e dahi por doze minutos estariamos em Lares.

Seriam nove horas, proximamente, quando chegamos.

Exultei; estava, pois, em Lares, a bem dizer na Terra Santa...

Apurei a vista, e, enquanto o cocheiro batia [26]á porta-fronha, espionava eu, fóra do carro, a cerca alta do solar, com ameias de metro, alternadamente rectas e recurvas, sobrias de desenho.

Cortava o muro, a meio, um enorme frontal, inserindo um escudo ramalhado de signaes heraldicos, a que um capacete fidalgo punha fecho.

Projectava-se no chão lizo, que circuitava o muro, uma sombra de renda.

Era a silhueta das ameias e frontal.

Passados minutos, abriu-se uma das folhas da porta-fronha. Appareceu a cabeça grisalha dum minhoto authentico, a inquirir quem eramos, e o que queriamos.

Expliquei a chegada, e fui introduzido no primeiro salão de Lares, e, a seguir, abraçado por Maria Peregrina, muito admirada da temeridade, por ter ido sem a avisar.

—Que me teria mandado a carruagem, informou, e para o atalho a liteira;—que eu suppuzera as estradas do Minho similares em arranjo ás grandes avenidas do Rio de Janeiro—uma amabilidade para Lares, que me sahira cara...

E eu, desmanchado, confirmava—que era pouco cauteloso, embora muito experimentado em desenganos; que devia contar com a sua generosidade, evitando aquelle desastre. E, deprimido, sumia-me numa cadeira larga, [27]commodissima, e um pouco de geito a reparar as torturas mais reparaveis da jornada.

Estive assim dois quartos de hora, succumbido, deante de Maria Peregrina,—que me lamentava, maldizendo o caminho e a minha idéa de jornadear á doida.

Dentro, na sala proxima, conversava-se em surdina.

Levantei-me quando me senti reanimado a despir-me da poeira, voltando, em seguida, ao salão donde fui com a Artista para a casa interior—a das visitas, onde conversavam as duas pessoas que ouvira antes e Peregrina me apresentou:—o prior do Mosteiro e uma senhora de edade, a Morgada de Soutello.

O prior, homem de meia edade, usava batina preta muito cingida, caseada a roxo a dizer com a volta e faixa larga de seda, e um anel de amethysta, em oiro simples. Tinha o nariz adunco e estreito, sobre que assentavam uns oculos quadrados de lentes grossas a inculcarem pronunciada myopia, que não prejudicava o seu olhar resignado, vasando um espirito intelligente e manso.

Usava o cabello quasi rente. Era um pouco curvado, franzino e distincto. De resto muito sombrio, e, no dizer de Peregrina, em tudo avesso ao typo classico do abbade minhoto—no geral bonacheirão e grosseiro.

—Que lhe parecia um santo monsenhor [28]José d'Andrada, explicava á puridade. Conhecia-o desde pouco, visto que o prior chegára ao Mosteiro depois della ter sahido: havia annos que não entrava em Lares. Tinha com o padre relações duma semana, meras relações de cortezia; mas destas aferira já uma especial delicadeza, que o extremava dos collegas.

E acrescentou:

—É um apostolo de rara valia. Ao menos assim o inculca a fama. Foi regular de S. Vicente; no entretanto, parece que a communidade abriu condições aos seus talentos, pois que se oppôs ao beneficio da Parochia, e ao titulo que lhe deram.

A morgada de Soutello, D. Maria Helena Alvares Moniz e Sá de Pamplona, tinha sessenta anos, gastos em viagens pias, devoções e os maiores cuidados com a saude e instrucção duma filha, rapariga interessante, segundo Peregrina.

A velha fidalga era senhora de poucas letras, conforme o uso antigo nas pessoas da sua prosapia. Tinha, contudo, maneiras distinctas, que a absolviam das poucas letras.

Offereceu-me uma cadeira junto de si, apenas lhe beijei a mão, ao ser-lhe apresentado, e ficamos a conversar.

—A Tia, começou Peregrina, é uma das pessoas que se condoe da minha soledade e me visita com mais affecto. Presumi, ao recolher [29]a Lares, que tinha de contar, sómente, com as sombras da quinta. Mas Deus começa a transigir commigo; nem sempre me sinto só.

—Sabes, Maria, commentou a senhora de Soutello, que fui condiscipula de tua mãe no convento de S. Lazaro no Porto; foste minha filha adoptiva nos primeiros annos de educação; teu pae foi o mais querido dos meus irmãos; que desde creança te estimo...

Tua mãe, já no collegio, era uma santa. E assim a veneram os lavradores do Mosteiro. O carneiro que a guarda é uma casa de milagres. Ah! como hãode doer-lhe no Ceu as tristezas em que ainda hontem nos falavas!

Sempre triste, nem pareces a creança que vi cabriolar ha vinte annos. Emfim, creio que este sossego, quando melhor o comprehendas, hade trazer-te alegrias.

Ha tempos o monsenhor, quando estavas na Italia, disse-me que eras infeliz. Perguntei-lhe os motivos da tua infelicidade, mas fez-se desentendido; limitou-se a affirmar que havia temperamentos felizes e desafortunados e tu eras dos ultimos; que só Deus sabia ao certo as razões das desditas deste mundo, e nós tinhamos obrigação de respeitá-las, as grandes, sobretudo.

Na occasião, magoou-me tal noticia. Depois, lembrei-me de que tambem o monsenhor é homem para exaggerar desgostos, vendo os [30]dos outros, como vê os seus, com amargura serena—a que mais impressiona.

E voltando-se para mim:

—Dei razão á Salomé, que ainda ha dias repetia que Peregrina tem o prazer do soffrimento. Vou crendo que seja assim. Como ella nota, Maria Peregrina não póde com o bem!

—Ah! a Salomé suppõe então que eu faço luxo em ser triste? perguntou Peregrina.

—Pois que duvida?! insistiu a Morgada, olhando para mim de geito a alliciar-me para a opinião da filha:—rica, rapariga de talento, representante da primeira fidalguia de Entre Douro-e-Minho, que mais póde desejar? Deus nos não castigue!

Que, a falar verdade, disse, descendo a voz, e encarando-me, ha um facto que me entristece. Não nos falta prosapia na ascendencia, nem bens, nem honras de toda a ordem; e, no entanto, não temos ascendentes felizes: que immenso drama podemos ler nos pergaminhos de familia!

Não sei se sabe, disse, que no brasão de Lares ha uma linha negra que tarja um dos esquartelados do escudo, separando os appellidos que inculcam a razão fidalga desta Casa.

—Informei que tinha reparado no traço, mas lhe desconhecia a origem.

—É uma historia triste, informou D. Maria Helena. Haverá trezentos annos que um [31]antepassado nosso varou com um tiro numa caçada, em Granada, por desastre, um principe da Hespanha. Dahi o ter sido ordenado que no brasão ficasse perpetuado o lucto pela memoria do Principe e desgosto desse nosso ascendente—D. Arnaldo Affonso Duarte de Biscaia Alvares Moniz e Sá, que depois morreu no mosteiro de Ancêde, em Portugal, frade exemplar, com honras de justo e suspeitas de santo.

Lembro-me de que aquella fatalidade, expressa no brasão de familia, depois de trezentos annos—domine ainda a historia duma descendencia tão illustre como a desta Casa.

Mas deixemos agoiros... É preciso não tentarmos a Deus, conciliou.

E voltando-se para Peregrina:

—Entrega-te a Deus absolutamente. A tua philosophia, no fundo, vale tanto como os meus agoiros:—nada. O que vale neste e no outro mundo é a grande Lei. Não é assim, monsenhor?

E pedia o reforço do prior, que ouvira de pé a ultima parte das considerações de D. Maria Helena.

—É verdade, senhora Fidalga, assentiu. Mas, accentuou, sibyllino, cada um tem de servir a Deus segundo os meritos, os talentos, o temperamento que elle distribue... Ora, o [32]serviço de Deus torna-se muito complicado para os espiritos complicados. Não culpe V. Ex.ª a sr.ª D. Maria Peregrina pelas suas especulações sombrias. Peça a Deus que a alegre, e lhe transforme a vontade e os nervos, sem prejuizo dos talentos.

—Deus pode tudo, monsenhor, disse a Morgada, forte de fé. Mas só Elle sabe a opportunidade de intervir.

Seguia a conversa, animada, quando correu o reposteiro da esquerda, entrando na sala uma linda rapariga de 25 annos, proximamente, loira, olhos azues, rosto branco, ligeira e graciosa.

E a Morgada, interrompendo-se:

—Que tens feito? Estava a ver que tinhas ido só para Soutello.

E voltando-se para mim:

Era capaz disso. Não imagina a coragem desta rapariga. Sae ao lado dos Pamplonas, que não temiam coisa alguma.

—Não, minha mãe, disse com simplicidade Salomé, vinho do jardim. Está luar, o jardim é um encanto. Não imagina o effeito do luar sobre os cravos côr de enxofre. E as dahlias? Oh Peregrina, hasde dar-me dos teus craveiros, dahlias e aparas de roseira. O jardim de Soutello é tão pobre!

—Sim, Salomé, concedeu Peregrina, tudo o que ahi houver e te agrade. Pena tenho de [33]não poder mandar-te o jardim em tabuleiros. O que ahi ha é obra do José Lourenço. Coitado! como sabe quanto gosto de flores, tem o maior cuidado nesse rendimento sagrado da quinta.

Mas, a falar verdade, desde que vim, mal attentei nos canteiros; tenho a impressão de que tambem as flores começam a ver-me mal.

Manda buscar o que quizeres.

—Sempre boa, observou a senhora de Soutello.

—Vou ver, interrompeu Salomé. Tenho ainda um pedido a fazer. Sabes qual é?

—Não sei, disse Peregrina, fitando-a.

—Nem presumes o que seja?

—Não, confirmou Peregrina.

—Queria ouvir tocar. Ha annos que te não ouço. E os violinos dos outros parecem-me instrumentos differentes.

Peregrina teve uma contracção de desgosto:

—Se tens caridade não me peças tal sacrificio.

Não tóco ha muito tempo. Ha annos que faço por esquecer o violino. Desde o collegio...

E apontando-me, e retrahindo-se num sorriso que mais lhe accendia a contrariedade:

—Este meu amigo deu-se á travessia de Guimarães até aqui num carro do Tocaio! É [34]das maiores penas que conheço. Pois proponho-me repetir a heroicidade, se me dispensares do violino; nem sabes que desgostos me recorda...

—O que?! interrompeu Salomé. Não mais tocar! Quero ouvir-te,—tem paciencia!

Chamando:

—Violet! Oh Violet!

Abriu-se a porta e, dentre o pano amarello, debruado a vermelho, amarfanhado, do reposteiro, surgiu a cabeça ingenua de Violet, que vinha saber o que queriam.

E Salomé, entre azougada e meiga:

—Vaes fazer-me um favor. Chamei-te porque deves saber onde veiu o violino; traze-o, sim?

Violet encarou Peregrina, e sahiu, apressada, a cumprir a ordem.

Quando ella chegou, Salomé pegou na caixa de ébano, uma especie de esquife de creança, abriu-a, com affectado cuidado, e passou o instrumento, com o arco, para as mãos da parenta, que recolheu tudo com um enleio que me fez pena. Depois levantou-se, e, voltando-se ainda uma vez para Salomé, como quem pede clemencia, perguntou:

—Tem então de ser?

A um signal della, começou serena a afinar o violino, mas, repentinamente, arrancou do arco e, quasi sem que o esperassemos, entornou [35]em volta de si, naquella sala de geito nobre e antigo, uma harmonia tumultuosa, perturbadora.

Na sua pelle trigueira esparsavam-se reflexos da labareda que a ateava, notas dum misto macabro, melancholia, força selvagem, enthusiasmo, exotismo, aturdimentos de Arte...

A sua figura, duma belleza gasta, espectrava, numa côr e luz de magica, expressões visionarias.

Era o index duma alma polychroma, vasando luz e sentir na alma ductil do violino.

Executava um trecho de Chopin. Nas ondas daquella harmonia nervosa e suave, casara-se tudo—o genio de Chopin, a alma do violino, o enredo daquelle tecido de musica, simultaneamente divino e infernal, sobretudo a vibração dos nervos dolentes de Peregrina, esquecendo outras cordas...

Victoriamo-la, quando acabou. O remoinhar daquella alma emotiva de mysterioso, communicara-se, afinal, a todos, a tudo. Deixára no espaço nervos, fios quebrados de harmonia...

—Muito bem, dizia a senhora de Soutello, levantando-se, leve de enthusiasmo, a beijar, carinhosa, a Artista.

—Soberbo! dizia a Salomé.

E orgulhosa:

[36]—Querias então que fossemos cumplices no teu silencio? Nunca!...

E retirando com Peregrina para o vão duma janella:

—Que alma emprestas á musica! Ainda me lembro da penultima vez que te ouvi tocar. Era creança, mas recordo-me, como se fosse hoje. Eu fui, com recato, procurar o violino, e, quando menos o esperavas, pedi-te para que tocasses. E, então sem as hesitações de ha pouco, fizeste-me a vontade; lembras-te?

—É verdade, concordou Peregrina. Tens saudades desse tempo? Tambem me lembro delle, pois foi do melhor que passei. Mas entro na sua rememoração como num templo, onde vivi crenças que morreram. A rapariga de então não existe mais. Sou a sombra della, a aventureira, que talhou alegrias e paz, que não podia viver.

—E porque não? inquiriu commovida Salomé, beijando-a. És a culpada das tuas infelicidades, afinal de meras melancholias. Sê o que deves ser. Vê o que se passa commigo, quasi sempre na aldeia, em companhia de mestras hediondas, e sempre alegre, até feliz. Tudo me é sympathico, a paisagem, a gente do Mosteiro, as mil coisas que me rodeiam; tu nem pareces deste mundo!

—Sim, é certo, concordou Peregrina; sou [37]a obra postuma daquella rapariga que ha vinte annos era alegre!

—Mas porque não hasde voltar a sê-lo? Remete-te á antiga vida de Lares. Procura-te nas recordações, e esquece algumas horas más, se as tiveste. Todos podem ser felizes, ainda aquelles que os outros suppõem desgraçados. Em Soutello ha um cego que me condoeu quando o vi a primeira vez. Pois não conheço pessoa mais resignada. Imagina que vê; descreve tudo a seu modo; e como tem uma imaginação alegre, só vê coisas alegres.

—Sim, acredito. O peor não é ser cego: é termos de conduzir de olhos abertos um temperamento cego.

Salomé olhava, commovida, para a Artista. Percebi que ia sendo inconveniente perto daquelles dois espiritos que pretendiam ligar-se pelo passado.

Retirei com o monsenhor. Conversamos acêrca de Peregrina. Perorei a apologia condicional da obra della, explicando as minhas reservas para uma parte do seu trabalho, pelo que ahi havia de doentio.

E monsenhor, como falando comsigo:

—E quem sabe se o talento della não é a doença? Se curando-se não faria de si uma creatura vulgar! Não sei porque, murmurou, imagino que a sua obra prende na malha dos seus nervos, que parecem feitos de seda e [38]esparto... Repare nella! Veja como a alma lhe tatua o rosto, permeavel ao soffrimento; os livros della são a sua physionomia; revivem, exprimem tudo—corpo e alma.

Extranhos commentarios para um padre, antigo regular da Ordem de S. Vicente!

Notou a minha extranheza e, muito sereno, commentou:

—É curioso como, em geral, são considerados os padres e, sobretudo, os regulares. Ou os suppõem uns bandidos de batina—estylo Padre Amaro, do Eça—ou uns boiões de imbecilidade, e appetites grosseiros.

Ora eu posso garantir a v., continuou, que lhe valeria a pena e a todos aquelles que se devotam ás letras descobrir a rede de amarguras e dramas passados nos conventos. A verdade do mundo mystico excede a imaginação mais requintada; o confessionario é ainda a escola maxima para o padre intelligente e bom. Que satisfação eu tenho em perdoar, com a inspiração de Deus, os maiores delictos e baixezas da materia; é então que Deus me parece grande, immenso de bondade!

—O meu excellente monsenhor não me leva mal, observei, que encontre a sua doutrina interessante, mas um pouco heterodóxa.

—Ah! sim, respondeu vivamente; ahi está porque prefiro a vida livre do presbyterio á da communidade. Repugna-me mentir. Cada [39]penitente é um doente especial que precisa tratamento proprio. Mas numa terra como esta raramente apparecem os casos graves. A pena de seis padre-nossos e uma esmola purifica uma aldeia. Nos conventos, e, melhor, nos conventos-collegios a casuistica é diversa. Ha ahi os temperamentos anormaes, em que a reza e o jejum esterilizaram a alma para tudo o que não é de Deus, segundo Roma; e ha os outros, os que por educação ou tara, compatibilizam Deus com as fraquezas da carne e da alma.

Os primeiros servem a Ordem, segundo as taes regras. E, com assentimento da Egreja, condemnam, indifferentemente, os peccadores. Os outros, os que chamam a si os casos mais extranhos, para os aperceberem e sentirem, são os relapsos da Ordem, os que as congregações relegam em nome da disciplina, a bem das communidades.

É claro que ha um meio de illudir contingencias; é recorrer á hypocrisia, não pensar alto, seguir a popular doutrina do Frei Thomaz... E este é, de facto, o uso dalgumas ordens. Veiu este discurso todo a proposito da senhora D. Maria Peregrina; por mim, concluiu, lamento-lhe as fraquezas como os talentos,—mas deixe-me informar v. de que a estimaria menos se fosse escorreita como o seu procurador.

[40]Sou o pastor da freguezia, o pae dos meus freguezes, na traducção do meu primeiro e melhor titulo—o de padre. Como todos os paes, amo de preferencia os filhos mais desgraçados.

—Ah! de certo, concluiu fatal, estimá-la-ia menos, se a não soubesse infeliz...

Interrompeu-nos Maria Peregrina, executando um trecho de Wagner, tempestuoso, sombrio.

Não podia ter melhor interprete o grande compositor. Pensei na transmigração do talento e disse-o á Artista...

—Não é o caso, contrariou, é que vivi agora um pouco da emoção que tinha deixado arrecadada no Mosteiro; milagre da Salomé, que me obrigou a resuscitar parte do que fui.

Onze horas.

Abriu-se o reposteiro e entraram três creados de libré azul, conduzindo taboleiros com doce; e, a seguir, um anão, de pouco mais de cinco palmos, apertado num dolman e calção de seda preta, ar mysterioso, olhos côr de azeite, sardento, cabello ouriçado, face pergaminhosa, edade dubia.

Peregrina chamou:

—Jacob!

E, dirigindo-se-nos, offereceu os vinhos e licores que elle trazia. Recusei servir-me. Queria [41]sossegar os nervos, excitados pela viagem. Entretanto, reparei no anão.

—É um monstro singular, observou Peregrina, dando pelo meu exame. É allemão; trouxe-o de Athenas, duma barraca de feira, onde se mostrava por pouco dinheiro. Além do allemão fala o hespanhol, o italiano e vae comprehendendo e conversando o português.

E fazendo-lhe signal para que retirasse:

—É extravagantemente intelligente e velhaco; tem vinte e nove annos; não perdôa a altura e o desenvolvimento dos outros. Chego a suppô-lo justo. E, como quer que seja, trouxe-o commigo numa hora de humor exotico que só elle podia encher; é um capricho envelhecido, um monstro que me interessou...

—É tarde, disse alto a senhora de Soutello, levantando-se á procura dos agasalhos. Ámanhã venho á missa ao Mosteiro, informou, voltada para o monsenhor.

—Será ás onze horas, disse elle, se V. Ex.as não mandarem o contrario.

—Havemos de estar antes, replicou D. Maria Helena.

Despedimo-nos.

*
*      *

Levantei-me na manhã seguinte, eram dez horas, dando a volta ao terreiro a analysar a Casa, que vira mal quando cheguei.

[42]Era um edificio Renascença, com janellas de curvas abatidas, recortadas em bisel, portaes baixos e largos, ornados de corda aberta em boa gran, cornijas de telhão vidrado, faixeando a casa, e um beirado, quasi rente, á volta.

O portal maior ostentava, por entre os desenhos da cimalha, o escudo de familia. Nos panos da frente e no que olhava para o ribeiro, appareciam asymetricos varios symbolos:—a cruz manuelina, espheras, caravelas, e o timbre heraldico dos senhores de Lares—um cysne segurando uma aspa bordada de castellos.

Internei-me pelo arvoredo, a rememorar o passado do velho senhorio, que governára em tempos muitas leguas em redor.

Á direita, era o jardim que, na vespera, tinha ouvido elogiar. Fui vê-lo de perto. Lá estavam os cravos, as dahlias-sangue, flores variadas de enxofre e carne.

Ao voltar-me dei com Maria Peregrina, que, na extrema, conversava com Salomé, sentadas ambas num banco de azulejo alto.

Juntámo-nos, trocando impressões sobre a Casa de Lares. De passagem, Peregrina chamou a minha attenção para o mobiliario, que dizia deteriorado, mas authentico, e raridades de faiança portuguesa, velhas porcellanas da China, telas, marfim e a sua collecção de esculpturas, [43]copia de bons modelos, com uma ou outra figura assignada.

Entramos em casa á hora em que o sino do Mosteiro annunciava a missa do dia. O monsenhor devia estar a revestir-se. Violet e Salomé seguiram para a Egreja.

Dei razão ao orgulho de Peregrina, insinuando attenção para o resto da grandeza que podia ler-se no interior de Lares.

A sala de entrada, coberta por um tecto em masseira, que repetia na face mais larga o escudo dos portaes, era vestida de carvalho, tendo em baixo um socco de vara e meia de alto, almofadado, e com feitios que variavam, segundo o desenho asymetrico dos cachorros.

Entre o roda-pé e o faixeado alto entalhavam os retratos de familia, emmoldurados em tiras de carvalho bordado, com escudos a marcarem a prosapia dos retratados.

Nos intervallos dos retratos havia contadores hispano-arabes, um cravo; ao centro, um buffete de pau santo.

Sobre estes moveis pousavam alguns bronzes, lavores de marfim, exemplares de olaria, contadores minusculos de oiro e tartaruga, joias,—tudo o que podia recordar a belleza passada, o capricho exotico dum mimo fidalgo e senhoril.

Dentro, a sala seguinte era um compartimento [44]pequeno com tecto em castanho, dourado, talhado em xadrez, de florões caprichosos marcando a juncção dos quadrados, guarnições do mesmo desenho e um socco desegual. Em volta bancos gothicos guardavam nos escaninhos preciosidades, bugigangas de Arte.

Era nesta sala e sobre umas credencias, muito enfloradas de boa talha do renascimento, que pousavam as melhores estatuetas da collecção.

Percebia-se o amor posto na sua guarda, tão escrupulosamente tinham sido conservadas. Nalguns panos da sala, havia telas esbatendo talento, sonho, ingenuidades épicas.

A parede principal era coberta por uma arvore genealogica, tracejada em pergaminho, oleado de velhice, onde uma rêde de linhas descompostas prendia escudos polychromos, manchas de grandeza maltratada.

Em frente, no outro pano, pendia uma armadura incompleta que remontava ao tempo de Pedro II.

O resto da casa condizia em arranjo com as duas salas; espalhavam-se pelos compartimentos armarios, arcas, contadores e camas de muitos seculos.

Ao passo que iamos vendo o mobiliario, iamos discutindo algumas peças de que Peregrina fazia a historia.

[45]De repente viu o relogio, e, disse, dirigindo-se-me:

—Tenha paciencia; é tarde e não posso deixar de ir á Egreja. Dentro de um quarto de hora devo voltar.

—Tambem vou, informei.

*
*      *

Quando entrámos no Mosteiro, urdia Andrada, discreto e avaro de gestos, a ultima parte da Homilia.

Fixou-nos, alheando-se logo da nossa entrada, e proseguindo:

—Vou terminar, irmãos em Deus, aconselhando-vos ainda e sempre a serdes bons.

Os Evangelhos são mero processo na vida superior; a Fé é o exercicio inconsciente da Bondade.

Furtae-vos a julgar os delictos alheios: os verdadeiros actos culpaveis são as más intenções, mas nestas só Deus e os peccadores podem entrar. Dizei com David, no Psalmo XXV—a ti, Senhor, levantamos a alma!

Mas para que ella suba, despi-a de formulas. É pela Bondade que se eleva. Não batalheis contra os maus, pois que ninguem sabe ao certo quem são os maus: a vingança dos fracos é esperar a queda dos fortes.

[46]Mas não devemos desejar e menos ainda promover a sua queda. Amae a todos; e fechae os livros santos, pois que elles são formulas, quando sentirdes Deus em vós!

Amae a Biblia pelas suggestões que vos der, incidentemente!

Sabei amar e não precisareis de ler.


Ao acabar a missa, trocámos cumprimentos com o monsenhor, as Senhoras de Soutello e ainda com um novo personagem que appareceu a reverenciar Peregrina, num desconcerto grosseiro, embora amavel de intenção.

Peregrina disse, entre parentheses de sorrisos, apresentando-mo:

—É o Sr. Manuel Thomé—o traço de união entre a Democracia e o Mosteiro.

Attentando nelle e ouvindo-lhe, por momentos, a philosophia alinhavada nas brochuras baratas,—vi que era um arremêdo dalguns enchedores de gazetas, que sacrificam á terceira refeição o banho diario.

Em dez minutos discorreu sobre politica, economia, moral, vida amoral.

Salvou-nos de dissertação mais estirada um pequeno de physionomia antipathica, com geitos de saguí—um Thomé em miniatura, que, á semelhança do pae, usava as mãos descidas, como a procurar vocações no chão.

O pae, o Sr. Thomé, explicou que o pequeno [47]lhe esgarçava os bolsos do casaco, em repelões de fome, pois que era fraco, a missa fôra tarde e elle viera em jejum.

E nós, em côro,—Peregrina, as senhoras de Soutello, e eu:

—Que o pequeno tinha razão; fosse o Sr. Thomé repastar-se com a familia, pois era preciosa ao Mosteiro a sua saude.

Suspirei de allivio quando o vi longe. Maçava-me a ingenuidade daquelle phonographo de democracias idiotas. Daquillo tinha visto em Lisboa.

E Peregrina, dando pelo enfado:

—Coitado, é tão nosso o exemplar! Conheço os inferiores de quasi todos os paizes. Mas o typo Manoel Thomé é caracterizadamente português. Veja o seu desdobramento no parlamento, no comicio, na escola, na chronica litteraria—em toda a parte. É a democracia soez, pintada de cynismo, a pompear requintes tirocinados em sociedades de infimos.

E num encolher de hombros:

—Vamos tambem almoçar. Sigamos as indicações da Providencia, que, desta vez, foi o pequeno.

Dirigimo-nos para casa.

Conversei as amarguras de Peregrina até ás seis horas da tarde do meu segundo e ultimo dia de Lares.

Áquella hora abracei a Artista, e parti [48]para Guimarães com um maço de papeis. Este maço compendiava uma parte da sua vida, alguns dos episodios que mais a vinculavam á desgraça, cuja historia prometti escrever.

Vou cumprir. As tempestades que a sacudiram e lhe determinaram as perversões e quedas de vontade ultrapassam a pathologia conhecida.

Este livro edita um Novo-Mundo interior. É a teia de sonhos e delirios duma grande Artista, desvairando á mercê dos nervos,—afinal a biographia, um tanto romanceada, duma figura singular, cuja obra existe e é o fio-mestre desta novella, que vale bem o subtitulo—Tragedia extranha.

III

«D. Maria Peregrina Alvares de Lorena e Villa-Verde, filha de D. Maria de Lorena Eannes de Castro e Villa-Verde e de D. Antonio Alvares Muito Nobre Leite Moniz de Sá, nasceu em 31 de outubro de 1880.

O brasão da muito illustre Casa de Lares explica alguns daquelles appellidos. Consta dum escudo esquartelado, tendo no primeiro quartel [49]as armas reaes de Portugal, pelo appellido Alvares, e, no opposto, as reaes de Castella, pelos appellidos de Lorena e Villa-Verde, lavradas em mantelado de prata e circuitadas de negro. Destacam neste leões de purpura batalhantes, bordados de oiro e veiros de côr, á volta.

Por timbre usa a Familia de Lares um cysne, armado de oiro, segurando no bico uma aspa vermelha, com escudos alternados de Portugal e Castella.»

Assim o escreveu D. Antonio nas Memorias genealogicas e Nota Privativa da Casa.

Os escudos lavrados na cantaria do edificio attestavam a historia do velho solar de Lares, confirmando os archivos.

Maria Peregrina sentia-se extranha ao mais da sua linhagem. E se a devassava era para averiguar amores pouco fidalgos. Comprazia-se em ler, para além dos escudos, romances de ligações humildes.

A sua alma, exquisitamente vincada e polychroma, sobrepunha-se aos esquartelados dos brasões.

Talento, physionomia, fraquezas—tudo reflectia a sua figura de contrastes, que o Destino urdira de nevrose e sombras.

Amava instinctivamente as fraquezas como os talentos. Sentia que umas e outros lhe espiritualizavam a figura, tocada de Desgraça, [50]e dahi o perdoar ás duas avós judias que tinham vindo enlear-se na velha arvore dos seus, frondosa de santos, doidos e poderosos.

Por entre a rêde azulada de linhas que lhe prendiam os appellidos, destacava as malhas vermelhas dos erros de amor.

Respeitava estes erros pelo que a explicavam. Entre as linhas de bom sangue que a submettiam e o systema de linhas que lhe dava a figura, sentia o conflicto de duas raças. Era pela desenvoltura do seu corpo de garça, talhado em ambar macio e tostado,—expressão de um povo que vive na penumbra um eterno outomno de genio triste...

Que lhe importava que o sangue semita viesse gafar a sua origem fidalga, se ella vivia, sobretudo, essas gotas de sangue, que em revolta com os globulos de raça, a reflectiam numa casuistica tão diversa da que inculcava a outra gente?

No seu perfil moreno, tocado de sonho e de tristeza, parece que o Destino tinha escripto uma parte da sua historia.

Perdera cedo o pae, aos nove annos. Da mãe, victima do nascimento della, ficaram-lhe memorias, casos de bondade que toda a gente repetia. Manoel de Sousa Campello e Pamplona, senhor do vinculo e Casa de Soutello, fôra seu tutor por disposição testamentaria de D. Antonio. Mandou vir uma professora [51]inglesa para a instruir em linguas, lição de coisas e principios de Arte.

Duma grande precocidade, Maria Peregrina seguia, com excepcional aproveitamento, as lições de Louisa Huley.

A inglesa era uma aventureira intelligente, prendada, que, tendo approximadamente trinta annos, tirocinára o ensino pela Allemanha, Austria e França. Tinha de seu uma grande mala com seis vestidos de passeio, o talento das linguas e o ar de quem ensina prendas e vicios para gastar nervos.

Maria Peregrina e Louisa afeiçoaram-se profundamente, excessivamente.

Lamentava a ama de Peregrina, a velha Clara, a indiscreta afeição da extrangeira, que viera roubar-lhe os carinhos da menina...

E, da mesma forma, a Salomé, a filha dos morgados, mais nova cinco annos do que Peregrina, se sentia desfalcada nas attenções da prima, muito carinhosa e prodiga de entretenimentos antes da vinda da Huley.

Os de Soutello exultavam.

—Que felicidade darem-se bem, dizia D. Maria Helena para o marido; com o genio voluntarioso de Peregrina o que seria se assim não fosse...

Manoel Pamplona concordava.

A alumna estudava com vantagem. Quando acabou o contrato com a Huley (cinco annos) [52]falava e lia correctamente o inglês, francês e allemão, entrando com uma acuidade que mal se comportava na sua edade nas obras que marcam o genio das linguas. E, da mesma forma, comprehendia e executava musica, surprehendendo a inglesa, muito pratica no seu ensino.

—É um talento precoce, uma sensibilidade! dizia o Tio Manoel, admirado dos progressos de Peregrina, sobretudo da forma porque ella commentava trechos de poesia, esparsos nas selectas, extremando por si a belleza, como os pontos fracos ou extravagantes dalgumas passagens.

Era elle quem a leccionava em português. E ninguem poderia fazê-lo com mais competencia.

Dizia-se modestamente um philologo amador, apesar de ser um estudioso e discorrer Philologia na Revista Luzitana, Instituto, Portugalia e em algumas publicações extrangeiras.

Era muito acreditado pelas diversões eruditas e conhecimentos miudos dos segredos das linguas antigas.

—Os classicos, explicava ao abbade e ao visinho Thomé, parceiros certos do bridge nas longas noites de Soutello, são os meus antepassados em Letras.

E o abbade, concordando, dizia que o morgado [53]era o representante legitimo dos velhos cultores do Humanismo; que não era comprehensivel o talento sem a grammatica, que lêra ultimamente A Idéa de Deus de Arimathéa Coelho—e concluira que Deus torcêra a Idéa do auctor obrigando-o a dá-la em prosa de saca-rolhas; que lia, ás vezes, por desopilar, a chronica dum gazeteiro de Lisboa, pae dum livro—Horas tôrpes,—coisas pelintras, que estavam abaixo dos alumnos do seu tempo, quando iam a meio da Arte; que as Letras iam dizendo bem com o resto...

O Thomé interferia a favor do chronista—que não era tanto como dizia o abbade, que auctor das Tôrpes exteriorizava em parte as suas idéas, que elle, Thomé, escrevêra antes para um semanario de Pindamonhangaba, quando era ainda moço de loja no Tijuco. Manoel Pamplona intervinha sempre, ordeiro, temendo perder os parceiros; sorria intelligentemente para o abbade como a pedir-lhe clemencia para as idiotices do chronista, em que Thomé era commanditario, e depois dalguns rodeios cahia a fundo, muito socio em idéas com o abbade, na ignorancia do grande numero dos plumitivos, e ainda na obra daquelles que não eram idiotas como o exemplar preferido pelo Thomé.

Maria Peregrina, que precisava encher as noites de Soutello, lia quasi sempre, mau grado [54]as observações da Tia e as reprimendas carinhosas de Manoel Pamplona.

Preferia ler traducções de poesia latina ou grega. De vez em quando, levantava-se a inquirir o Tio sobre casos complicados. Queria apprehender a Poesia no mais largo significado. E irritava-se porque, apercebendo-a no rhythmo, na idéa simplista da imagem, no trocadilho das passagens extravagantes, não podia desde logo penetrar a rêde do maravilhoso que envolve a tessitura classica e jogar com o conflicto dos deuses, e todo o genero de sobrenaturalismo. O Morgado entremeava os robers de explicações, pigarreando quando tinha de fugir a qualquer ponto escabroso, posto em discussão pela sobrinha.

Quando a educanda completou quinze annos reuniu o conselho de familia para deliberar sobre o complemento da educação. O curador dos orphãos, homem novo, sabedor da precocidade de Maria Peregrina e vendo o montante da sua fortuna, entendeu que devia promover o fim da educação della no extrangeiro, longe dos preconceitos nacionaes, e dahi ter requerido ao conselho que fosse internada num collegio inglês, segundo o costume das educandas no seu nascimento. Os Morgados protestaram, e Manuel Pamplona pôs á prova toda a importancia e empenho, a ver se impedia o que elle chamava «as modernices [55]impertinentes do bacharel-curador».

Não obteve coisa alguma. Em outubro de 1895 partia com Maria Peregrina para Inglaterra a cumprir as ordens do Conselho.

IV

Anno de 1898.

Nesta data chegou a Petersfield, collegio de St. James, onde Maria Peregrina fôra installar-se, a noticia da morte de Manuel Pamplona.

Tinha ella dezoito annos.

O Collegio de St. James era uma das primeiras casas de educação da Inglaterra, com destino á aristocracia inglesa e a extrangeiros e nacionaes de fortuna.

Havia quatro annos que Maria Peregrina entrára, sendo a primeira alumna do collegio, apesar das extravagancias de genio, que a disciplina britanica não conseguira modificar e ia indulgenciando em attenção aos seus talentos.

Recebeu a noticia da morte do Tio com tristeza. Lembrava-se da velha bulha do bridge nas noites de inverno do Mosteiro, entre o Abbade e o Thomé, a que elle acudia ordeiro [56]e conciliador; das suas lições de português e rudimentos de latim, das velhas recitações que elle fazia sob os arvoredos de Soutello e Lares das obras de Homero, que ao tempo amava por instincto no seu hellenismo genial; de Sophocles, o poeta que em si summariava a maravilhosa cultura e floração da Belleza grega, de tudo emfim que Manuel Pamplona lhe ensinara ou suggerira debaixo das arvores do Minho—ou nos salões dos velhos solares, duma pretenção architectural tão portuguesa e ingenua.

—Coitado, dizia á predilecta Helen, como era bom na simpleza de provinciano, e sabio de coisas classicas, de que sentia sómente o pautado e regramento do periodo—numa pretenção humanista adoravel!

E lembrar-me de que fui eu quem o obrigou á unica viagem que fez! Ah! a confusão que sentiu ao entrar em Londres, memorava. E ainda bem, pois que esse aturdimento lhe anesthesiou o desgosto de deixar-me. Sinto no peito o seu abraço de despedida, o ultimo abraço, como elle disse a chorar. Tinha de ser!...

E Helen Green, uma linda adolescente de dezasseis annos, muito enleada em Peregrina:

—Dize-me, mas a morte do Tio Manuel não prejudica a tua estada aqui, não é verdade? [57]

—Não. Sei vagamente que posso emancipar-me. Vou escrever á Tia Helena, a tomar parte no seu lucto—deve estar consternada! e ao procurador a mandar que promova a minha emancipação immediatamente. Depois traçarei, á vontade, o novo plano de vida.

—E a emancipação não te pode ser recusada? inquiriu Helen.

—Pode, mas não o será, porque vou recommendar ao José Lourenço que se entenda com os do conselho da familia, estimulando-os, sem olhar a despesas. Confio absolutamente nelle. É fino, ladino, e... minhoto. E olha que o Codigo de expedientes do Minho, minha querida, vale as leis inglesas, concluiu beijando Helen.

*
*      *

Passaram mêses sobre a morte de Manuel Pamplona.

Maria Peregrina trabalhava no quarto, segundo o costume áquella hora, quatro da tarde, escrevendo vagarosamente, quando vieram annunciar-lhe a visita dum português. Desceu ao salão, intrigada. Quem seria o português? Teve a maior das surprêsas! A um canto do salão, discreto, attento á decoração das paredes, dando voltas ao chapeu, de roda de palmo, estava o procurador. [58]

—Oh José Lourenço! exclamou Peregrina, como quem chama por uma visão a desapparecer, pois és tu? Em Petersfield! E, vendo-o caminhar para ella:

—Venha um abraço; quero abraçar o Minho nas abas de Londres!

E o José Lourenço, com os olhos e a voz rasos de lagrimas, baixando-se para a abraçar na cintura, reverente:

—É verdade, senhora Morgada, vim dar conta do recado de V. Ex.ª e receber novas ordens. A Maria tambem queria vir, mas lá me pareceu de mais.

Que, a bem dizer, o que aqui me trouxe foram as saudades. Ha tanto tempo que não via a Fidalga. E a Maria, tinha tantas saudades como eu, coitada! Lembra-se todos os dias do tempo em que a apartou. Ainda outro dia lá appareceu um senhor a pedir colheita e ella esteve todo o serão a falar da senhora Morgada, a ponto que se ia zangando porque elle se riu, quando ella disse que V. Ex.ª era a menina mais linda que havia no mundo. E, a falar verdade, que féra está! Dá gosto vê-la assim. Que linda! Como a Maria havia de gostar de vê-la!

O tempo córre. E o que faz o sangue! As raparigas do Mosteiro da creação da Fidalga estão umas lambisgoias. A não ser a prima de V. Ex.ª que tambem, não desfazendo [59]em ninguem, está um anjo. Das outras nem falar...

—Pára, José, disse Maria Peregrina desnorteada com a loquacidade do procurador. Havemos de falar muito do Mosteiro, das pessoas que temos pelo Minho, mas antes de mais, interessa-me saber como déste com Petersfield.

—Muito facilmente, senhora Morgada. O vinho do Mosteiro é, como a Fidalga sabe, o melhor vinho de Portugal e creio até que do mundo, pois que elle vae para toda a parte...

—José! Não te esqueças da minha pergunta. Queria eu saber como déste com Petersfield, observou Maria Peregrina, impaciente e medrosa da longa historia dos vinhos verdes...

—Perdôe a Fidalga, a gente não sabe falar, mas era o que eu ia para dizer. Ia contar que o vinho do Mosteiro é muito procurado, e dahi vendê-lo cedo a uma casa do Porto, que tem agentes inglêses. Entendi-me com um agente, que todos os annos vem a Inglaterra. Fizemos viagem juntos e estou certo de que se o perdesse já não ficava por cá. Ia direito para o Minho. Eu podia ter escripto a V. Ex.ª e forrar o dinheiro da viagem, mas tinha saudades da Fidalga, além de que tinha gosto em vir dar parte a V. Ex.ª de que está emancipada e ninguem mais manda [60]no que lhe pertence. Os homens a principio oppunham-se á emancipação, que era cedo, e não constava um caso assim, demais tratando-se da maior fortuna do Minho... Afinal, tudo se remediou.

—És um letrado, disse Maria Peregrina. Espera: quero mostrar-te a uma pessoa amiga!

E, levantando-se, foi chamar Helen, que entrou, passados minutos, quedando, curiosa, deante do Lourenço, que a cortejava, mesureiro.

—Que curiosa figura! dizia Helen, passeando os olhos de turquesa sobre o corpo athletico do velho, cingido no burel grosso do vestuario, de calça em polaina, bota de prateleira, jaqueta alamarada, e um grilhão de oiro á laia de corrente.

—Que curiosa figura! repetia a inglesa, approximando-se mais do Lourenço.

E voltando-se para Peregrina:

—Que vaes fazer delle?

—Primeiramente, hei de passeá-lo por Londres. Sabes que estou emancipada—o que equivale a dizer que mando em mim. Heide levá-lo a toda a parte. Quero sentir as suas impressões no Hyde-Park e Camara dos Communs. Tenho pena de que o humor inglês não vença as complicações do protocolo da tua Côrte, pois fazia gosto em apresentá-lo em Windsor!

[61]E dando pela attenção baldada do velho á conversa em inglês:

—Estava a dizer que iamos passear muito. Quero que leves que contar para o Minho.

—Sim, minha senhora, como a Fidalga quizer, mas eu precisava de estar lá para as malhas, de amanhã a três semanas, arriscou o Lourenço, reverente.

—Estarás, havemos de arranjar tudo. Descansa.

E ficaram os três, á puridade, no salão do collegio, estudando, discutindo o Minho.

—Aproveita, Helen! dizia Peregrina. Eu traduzo-te o velho. Olha que é a primeira vez que o Minho authentico atravessa a Mancha...

*
*      *

O Collegio de S. James dava á instrucção literaria o logar competente. As aulas de letras começavam ás nove horas.

Rapazes e alumnas tinham educação conjuncta em varios ramos de ensino, e designadamente em sport. Entendeu a Pedagogia que era preciso preparar creaturas fortes. O Collegio de S. James executava á risca os votos dos congressos. Facultava a mais vasta educação, instruindo pelo livro, pratica de laboratorios, trabalho de officinas, jardinagem, etc., [62]isto na maior liberdade de acção compativel com a ordem, no proposito de extremar vocações e especializar talentos. Rapazes e raparigas aproveitavam as sombras do arvoredo, que abraçava o collegio, conversando, pintando do natural, jogando, á vontade, numa confiança mutua de professores e alumnos.

Para o inglês o culto da natureza livre é a razão maxima da sua forma de sentir a Liberdade. Maria Peregrina, uma peninsular, com sangue de casas reinantes decahidas, caldeado de globulos extranhos, e uma imaginação escandecida pela sobreexcitação dos talentos, recebeu de começo com mau senho aquella imposição de força ingenua, que dominava o collegio.

Mas, pouco a pouco, foi-se achando bem. Como tinha caracter nos defeitos adquiridos e congenitos, aproveitou o que lhe pareceu de molde a serví-los, relegando o ensino que toldava o seu hellenismo nascente, collidindo com o genio do Sul de que ella era expressão.

—Ah! dizia em conversa de camaradas, no hall, ri muito dos do conselho de familia, quando me destinaram para menina de collegio. Coitados, entendem que todas as aves se dão em gaiola. E que na mesma cabem pardaes e aguias...

Afinal, vim na idéa de ver a Inglaterra e seguir mundo. Com o pretexto de experimentar [63]collegios, ia vendo terras e educando-me por mim e para mim, como sempre desejei; mas certo é que me tenho achado bem...

—É que as gaiolas na Inglaterra são folgadas, disse Edgar Buckley, um bello rapaz do bando, dezoito annos, loiro, irlandez de nascimento e coração, de physionomia severa e sympathica.

—Não é isso, advertiu, meigamente, Peregrina, fitando Helen. É que achei em Petersfield a creatura que me deu alentos á exteriorização da minha Arte. Eu tinha latente um amor exotico que não achava apoio algum fóra de mim, e, portanto, não podia vir a publico sobre forma alguma. A Arte é sempre uma expressão de amor. Só produz quem ama. Que esse amor seja bom, ou mau, que importa! O que é preciso é amar.

—Maria Peregrina! arriscou Edgar, sabes que commungo comtigo na admissibilidade do amor extravagante; mas parece-me que este amor deve ser accidental. Ámanhã, quando sahirmos do collegio, iremos todos cahir no amor vulgar; e, a falar verdade, supponho que sobretudo áquelles que têem talento isso convém. Pois não é certo que o amor extravagante nos degenera e gasta?

—Eu te digo, Edgar, ha duas maneiras de considerar a Vida:—vivê-la para o espirito, para a Arte—numa tensão firme de Belleza, [64]e vivê-la como o commum da gente—almoçando, dormindo, trabalhando á hora, realizando num dia trabalho egual ao do dia seguinte, e talhando em vinte e quatro horas o programma, a obra de vinte e quatro ou quarenta e oito annos. Para estes não importa o amor exotico. E convenho que os prejudique se o tentarem... Mas para os outros, os da vida superior, muito longe de lhes prejudicar a obra e o destino, creio que lhes dá em Belleza o que perdem em felicidade. Não leste de certo, o que ha escripto ácerca da cultura dos homens na Grecia? Nietzche, por exemplo, affirma a supremacia do vicio; esclarece—«que as relações eroticas dos homens com os adolescentes foram, duma forma que nem nós chegamos a comprehender, a condição unica, necessaria de toda a educação viril; que todo o idealismo da força na natureza grega se baseou em taes relações; que o commercio sexual regular baixava ao passo que se ia elevando a concepção daquellas relações».

—E parecem-te, perguntou Edgar, certas, essas theses?

—Absolutamente verdadeiras. Condizem com os estudos a que me tenho dado da civilização grega, e de o entender assim a minha concepção nova de Hellenismo, o Poema que estou urdindo e vou publicar.

[65]—Já agora, Peregrina, como teus admiradores, creio que temos direito a saber o entrecho do Poema. A tua Arte é tambem nossa.

—Claro, insistiram os do grupo, que eram o companheiro constante de Edgar, Hugh, um adolescente de olhar quebrado, vago; Violet, uma rapariga tambem inglesa, de olhos e cabellos castanhos, de andar suave, e fala cantada; e Helen, a predilecta de Maria Peregrina.

—Pois vou explicar-vos o Poema, já que desejaes interessar nelle, disse a portuguesa, sentando-se.

Conheceis, de certo, até pelas nossas conversas, a poetisa Sapho. Muito se tem escripto sobre ella. Não ha noticias claras da sua vida e obras. Pertence, principalmente, á lenda. As suas Odes, como cerca de setenta fragmentos reunidos nas Lyrici graeci de Bergk—não são de molde a dar notas seguras acerca do que foi.

Um facto é assente—o valor da sua extrema figura. Qual a reproducção mais legitima segundo a Arte? O Vaticano possue uma estatua de Sapho, sentada num rochedo, meditando; em Napoles ha uma pintura encontrada em Herculanum e um busto em bronze; modernamente occuparam-se della muitos auctores. Tenho reproducções dos trabalhos de Gros, Ramey, Duret, Diebolt, Clesinger, etc. [66]Trataram em opera a tragedia de Sapho—Angier (musica de Gounod); e Salm (musica de Martini). A idéa dos seus presumidos defeitos deu ainda logar a um romance de Daudet—aliás inferior, pois que o artista trata incidentemente de Sapho em duas linhas, dando a Fanny Legrand, a heroina, aquelle nome, porque ella veste uma historia que tanto podia ser a de Sapho, como a de qualquer nevrotica, dada a volupias e violencias. O que é assente, emfim, é que a critica tem oscillado na sua maneira de entender a poetisa, sem ver nella o contraste do espirito grego num largo instincto de generalização e triumpho pelo amor exotico.

Assim a considero e vou cantá-la.

Para mim, Sapho foi a mulher de genio que acceitou como um facto a homosexualidade grega, o desprezo transitorio pela mulher, e tirou dahi estimulos para a sua campanha de amor, independentemente de preconceitos de sexo—fundando a sua escola para levar á civilização áttica a quota parte que lhe devia a adolescencia feminina, o mundo-feminino, em uma demonstração de vicio e genio que eram parallelos ao genio e vicio que contrastavam as maiores figuras do hellenismo.

Ver do conflicto entre o seu valor e o desprezo pelo sexo, sentir o culto de si propria, [67]historiar e reproduzir a hypercivilização grega e fazer dessa mulher sublime o ponto culminante, a expressão de synthese da sensualidade dum povo que aspirava ao contrôle da civilização do mundo—tal é, meus amigos, a razão do meu Poema, a concepção do livro que tenciono publicar com o titulo—Nova Sapho. Porque é uma nova Sapho, concluiu, a que espero desvendar.

Os presentes, desde muito industriados no amor lesbico por Peregrina, com leituras tendentes a desculpar-lhes o peor da vida hellenica, tinham preparação bastante a comprehender a tessitura do Livro. Applaudiam-no, sobretudo, pelo arrojo de lançar a publico a idéa dissolvente do amor extravagante.

Todos se mostraram surprêsos, mas cheios de admiração pela creatura invulgar que supremaciava sempre na roda em que estivesse, e que decididamente ia dar que discutir.

—Curiosa faina! dizia Edgar, baixando o olhar...

E todos se deram a commentar a intenção e episodios em que a auctora repartia os cantos, até que vieram as trez horas dissolver aquella inesperada academia, num collegio, a poucas leguas da utilitaria Londres!

A campainha badalára o signal para o banho. Alumnos e alumnas separaram-se em direcção ás respectivas piscinas.

[68]*
*      *

As casas de banho eram distanciadas, nas extremas do recreio. A dos rapazes era um alpendre espaçoso, com dois panos de tijolo, columnas e um coberto escuro de lousa miuda, que dava, de longe, por entre a ramaria, a impressão selvagem dum enorme dorso de crocodilo.

Naquella tarde, segundo o costume, os rapazes correram todos para o alpendre. Em minutos, professor e alumnos tinham despido os fatos. Tudo mergulhou. Só Edgar e Hugh se deixaram ficar junto ao tritão;—Edgar muito triste, distrahido, de busto inclinado, parecendo desembaraçar-se da roupa com desgosto; Hugh muito mirado no corpo do companheiro, já nu, de pé, attento e á espera para mergulharem juntos.

Soberbo quadro o dos rapazes que á beira do lago acamaradavam com o tritão, num grande contraste de belleza!

O Tritão era a força rude, o abraço forte da terra e do mar, meio-peixe e meio-homem, o genio mysterioso, assistindo interessado ao que os dois diziam, num silencio de confidente.

Hugh era a belleza vulgar, a media da belleza adolescente, firme nos traços, duma [69]carnação que era um calendario a marcar-lhe a edade, sem uma nota de imprevisto.

Pelo contrario, Edgar era a excepção:—a belleza áparte, no contornado do seu corpo branco, suavemente tatuado de veias roxo-lirio, sem um traço a mais, uma flaccidez destoante, um descuido de lançamento.

Inclinado, repuxava as pernas, deixando adivinhar as rocas perfeitas de seus musculos, que tão bem lhe jogavam a gentileza do corpo, forte e airoso, flectindo-o numa harmonia suprema de linhas.

—Que formoso és! disse o companheiro.

—De que vale sê-lo, reflectiu Edgar com tristeza. A natureza quando nos engendra devia logo equilibrar a alma com o corpo e eleger com as nossas tendencias a mulher de tendencias equivalentes que tivesse de pertencer-nos.

—Ah! exclamou Hugh, percebo. Estás apaixonado por Maria Peregrina. E querias que a natureza te destinasse em Londres uma companheira de Portugal...

—Não brinques. Sei que me é fatal o amor que tenho por ella.

—Que fazem? inquiriu o professor de natação, por entre os gritos e o espadanar da agua que sahiam daquelle lago.

Subito, os dois rapazes moveram-se como duas estatuas que resolvessem partir; levantaram [70]as mãos em seta e mergulharam na primeira clareira.

A piscina era um lago de carne. Curioso espectaculo! Ephebos de jaspe, remando corpos desenvoltos... Eram os amantes aguerridos do heroe de Carthago; Apollo, Adonis, Ganymedes! Memorias tomando banho...


As piscinas destinadas ás alumnas eram abrigadas por uma casa ampla, repartida em cellas, com mobiliario e objectos ligeiros de toilette.

Havia duas tinas quadradas de dez metros e de diversa altura, para receber as alumnas, segundo o adeantamento em natação.

Abastecia-as de agua uma Esphinge de lavrado exotico:—cabeça de escocêsa, peito amplo montado em corpo de leão escanzelado, e tendo á laia de asas pennas ralas de milhafre. Era o monstro de Thebas peorado pelo canteiro inglês, vingando as victimas do Enigma.

Certo é que a filha de Typhão parecia ter resurgido do mar e, esquecida do aggravo de Œdipo, golphava da boca larga e mal talhada columnas de agua.

Á hora do curto dialogo de Edgar e Hugh desciam as raparigas ás piscinas.

Lestas, seguiram quasi ao mesmo tempo para o patim da tina alta. Entre Helen e Violet ia a portuguesa. A brancura das inglesas [71]emprestava luz ao corpo de mel de Maria Peregrina, que sobresahia pela desenvoltura de linhas. Todas usavam um calção curto e camisolim decotado, justos. A malha de Peregrina era de seda morena, como o corpo que apertava. Não o escondia, sophismava-lhe a obrigação do vestuario, tornando-a mais bellamente nua.

No patim as três hesitaram; depois foram descendo. A ultima a entrar foi Peregrina que impelliu Helen, suavemente, pelas ancas; segurou, distrahida, o cabello farto, anelado e selvatico, e ficou-se a seguir com o olhar o corpo branco da companheira, a boiar na tina funda.

Só, de pernas colladas, braços levantados como segurando a cabeça esbelta, Maria lembrava um gomil precioso de olaria rica que um principe tivesse ido encher ao lago e ahi esquecesse.

Foi a ultima a entrar e a primeira a sahir. Deu volta ás duas tinas, arando a agua em sulcos dum desenho desmanchado e sahiu, mau grado os protestos das companheiras.

Um quarto de hora depois partiam todas para as cellas-barracas.

Helen ia a entrar para a sua, mas recuou, suppondo enganar-se. Estava occupada por Maria Peregrina que acudiu a chamá-la.

—É esta a tua barraca, informou, abraçando-a. [72]Sahi mais cêdo do banho e vim para aqui para te enxugar com beijos.

—Olha que estou molhada, dizia Helen, achegando-se do lençol.

—Estás molhada? Não importa. Deixa morder o teu corpo velludoso de asclepia. Tenho sêde para te beber toda, dizia de olhos chammejantes, fremindo os labios pelo corpo branco-humido da inglesa.

E sorvendo-lhe as extremidades crestadas do peito:

—Sabes a historia destas lindas nodoas? Não sabes, minha tonta, vou contar-ta.

São dois peccados. Deus tinha apartado uma nuvem branca para fabricar petalas de magnolia. Sabes que não se pode tocar em taes flores; escurece-as um carinho.

A sua mão deu-se a modelar-te, por capricho daquella massa—a das flores sensiveis.

Pôs um cuidado especial no peito que te repartiu em globos medidos pela sua mão divina, e a que deu a maciez das petalas e o calor das rôlas.

Pois o maroto de um anjo que o viu distrahido foi, guloso, dar-lhe dois beijos. São estes pedacitos crestados, rematados por agulhetas finas, que ainda ha pouco pareciam romper-te a malha e me beijaram quando as beijei.

—Muito interessante o conto, commentou a inglêsa, rindo.

[73]E abrindo os braços:

—Venha de lá esse lençol de beijos. Quero sentir os labios que dizem tão lindas historias...

*
*      *

Passaram mêses. Uma tarde, estava Peregrina no quintal a tocar violino junto á Fonte Verde, de costas para a alameda, quando ouviu a folhagem...

Voltou-se.

—Ah! és tu? disse com enfado a Edgar, que avançava para junto della, sentando-se á beira da Fonte.

—Sou eu que estou aqui a ouvir-te ha muito tempo. Que bem comprehendes o violino!

—Então, dize o contrario, que bem que o violino me comprehende, respondeu ella, pois que improvisava musica sobre motivos meus.

—Era uma despedida—a despedida de Helen, não é verdade?

—Era, sim:—anesthesiava-me. As ondas de musica podem ser ondas de ether para a Artista que pudér bem mergulhá-las. Por mim não posso. Não sei esquecer, pois que despendo bastante trabalho a fixar... E o culto que tenho pela musica não vae até apagar-me os defeitos ou virtudes do temperamento.

[74]—Tens então muitas saudades de Helen? Dentro de breve tempo estará ella nos braços dum gentleman. Conheço John Brooke de casa de meu pae. É um diplomata muito querido da aristocracia. É bastante mais velho do que ella, mas hãode ser felizes. O casamento foi arranjado pelos paes. Mas, a proposito, deve dizer-se que ha paes que acertam... A que melhor podia aspirar? Bem sei que te dóe a sua ida. Persistes em negar a natureza. No fim ha de succeder-te o mesmo; regressarás a ella mais cedo ou mais tarde.

—Não fales assim, Edgar, se tens algum empenho em ser-me agradavel. Tem caridade comtigo.

—Sabes, Maria, que é por caridade para commigo que penso assim. Por caridade commigo e por amor de ti. Ha que tempos te amo! Chegava a ter ciumes de Helen, que entrava passivamente nas tuas loucuras. Conversava-a sobre os vossos delirios. Tinha um prazer amargo em acompanhar pela dor o vosso fremir de corpos, que nunca podiam casar-se. De toda a tua philosophia só para mim resultou um bem:—estar ao pé de ti, ouvindo os echos duma alma a despedaçar-se num conflicto que tem um unico suppuradouro—o teu talento. O encanto que derramas não podia vencer a natureza, subjugando a mulher que escolheste. Conversa-a daqui a mêses. Creio [75]que o casamento é breve. Verás que mal se recorda do amor em que a usavas. Ah! mas o encanto das tuas palavras, como o talento dos teus defeitos não se perdeu. Tenho tudo no peito. Tinhas ao teu lado alguem que te amava religiosamente...

—Sem me comprehender, objectou Peregrina.

—Não digas isso. Amar é comprehender. Vê como eu, do Norte, me sinto meridional ao pé de ti, só para te pedir um pouco de tolerancia para este amor que recebes como um peccado. Dize o que queres que faça para merecer-te!

Queres que a teu lado seja o pregoeiro do amor exotico, explicando que os nossos corpos se não entendem; que os nossos laços são um commercio do espirito? Comprarei essa mentira por toda a casta de infamia, e irei, de alma lavada, prostituir-me ás casas de pederastia que houver ou tivermos de inventar. Como esbanjas a fortuna dos teus encantos! Tens o talento de te fazer amar, mas não sabes amar...

—Basta, Edgar! Bem dizia eu:—não me comprehendes. Não extranho. Eu sou, de facto, um enigma, o arremêdo da Esphinge, que o capricho dum canteiro exprimiu em pedra á beira do lago. Sou o monstro de Thebas, que resurgiu em fórmas novas. O que vês é o [76]meu avêsso. Não me percebes! Não te devorarei, como o antigo monstro fazia a quem lhe não decifrava o enigma. Petersfield não é bem o monte de Thebas e a Esphinge de hoje tem de ser uma Esphinge civilizada...

Vou explicar-te o enigma que sou. Dizer-te como sou.

Tenho a cabeça das mulheres de Granada, talhada em sombra e sonho; o peito é português; assento o busto no torso de Leão, que é do escudo das minhas armas e das armas da Peninsula,—a bravura do Ocidente; as minhas asas são o genio judaico—a tara duma raça, perseguida, que ninguem acceita, que não acceita ninguem...

—Vamos daqui, Edgar, concluiu num riso amargo.

—Maria, pediu o irlandês, um instante apenas!

—Vamos!

E partiram os dois, silenciosos, perdendo-se no borborinho dos que batalhavam o tennis num recanto do recreio...

*
*      *

Passou um mês. Chegou a noite de nupcias de Helen.

Meia noite. Maria escrevia sem cessar desde [77]as 9 horas. Subito sentiu mexer na porta. Levantou-se e foi abrir.

Á porta estava Edgar, a tremer de commoção, cingindo uma capa leve, redonda pelos joelhos.

—Entra, disse-lhe Maria.

—É então certo, meu amor, que te condoeste de mim? Imaginei ao ler o teu bilhete que não era verdadeiro. Não podia ser. Tu não podias querer-me. Quasi me não falavas depois que te revelei o meu amor. E assim, de repente, um recado para que te viesse possuir... Que estranha és! Que abençoado momento te inspirou, dizia elle abraçando-a... Foi o genio do amor que preside a tudo, que sabe quanto a minha vida te merece.

Mas, vejo-te tão morna, depois duma resolução tão nobre...

Maria, sê minha devéras. E conta-me o que te levou a chamar-me. Dize-me que me queres. Que sou o escravo do teu amor...

E, solto da capa, apertava-a contra o corpo, despindo-a, e listrando a beijos a sua carne morena...

E ella, afastando-o com mansidão, deslumbrada:

—Deixa-me ver-te com olhos de Artista. És bello, realmente!

E desapertando-lhe a malha lilaz:

—Despe tudo isso, quero ver-te bem. A [78]historia do bilhete é simples. Recebi esta manhã carta de Helen. Casou hoje. A esta hora deve estar com o noivo; lembrei-me de tirar uma copia do casamento... Quiz ser possuida ao mesmo tempo que ella, e lembrei-me de ti!

Demais, sempre no meu ponto de vista de Arte, não me é indifferente noivar com um rapaz tão bello como tu.

—Maria! Despe a intelligencia e entrega-te! Veste, como eu, o espirito de animalidade, e deixa que a nossa carne se entenda.

E, abraçando-a, lançou-a sobre a cama estreita, collando a sua boca á della, e emmaranhando-se-lhe nos cabellos, que, desmanchados, desceram como uma segunda noite, a agasalhá-los...


Sobre a madrugada Maria Peregrina afastou, suavemente, os braços de Edgar e disse-lhe com fleuma:

—Vamos, arranja-te. Creio que não quererás que te procurem aqui.

—Conforme, disse elle, se o facto de nos encontrarem aqui nos obrigasse á união para sempre, gritaria já daquella janella o meu triumpho. Porque foi um triumpho para mim esta noite, não é verdade? dizia mordendo os labios vermelhos de Maria. Quebrei o Enigma. A Esphinge era uma mulher, embora a mais preciosa das mulheres, a unica que Deus [79]poderia dar-me e tambem a unica, Elle sabe, que eu lhe pedi!

Eu andava ha muito a procurar-me. Perdera-me a sonhar... Encontrei-me em ti. Vi-me á luz negra do teu olhar, fluido de amor e perdição. Os teus olhos são como o genio da aventura:—reflectem amor, lucto, Belleza dolorosa... Como sinto os enleios negros do seu fulgor, penumbras de sonho e loucura!

Vejo atravez delles a alma da tua raça—aquella que elles discorrem, fataes de amor.

Adivinho-me junto de ti na primeira hora em que viveste, aquella em que odiaste outra luz, e exclamo:

—Ahi está a Artista, uma Raça que vae chorar, cantando; recemnasceu o crepusculo do grande povo, aquelle que viveu madrugadas e vae morrer Poeta, amortalhado na sua alma de sombra.

No teu corpo de marfim e sêda, realizou o Divino da Belleza um sonho luxurioso, aquelle sonho que Elle viveu um momento, confundindo-se em ti, em mim. Escreveu na tua boca de dahlia a nova redempção—a prophecia de prazer que o universo syllába a mêdo e que os teus labios franzem, reprêsos de amor. A Vida é o Amor, o nosso Amor... Como recordo a Noite! Tudo o que havia de voluptuoso ella atrahiu e teceu, descendo, interessada, a possuir-nos.

[80]Sinto o roçar velludoso do seu tecido de mysterio e vicio. E chego a ter zelos das suas caricias. Só tu devias ser presente. Eu proprio queria ser ausente... em ti. Houve no nosso amor um erro, o genio da tua carne que um momento interessou tudo!—Oh! como odeio a Noite, a sombra immensa de todos os delictos e volupias que o Ceu espectra para vingar a pureza, a abstinencia eterna...

Soffro e amo o teu genio—o genio do erro que me faz abdicar de mim, mirado nos encantos da tua figura de chamma, ateada de imprevisto.

Como te amo! Transformas tudo. Se até solves a nevoa que turva o olhar da minha raça!...

Vê como eu, que sou da nublosa Irlanda, me sinto peninsular ao pé de ti...

Mas que passividade é agora a tua? Então, minha querida, fala! Olha que já não és a Esphinge...

E, tocando uma minitura de esmalte, florida de diamantes:

—Deixa ver isto; quero ver, com vagar, o teu unico traje desta noite. É lindo vestir sómente uma joia na noite de nupcias.

E reparando:

—Ah! é a Sapho de Pradier.

Perdôo-lhe porque esteve calada... Foi discreta.

[81]—A peor Sapho para ti, Edgar, não foi ella, fui eu. Digo-te, com desgosto, que a Esphinge permanece. Nem um só minuto vasei a minha alma na tua!

Não me arrependo do que fiz, pois que consegui o que esperava,—soffrer. Foi uma noite que sacrifiquei á minha saudade. E deu-me volupia o soffrimento, como dá sempre. Mas lembra-te de que te vejo hoje peor do que nunca. Eu sou como os aleijados que não perdôam aos que possuem corpos sãos. A minha alma é doente, não perdôa a tua alegria em possuir-me á custa dum prazer de que eu soffri o avêsso—ondas dum horror que hade durar...

—Por quem és, não me relegues ao inferno depois de possuir-te. Irei para onde fôres. Já ninguem nos separa. Respeitar-te-ei todos os caprichos, até loucuras, que eu sei que o genio as tem... Só uma coisa quero—o direito de fundir a beijos o teu corpo...

—Basta, Edgar! disse ella, dando-lhe a capa e acompanhando-o até á porta. Deixa-me! Não exasperes a minha sensibilidade, duplicando o meu horror por ti. Vae!...

E, fechando a porta sobre Edgar, que descia cauteloso e somnambulo a escadaria, foi, semi-nua, como estremunhada, procurar no segredo dum movel o retrato de Helen, que ficou a fitar por largo tempo.

[82]*
*      *

No dia seguinte tentou Edgar falar-lhe. Queria discorrer sobre a noite antecedente, aquella noite que lhe custara canseiras e milagres, pois que teve de atravessar pavilhões ás escuras, saltar e assaltar janellas, resolver difficuldades, até que, vencida a mulher dos seus desejos, a via, de subito, despedi-lo como uma creatura desprezivel, porque a amava!...

Que extranha aventura! Podia ser? Mas quando ia para se approximar, sentia uma tal commoção... depois, parecia tão firme o proposito de Maria em afastá-lo, que elle proprio, sentindo por si a repugnancia que lhe inspirava, era o primeiro a fugir, corrido.

Succediam-se os dias até que Edgar soube por Violet que Maria Peregrina ia sahir do collegio no sabbado seguinte. Assim o fôra participar ao director. Era uma segunda-feira.

Edgar, desesperado, tentou o ultimo reducto. E, decidido, procurou a hora em que Maria, segundo o costume, ia abancar junto á Fonte.

Estava lá, de facto. Viu Edgar e baixou os olhos sobre um livro que tinha aberto, sem ler.

Elle chegou junto della e começou a falar-lhe [83]resoluto. Mas, pouco e pouco foi perdendo a serenidade, ao passo que ia lendo na physionomia da amante o horror que lhe inspirava.

—Queria saber, começou, se era verdade que ella ia sahir do collegio. Tinha o direito de sabê-lo, pois que o acaso os juntára, e elle estava resolvido a seguí-la; uma palavra sua de amor, de benevolencia apenas, era sufficiente...

—Basta! disse ella, fitando-o com decisão. Não me canses.

E levantando-se:

—Respeita a minha sensibilidade, mesmo que não a comprehendas. Deixa-me!

E metteu pela ala da esquerda, deixando Edgar aturdido, junto á Fonte.





Na manhã immediata, elle levantou-se cedo. Foi para a casa de estudo e escreveu durante dois quartos de hora; a seguir foi á sala das armas e dahi para a quinta, onde passeou até ao almoço—oito horas e meia.

Acompanhou as aulas até á uma hora. Foi ao dormitorio vestir um fato ligeiro de football, mas mal entrou no jogo. Falou por espaço de meia hora com Hugh; e emquanto este seguia [84]com os demais alumnos para o tennis, Edgar desceu rente ao muro, a internar-se nas sombras.

Passado tempo ia Maria Peregrina para junto da Fonte. Levava o violino para tentar um trecho de Wagner, em que Edgar tinha falado.

Momentos antes, dissera a Violet:

—Afinal, é sensibilizante a amargura do pobre rapaz, mas não posso soffrer o horror que me causa a perfeição daquelle systema de nervos tão bem ajustados a um corpo magnifico, e tudo ao serviço dum amor normal, duma animalidade de cavador!

De repente avistou a Fonte, e, a seguir, um corpo estendido a alguns palmos da vasa. Apressou o passo: era Edgar!

—Edgar! Edgar! chamou.

Nada...

Sacudiu-o, e o corpo abandonou-se-lhe. Maria Peregrina, recuou; pôs-se a examiná-lo: estava de bruços, com o ouvido direito collado á areia, o braço esquerdo ao longo do torso e o direito estendido para a frente, tendo na mão um revólver.

Percebeu então; estava morto:—suicidára-se.

—Pobre rapaz! disse a meia voz. Que lindo!...

Edgar vestia simplesmente:—camisola de sêda preta, calção de linho branco, e sapatos [85]de camurça cinzenta, solados de borracha.

Assim viera do recreio dos jogos.

Maria Peregrina ajoelhou junto ao cadaver e metendo a mão pelo calção largo, pôs-se a afagar-lhe a coxa luzente. Depois flectiu-o, voltou-o, subiu-lhe a camisola até ao peito. Subito, deu com três cartas. Leu os endereços: uma era para ella! Lá estava na letra muito firme de Edgar, escripto o seu nome; as outras duas eram—uma para o director, outra para o pae, o sr. Buckley.

—Pobre Lord, exclamou, como hade ficar!...

Guardou a carta que lhe era destinada, e ficou a contemplar aquelle corpo, côr de tocha.

—Que bello, no seu ar de crepusculo! murmurou. Mas que rictus o da sua boca dolorosa!

E, de repente, como obedecendo a uma força intima, baixou-se mais, beijando-lhe a pelle de cera; cahiu sobre o cadaver, soergueu-lhe a cabeça, collou os labios á boca-lilaz do morto, e ficou por minutos como que adormecida sobre elle...

Depois levantou-se, examinando a mão e o braço com que o soerguera. Sentira na mão um liquido; era o sangue que borbulhára do ouvido direito do suicida.

Pousou outra vez na areia, a cabeça de [86]Edgar. Foi lavar-se á Fonte; compôs o cadaver e ficou ainda uns minutos a contemplá-lo.

—Que lindo estás! disse-lhe, quasi ao ouvido; e como gostaste dos ultimos carinhos! Já não tens o rictus de ha pouco...

Leio as nossas pazes á luz roxa do teu sorrir de morto!

E beijando-o:

—Parto contente. Adeus!

V

Dias depois do drama de Petersfield, estava Maria Peregrina installada na Praça de Trafalgar, em Londres, no Hotel Metropol.

Acompanhava-a Violet, que sahira do Collegio com ordem da familia, ordenado estabelecido, e auctorização de seguir com ella durante o tempo do contrato—cinco annos.

Ás tres horas, veiu um creado annunciar a chegada duma carruagem.

Violet compôs a toilette de Maria e esta sahiu depois de breves recommendações.

—Manda seguir para a avenida Northumberland, n.º 1013, disse ao trintanario.

Pouco tempo depois parava a carruagem.

Maria Peregrina entrou no vestibulo da casa indicada.

[87]Perguntou se estava Helen Brooke e entregou um bilhete.

—Vou ver, disse o porteiro.

Voltou dahi a pouco, e informou:

—Está, mas não recebe.

—Como assim? inquiriu Maria.

—Foi a ordem que me deram...

—Manda andar para o Hyde Parck, disse ao trintanario, já na rua, voltando as costas ao porteiro.

A carruagem seguiu.

*
*      *

Na manhã seguinte, ás nove horas, trabalhava no gabinete de estudo, quando chegou o correio.

Dentre o maço de correspondencia, foi extremando as cartas de letra conhecida. Leu-as com vagar e interesse, sobretudo as que vinham de Petersfield, dos antigos companheiros de collegio.

Passou a abrir as revistas, maços de livros, etc. Dentre as cartas desconhecidas tomou uma, ao acaso. Foi ver a assignatura. Leu com extranheza: John Brooke.

A carta dizia:

«Estava hontem em casa quando V. Ex.ª veiu para visitar minha mulher. Fui eu quem [88]prohibiu que fosse recebida. Helen pôs-me ao facto das antigas relações entre V. Ex.ª e ella. Porque me não convem nesta casa, entendi dever dar-lhe parte da minha resolução».

Maria Peregrina leu com attenção a carta. Releu-a, como se quizesse certificar-se da primeira leitura e escreveu por minutos.

Depois chamou:

—Violet!

A inglesa appareceu quasi logo.

—Lê; e estendeu-lhe a carta de Brooke. Ahi tens a explicação da forma porque fui recebida.

Agora vê a resposta, e deu-lhe a folha recem-escripta.

Violet leu alto:


Meu caro Senhor!

Sei o que Helen lhe disse, porque sei o que ella, incapaz de mentir, podia dizer-lhe—a verdade. Não posso culpá-la. Ella teve a sinceridade duma confissão que V. não merecia, pois a ouviu sem a comprehender. A circumstancia da minha visita e o supplementar da sua carta são para mim coisas minimas.

Não tenciono voltar a procurar Helen. E como será a ultima vez que me dirijo a V., vou aproveitar o ensejo para lhe vaticinar que a sua conducta para commigo pode ter realizado [89]a intenção de magoar-me, mas não o defende.

O temperamento de Helen não se fecha com prohibições e ordens como as que deu. E, se proseguir com ellas, peor lhe será. Helen dar-lhe-á o amor legal com um horror que no fim hade amargar aos dois.

Da inalteravel amiga de Helen:


Maria Peregrina.


—Podes fechar a carta e sobrescritá-la, disse, quando Violet acabou de ler.

E como falando só:

—Que infelicidade a minha e a dos que me rodeiam! Comecei por matar minha mãe, para entrar no mundo! Perdi meu pae aos nove annos.

Tenho no ouvido as suas ultimas palavras:

—Hasde ser, como todos os nossos, infeliz. Não tive tempo de te quebrar o motivo das maiores desgraças—o orgulho. Demais, tens talento.

Peor ainda:—talento e orgulho—o que terás de supportar!

Cêdo o Acaso me accendeu a sensibilidade.

A pobre Louisa Huley foi a primeira a soltar os amores doentios que eu tinha em mim. [90]A fatalidade mandou-me da Inglaterra uma creatura para tentar-me.

Acabo de receber carta della.

Está perdida, vae para a Suissa tratar as ultimas esperanças de tuberculosa, e pede-me uma esmola!...

E fitando Violet:

—Não te esqueças de remeter-lha.

Helen, que foi a suprema alegria da minha vida, porque nós só nos alegramos quando satisfazemos vicios,—ahi está nas mãos dum inglês bruto, incomprehendida, bloqueada de ciumes e grossarias.

Edgar—morto tragicamente junto á Fonte Verde, em Petersfield, e eu a detestá-lo quando o seu lindo corpo se encapellou na minha posse e a ter por elle, a partir da hora em que o vi morto, uma quasi paixão...

Não imaginas como estava lindo, e sem se mexer, ali, á minha ordem. Ah! senti-o bem meu naquella hora que encherá uma parte da minha vida.

Como soube ler-lhe o corpo!

De quando em quando sentia barulho. Eram as folhas a bisbilhotar horrores contra mim!

Eu tinha mêdo que revivesse, que a sua alma regressasse ao amor.

Tu nunca amaste um morto!...

Elle, muito languido, côr de sêda crua, [91]a dar-se-me, passivamente, movendo aos meus delirios o seu corpo de ambar.

Eu, muito collada a elle, falando-lhe, emprestando amor aos seus membros perros, lendo as linhas de sua nobre belleza—um Apollo de morte, a sentí-lo a sós, sem que houvesse ali mais do que eu propria e a sua carne...

Oh! o delirio daquella tarde!

—Nunca me mostraste a ultima carta delle.

—Ah! queres vê-la?

E depois de levantar-se a buscá-la:

—Ahi a tens.

Violet leu:


Minha querida Peregrina!


Morro amando-te. Quiz que soubesses que te comprehendi. Beijo-te ao partir. Olha que não levo resentimentos. Sei que não podias amar-me. Que me concedeste o mais que podias conceder-me. Mas eu não podia ficar. Era doloroso sentir que te afastavas tanto de mim, quanto eu de ti procurava approximar-me.

Creio que morto te não merecerei a repulsa que me tens dado.

Presumo que sejas a primeira a visitar-me. Irei suicidar-me junto á Fonte, na idéa de que sejas a primeira a ver-me!

Se assim fôr, ao menos então hasde pensar [92]em mim. E podes vêr-me outra vez com os olhos de Arte, que já me não magôas. Pelo contrario, onde estiver, heide exultar de orgulho—se o meu corpo te der linhas perfeitas que entretenham por minutos a tua sensibilidade.

Procura bem. Olha que a morte é carinhosa com a adolescencia. Eu heide ser bello, ao menos na hora do teu encontro.

Vê-me bem! Se a minha carne te merecer um carinho, heide soffreá-la onde quer que esteja. Não quero que dês pela sua sensibilidade, encapellando-se de restos de amor, porque heide deixar-lhe ainda amor... Nem poderia levá-lo todo, tão grande elle é!

Adeus, Peregrina. Parto com a alma que foi o teu pesadelo. Perdôa-lhe. O corpo deve estar em breve junto á Fonte. Tu amas a passividade, as linhas que podes submetter e emendar nos teus nervos.

Possue-me, que eu devo ser um exemplar excepcionalmente tratado pela Morte. A Morte é tambem como tu—delicia-se, ceva-se na belleza passiva...

Adeus, Peregrina!

*
*      *

Um anno depois da sahida de Petersfield publicava a Artista a Nova Sapho. O poema [93]acordou em Portugal applausos e protestos. Havia a corrente dos moralistas, escandalizados com os desvairamentos da Poetisa; e havia os camaradas serenos e prestes ao movimento idealista, em que o poema se integrava. Aquelles aferravam-se á conjectura historica e explicavam que a Sapho segundo os sabios não era a lesbia vicienta que a tradição tinha fabulado, mas uma viuva honesta, com filhos e netos, erudita e moral. Para os homens de letras mais attentos aos casos de sensibilidade, o poema era uma affirmação de temperamento—padrão de Arte excepcional que, pondo em foco a vida hellenica, devassava o fio conductor dessa vida atravez das civilizações.

Certo foi que o poema, a despeito dos ataques á moral, desafrontada pelos folhetinistas dos diarios portuguêses, foi lido; a critica acceitou-o, e Maria Peregrina foi consagrada entre um cenaculo pequeno, mas escolhido de cultores e admiradores das Letras.

Quando lhe falavam nos ataques dizia:

—Estou como Liszt—Não me custa esperar. Não escrevo para a gente de hoje.

Enviou exemplares a varios escriptores latinos e ainda a alguns da Allemanha e Inglaterra.

Encontrou de tudo:—applausos, repulsa, bemquerença.

[94]De vez em quando, os diarios portuguêses insistiam nas primeiras campanhas, em homenagem ao lyrismo de 1850, e ás letras declamatorias do momento. Datam daquelle tempo as suas relações com alguns escriptores inglêses e designadamente com Oscar Wilde, com quem se correspondia.

Em março de 1895 foi o escriptor prêso por accusações do Marquês de Queensbury. O perseguidor muito aferrado ao Criminal Law Amendment Act—fê-lo prender e julgar.

Os debates deste processo, escandalosos pelas accusações e categoria do R., apaixonaram a opinião.

Foi condemnado á pena de prisão por dois annos, que cumpriu em 1897.

Maria Peregrina, defensora de Wilde, escreveu em inglês artigos e opusculos sobre o escabroso processo, já quando elle tinha cumprido a pena e abandonado a Inglaterra. Conhecida no meio intellectual de Londres, frequentava os salões onde se conversava Arte; ia aos clubs, especialmente aos de gymnastica, praticando este sport, e privando com camaradas em que descobria affinidades de vicio ou belleza.

A edade não lhe contraordenava os propositos da adolescencia. Adulta, crescia em talentos e vicio.

Aos intimos explicava:

[95]—Os meus talentos são os meus vicios, tratados pela imaginação.

Horas tardas, quando Londres deixa os clubs, restaurants e theatros, Maria Peregrina sahia só ou com Violet a frequentar o que ella chamava os Templos da Noite.

—A Noite faz em mim o dia, affirmava. Á hora em que tudo está alegre soffro eu a minha Arte. É nella que emprego os dias, pois que é de todos os soffrimentos o mais voluptuoso.

Horas mortas tornejava a oeste de Trafalgar square, por Haymarket, Picadilly, sob as arcadas de Pall Mall, errante por entre o rancho de bacchantes, perdida na onda de luxuria que é Londres a taes horas.

Frequentava tudo—o Savoy, Empire, S. James, Alhambra, as ruas onde as retardatarias entretêem a fome, sorrindo a quem passa, os logares onde havia luxo, miseria, erotismo, alcool...

Os inglêses, affirma Stendhal, serão os ultimos a acreditar no inferno. E, por isso, elles, sem o entrave religioso que embaraça os outros povos, soltam á vontade o seu desejo animal, num desdobramento que excede tudo.

Eram estes requintes que Maria Peregrina apercebia e queria viver.

Wilde tinha-lhe escripto um dia:

—«Aquelle que se entrega absolutamente [96]a si proprio, não sabe nunca aonde vae parar».

Queria lá saber aonde iria ter?

O que desejava era calar os nervos, a sêde de imprevisto, que a queimava intimamente. Sahia a explorar a noite. Pelas ruas havia renques de mulheres, duma fealdade de arrepiar, ao lado de creaturas mal crestadas do tempo, nas quaes a belleza persistia, apesar do vicio e das doenças.

Não era a belleza graciosa, que contrastava a mulher de alguns paizes, nem a classica, nem a sensual que caracterisa o mundo feminino do Oriente, ou a belleza crepuscular do Ocidente e Sul—a belleza que ella encontrava nas poucas mulheres formosas da Inglaterra.

Era uma belleza especial—a que adstringia á raça, expressiva de falsa innocencia e suavidade.

Tratava de afogar os desgostos em sensações novas, e dahi andar pelas ruas onde excepcionaes figuras erravam como sombras, a commerciar toda a casta de prazeres. Mulheres duma brancura de linho, carnações de lirio e dahlia, de olhos anilados e estrigas de cabello oiro-fulvo, passavam bebadas nas esquinas, dispersando a alma em risos idiotas. Ia no seu encalço, interessada pela historia daquellas marafonas, que pareciam ter descido [97]do Ceu por tentarem santos e que os homens desprezavam...

—Ah! o peccado da terra está em não aproveitar bem as creaturas, dizia. Estas, são as flores da rua, que valem bem mais do que as que se abrigam sob o crystal das melhores casas de Londres.

Colleccionava as mais perfeitas para uma especie de harem, onde passava em serão algumas noites, emmaranhando, tecendo a sua vida com a desgraça dellas.

Conhecia a geographia dos bairros mais mesquinhos da City, percorrendo-os a miudo, bem como os prostibulos onde se vendiam as mulheres de preço.

Ora arrastava toilettes da maior elegancia pelo Savoy, ora ia, modesta, irmã das sombras, conversar as mulheres que viviam os prazeres da noite, mais rasteiros e humildes.

De longe em longe, combinava com Violet e iam as duas pernoitar com moços de acaso.

Percebia que as relações naturaes lhe acalmavam os nervos.

Então, deixava-se abordar pelo mais novo dos presentes ás sucias da noite.

Guardava silencio sobre o nome. Preferia mesmo entregar-se a viajantes, que ao outro dia perdesse na confusão de Londres.

E sahia, enjoada, com odio ao sexo, exasperada daquellas horas batalhadas com extranhos, [98]duma luxuria que lhe era necessidade e tormento.

—Usei hoje o meu amargo, dizia para Violet.

O amargo era o commercio sensual com o homem, que tinha como remedio.

Do mesmo passo que percorria o peor de Londres, partilhando o muito que ali havia de perversão animal e vida exotica, tinha em cuidado não perder uma nota da vida superior do grande centro—instruindo-se, apontando tudo, e adaptando-se ao luxo e requinte aristocratico da terra tradicionalista por excellencia.

Tão depressa era a mulher que se confundia por entre o bosque de gente que se apertava nas ruelas miseraveis de Whitechapel, como a mulher de aspectos nobres, com geitos de duquesa, que passeava a sua prosapia de peninsular para além do Strand.

No meio em que era conhecida fazia-se excepcionalmente admirar pela fidalguia de maneiras e talentos e pelo encanto da sua palavra de superior.

Apesar dos desequilibrios de creatura insexuada, delirando perversões, nunca perdera o geito fidalgo da sua bondade.

—A bondade, dizia sempre, creio que virá a ser a minha jangada de salvação.

E, de facto, no privar com gente miseravel, [99]que recrutava nas ultimas camadas, jámais deixava de ferir a nota da commiseração, estipendiando o infortunio com dadivas que lhe inculcavam fidalguia e a procedencia portuguesa.

Um facto havia a salientar nesta maneira de praticar beneficios:—a predilecção pelos desgraçados mais abjectos.

Para ella não havia criminosos, havia desgraçados. E os que cahiam na alçada da justiça ou no odio da opinião eram sempre os mais sympathicos e dignos de affecto.

Londres é a cidade do apostolado. Planta-se uma Religião a cada esquina. Confundem-se nella cultos, ritos, seitas. É a Babel da Alma. O ceu da alma inglesa é nevoento como o ceu de Londres. Segundo uma estatistica de poucos annos, havia em Inglaterra e Galles 34:467 casas de religião—das quaes 14:077 eram officiaes.

Maria Peregrina ia muitas vezes assistir ás praticas e devoções religiosas.

—Ando a procurar a minha religião, dizia, e não encontro senão farrapos della em credos oppostos!

O ultimo tempo que viveu em Londres foi num torvelinho de misteres desencontrados, á mercê dos nervos.

A sobreexcitacão não lhe dava treguas.

[100]—Se me aquieto, morro do mal-de-viver, acudia ás observações de Violet.

Frequentava cursos de linguas, de Philosophia, de Arte e de Sport; escrevia; passava, invariavelmente, duas ou tres horas—procurando «o aperitivo sensual da noite»—um caso exotico que lhe aquietasse a ancia infinita de viver, de soffrer, e recolhia tarde a dormir pesadelos,—rebates das canseiras do dia.

Adoeceu. Era inevitavel, diziam os medicos. Não sabe quem é, para onde segue. Precisamos de tratar-lhe a sensibilidade.

E receitavam calmantes, repouso—o inverso da vida que levava.

Um mês depois levantou-se. Estava alquebrada, mas o tempo primava em lhe conservar a belleza, em desconto das infelicidades.

Deu-se por esse tempo um acontecimento decisivo para ella.

Paris intellectual, benevolo e esquecido das miserias intimas de Wilde, offereceu-lhe uma festa.

Peregrina encontrou no acontecimento um ponto de sahida da antiga vida de Londres. Associou-se aos camaradas de Paris e partiu a tomar parte na homenagem.

—Adeus, meus amigos, dizia abraçando diversos artistas, despedindo-se. Não voltarei. E, no entanto, presinto que serei tanto mais [101]infeliz quanto mais me desviar da Inglaterra. Aqui deixo o melhor e o peor da mocidade...

VI

Depois de curta passagem por Paris, Berlim, Scandinavia, Roma e Napoles, entrou Maria Peregrina em Athenas, na tenção de demorar-se. Violet acompanhava-a.

Vivendo a Grecia antes mesmo de a ver, sentiu á chegada uma grande commoção de quem encontra uma terra desde muito seguida em espirito.

O mar da Grecia não tem a côr desbotada da massa de agua no mar alto. Toma, á approximação do Archipelago, nova designação e tinta, como prestando homenagem á velha Hellada.

É um mar de lazulita, seguindo o recorte da Grecia em que salienta a gloriosa Athenas, branca em seus edificios de marmore de Pentelico e Paros.

Aportou a Phalero.

A breve trecho, entrou na antiga capital da Attica, que se estende num desenho largo—terra de neve pela brancura do marmore, e uma verdadeira Heliopolis, plena de sol.

[102]As casas são a renovação da architectura grega, copias das antigas marcas do genio hellenico, a que preside a Acropole, vasta cidadella dos tempos gloriosos, da edade de oiro.

Maria Peregrina e Violet foram hospedar-se no melhor hotel da rua do Stadio.

Dentro de breve tempo Maria tinha entrado em sua vida normal, despendendo nervos e tempo no encalço duma felicidade que só de passagem encontrara.

A mais do que as outras cidades que percorrêra, Athenas dava-lhe as sombras dum passado que ia referindo aos pontos que lhas recordavam.

—É aqui que eu tenho de estudar, dizia, a geographia da Belleza hellada—synthese de toda a Belleza terrea, com parentesco no Ceu.

Suppunha-se nos velhos tempos de Athenas e ia pela Acropole, ao entardecer, memorar espiritos desencontrados, poesias fragmentadas de Sapho, a catechese do segundo genio da Egreja—Paulo, tudo o que podia acquiescer ao seu talento aventuroso, perdido na ancia duma perfeição morta.

Deu-se a estudar a lingua grega; ia visitar os museus; matriculou-se na aula de Arte; procurou a todo o transe encher o tempo, a ver se a occupação obrigatoria lhe entravava os nervos.

[103]Nos dias em que tinha de feriar o espirito de lucubrações eruditas ou artisticas, ia visitar as ilhas proximas, ou até Phalero, ouvir o mar.

Mas não havia occupação, por mais interessante ou impertinente, que lhe aquietasse o gosto, exigente de origem.

Por toda a parte encontrava suggestões á pratica do vicio lesbico, sem que volvesse a encontrar a passividade amoravel de Helen, dando-se-lhe num corpo que era o sonho da sua alma ocidental de decadente.

Pelas ruas deparavam-se-lhe moços espartanos ao lado de raparigas esbeltas, de saiaes tufados, redondos pelo joelho, com o kepi grego de borlas, de jalecas curtas, segurando peitos cheios.

Mulheres e rapazes de Corfú, e demais ilhas proximas, passeavam corpos e trajes bizarros, que prendiam aos restos duma civilização de requinte.

Tambem a flora de Athenas parecia prender-se á decadencia daquelle solo que fôra a joia do vicio no reinado da Attica.

Tudo a inculcava como um marco da velha cidade da carne e da orgia.

No entretanto, Peregrina, admirando aquella belleza, prodiga de imprevisto, não a sentia. Era uma belleza que suggeria, não a apaixonava.

[104]—Toda a parcella de belleza se gasta ou transforma, dizia. Não ha belleza em porções, permanente. Ha unidade no Bello, o que é diverso.

A velha Hellada desmanchou-se em holocausto ao mesmo hellenismo. Era preciso assim. O proprio desmancho e renovação de civilizações, o caldeamento do sangue, transfusão das raças, e mistura de genios, é que asseguram a unidade da Belleza, na sua concepção liberta.

Em rasão desta unidade, explicava a Violet, foi que eu, do Ocidente, encontrei o meu elemento affim numa raça que me era apparentemente opposta. Posso encontrar noutras creaturas condições de maior belleza, á face da Arte. Mas o meu defeito de superior faz que o meu procedimento seja cego em materia de sensibilidade. Ha em mim uma força cujo motivo mal sinto no vago da consciencia, e que é cega e me cega, que escapa á minha reflexão e não me consulta, caminha, não pede, exige.

—É que te apaixonaste por Helen, não vês mais ninguem, considerava Violet.

—Mas sei lá porque me apaixonei por ella. Se ao vê-la hoje não sentiria afundar-se todo o meu passado num mar de nojo feito do amor que lhe tive e das complacencias que me deu...

[105]Violet procurava sondar os desesperos de Peregrina, e tomar o logar de Helen. Impossivel! Violet era para Peregrina a escrava, que usava á falta doutra em suas perversões.

Helen era um abysmo de alegria, um corpo de risos com nervos de seda.

Era o melhor e peor duma raça que, junta a ella, estreitava o abraço de duas civilizações a suicidarem-se...

—Ah! se ella tivesse vindo commigo, dizia Peregrina, como eu reveria a velha Hellada!... Só vê bem quem recebe suggestões para produzir. Mas só produz quem ama. E só ama quem possue...

*
*      *

Havia em sua alma, sedenta de exotismos, intervallos duma ternura de creança, em que se dava ao culto da simplicidade, tecendo obra ingenua.

Datam da sua estada na Grecia, e mercê daquellas horas, os versos que juntou num livro curioso, a que chamou—O Livro das Creanças.

Os titulos dos capitulos indicam a sua indole. Assim, havia nelle—A historia duma gota de agua, Aventuras de uma aresta, A [106]conta de crystal, Hostia de oiro, A camelia côr de mel, etc., assumptos innocentes, pontos pequenissimos de partida a uma philosophia de desvairamentos para auxiliar os vôos da imaginação infantil, isto vasado num metro facil, dicção correntia.

Mas sobre esta innocencia apparente, todas aquellas historias eram um hymno á Fatalidade, tecidos dum maravilhoso novo,—expressões simplistas dum espirito doente.

A Aresta da historia era uma heroina, de formas pequenissimas e de alma grande que o vento, as chuvas, a tempestade metiam em aventura á mercê do Acaso, que é o genio das coisas.

A Hostia de oiro era o Sol que um negro do Senegal perseguia no poente, andando de terra em terra a ver se o colhia para commungar com os da sua tribu—caminhando por montes altos quando elle tombava, até que morreu de desespero e saudades em uma terra do Norte, deixando-se matar e enterrar pela neve quando viu que, depois de dois mêses, a linda hostia não apparecia. No dia seguinte, veiu o Sol a sorrir, desenterrando o negro, solvendo a neve, envolveu-o num resplendor de luz e fez delle uma estrella, que ficou no ceu a velar a sua raça côr de fuligem e muito especialmente aquella tribu.

A historia da Camelia côr de mel resumia [107]o episodio duma rosa do Japão que se condoeu dos amores dum indio desprezado por uma mulher branca e trocou a côr com ella. E assim as restantes.

*
*      *

Passado pouco tempo da entrada na Academia, já Maria Peregrina estava relacionada com varios camaradas, que logo deram pelo seu talento.

Era o tempo em que os extrangeiros mais acudiam a Athenas a seguir os cursos de Arte. A mesma razão que levára ahi Peregrina detinha lá tambem alguns delles, vivendo por educação ou atavismo memorias da velha Grecia.

Não lhe foi difficil dar por aquelles que mais se lhe approximavam em perversão e requintes.

Dentro de pouco era intima da Princesa de Tuscolo, uma italiana de 35 annos, principalmente gastos em passeios de luxo e prazer e dum russo, pouco talentoso, mas culto, homem de 29 annos, com grande fortuna e ancia de imprevisto.

Iam muitas vezes para Corintho e Corfu, inventando romarias a que não faltavam luxurias.

[108]Mas sempre a mesma sombra de tedio vinha escurecer a imaginação de Maria Peregrina, findos os passeios; é que tinha de roçar as scenas vulgares do que ella chamava a torpeza civilizada.

Uma tarde em que foram todos ao Stadio, vasto circo de feitura recente, para arremêdo dos antigos exercicios olympicos, Maria propôs que se arranjasse uma casa onde pudessem commungar sensualidades.

Foi a proposta acceite. E a casa ficou a chamar-se desde logo Templo de Amor.

Era nas immediações de Athenas, a caminho de Kefissia.

Ficava numa encosta, emmaranhada de arvores.

Tinha por fóra o geito grego—cujo risco fôra executado com escrupulo.

Dentro, o aspecto dum templo.

Havia ali reproducções em marmore da Venus do museu de Napoles, de Milo, Medicis, Capitolio e Troia; de Apollo, e três estatuas de Sapho, salientando-se a de Pradier, que, dum estrado alto, curvada, parecia presidir ás danças orgiacas, que a sua memoria suggeria; finalmente, uma larga profusão de espelhos, luzes, e instrumentos de musica, sobresahindo harpas, lyras e psalterios.

As toilettes da chegada, no dia da inauguração, lembravam as das velhas festas da [109]Hellada, pelo esmero com que haviam sido reproduzidas.

Só Maria Peregrina puzera um pouco da sua originalidade no vestuario, aliás riquissimo.

Entrou coberta por uma falteta, á maneira das que usam as mulheres de Malta, refulgente de finissima renda e pedraria.

Quando appareceu já o Templo estava povoado de adolescentes nús; tocavam as harpas muito casadas aos violinos.

As luzes num grande desacordo de côr davam ao Templo uma refulgencia que fazia esquecer a Terra...

A Princesa de Tuscolo e Ivanwitch, que tinham vindo antes, observavam os adolescentes. Alguns eram do Stadio, gymnastas e jongleurs precoces.

Outros eram ingenuos camponezitos de Corfu; havia lindas raparigas de Corintho e um anão de Colonia, resgatado havia pouco a uma companhia de zingaros.

Tocaram as harpas o Canto de Sapho e depois Rhythmos de dança, numa harmonia dolente.

Maria Peregrina chamou duas negras, que, a um canto, cortavam aquelle mar de luz com os corpos de sombra, e entregou-lhes a falteta.

O resto da toilette era uma simples fita [110]larga, de velludo-musgo, que a enroscava desde o busto aos quadris.

Tirou-a, mostrando as lindas formas em que sobresahia um ventre perfeitissimo, especie de salva de metal moreno fulgente, peitos de formas certas, que não temiam desmanchar-se no ardor da dança, e ancas sumidas, contrastes do typo extranho de femme-garçon, de geito a servirem a flexura rara do seu corpo resumante de sensualidade e adolescencia...

Todos se desembaraçaram dos vestuarios. Era madrugada.

Começou a orgia pelas Danças sensuaes. Extranha gente! Eram rapazes, flectindo corpos de belleza sobria, linhas puras de desenvoltura suave, sonhos de Aphrodite, animados; raparigas multiplicando as curvas ideaes de corpos de amphora, tudo o que havia de excepcional na concepção excelsa—a melhor argila, modelos supremos do Divino Oleiro.

E, em contraste, como a desenhar o arabesco entre aquella floração de carne, diversamente colorida, volteava o anão, corpo curto, pernas rectas, movimentos perros mas certos, carne côr de cerveja, face de fauno que surgisse do bosque, avido de luxurias e se perdesse num labyrintho movediço de Belleza...

Começaram as danças em homenagem aos manes da velha Hellada. A Athenas do vicio [111]estava ali. A outra, a cidade nova, dormia somnos brancos, côr do casario.

Peregrina dizia, rindo, para os tangedores das harpas:

—De vagar, moderae os dedos.

E para Tuscolo e Ivanwitch:

—Se chega ao Parthenon o echo desta festa, temos ahi Socrates, a remir-se pela culpa, com uma fileira de sabios, deuses e artistas.

E como falando comsigo:

—No Parthenon é que a festa maxima terá de dar-se. É a primeira joia de Arte do mundo. Os deuses não a conservaram senão para que ahi fosse a grande festa pelo definitivo triumpho hellenista.

Mas quando será?!

*
*      *

Em 1900 resolveu sahir de Athenas.

A 28 de novembro recebeu um telegramma de Robert Ross, annunciando que Oscar Wilde se encontrava em Paris, moribundo.

O romancista, depois duma larga tragedia, seguida de peregrinações varias por Napoles, Corsega, Sicilia e Roma, foi fixar-se num modesto Hotel da rua das Bellas-Artes (Hotel d'Alsace), e ahi foi atacado da meningite que pôs ponto nas suas desventuras.

[112]Apenas recebeu o telegramma, Maria Peregrina partiu com Violet. E chegou a Paris quando Wilde entrava na agonia.

Não o abandonou até 3 de dezembro, em que foi com raros amigos acompanhá-lo a Bagneux.

Era uma triste manhã de dezembro.

Á porta do cemiterio desceram a urna os amigos do Artista, conduzindo-o até á modesta sepultura, por entre fileiras de cruzes e arvores nuas de folha. Assim fez aquella travessia boa, decerto para elle a melhor. O tempo calára o vento e a chuva, como por gratidão ao amigo que tanta vez lhe emprestára alma.

Maria Peregrina seguia o grupo, num passo senhoril, mas hesitante, pallida, arrastando sobre a greda um vestido negro cahido em tulipa.

Era ao longe uma figura extranha! Dir-se-ia representar ali a vida do Poeta—misto de genio, perversão, orgulho.

VII

Decorreram dez annos.

Maria Peregrina passou á Scandinavia e depois aos pontos mais extranhos, errando pela [113]Asia e pela America, e vindo a fixar-se em Roma, onde viveu os ultimos dois annos. Não voltou á Grecia nem a Inglaterra.

Em qualquer dos dois paizes espalhára vicios e mocidade, que lhe seria grato reviver, se o reverso das provações lhe não aguasse a saudade. Não era a desgraça da sua vida que ella culpava; era o rebate della nos meios que tentára, e tivera a ingenuidade de suppor benevolos.

Ainda ultimamente lhe tinham sido devolvidos volumes da Nova Sapho, que mandára para as Academias de Londres e Athenas.

Esta devolução desgostou-a. Suppunha ter ali admiradores, amigos, que, afinal, a abandonavam, a vexavam.

A dor é nos superiores dum effeito extravagante:—não os convulsiona, magôa-os ou transmuda-os. Ha casos, na apparencia pequenos, que lhes decidem o aspecto, que não mais os deixam rir sinceramente.

Não era o caso: Maria Peregrina tirocinára desgraças desde muito nova, para succumbir inteiramente. No entretanto, sentiu-se devéras.

Não a incommodava o debate que a publicação do seu livro havia levantado em Portugal. Considerava medianamente as letras da sua terra. Mas o significado daquella devolução nos meios de élite que frequentára abateu-a [114]extranhamente, profundamente. Queria reagir. Mas por mais que considerasse a justiça que lhe fora feita como Artista, sentia-se desfalcada, vexada, pelo desprezo que lhe votavam como mulher. Ella propria sentia em si duas entidades diversas—a que produzia, creava, e a outra, a que não conseguia libertar-se das offensas e intrigas das Academias. Um dos contrastes da creatura de genio é uma nota inferior—a crença na fatalidade.

Muitas das infelicidades lançam-nas á conta do destino:—acceitam-nas serenos. Não assim as que batalham o seu amor proprio.

A superioridade, é, como observa Nietzsche, o que está para além do homem. Mas isto que este pensa ao definir o valor alheio não o sente quando se contempla.

Dahi o conflicto. O que produz, o que cria é o que está para além delle. O que discute competencias, e barulha vaidades é elle proprio,—o homem.

Acceitar os talentos e discutir o caracter duma creatura superior é levantar competencias com ella propria:—desdobrá-la em duas figuras que o mais das vezes se desentendem.

A superioridade é uma força áparte. O homem é que intenta dispor a seu talante daquelle valor; e, pois que reflecte a elevação duma intelligencia poderosa, pretende chamá-la a derimir os conflictos da sua sensibilidade [115]de semi-Deus com a que inculca a sua qualidade humana.

Afinal, por si se liberta. A sensibilidade do Artista é um excesso de vida emotiva, uma doença que lhe dá altas e baixas bruscas, e o quiéta quasi sempre num fundo de melancholia, que é a dor reflectindo a aspiração intangivel da fusão perfeita do homem e do Deus que elle apercebe para além de si.

A valvula aberta a este estado unico de dor reside para o Artista na propria exteriorização da Arte. É então o semi-Deus, o creador librando-se para além da miseria humana...

*
*      *

Maria Peregrina, ao receber os livros devolvidos, cahiu num torpor de doente.

Demais sabia ella que no meio literario conhecido, por entre os applausos dos que a cercavam, havia más vontades, denunciadas em insinuações, e palavras equivocas.

Dava por todos, pelos que lhe não perdoavam o talento e faziam da moral uma arma contra ella, e pelos outros, os que sinceramente a repulsavam pelo seu caracter de degenerada. [116]No meio que frequentára em Londres, sentira dia a dia o reflexo dessa má vontade. Ultimamente, para não ser vexada, deixára de todo os salões particulares, onde perdera relações sem motivo, e donde se afastou para que a não afastassem.

Na Grecia era tambem conhecida no meio academico pelo titulo do seu livro—Nova Sapho.

Em Portugal continuavam as mais exasperadas campanhas.

Impossibilitados de discutirem a obra no ponto de vista artistico, os jornalistas, a quem a critica estava affecta, davam-na como documento de autopsychologia, fundibulando grossarias sobre a mulher que tivera o ousio de escrever um livro, indice do mais torturado temperamento.

Ah! ella perdoava que lhe não sentissem a obra. Mas o que lhe doia era o odio que lhe votavam pelos vicios, que amava além de tudo.

—E nós a tentarmos obrigar o mundo a ver-nos com olhos differentes daquelles porque se vê a si proprio, commentava! Como se elle interpretasse a differença que fazemos em nosso favor! Emfim, heide ver se, ao menos, posso salvar o orgulho...

[117]*
*      *

Estes e outros factos, denunciativos da fórma por que era tida nos meios conhecidos, fizeram que nos ultimos tempos em que viveu em Roma se esquivasse aos homens de letras e demais candidatos ás generosidades dos seus talentos, e de sua fortuna. Não queria relações; cansavam-na os empresarios de festas particulares ou publicas.

—Conheço, dizia a Violet, o bastante em cada cidade para me torturar sem prejuizo do amor-proprio.

Sei de cór a geographia do vicio e da moral de todas as terras onde tenho demorado quarenta e oito horas. Dispenso informadores. Que necessidade tenho de acotovelar-me com as más vontades dos paladinos das convenções, uns tôrpes a occultas que nem têem a grandeza do bem, nem a coragem do mal?

E, fiel ao programma, firmava-se no orgulho das fraquezas, tratando de alto os que se lhe abeiravam e fugindo a conviver.


Foi neste tempo, nos ultimos três mêses que viveu em Italia, que urdiu o livro—A Emparedada, entre quedas bruscas do temperamento, [118]dias de doença e horas de rememoração do drama de Petersfield e Londres.

Este livro era a expressão maxima dos seus talentos, pois que era a dor dum temperamento doente, consumindo-se numa ancia de Arte. E, como tal, realizou o maximo de sinceridade.

Era a Dor, traduzindo-se em melancholia e expressões imprevistas a beirarem a loucura, no encalço de soluções que derivava da tyrannia dos nervos, incendidos de desejo. O Poema foi escripto, composto e impresso rapidamente.

—Não quero que a razão me estrague a obra, dizia.

O seu valor, se algum tiver, deve ser o defeito que sou eu propria. Se me désse a scismar ácerca destes versos, emendava-os. Então o Poema não era eu, era toda a gente, a obra-synthese da Moral, da Arte, da Intelligencia que por ahi corre nas livrarias, academias, nos parlamentos, por toda a parte.

Ah! não, A Emparedada heide ser eu em conflicto com isso tudo.

A Nova Sapho ha de vingar-se da estupidez com que a tratam, librando-se acima da torpeza moral dos que a reputam abjecta...

E nervosamente, sempre que os maiores abatimentos lhe davam tregua, escrevia, desdobrando-se no drama das suas melancholias.

[119]*
*      *

Em abril de 1910 estava a obra impressa e distribuida.

Dois mêses depois entrava Peregrina em Lisboa, seguindo immediatamente para o Minho, acompanhada de Violet e de Jacob, o anão resgatado á companhia dos zingaros.

Foi em junho que nos encontramos em viagem e depois em Lares.

Pouco tempo demorou ali.

Dias depois de termos estado em Lares, morreu D. Maria Helena duma lesão cardiaca. Havia muito que a medicina de Guimarães tinha endossado aos santos esta cliente, excepcionalmente piedosa.

E ella, muito de mal com a medicina, e sempre affecta ao Ceu, conseguiu viver seis ou sete annos mais do que a sciencia annunciava.

O acaso, complacente com a devota, fez que a doença a victimasse a uma sexta-feira, depois dos exercicios do Coração de Jesus, confortada pelos sacramentos, indulgencias e rezas da Congregação de que era presidenta e benemerita.

[120]Entretanto, foi annunciada ordem de suspensão de missa a monsenhor Andrada.

Chegára ao Paço archiepiscopal de Braga a noticia das suas homilias. Escandalizou-se o Arcebispo Primaz das doutrinas com que elle enchia as predicas; e, cuidando ser victima de informações erradas, officiou ao accusado para que as explicasse.

Sinceramente respondeu Andrada, enviando resenha de algumas predicas, e o commentario dos pontos em que se desencaminhava dos sermonarios que tinham o beneplacito do Paço de Braga.

E, insistindo nas suas maneiras de apostolar, declarava não se submeter a emendas em questões doutrinarias, pois que, accrescentava, tinha para si que os erros emendados ficavam mais compridos, e era peorar os seus humildes discursos—contradizê-los, aspando-lhes o unico merecimento que tinham,—a sinceridade que os urdira e expressavam.

Não se fez esperar a suspensão. Foi para Lares, onde Maria Peregrina o tratava como pessoa de familia. Pouco tempo ali demoraram. Passados mêses partiam para Lisboa:—Maria Peregrina, Salomé, Violet, o padre e Jacob.

[121]

VIII

Um dos escriptores de mais talento era então um rapaz de vinte e nove annos, que se isolava propositadamente das confrarias literarias para viver e reflectir pelo livro impressões que eram o sentir intimo duma figura áparte. Esse escriptor era D. Nuno Alvaro de Sousa e Villar, III.º Conde de Nevogilde.

Oriundo duma familia nobre de Traz-os-Montes, com um bom patrimonio em terras, repartidas por três provincias, vivia, habitualmente, em Lisboa, reservando dois mêses para passar numa quinta em Entre-os-Rios, e viajando outro tanto tempo, approximadamente, todos os annos, pelo extrangeiro.

Os livros de Nuno de Villar, como elle os assignava, revelando um temperamento, eram provas do movimento idealista contemporaneo em Portugal, provas raras entre uma flora arrepiada de pessimas letras, reflexo de auctores dessorados, perdidos em liturgias de Arte, ingenuas e pelintras.

Era alto, de cabellos escuros, parco em rir, olhos negros, serenos e profundos, nariz de feitio judaico, em bico de aguia, pallido, expressão triste, um pouco desmanchado de [122]maneiras, que lhe inculcavam lassidão de animo, sem prejuizo da gentileza de linhas que lhe contrastavam a raça.

Escrevendo, exprimia aquella lassidão numa prosa sua, duma suavidade e rythmica novas, muito senhor de todos os processos, que coava, conscientemente, pelo seu criterio, numa ou outra notula erudita, para se librar, logo, segundo o temperamento, ás creações e pontos de vista proprios.

Processos seus, idéas extravagantes, fórmas singulares—taes as qualidades e defeitos que o extremavam.

Os ultimos livros—O Genio do Acaso, Symbolos, Os Sensuaes (romance), e a Vida plastica, eram documentos claros do seu talento e distincção de escriptor.

Profundamente individualista, esmaltava os escriptos de dizeres pessoaes, que lhe inculcavam o orgulho, que era o fundo do seu caracter de homem de raça. Em todos os livros marcava o traço do seu declivar de decadente; era, fundamentalmente, um negativista. Cria na Arte. Era ella a sua religião, o seu refugio e tormento.

Áquem della, via a burguesia, que appellidava de utilitaria e estupida, a moral, a ficção. Para além... nada.

Typo esquisito de superior, era difficil nas relações.

[123]Horrorizava-o a descoberta duma grossaria nova. E tinha para si que conhecimento novo era cabaz aberto a novas grossarias que tinha de supportar.

Ignorava-se em Lisboa a sua vida. Os mais alviçareiros sabiam vagamente que uma ou outra vez era visitado por mulheres de reputação suspeita, que variavam nas dependencias do Palacio-Foz, na Avenida, onde vivia.

Andava quasi sempre só. E nos theatros e livrarias em que apparecia, era difficil abordá-lo, pois se mantinha numa reserva educada, que afastava os mais ousados em relações.

Entre o publico e elle estava o editor.

—Os editores, affirmava, são vulgarmente calumniados de pessimas creaturas. Eu prefiro-os ao resto da gente. Não quero saber do publico, nem dos reclamos das folhas, nem dos criticos das redacções, nem do que podem pensar as academias que por ahi praceiam bacharelices.

Basta-me o editor para me relacionar com algum espirito que me entenda, ou qualquer geração por vir que lave a Idiotia que por ahi corre.

E, de facto, não mandava livros ás redacções, nem ás academias, nem ás bibliothecas, nem a pessoa alguma.

[124]—Escrevo para mim e para alguem que não conheço.

Os conhecidos não valem uma linha, informava, no Preludio da Vida Plastica.

Em volta da sua figura, duma gentileza doentia, de aspecto simples, mas mysteriosa, dum retrahimento religioso, mal disfarçado na distracção que affectava, cresciam lendas mais ou menos exoticas a que vivia alheio.

Ainda em casa, era pouco communicativo.

Unicamente conversava com o mordomo, um velho de confiança, egualmente discreto, fechado a qualquer esclarecimento que lhe pedissem acerca da casa.

Para o mordomo, o silencio era um ponto de honra, em tal assumpto. O seu programma era obedecer sem discutir, e calar comsigo qualquer ordem que lhe fosse dada; assim servira o II.º Conde de Nevogilde, um excentrico, e assim servia o filho, D. Nuno de Villar.

Era, de resto, bem simples o seu trato, pois que afora coisas minimas, era de natural indulgente e carinhoso para os inferiores. Esquisitamente methodico, tinha horas proprias para tudo.

Quando fechado no gabinete não permittia que fossem interrompê-lo.

—Se á hora em que leio ou estudo, houver fogo em casa, deixa-me morrer assado—recommendava ao mordomo.

[125]Não havia ordem, nem visita, nem telegramma ou acontecimento que absolvesse um creado que lhe alterasse as ordens.

—Que tudo lá fóra mude, dizia, nesta casa só a minha vontade póde variar, e depois a dos outros segundo ella.

*
*      *

Ás onze horas tomava o primeiro almoço.

A seguir, via a correspondencia.

Num dia em que folheava os jornaes, á hora do costume, leu uma noticia de segunda pagina, ácerca dos trabalhos de Ruy Augusto, em exposição nas dependencias de S. Carlos. A folha reproduzia alguns trabalhos e o retrato mal zincographado do auctor.

Tratava-se de um pintor precoce, tambem estatuario, rapaz de dezenove annos, que merecia as benevolencias da gazeta em artigo banal, salvo uma ou outra nota biographica.

—Ha de ser um prodigio como os do costume, pensou Nuno. Artista de merito desde os 15 annos!

Emfim, tenho curiosidade em ver as obras do rapaz.

Chamou:

—José!

Appareceu o mordomo.

[126]—Vae mandar preparar a carruagem para ir a S. Carlos.

O creado sahiu a cumprir as ordens, e meia hora depois Nuno entrava no Theatro.

A exposição abria por um grupo de intenção inferior e execução horrivel. Denunciava um motivo pagão que o auctor não havia comprehendido.

Seguiam-se outras obras detestaveis.

De subito, foi Nuno surprehendido por duas figuras, que diziam no suppedaneo—Ganymedes servindo Jupiter.

Curiosas figuras! Jupiter era uma creação impossivel, desproporcionado, numa atitude artificialissima. Pelo contrario, Ganymedes era um marmore a resumar candura. A sua atitude, offerecendo a taça do nectar, as curvas delicadas do corpo, as minucias, como o desenvolvimento geral do busto e membros, confusos numa indecisão de sexo—tudo era de molde a devassar o artista que tinha concebido e executado tão extremada obra.

Mas poderia aquelle trabalho ser do mesmo auctor do Jupiter, e do destacamento de estatuetas que tinha visto? Foi andando. Por entre a collecção de obras inferiores deparou, a breve trecho, com dois trabalhos que não desmentiam o Ganymedes,—o Vagabundo e a Figura errada.

O Vagabundo, notavel de formas e expressão [127]de alheamento, era um pequeno bronze de meio metro, harmonico, e que ajustava, absolutamente, ao dizer da peanha.

A Figura errada era o mais notavel dos trabalhos apresentados. Jehovah, pensativo, encostando a cabeça á mão esquerda e tendo na direita uns restos de barro, contemplava, indeciso e descontente, a figura que acabára de fazer. Esta figura era a expressão suprema duma alma que conseguira emprestar ao bronze todo o valor, realizando uma alta intenção.

Reproduzia um adolescente das mais bellas formas, corpo idealmente flexuoso, talhado em linhas suaves, duma musculatura branda, dum boleio irreprehensivelmente plastico.

Mas na sua physionomia, como talhada em sombra, havia uma tal expressão de dor que o bronze parecia ter fixado ali a alma do artista que lha vazara.

Lembrava a estatua de Hermes, de Praxiteles, numa atitude nova de horror e desespero. Era uma figura de expiação!

*
*      *

Nuno passou aturdido pelas suggestões daquella estatueta á segunda sala—a da pintura.

Os demais objectos de estatuaria eram inferiorissimos:—bustos [128]mal acabados, atitudes mal surprehendidas, assumptos quasi idiotas.

Na sala de pintura esperava-o nova surpresa.

Havia a considerar as figuras que eram pessimas e as paisagens, bellas, sem discrepancia.

—Que extraordinario artista! dizia Nuno comsigo: tão desegual!

E passando mentalmente as figuras que tinha extremado:

—É curioso que dão o mesmo typo em differentes edades.

São reproducções duma unica figura! E quasi que só as reproducções dessa figura são notaveis.

O resto é intoleravel!

E, vendo as paisagens, ia recolhendo impressões.

—É, em pintura, dizia comsigo, um raro apostolo do movimento contemporaneo. A sua paisagem não se filia em escolas passadas. É a belleza nova através dum grande temperamento.

*
*      *

Tinha passado hora e meia depois da entrada de Nuno.

[129]Este viu o relogio e chamou o empregado, mandando apartar as estatuetas escolhidas e três paisagens.

A seguir perguntou:

—O artista não está?

—Está além, vou chamá-lo, informou o empregado, dirigindo-se a um compartimento da extrema.

Pouco depois appareceram os dois:—Ruy Augusto, seguido do empregado.

Nuno de Villar teve um movimento de surpresa.

O apparecimento do esculptor foi uma revelação. As figuras apartadas eram variantes dum modelo, que era o proprio Artista.

Elle dirigiu-se a Nuno com passo hesitante, flectindo-se, desordenadamente, num enleio de creança. Nuno attentou-o com curiosidade.

Era uma figura pequena, duma gentileza effeminada, moreno, olhos verdes; abria os labios grossos num sorriso triste, e tinha o cabello em ondas negras e compridas.

Quando Nuno de Villar deu a razão de o ter procurado, elle, confuso, numa grande perturbação, declarou-se muito honrado com a visita de tão grande artista á sua obra, e pelas acquisições feitas; pediu-lhe para que deixasse estar no salão os trabalhos comprados, durante alguns dias, e recusou-se a receber logo o preço.

[130]Nuno, cada vez mais interessado, ficou a conversar.

Ruy, parco de palavras, flectia-se em gestos de attenção, sorrindo aos elogios do interlocutor.

Quando, porém, Nuno lhe observou as desegualdades, a expressão branda dos seus olhos de esmeralda transformou-se.

O olhar, até ahi fixo em Nevogilde em expressões suaves duma galantaria senhoril, volveu-se rapido numa espectração selvatica, vazando em tonalidades extranhas sentimentos de tal melancholia e dor que mal se comportavam nos seus olhos de verdete, normalmente de esmeralda desbotada.

E Nuno, educado e tolerante:

—Afinal as desegualdades são naturaes nos artistas. A Arte tem os seus caprichos, as suas horas.

—Não é isso, replicou Ruy, em voz sumida. Perdôe-me V. Ex.ª a confissão que vou fazer-lhe e que só a um grande artista póde fazer-se.

A razão de taes desegualdades prende á minha maneira de ser. Vejo-me na Arte como num espelho. Melhor do que num espelho, pois me vejo intimamente.

Eu pertenço a uma raça que vive odiada e odiando.

Exprimo o povo,—o bastardo duma fidalguia [131]heroica e devassa, que nem talentos, nem sangue pode medir. Sou o acaso, a torrente vermelha do Destino, com uns laivos anilados de sangue nobre...

Degenerei em Arte, a feição bella do Odio.

Veja que nem tenho appellidos. O meu nome é Ruy Augusto.

Sou rude convivendo.

Como vejo com horror ou indifferença as creaturas, não tenho modelos que me impressionem. Toda a obra tem um fundo de photographia. Mas a minha objectiva recebe mal as imagens. A sua qualidade deforma, sobretudo, as que geralmente passam por preciosas. E se algumas affinidades mostra é pelas mais humildes: aproximação de raça.

Depois, a alma soffre com os esforços da vontade. Não sente quem quer. Eu desço de olhos fechados a escada que vae dar ao incerto. Isto na vida, assim tambem na Arte. Sigo o temperamento. A paisagem, não me apparece turvada com a figura humana. É a belleza que não magôa. Amo, quero dizer, sinto a paisagem. V. Ex.ª, provavelmente, não sabe, pois que me não conhece, como sou indicado nos meios que frequento?

Chamam-me o Vagabundo. Creio justissima a etiqueta.

Fechado em Lisboa, onde trabalho ao acaso, quasi sem recursos, realizo, de facto, essa [132]figura extranha, que cansada de caminhar por entre paredes, desvaira na paisagem reminiscencias e nostalgias dos descampados da sua terra, que é a terra da sua raça.

Ahi tem V. Ex.ª, concluiu, a razão porque entre uma feira de estatuas encontrou três boas e porque na pintura o meu processo é mais harmonico e o reputo supremo como documento dos meus talentos.

—Muito curiosa a informação, disse Nuno.

E, de repente, fixando Ruy, a sorrir:

—Sabe que conheço o seu modelo preferido?

Ruy ruborizou-se, commentando, enleado:

—Veja V. Ex.ª que, a despeito do cuidado que ponho em disfarçá-lo, o talento de sentir-me tutela-me absolutamente; não tenho meio de o esconder, de me esconder.

E Nuno, muito curioso de mais notas, ácerca do artista:

—Diga-me, é certo o que affirmam os jornaes quanto á sua precocidade?

—Absolutamente certo. Um dos quadros que V. Ex.ª escolheu é dos meus quinze annos.

Mas isso não tem valor, accrescentou,—cada um amadurece quando tem necessidade de amadurecer. Sou fructa outonada. Meu pae era um velho, um morgado de vinculos perdidos, que me engendrou aos sessenta annos numa lavadeira da sua casa, uma rapariga [133]forte como as armas, segundo lá dizem em Villa Alva, donde sou natural.

Não conheci pae, nem mãe. Melhor assim! A miseria é a independencia quando bate á porta de um só, quando não temos de reparti-la...

E confuso:

—Mas estou a incommodá-lo.

—Não está, contrariou Nevogilde. Adeus! Tenho de sahir, mas quero pedir-lhe a fineza de jantar hoje commigo.

—Muito obrigado, concordou Ruy.

*
*      *

Dias depois estava Nuno tomando o pequeno almoço no gabinete de trabalho, sumido numa cadeira larga, conversando com Ruy.

O mordomo pediu licença.

—Entra! mandou Nuno.

—Vieram trazer esta carta e um volume.

E Nuno, depois de abrir tudo:

—Quando veiu isto?

—Antes de hontem, informou o mordomo, mas V. Ex.ª entrou depois do correio, hontem sahiu antes da hora do correio...

—Sim, disse Nuno, podes sahir.

E para Ruy:

[134]—É que sou escrupuloso nas horas de receber. Abri excepção para o Ruy.

E apontando a carta:

—Sabe que é escripta por sua causa?

É de Maria Peregrina, que tambem me offerece a Nova Sapho, a pedir para lhe ceder um dos trabalhos que lhe comprei. Quer o Vagabundo.

Fica o Ruy encarregado de lhe pôr o pertence em favor da cobiçosa. Escusado seria dizer-lhe que saldarei a importancia.

Ella lamenta-se por não ter apparecido primeiro em S. Carlos, gaba o seu talento, e pede-me a cedencia, desculpando-se por se me dirigir sem apresentação. Mera formula. Lisonjeia-me ser-lhe agradavel.

—É uma mulher notavel, affirmou Ruy. A Emparedada é um bello livro.

—Sim, esclareceu Nuno. A sua obra ficará. Não leu este volume—Nova Sapho? E dando pela negativa: pois offereço-lhe um exemplar que ali tenho. Ficarei com este que tem a dedicatoria. Leia-o!

E sorrindo:

—É o Vicio illuminando a Arte—Sodoma e Lesbos resurgindo a arder...

—É parallelo em belleza á Emparedada, inquiriu Ruy?

—Não, disse Nuno. Os dois trabalhos completam a artista. Mas esta obra accusa tranquilidade. [135]Parece equivaler a uma quadra feliz da escriptora. Presente-se ali um fio, embora tenue, de amor a dirigir o poema.

É a belleza harmonica, com apoio numa razão intima da vida.

A Emparedada é um poema superior. É talvez a sombra daquella paixão, projectada pelo talento. A auctora viveu nelle desesperos e melancholias. E, como nada disto soffre razões, o poema attingiu o Genio, que, fundamentalmente, é o talento transpondo a primeira zona da loucura.

—Será verdadeiro, Conde, perguntou Ruy, o romance que por ahi corre a respeito da auctora?!...

—Julgo que não, disse Nevogilde; corre um romance inferior ao seu talento. Mas creio, absolutamente, que tenha raiz na moral nova que apostoliza.

—É que só a noticia da chegada della surprehendeu a curiosidade de Lisboa. E, a partir dahi, não ha dia em que não corra um episodio novo a seu respeito.

—Pouco sei della, concluiu Nuno de Villar. No entanto, interessa-me bastante tudo que lhe respeita pois que mulher e auctora parecem fundir-se nas obras.

Tenciono ir agradecer-lhe o livro. Veremos se tratada irá desmentir-me impressões.

—Tenho pena de não estar em S. Carlos [136]quando lá foi. Soube que appareceu hontem, disse o pintor.

—Vê-la-á mais tarde, se nos auctorizar a visitá-la.

—Ah! disse o Vagabundo, enleado, nem me faltava mais nada. Tenho boa disposição e presença para apparecer no palacete do Alecrim, por entre as maltas de tom...

—Engana-se Ruy. O nome que lhe advem do talento, e encanto da sua figura, como as immunidades de artista, fazem que todos o recebam bem.

E, se lá fôr, vae para conversar a mulher excepcional. Que vale o resto?

Ruy levantou-se e foi ler perto as horas dum relogio-Imperio que sobre o fogão pulsava o tempo.

—É tarde, disse, vou deixá-lo. O Conde dá-me licença...

—Dou, disse Nevogilde, mas espero-o para jantar. Appareça. Não esqueça a recommendação sobre a estatueta. Mande mudar o pertence.

IX

Havia mêses que a Artista se installára em Lisboa, num palacete da rua do Alecrim. Não lhe foi indifferente aos nervos a curta estada [137]no Minho; socegou. Mas o Minho deu-lhe todos os attractivos em pouco tempo; cansou-a a serenidade.

Estava grata á pobre terra que lhe dera um arremêdo da antiga felicidade na companhia da prima, a Salomé, ingenuamente linda, condescendente.

Mas o Minho pareceu-lhe pequeno para theatro das novas aventuras, que lhe traziam, sem enthusiasmo, um bem-estar, que não sentia ha muito.

Em volta de Peregrina, mexeu-se Lisboa. Appareceram os que desejavam folgar na casa do Alecrim, como pertencendo á sua parentela, e havia os recem-vindos das letras, que thuribulavam a Artista na presença e andavam pela cidade contando as extravagancias que derivavam da sua conversa livre.

Ella, conformada pelos novos amores, mal dava pelo cisco que remoinhava nos seus salões.

E, aos certames do sabbado, acquiescia, benevola, dispensando attenções e espirito. Entretinha-a brandamente aquelle gaudiar de gente que ia ali explorar-lhe o luxo e destinava a prender a futilidade da Salomé. Entretanto, para si preferia outros dias, aquelles em que tratava á puridade os intimos, que eram os da casa, Nuno de Villar e Ruy.

Nuno de Villar procurou-a, para agradecer [138]a Nova Sapho, e offerecer o trabalho de Ruy; e ficou, desde logo, um amigo da casa, a quem Peregrina tratava com distincção e affecto.

Ruy apparecia esquivo, cobrindo o orgulho de humildades.

Peregrina tratava-o por tu; gabava-lhe o talento; tomava-o, carinhosamente, por uma creança que era preciso amimar; ria dos seus enleios, a ver se conseguia dar-lhe á alma selvatica tranquillidade e estados mais felizes.

Não havia meio.

Era, como frisava Nuno, o genio do povo, o Principe da Plebe, irreconciliavel com outras camadas.

Frequentava os meios aristocraticos, por curiosidade. A Arte dava-lhe admissão nos salões. Mas trocar affectos com outras raças, não podia. A sua obra era a concepção do homem que conversa de perto a natureza e a exterioriza, sonhando alto.

Elle sonhava em tela e bronze. Era poeta, pintando á sua maneira. Os pastores da sua provincia, vagabundeavam com os gados com os quaes trocavam expressões de olhar. Mas estas expressões davam-nas entre si, misturando, desvairando a alma, na alma livre dos campos.

Reflectiam-nas, desgarrando cantares impregnados de nostalgia arabe. Fóra dos descampados, eram outros.

[139]Tambem Ruy, ainda nos salões, distrahido, usava expressões mansas de cordeiro.

Se o chamavam á vida e fixava os que o cercavam, espectrava logo denuncias duma alma irreconciliavel.

Quasi sempre calado, brando á vibração das inferioridades, como dos talentos alheios, era nos salões de Maria Peregrina como um alumno que apparecesse a tirar a falta.

Entretanto, a casa da artista era uma verdadeira academia, aos sabbados.

Romancistas em começo de vida, homens de Estado, jornalistas, pintores, poetas de primeiro vôo, tudo ia ali privar um pouco com a Poetisa, e dizer discursos de Arte, de philosophia e até de politica.

Maria Peregrina, tolerante, ia acompanhando aquella Babel de convenções. E a Nuno, que a increpava, educadamente, da generosidade, accusando-a de subsidiar os apostolos do que chamava a philosophia do Pôdre, respondia:

—A collecção dos sabbados é o meu narcotico. Aquelle barulhar de idéas disparatadas, auxilia-me a esquecer o passado, a viver o presente.

*
*      *

Uma noite estava no Salão-verde, só e muito attenta a um volume de Spinoza, que [140]lia havia horas, quando entrou um creado a annunciar:

—O sr. Conde de Nevogilde e o sr. Ruy.

—Que entrem! mandou.

E vendo-os:

—Como vão?

E para Nevogilde:

—Não quiz vir hontem? A noite esteve desagradavel... Tem escripto muito? Que bello o ultimo folhetim para o Jornal do Rio!

Como o Nuno consegue ser original sem diatribe, crear sem demolir. Como se excede, escrevendo!

A puridade, na conversa, tem ainda impertinencias. Escrevendo, só edita o homem superior. Admiro-lhe, sobretudo, o alheamento da vida commum; a elevação do espirito, exotico quasi a frio; a forma por que consegue percorrer notas tão extranhas dentro da mais perfeita serenidade do dizer.

—É que a conversa é para mim uma distracção, um vicio. Pratico-a, como pratico os demais vicios, tal como os nervos, as influencias ma suggerem. A conversa não sou eu; são os outros e eu.

Tenho para mim que a companhia desdobra de nós uma creatura differente da que formamos intimamente. E, quanto mais intelligentes somos ou nos julgamos, peor é—mais [141]ingenuos somos tambem, mais facilmente cahimos na tal rêde de suggestões...

Até Maria Peregrina é, acompanhada, uma pessoa tão diversa de si propria!

—É verdade, Nuno, confirmou. E quando estamos sós, é que mais soffremos!

Por mim, contrariando o proloquio, prefiro estar mal acompanhada a estar só. Contudo, convenho em que precisava de viver isolada.

E premindo o botão da campainha:

—Vou mandar chamar a Salomé e Violet; com a leitura não sei dellas ha muito...

Veiu Jacob, fez uma mesura a distancia e quedou, cabisbaixo, á espera de ordens.

—Anda cá, disse meigamente Maria Peregrina, passando-lhe os dedos pela face de pergaminho, tu vaes, meu velho, dizer ás senhoras que as espero, sim?

Voltando-se para Nevogilde:

—Gosto muito deste anão porque é menor do que a sua maldade, e a maldade delle profundamente legitima dentro do destino. Não imagina, paga a pena conversá-lo a sós. O Mal não tem que ensinar-lhe coisa alguma. Depois, tão intelligente e commodo nas suas formulas. Veja como entrou respeitoso. Eu uso-o como uma extravagancia, de longe em longe; a alma delle vale um frasco de essencia [142]exotica que entorno sobre mim ás temporadas...

Salomé e Violet chegaram á sala ao mesmo tempo.

Nuno, levantou-se para cumprimentá-las, mas antes que tivesse tempo de fazê-lo, já Salomé o inquiria sobre a falta da vespera e aversão ás reuniões do sabbado.

—Estava agora para explicar a Maria Peregrina a razão da minha falta.

Ainda bem que a sua chegada me salva de repetir-me. Ia dizer que não gosto das reuniões do sabbado porque me aborrece a collecção de letrados que geralmente juntam. Além do chronista, que é sujo, tão effectivo na immundicie como nos serões, ha os dois poetas, que reputo duma pelintraria intellectual abaixo de tudo, deputados, os dois ministros—todo o indice da familia portuguesa que trato a distancia. Não sei como pode aturá-los, concluiu, olhando para Peregrina.

—Aturo-os bem, e divertem-me: são originaes na sua ingenuidade. E eu quando vejo alguem original exulto. A vida é tão monotona, a gente escorreita tão pouco interessante...

—Sabe? interveiu Salomé, voltada para Nuno: tambem esteve hontem a mulher do pintor...

Vinha pasmosa de côres e toilette. As tintas [143]do cabello e da cara, desacreditavam, de vez, o marido.

—Se é o marido quem a pinta ou lhe inspira a côr, o que nunca ouvi, objectou Violet. O contrario é que parece verdadeiro; é ella o modelo, a razão da arte como dos infortunios do pintor.

—Coitada, commentou Peregrina, que pena me dá! Deus deu-lhe um cerebro estreito, que mal chega para a moral burguesa. E teima em ser alguem! Quando, afinal, nem tem vontade de ser boa, nem talento para ser má.

O horror que deve ser o conflicto da carne escandecida pelo temperamento sem a menor centelha de genio que o aproveite!

—Ah! commentou Nevogilde, essa, apesar de tudo, é sympathica no seu remoinhar de toilettes de rainha pobre de tragedia...

Quem eu não aturo são os outros.

Umas creaturas tão enfezadas, tão pobres de corpo, como de alma... Que miseria!

—Nuno! observou a Artista, delindo as palavras num sorriso:—não me faça arrepender do conceito em que o tenho. Demais, esse luxo de parecer forte denuncia fraqueza...

Que mal lhe fizeram as minhas visitas de sabbado? Seja bom! A inferioridade dos outros é que faz o nosso talento.

Nevogilde ia a replicar, quando sentiu refolhar [144]o reposteiro e surgir a cabeça quasi branca de José d'Andrada.

—Olá, monsenhor! Então que vae?

—Uma optima temperatura nesta sala, replicou o padre. Estou certo de que é o unico compartimento civilizado de Lisboa, pois que tem tudo—espirito, luxo, calor...

E sorria, numa expressão boa, encarando Peregrina e os companheiros de serão.

—É verdade, observou Nuno. E, entretanto, se o monsenhor não viesse de fóra, do frio, já nem agradecia esta temperatura e companhia.

Eu creio que até no ceu haverá dezembros para que haja camaras mais reconditas onde Deus alumie e aqueça os escolhidos. Não lhe parece, monsenhor?

—Sei lá! respondeu Andrada. Nunca me dei a averiguar se o ceu tinha calendario, mas creio que não, pois que, apesar de relapso, segundo os vigarios de Deus na Terra, quando leio o Breviario não dou pelo tempo...

—O monsenhor quando morrer não chega a estanciar no purgatorio, tão lavada é a sua vida neste mundo!

—Não sei, sr. Conde, como Deus vê as nossas obras! Se as avalia pelas intenções, estou certo de que nos absolverá a todos, seja qual fôr o conceito que o mundo faça de nós.

Elle vê-nos ainda informes. Sabe o que o [145]destino vale contra as creaturas. Creio que castigará a maldade, mas será bom para a desgraça, perdoará os nossos erros.

De certo, ha de prosperar-nos no ceu segundo as intenções.

Por ellas saberá quem são os limpos de coração.

—Como poderá passar no ceu sem a Mouraria? perguntou Nuno, rindo, voltado para Ruy.

E dirigindo-se a Maria Peregrina:

—Não imagina, é uma sereia bohemia. Como sente a vida humilde dos que viciam por essas ruelas e sabe insinuar os imprevistos que por lá existem!

—Ahi está um emprego que me dirá bem, affirmou Ruy, em sua voz cantada: serei o informador junto de Deus da miseria que sei.

—Deus dispensa-o de tal trabalho, disse Andrada, sorrindo. Vive na consciencia de cada um. Julga os nossos julgamentos e joga para isso com factos que nos são despercebidos. Mas deixemos o assumpto se V. Ex.as o permittem.

Discutir Deus é estragá-lo. Basta crer nelle, acceitá-lo no maximo de bondade que pudermos pedir ao temperamento.

Uma novidade:—acaba de chegar a Lisboa o novo ministro inglês; vae ao Paço na proxima semana apresentar as credenciaes.

[146]—E quem é? perguntou Nuno.

—É, deixe V. Ex.ª vêr se me lembro: É... John Brook.

—Brook! disseram a um tempo Peregrina e Violet.

—Conhecem? perguntou Nuno.

—Sim, conheço; quero dizer, sei quem é, informou Peregrina. Uma pessoa da familia delle foi do nosso tempo em Petersfield.

E, disfarçadamente, olhou para Salomé, que conversava baixo com Violet.

Appareceu um creado.

—Está lá em baixo o sr. dr. Amaro Sanches; pergunta se V. Ex.ª pode recebê-lo.

Peregrina fez um gesto de cansaço e disse de vagar, hesitante:

—Que entre...

Nuno ia a levantar-se.

—Ah! fique, peço-lhe, implorou Peregrina.

—Se assim o deseja, fico. Mas custa-me muito aturar um capello, e então aquelle—lente, filho de lente, neto de lente. Tem as caldas todas.

—Deixe lá, replicou Peregrina. O genero é antipathico em Coimbra. Fóra de portas é toleravel. Verá que é discreto...

Momentos depois entrava na sala o dr. Amaro Sanches, pequenino, precioso, á busca [147]de expressões, anecdotico, preoccupado com a maneira de estar.

Explicou que partia no dia seguinte para Coimbra a reger cadeira. Falou das aulas e contou de enfiada as partidas do velho Lourenço, José Braz e casos do Quental.

E Maria Peregrina, que via, disfarçadamente, a atitude admirada de Nuno, como a desviar-lhe a palavra:

—Esteve na Granja, não é verdade? Divertiu-se? Agora vae extranhar; muito trabalho...

—Ah! não imaginam. Este anno a praia esteve animadissima. Disse lá umas conferencias na Assembléa sobre a Pedagogia na Allemanha. Sou um apostolo deste grande país. Fiz lá o melhor do meu apprendizado scientifico. Estou gratissimo ao ensino allemão. Será o meu guia na aula. Os meus collegas na Faculdade vêem de maus olhos este exclusivismo pela Allemanha. Mas V. Ex.as sabem que é a primeira em tudo:—em Medicina, Philosophia, Arte, Politica, etc. Sou tradicionalista como um allemão. Quero Sciencia, Arte e Politica tudo á allemã. As creaturas disciplinadas a uma só ordem—á auctoridade, que é no governo uma individualidade de poder, na aula o professor... Por mim serei um ditador. Um mestre é na cathedra um governante. Tem de impor os methodos.

[148]E, numa confusão de assumptos, verboso, descrevendo methodos de ensino, as dansas da Granja, tudo o que lhe ia lembrando, passou uma hora. Até que pediu licença para retirar:—tinha de levantar-se cêdo...

Houve um movimento que tanto podia ser de attenção á despedida, como de allivio.

Nuno, vexado, abreviava os agradecimentos ás offertas do professor, muito importante, convidando-o a ir a Coimbra ver os progressos do ensino.

—Que fosse; o ensino estava ao par do que vira no extrangeiro; não era só a Medicina que honrava Coimbra, a antiga capital intellectual do país; honravam-na todas as faculdades, destacando-se a de Direito, onde o professor Alves, que ensinava Direito Patrio, remontava o estudo da sua cadeira ás edades paleolithicas;—que fosse ao menos assistir á festa dum capello, aconselhava com interesse: era a festa academica por excellencia.

E para Maria Peregrina e Salomé:

—Porque não vão V. Ex.as tambem? Deviam gostar. Haveria em breve o capello dum rapaz que se doutorava ao mesmo tempo em philosophia, mathematica e medicina e ia ostentar na festa um capello tricolor; não imaginavam:—era uma summidade, com vinte e cinco annos!

[149]Que fossem, insistia; já o pae e o avô, que tambem tinham capello, falavam com uncção da grandiosa festa.

E os presentes á uma, para que se calasse:

—Que tinham o maior desejo de ver a tal zebra insigne. Era possivel apparecerem. Haviam de combinar...

Enquanto falava, Amaro Sanches fitava Salomé, que parecia a unica a interessar-se por aquella lôa coimbrã.

Afinal despediu-se, promettendo voltar em breve. Ia muito sensibilizado pelas reuniões dos sabbados.

E, depois de salamaleques varios, arrastando cadeiras, lembrando ainda os ditos do Dr. Lourenço, sahiu muito contente de si e da Universidade, após um aperto de mão prolongado á Salomé, que o fitava com ternura.

Quando sahiu tudo se calou. Nuno levantou-se, esfregou os olhos, como se tivesse acordado dum pesadelo, e disse, voltando-se para Ruy:

—Vamos!

—Já? inquiriu Peregrina. É cêdo; são onze horas.

—Estou fatigado, contuso. Tenho a impressão de que o homem varreu sobre mim toda a caliça dos paços de João III.

Quando a torre cahir não faz tamanha bulha!

[150]A cabeça deste lente rehabilita o chaos. Aquelle craneo é uma terrina de salada russa!

Adeus, Maria Peregrina!

—Espere um pouco! disse ella, fixando-o.

Coitado! Depois das sabbatinas nas aulas, dos successos na Granja, triumphos em theses, do capello amarello, retrato entre o papá e o avô, dos cumprimentos dos rapazes, num meio pêco e idiotamente romantico, que queria V. que o homem fosse?

—O que eu me perguntava, no decurso daquelle desapontoado de coisas, era no que redundaria a geração que tem educadores de tal jaez?

Que viveiro!

X

Dias depois, escrevia Peregrina, quando foi interrompida por Jacob, que lhe trazia um bilhete.

Leu: Helen Broock.

—Está no vestibulo esta senhora? perguntou.

—Está, informou o anão.

—Acompanha-a aqui.

Momentos depois entrava Helen, e abraçava Peregrina num transporte de alegria.

[151]—Ha que tempos nos não vemos!

E beijava a antiga companheira na boca e nos olhos, incendida de côr.

Maria Peregrina recebeu-a com moderado enthusiasmo. Quando ella se distanciou, mirou-a curiosamente.

Helen não era já a esbelta rapariga de Petersfield. Era uma figura quasi vulgar. Debalde Maria Peregrina procurava nella a linda pelle de seda que a tinha arrebatado tanta vez, as fórmas excepcionaes, a flexuosidade e candura do movimento.

—Estou mudada, não é assim? Tu não estás resentida commigo?! Sabes que tive um grande desgosto com a carta do John. Coitado, agora é um cordeiro. Tenho vingado a grossaria que praticou comtigo.

Então, minha Sapho! dize alguma coisa á tua velha amiga, abraça-me!

E beijava-a com ternura.

—Que queres que diga? Que és junto de mim o passado! O acaso, veiu juntar-nos, quando estamos tão longe do que fomos.

Não imaginas o estado de indecisão de espirito em que ando. Depois que te deixei, a nostalgia de Petersfield pautou-me toda a sorte de extravagancias. Queria encontrar alguem que te substituisse; e, entretanto, ia enchendo o tempo, pervertendo-me, para não pensar no perdido.

[152]Não encontrei quem procurava. Nem tu, segundo acabo de verificar, podes substituir-te.

Não sei se sabes que vive commigo Violet. É uma pobre creatura que me é docil como a minha carne. Talvez por isso a vejo com amargura. Está ahi outra rapariga, minha parenta.

Já percebi que amo nella a simples frescura da mocidade, talvez a ingenuidade dos seus enleios de provinciana.

Mas o vago duma aspiração suprema, persiste em mim. Eu queria, sabes?—o goso tranquillo, pôr um fim onde só encontro o indeterminado...

Um horror!

Não tento uma aventura que me pague a imaginação de urdí-la...

—Pois calculei que eras feliz. Tinham-me dito que recebias a melhor gente de Lisboa; que davas festas...

—A melhor gente de Lisboa é pessima. Excepcionalmente encontrei uma figura rara, o Conde de Nevogilde, um excentrico, escriptor de merecimento, por quem sinto a melhor devoção. Vale-me nalguns serões.

Vou por estes dias passar algum tempo á sua casa de Entre-os-Rios, a Villa-Feia.

—Extranho logar, disse Helen, se o titulo não mente.

—Não mente, creio. Aquella Villa é um [153]capricho da natureza em favor do proprietario.

É um scenario novo, com uma flora especial, cheia de imprevisto. Tudo ahi é curioso. E não imaginas o enthusiasmo de Nuno Nevogilde pela sua Villa, como sabe estimar o encanto do Feio.

É um rapaz adoravel. O seu interesse vale mais do que o seu talento.

Ser interessante é ser tudo para os outros. O interesse é bem mais raro do que o talento.

Este pode ser monotono, impertinente; o interesse é o imprevisto, o encanto derramado naturalmente, filho duma razão que escapa, adstricto a um genio cujo enredo nos move sem que possamos defender-nos das suas más consequencias.

Não é o que elle diz, é a forma porque diz. É insinuante, muito crestado de viver, apagando-se junto dos humildes, pasmando perto dos tolos, soffrendo o que vê, o que adivinha...

—Vaes então passar uma optima temporada? disse Helen triste e morna aos enthusiasmos de Peregrina.

O que te não lembra é Petersfield! Outros tempos, novos amores...

Pois eu, minha querida, vivo ainda na recordação dos velhos tempos. Não te enganavas quando respondias ao John, annunciando-lhe [154]que eu permaneceria fiel aos teus ensinamentos. Cada vez tenho mais horror ao homem, sobretudo ao que me deram por companheiro. Ainda bem que a diabétes promette liquidá-lo breve... É a sua nota sympathica—a doença.

—Olha que nos meus ensinamentos não cabe tal ferocidade. Ha coisas que podemos pensar, mas devemos envergonhar-nos de dizer. O pensamento nem sempre joga com a vontade.

Eu sou feroz commigo: tenho-me desejado a morte. Gosei a morte de Edgar, como nunca esperei gosar coisa alguma no mundo. Mas não lha desejei. Ter-lha-ia evitado, se a adivinhasse. Ante o facto consummado o meu espirito exultou. Espirito e corpo, num abraço como jámais se deram, possuiram aquelle lindo morto ou antes a Belleza-morte, no maior elasterio de sensualidade... Mas, vigiar dia a dia o que vae dar-nos a felicidade de morrer, perscrutar-lhe os passos da doença, porventura promover-lha, isso não é digno de ti.

—Ah! minha Peregrina, tu não sabes o que é sentir o amor do homem que detestamos. Olha que é peor do que o contrario, amar a pessoa que nos detesta!

—Mas afasta-te delle. Deixas de ser ministra de Inglaterra, mas és a mulher digna, ainda que vivas como uma rameira, de amores [155]com outras rameiras. Sê a mulher livre; nada ha peor do que a honestidade forçada.

Só a hypocrisia é crime!

Os olhos de turquesa da extrangeira nublaram-se de lagrimas; cahiu a soluçar sobre o peito forte de Peregrina, que a afagava friamente. Bateram á porta.

Era Violet e Salomé.

—Esperae um pouco! disse a Artista.

E, dentro de breve tempo, sahiam as duas a encontrar-se com a antiga condiscipula e Salomé.

XI

A Villa-Feia, sobranceira a Entre-os-Rios, assenta na encosta que domina a juncção do Douro com o Paiva.

Este ribeiro desce obliquamente, como um fio de platina a fundir-se nas aguas de oiro do Rio, que segue, como um grilhão mysterioso, a perder-se no mar.

O antigo paço senhorial da Villa-Feia é um systema de torres e torreões extravagantes, casas afiladas de frestas altas e seguidas, que dão de longe a impressão de linhas pontoadas; e quadrados enormes, atarracados, beirados [156]de ameias grotescas, e frestas em losango, que põem na cantaria verde-negra um recorte de retinas extranhas, attentas ao mechanismo liquido das correntes e á paisagem roxa dos montados.

Tanto o paço torreado como o plantio da maior parte do arvoredo da Villa-Feia, foram obra dum velho templario que, segundo a Lenda, veio esquecer ali as canseiras da guerra.

Aquella architectura, informam os do povoado, foi idéa do templario. A deformação das arvores e outros signaes da Villa maldita, foram castigo de Deus, irritado com o porte de D. Alvaro de Castro Leite de Villar, um dos maioraes da Ordem que, em 1312, Clemente V aboliu.

Corre a fama de que o grande cavalleiro fôra um dos que mais justificaram a liquidação da Ordem militar e religiosa dos Templarios, pois que escureceu o brilho dos feitos mais ousados com actos de desenfreada sodomia.

O seu temperamento, fóra do natural, delineara um castello desproporcionado, alheio á architectura do seculo.

A natureza requintou em lhe deformar as arvores, dando á Villa-Feia uma flora monstruosa, invertendo o tempo das flores e dos fructos e afeiando as plantas de melhor raça. Mas não é sómente nas velhas arvores, que os do [157]povo inculcam como plantadas pelo Templario, que as deformações se notam. É em todas as arvores que ahi se disponham. Quanto mais formosas são fóra, mais afeiam lá dentro. Ha-as chloroticas, abraçando-se numa adherencia de enxerto; outras, communicando serpentes de ramaria e abraços a muitos metros dos troncos; raças humildes, attingindo desenvolvimentos notaveis; eucalyptos, geralmente desenvolvidos e que ali figuram de anões, enfezados, exiguos.

Desenvolvimento, florescencia e fructos, parecem obedecer a leis especiaes. A Villa-Feia é um capricho da Natureza; uma pagina de Pathologia vegetal.

Os fructos são acres; as flores, em meios tons, e dum recorte esquisito, não têem aroma, o que faz que os camponios supponham que a sua approximação lhes veda o olfacto.

Tudo ali é extranho. Cada arvore toma um aspecto diverso das mais da sua raça em outras terras. O choupo-chorão abre em traços rectos; o ulmus pendula, de braços geralmente curvos no sentido do tronco, revira os ramos em hastes de novilho; cactos prodigiosos, vestem o sopé da encosta, formando cordões farpados; pinheiros bravos abrem-se em umbellas rôtas, de agulharia verde-escura; os cedros parecem arvoresitas de Natal, ramos de presepio; cyprestes bastos, [158]tragicos e colossaes, põem pontos de admiração na paisagem; chorões, flexiveis como vimes, descem em tufos emmaranhados as suas lagrimas verdes, longas até aos pés; medronheiros de grandes troncos, herpeticos de musgueira, de folha sêca, mal vestidos, ostentam, simultaneamente, floritas brancas e fructos exiguos de coralina.

Os sobreiros jámais deixam o tom acastanhado que usam noutras terras ao abandonarem a cortiça:—põem na Villa-Feia uma nuance de sangue velho, erguendo-se, rachiticos, como adolescentes morenos alcançados pela tisica.

Nos recantos mais sombrios o chão é hirsuto de tojeira, cerdoso de espinhos bravos, bastos como pellagem de javali, salvo nas ruelas, abertas em lacetes, tortuosos, duma colleação mysteriosa de labyrintho.

Domina a Villa um penedo enorme, simulando uma figura-gigante, deitada na tojeira, que se desdobra em volta como uma pelle.

É uma figura nua, guarnecida de musgos, ostentando signaes nitidos dos dois sexos; lembra a figura de Hermaphrodita que um artista ensandecido tivesse trabalhado ha muitos seculos, e postado ali como um amuleto maldito do mundo sensual.

Corre entre os lavradores que o Penedo fôra cinzelado por D. Alvaro em noites brancas [159]de janeiro, de collaboração com o Demonio, que, em baixo, no Ribeiro de Cobre, referve coleras.

E rapazes gastos e velhos sensuaes, crentes na sua virtude, vão horas mortas, pedir-lhe forças desbaratadas.

O Encommendado não se cansa de predicar o peccado em que incorrem os que veneram o mysterioso granito.

E velhos menos confiados contam casos de creaturas tolhidas, quando foram de romaria ao Penedo, depois de encontrarem a alma-penada do Templario, em companhia do Demonio, revendo a obra.

O Ribeiro de Cobre ganha a primeira altura da encosta dum salto, borbulhando tufos de agua escura, que rasam em madría pela açude. Dali partem levadas que cortam em leque os campos baixos.

Vogam na madría aves de agua, pequenos cysnes e enormes gansos, de pescoços de cobra e bicos de fava, remando de vagar os corpos gondolosos, vestidos de pennas, tufadas como ramos de chrysantos negros.

Tracto singular de paisagem, onde esparsos olivedos põem nodoas de saudade em cinza!

Parece haver o maior parentesco entre o Ribeiro de Cobre, assim chamado em razão [160]da côr e o arvoredo, em que predomina o acastanhado dos sobreiros.

O povo guarda-se cautelosamente de pescar no Ribeiro, se bem que seja abundante em peixe e, sobretudo, em trutas, que lembram desenhos fugidos dalgum jarro precioso do Japão, a refulgirem escamas de prata e oiro por entre o cobre liquido do humilde corrego.

É que desde muito se conta na aldeia que D. Briolanja, a ultima morgada da Villa, fôra victima de peixes ahi pescados:—que ceara as endemoninhadas trutas numa vespera de Anno-Bom e amanhecera sem fala, muito branca, fazendo esgares, até que morreu, depois duma agonia mysteriosa, ao cabo de poucas horas.

Para além da madría, ha um velho moinho redondo, de grande circumferencia e pedra tosca, de juntas tomadas a verdura, com janellas oblongas e uma roda de dentes podres.

Semelha um carão horrivel, de olhos azeitonados, comidos de ophthalmias, sobrancelhas rentes de musgueira verde-limo e boca enorme, a que a roda de dentes cariada dá a expressão confrangida dum riso diabolico de dor.

A agua que a boca do moinho espúma, em camarinhas escuras, través da roda gasta, vae sumir-se a distancia, no lagedo amarello das alluviadas, que escondem o Ribeiro [161]num tracto de dez passos. E é, sob o lagedo, que a agua espadanada contra a penedia baixa referve coleras de inferno, resoando naquella abobada de acaso as presumidas falas do diabo, segundo a voz corrente na aldeia.

Sobranceira ao moinho, na outra margem, fica a Eira de Vidro, uma escama natural de mica luzente, que, ao meio dia, quando o sol a veste, refulge, a meio da Penedia-amuleto, cordas de luz branca.

Circuita o exotico miradouro uma escarpa de granito rendilhado, que lembra o espaldar e braços de uma cadeira gothica de Cathedral.

Finalmente, é deste poiso extranho que os valles proximos escutam e repetem os dizeres dos que ahi falam.

Condições de acustica desconhecidas põem no espaço trios de arremêdo!



Tal a descripção da Villa-Feia, conforme um inedito de Nuno de Villar, III.º conde de Nevogilde e ultimo representante do Templario.

Era ahi que o escriptor villegiava quando a Cidade o aborrecia, ou sentia necessidade de dar asas á sua erudição e Arte. Ahi escreveu Os Sensuaes, o melhor dos seus livros, e varios capitulos da Vida Plastica, opusculos criticos, afora artigos. Dava-se bem com a paisagem [162]que o cercava, e, sorria, benevolo, sempre que perguntava e ouvia a historia do Templario. Os camponeses interrogados é que o não indulgenciavam pela transigencia com o execrado cavalleiro. E, á puridade, aventavam suspeitas:

—Que o representante de D. Alvaro parecia seguir-lhe as pisadas; que não era facil fugir ás leis do sangue; que na Villa-Feia tudo se deformava, os homens como as arvores...

E discutiam as figuras que pernoitavam no velho casarão senhorial.

Maria Peregrina tinha dito a Nuno que ia ser hospeda delle, quando este falou em ir para Entre-os-Rios.

Nuno, cortês, agradeceu a visita e acceitou-a. Intimamente aborreceu-a.

Convidára o Vagabundo para o acompanhar. Queria mostrar-lhe aquellas sombras. Não sabia porque impressionava-o bem a convivencia daquelle desequilibrado, que alternava com elle grossarias e carinhos, que ora o abordava com humildades de rafeiro, ora o perseguia, desdenhando da sua Arte e nobreza, dos seus privilegios de singular.

Maria Peregrina era a mulher absorvente que, apesar de tudo, receava, com quem não queria intimidades.

Era preciso attendê-la. Era uma creatura excepcional. Mas, por isso mesmo, horrorizava-o [163]o excessivo carinho que lhe notava. Admirava-a como mulher, mas temia-a. Era uma sensual que tinha percorrido a gamma do mais extravagante teclado da vida. Quereria porventura matar um novo capricho? E elle que só usava creaturas inferiores, que percorria altas horas os becos mais suspeitos a recrutar mulheres de acaso, como se haveria deante da mulher invulgar?!

Ah, se encontrasse pelos prostibulos mulheres daquellas formas!

Mas ter relações sensuaes com ella, uma intellectual, que havia de estar a ver, a frio, as suas atitudes de animal enfraquecido, cahindo, segundo o costume, na hysteria, que é a carne entregue a si propria, a velocidade adquirida do prazer a derivar na loucura!

Isto, se a commoção lhe deixasse ver nella a mulher!

E, muito triste com a ida da Artista, ia contando os dias, num horror de frade que treme da primeira tensão da carne.

Ah! elle era bem culpado, pensava. Podia ser como toda a gente. Se se deixasse de requintes não temeria mulher alguma. Mas degenerára-se.

Exigia sempre nas relações uma certa liturgia; dahi o seu pessimismo litterario, o pessimismo em tudo.

[164]E, involuntariamente, lembrava as palavras de Lichtenberger:

«O pessimista é um degenerado, um doente que deve curar-se ou partir, mas que não tem o direito de empeçonhar a existencia dos sãos, de desmoralizar os potentes, de calumniar a vida».

Como sentia aquellas verdades!

Era assim... Claro que tambem Peregrina era uma doente; mas por isso mesmo lhe não perdoaria. Demais, o seu horror por ella ferir-lhe-ia o amor proprio.

—A doença odeia a doença. O que nós procuramos nos outros são as qualidades que não temos, pensava Nuno.

Por isso elle era um forte, entre uma seara de mulheres, castanholando modas e vendendo alegrias.

Mas, na Villa-Feia, com Maria Peregrina a trocar beijos e impressões de Arte—que horror!

E era fatal a sua ida. Equivoca situação! Já tinha percebido que ella o desejava.




Por sua vez Peregrina, enthusiasmada, nem parecia a mesma.

—Tu lembras a antiga alumna de Petersfield, dizia Violet.

[165]E vendo-a cuidadosa com as toilettes:

—Já percebi, vaes noivar...

—Talvez, disse Maria Peregrina, rindo; não sei. Os programmas nunca antecipam muito os meus desvarios. Geralmente vicío sem elles. A surpresa é, afinal, o melhor da vida. Irei ver como as arvores da Villa-Feia me recebem. Corre que o antigo Paço tem a fortuna de afeiar o que é bello e engrandecer o que é humilde...

*
*      *

Passados dias partiram os dois, Nuno e Peregrina, os creados do Palacio-Fóz e Jacob.

Nuno esteve inquieto até á hora da partida; esperava Ruy.

Esperou debalde: minutos antes da sahida, recebeu carta delle, explicando a falta com o motivo de ter de seguir nesse dia á tarde para Villa Alva. Era-lhe impossivel ir a Villa-Feia, informava. Esperaria Nuno em Lisboa.

Nevogilde, contrariado, entrou para a carruagem.

Ficaram em Lisboa Violet, Salomé, e José de Andrada.

[166]

XII

Decorreu um mês sem que ao palacete da rua do Alecrim chegasse qualquer noticia de Villa-Feia.

Salomé partiu para o Mosteiro, a pretexto de visitar as propriedades e passar ali algum tempo.

José de Andrada recolheu á cama myelitico, dias depois da sahida da Artista.

Violet, á vontade, senhora da casa, deu-se a receber aos sabbados a velha collecção de hospedes, e mais assiduamente Manuel Brito de Miraz, da Folha da Noite, continuador do publicista das Horas Tôrpes. Em breve tempo se entenderam intimamente, o chronista e a inglesa. A fatalidade fez amante de Violet o mais crapuloso do bando que passeava os salões de Maria Peregrina. Horas tardas, se o chronista não apparecia, sahia ella a visitar os bairros suspeitos, trocando-o por fadistas.

Um dia chegou Peregrina, sem prevenir.

Violet correu a abraçá-la, e a saber da villegiatura em Villa-Feia. Achava Peregrina cansada, mas alegre.

—Então, muito conciliada com o sexo feio? perguntou. Era certo que Nuno podia [167]excluir-se da designação do seu sexo—pois que não era feio; e ria para a Artista, que a ouvia serena.

—É verdade, disse por fim, estive bem.

Nuno resume hoje para mim tudo! E eu a correr mundo á procura de alguem. Achei, sabes? A minha selvajaria amedronta-o, perturba-o; é um animalsinho, lindo de formas e docilidades, a submeter-se-me, a gostar dolorosamente os meus maus tratos, porque o maltrato, e a entregar-me, assustado, o corpo de raça, que veste naquellas horas uma alma de mulher e de lacaio. Ah! sei, afinal, o que é o amor...

Mas não sei porque lembro-me de que não pode durar a nossa felicidade... E por cá?

—O peor, informou a inglesa. Salomé foi quasi logo depois da tua partida para o Minho a tratar de negocios que me pareceram pretexto para sahir.

O monsenhor está no quarto, impossibilitado de andar, inutilizado por toda a vida, segundo o medico.

—Uma noticia triste—a do padre, disse Peregrina. A de Salomé nem vale discuti-la; chegou-lhe a nostalgia do Minho. Foi folgar as cirandas do Mosteiro, contar a differença que vae desta á sua aldeia.

Mas o padre, coitado! Vamos vê-lo.

E subiram as duas até aos aposentos do doente.

[168]—Então que tem, monsenhor? perguntou Peregrina da porta.

E, depois, correndo para elle a abraçá-lo, enxugando-lhe, commovida, as lagrimas:

—Não se excite, ha de melhorar...

—Não melhoro, minha senhora. Os milagres nunca desmentem a razão. O que fazem é escondê-la, ás vezes. Ora a razão contribuiu-me irremissivelmente com uma doença incuravel. Eu devia adivinhá-la. Tê-la como fatal derivação da minha vida.

Tenho o mal dos que passaram a vida a vibratilizar os nervos.

Ainda na oração e no culto vivi uma tolerancia que escandalizou os meus superiores. Como não havia de ser tolerante para os peccados alheios, se sabia, por experiencia, o que era o inferno e a penitencia de soffreá-los.

Emfim, aqui tem V. Ex.ª o mais acabado exemplar de miseria que podia recorrer á generosidade da sua nobre estirpe, a pedir a esmola dum quarto e dum talher.

Sou o index de faltas e excessos. Se algum dia escrever o romance da sua vida,—e creio que terá assumpto,—peço-lhe que se não esqueça de associar á sua peregrinação de mulher nobre, tão nobre que tem nos escudos symbolos de duas nacionalidades, a tragedia simples dum padre que batalhou deveres e nervos para vir acabar, miseravel, entre [169]grandezas—as que V. Ex.ª quiz repartir com elle. Pois que está em moda o romance social, não deixaria de representar bem o clero de duas Potencias historicas a desfazerem-se...

Maria Peregrina e Violet commoveram-se. A confissão daquelle homem, precocemente velho, a trasbordar amarguras, veiu aguar o enthusiasmo da Artista, que pensava encontrar nos amores de Nuno uma nova epocha. Quem é feliz ou imagina sê-lo quer ver em tudo felicidades. E magôa-se se os fados lhas desmentem. Mal encontrava palavras a consolar Andrada.

E vingava-se, prodigalizando-lhe cuidados, andando em volta delle a adivinhar-lhe os desejos.

—Quero tornar-lhe superfluos os movimentos, dizia.

Ha de ver:—quando pudér mover-se dispensar-se-á de fazê-lo. Terá a vontade confortada de preguiça, com pouca vocação para ordenar lidas.

E abraçava-o, carinhosamente, enquanto Andrada lhe beijava as mãos a chorar.

*
*      *

—Vou a casa de Nuno, disse ella a Violet, no segundo dia depois da chegada.

[170]Estou surprehendida com o socego delle. É de admirar que não tenha vindo. Está a abeberar os excessos de amor que trouxe da Villa-Feia.

Nuno recebia aquellas caricias duma sensualidade selvagem, medroso, de olhos baixos, humilde.

—É um exame de consciencia que naturalmente está a fazer. Tem medo de que não saiba dar-lhe impressões novas. Como é creança em amores. Mas vou educá-lo. Hei de pagar com usura os seus encantos de noviço. Vá, Violet, manda preparar o carro.

Um quarto de hora depois chegava ao palacete-Foz.

Nuno estava no quarto que communicava com o gabinete. Á hora do correio entrou o mordomo, segundo o costume; e, depois de entregar a correspondencia, informou que havia meia hora que Maria Peregrina esperava no salão.

—Ah! disse Nuno, admirado, porque não mandaste entrar?

E depois:

—Mas, não; como te não tinha prevenido... Olha, quando vier manda logo subir.

Mas não, depois falaremos ácerca das visitas. Convida-a a entrar. Já!...

E, confuso, levantou-se quando lhe presentiu os passos.

[171]Peregrina entrou, encarou-o a distancia, e, depois de curto exame, foi beijá-lo nas palpebras. Começou a cofiar-lhe o cabello, duma negrura luzente; ora o abraçava, ora o repellia...

—Então não recebes antes desta hora? Nem a mim que sou senhora dos teus nervos e posso subjugar-te num momento! Anda cá, deixa morder a tua boca! É um fructo de desejo...

E mordia-a suavemente.

Depois, afastando-se:

—Vae buscar aquella pelle de urso. Cobre o escudo dessa alcatifa. Extranha idéa—brasonar tapetes! Que os outros pisem os nossos brasões vá, mas nós! Deita-te aqui, minha creança.

E desabotoando o vestido côr de hortensia:

—Faze o mesmo que estou fazendo! Despe-te! Já!... Vê como as sedas da pelle do urso se levantam. E olha que são dum urso do pólo!

Nada resiste ao genio sensual!

E, de repente, enlaçou-o pela cintura, fazendo-o tombar, passivo e tremente, sobre a pelle branca.

A physionomia de Peregrina espectrava a alegria selvagem da louca, que, numa ancia [172]de luxuria, se preparasse para devorar o amante, depois de esfarrapá-lo.

A expressão de Nuno era de dor acceite. Lembrava um religioso a deixar-se maltratar, sorrindo aos cilicios, crente num ceu a apparecer!

De subito ergueu-se sobre o corpo de cobra da amante, e, num momento, desmanchou-o uma extranha furia; cahiu em coma, voltou a soffrer, sereno, o martyrio daquella mulher, cilicio de amor, simultaneamente divina e infernal, sagrada pelas fórmas e demoniaca no capricho das perversões! Até que cresceu, de novo, em tempestade; e, sobreexcitado, inconsciente, sacudiu-se em crise hysterica, e impelliu Peregrina, que tombou, exánime, ao longo da alcatifa...

XIII

—Quem é? perguntou a Poetisa, ouvindo a porta do gabinete, e suspendendo a escripta duma folha de papel que levava em meio. Não recebo a esta hora.

—Está lá fóra, informou Jacob, o sr. Miraz que pede para entrar; promette demorar pouco.

[173]—Bem, disse Peregrina, aborrecida, manda subir.

Miraz chegou, muito desmanchado, cumprimentou, abrindo a boca num riso enigmatico e sujo, e sentou-se, cruzando as pernas.

—Que deseja? perguntou ella.

—Venho propor a V. Ex.ª um negocio.

É um negocio que não deve parecer-lhe pesado. Entro nelle sem rodeios, pois que V. Ex.ª conhece o mundo, sabe o que é a vida.

Quando a necessidade entra pela porta, diz o proloquio, sae a virtude pela janella. Eu creio que nunca tive virtude para baldear da janella. O que tenho são miserias.

Mas estou de posse dum manuscripto que vale dinheiro. E digo que vale, pois que fui ver por quanto um editor o pagava. Offereceu-me vinte libras. Para editor é bastante; mas para V. Ex.ª vale mais.

Eu preciso dum conto de réis. A V. Ex.ª não lhe faz differença esta quantia e a mim aproveita-me. É uma somma salvadora. Verá que jámais comprou socego por tal preço...

—Mas de que se trata?

—A publicação vae intitular-se—Sapho em Lisboa. Insere episodios que V. Ex.ª especialmente conhece, documentados com uma carta do ministro inglês.

E desdobrando um rôlo de papeis:

[174]—Leia V. Ex.ª:—confio-lhe os manuscriptos, na minha presença.

Ella tomou o maço, muito serena. Leu a primeira folha:—era a carta de Broock, despedindo-a de casa. Viu algumas paginas com vagar.

—Onde e como obteve esta carta? perguntou depois.

—Permitta-me que não responda já.

É segredo. Posso vendê-lo tambem, mas caro, pois que interessa terceira pessoa.

—Esse segredo escuso de pagar-lho, replicou ella.

E continuou a ler. Passou algumas paginas e de repente disse, fitando-o:

—É uma historia incompleta, pessimamente feita. Não me perturba a idéa de ver praceados os meus delictos. Mas a historia ha de apparecer mais tarde, honestamente documentada e escripta.

Isto, accrescentou, é uma torpeza idiota. Vale, como documento para v., bem mais do que para mim. É um caso simples de chantage a illustrar a vida dum jornalista de terceiras paginas, tambem souteneur e ladrão! Está bem na Folha, enquanto não houver casas de reclusão bastantes...

—Pode V. Ex.ª pensar e dizer o que quizer. O que não quero é demorar-me; preciso [175]de saber se tenho de contratar o manuscripto com o editor...

—Demais, estupido... Então imaginava que eu, de posse desta carta, que é minha, lha daria sob qualquer ameaça ou violencia?

E, destacando-a, atirou-lhe com as tiras sujas do manuscripto, premindo o botão da campainha.

Miraz levantou-se, derrubou um pequeno movel que o separava de Peregrina e cresceu para ella, que amarfanhou a carta, preparando-se para defendê-la, e encarando-o num misto de arrogancia e nojo.

Elle deitou-lhe as mãos aos pulsos e ia a torcer-lhos, quando se abriu a porta e entrou o creado, surpreso.

—Põe lá fóra este velhaco! ordenou Peregrina.

Immediatamente o creado agarrou o chronista pela golla do casaco, arrastando-o ao primeiro patamar e fazendo-o rolar sobre a passadeira até á porta.

—Não o maltrates, avisou Peregrina, do gabinete.

Era ao tempo em que elle, já da porta, confundido com o tapete, bolsava para o alto os peores adjectivos da Folha.

Mas, sentindo o creado, sahiu rapido, tapando com as mãos grossas os rasgões do fato, esfrangalhado.

[176]Peregrina mandou chamar Violet.

Ella entrou, confusa.

—Vejo que déste pela scena. Leio-te na côr o delicto...

E mostrando a carta de Broock:

—Quanto recebias do conto de réis que elle queria por esta carta? Devias ter a melhor parte...

—Perdôa-me. Não lha dei, roubou-ma, num dia que veiu ahi ficar. É um miseravel. Pois que me faltava aqui? Dinheiro?!

Elle sim, era precisado. Imagina que o satisfazia ir ao Tavares commigo, cear. Só tinha comido lá seis vezes, confessou. Que miseravel! E sujo!

Oh! perdôa-me Peregrina. Não sei que loucura foi a minha. Estive a conversar demoradamente ácerca de ti. Contei-lhe, de boa fé, a historia da tua vida. Mostrei-lhe a carta. E elle, o miseravel, roubou-a quando sahi do quarto, á mistura com uma trancelim de platina e umas notas de banco que tinha na mesma boceta. Perdôa-me!

—Perdôo. Contudo, não podes continuar aqui.

O que succedeu foi uma fatalidade, mas eu dou por toda a indicação! Irás abraçar os teus. Tambem vou sahir de Lisboa, desta villa, com pretenções a terra civilizada e que só tem de civilização o peor:—alfobres de litteratos—genero-Miraz, [177]gafos de toda a ordem, a especular escandalos.

Vaes para Londres. Eu vou escolher um ponto retirado, á beira mar, esquecer-me...

Na mesma tarde conversava Nuno com a Poetisa, acerca dos episodios do dia. E combinavam ir os dois passar o outomno á Figueira, a viver o socego da praia, á hora em que os banhistas retiravam.

Nuno demoraria em Lisboa quinze ou vinte dias, a liquidar negocios. Maria Peregrina partia immediatamente.

XIV

—Porque és tu tão esquivo aos meus affectos, depois da convivencia que temos tido? perguntava Nuno a Ruy, sentados ambos num banco de azulejo arabe, no parque do Palacete-Fóz.

Vês a incondicional devoção que tenho por ti, como sei ouvir os teus casos...

Senti o prazer amargo das tuas confidencias:—os amores innocentes com Paulina, aos treze annos; e as luxurias de dois annos de collegio com escolasticos anemicos. Viste a cordura com que ouvi tudo—sonhos e miserias [178]adolescentes. Estimo-te como o destino te engendrou. Que prevenção é, pois, a tua contra mim? A cada momento sinto que me repelles...

—Sim, disse o Vagabundo, separa-nos a raça. Attribuo as mais das batalhas intimas aos fios de sangue nobre que me laivam o temperamento. Vejo mal as figuras de privilegio; como já te disse, só vivo os affectos que me não melindram. Não sei o que vale a amizade. Dou pelo interesse extranho, e raramente por uma ou outra figura de Belleza humilde. Propriamente culto não tenho por ninguem.

Nem sei porque, seduz-me o teu espirito, mas vexa-me o teu affecto. É um caso de sensibilidade que não apercebo bem. Mas não falemos nisso. Conta-me os teus delirios com Peregrina.

—Sei lá o que hei de contar:—amarguras. Tambem nos afastam razões intimas. Deante della, sinto-me abdicar de mim. Sou uma força que o seu amor explora. Goso e soffro segundo o seu capricho. Dá-me um amor que me faz ganhar a eminencia de sensualidades supremas, e me despenha, cégo, ás minhas fraquezas, onde tropeço com nervos e hysterias. Ainda bem que partiu. O mêdo que me causava!

Vou escrever-lhe a denunciar-lhe este mêdo e o proposito de jámais a encontrar. Dóe-me [179]a desillusão que vae sentir. Mas, deixemos isso...

Agora sou eu quem relega o assumpto que deste.

Canta alguma coisa; quero ouvir-te o Fado triste...

—Vá lá, disse o Vagabundo, tangendo a guitarra que levantára da extrema do banco.

E interrogando-se:

—Que lettra ha de ser? Será uma velha Cantiga, a ultima que me ouviu Paulina, em Villa Alva.

E, desviando os olhos de Nuno para os espalhar, num além de reminiscencias, cantou em voz branda, os treze versos:

«Senhora, partem tão tristes
Meus olhos por vós, meu bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguem!
Tão tristes, tão saúdosos,
Tão doentes da partida
Tão cançados, tão chorosos;
Da morte mais desejosos,
Cem mil vezes que da vida!
Partem tão tristes os tristes,
Tão fóra d'esperar bem
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguem»!1
[180]Nuno fixava, perturbado, o Vagabundo.

—Vaes deixar-me abraçar-te, disse quando elle acabou.

—Não, contrariou Ruy, esquivo e já de pé, entornando o olhar verde pela folhada mysteriosa do arvoredo...

É tarde, vou sahir.

—Espera um pouco.

E, dando por detonações, longe:

—Que é? Ouço barulho...

—Deve ser o desabar dum regimen, informou o Vagabundo. Já vês que não perdia o tempo enquanto conspirava pelas alfurjas, no segredo e abraço dos meus irmãos de crime.

—Ah! então conspiravas com essas figuras de patibulo com que ás vezes te via, ás noites, pela rua? Tenho prazer com a confissão. Não sabia que um artista, como és, podia tropeçar em coisas politicas, e suspeitava das tuas companhias. Pensava coisas peores...

O odio que me causavas quando te via encarar esses homens esguios, alvacentos, de torso recurvo, que o vicio planta nas esquinas, como postes de infamia, electrizando, vendendo-se á nevrose dos que passam...

Num dia em que o teu olhar se misturou no riso duma figura assim, senti gelar a alma, todos os sentimentos, no riso que te desafiou. Confundi-te com a larva que me pareceu essa figura...

[181]Afinal, não podia ser; tu não podias dar-te áquelles farrapos.

Mas intrigava-me, profundamente, o mysterio que encobria os teus serões.

Em que passavas o tempo? Era o que me perguntava em vão. Como havia de suppor-te a conspirar! Tu a urdires a desgraça dum regimen!

Vem cá, minha creança. Deixa lá os regimens. Elles são o que valem; e valem os povos que inculcam.

Os povos são como as mulheres feias; culpam os espelhos que lhes reproduzem a hediondez!

Alegra-te aquelle barulhar de cobiça? Não é um systema que tomba. É o desabar das monarchias do Ocidente, dos povos que ellas inculcam, das tradições que resumem.

Mas que vale uma tal quéda, se a Arte e os artistas ficam! Não teem patria as grandes memorias...

Ainda te entretens com a cabala publica? Para que? Qualquer quota de esforço que lhe dês te deminue. Comicios, revoluções, conjuras, que é isso? Que valem, que entravam?

Nada. Uma nação moribunda a fazer phrases...

Coincidencia curiosa:—sonhei esta noite que tinha ido ao Paço das Côrtes, que não servia já o actual regimen, mas um outro.

[182]Entrei. Havia deputados e senadores, escolhidos dentre a primeira gente e a ultima corja da nação—dispostos atabalhoadamente, pela sala, em Carrara, granito e gesso. Vi-me afflicto entre aquellas figuras de museu politico, que mal conhecia, com quem não queria privar.

A um canto barafustava um velho a elegia do Passado. Era uma figura moldada pelo tempo em granito e gesso.

Subito, vi mexer o busto do Propheta, que estava ao centro do salão,—nariz em bico de aguia, testa alta, repas finas e ralas. Jorrou dos olhos redondos de mocho velho duas columnas obliquas de negrura, desfranziu a boca de satyro, e falou assim:

—Nacionalidades! Patrias! mentiras de poetas...

Heroes são poetas de mentiras!

Systema latente é trapaça a chocar.

Videntes são loucos a sonhar, cegos vendendo luz!

A Vida é o que cada um quer. Só a Arte vale, a Arte, o fio-mestre da Vida!

Nacionalidades! Patrias!—mentiras de Poetas. Portugal! Hespanha!—Versos, trastes velhos!

—Não achas curiosa, Ruy, a coincidencia? E como no fundo o sonho é verdadeiro?

[183]Sabes o que vae ficar, provisoriamente? Quem vae governar?

Não sabes. Vae ser um arremêdo do Grão-Lama.

Não conheces, nem imaginas quem seja?

Vou explicar-te essa figura, já que não lês o Escriptor-santo, em cujas obras vem retratada.

O Grão-Lama é uma figura que os chineses conceberam perduravel, um homem eleito Deus por uma casta da China antiga, rodeado de ritos, uncções e virtudes, substituido cautelosamente, secretamente, apenas morto, por outro, semelhante em parecer; no nosso caso, sê-lo-á por outro semelhante em manhas, até que o Destino funda, providencialmente, embustices e embusteiros, em sacrificio a uma civilização por vir...

O Grão-Lama do Ocidente ha de ser um litterato que somme a idiotia das Academias, e tenha a presumpção da visão dos tempos, um misto de Bandarra e Gongora, prenhe de democracia e lettras.

Se era esta a figura que trabalhavas...

—Sei lá para que trabalhava. Sentia necessidade de privar, já te disse, com os meus eguaes; não se foge ás affeições que o Destino impõe. A affeição é do Destino...

O Destino pode ser a Raça. De politica nada sei, nem quero saber. A Raça mandou-me [184]suppurar na Politica o odio innato, viver na loja secreta a miseria intima.

Ahi tens a razão da minha solidariedade com as revoluções. Sou affim de todos os que odeiam!

Ha pouco discorrias suspeitas sobre as minhas fraquezas. Exquisitos reparos! Que direitos podes arrogar-te para discutir-me? Convenho que repugne a tua Arte a minha predilecção pela Belleza humilde, que me discutas como artista... Mas aventar alto suspeitas, a generalização das minhas miserias! Nego-te esse direito!

Em todo o caso, quero dizer-te que, no momento, curo, sobretudo, de vingar principios, e, no numero das liberdades que batalho, entra a liberdade do Vicio. É a prevenção do doente, que não sabe bem onde os nervos, a educação e as taras podem arrastá-lo...

Adeus, Nuno!

*
*      *

No dia seguinte, passeava Nevogilde no gabinete de trabalho.

Parou por momentos deante de um contador, e esteve a afagar um gomil esguio e depois as curvas puras de dois boiões, pó-de-pedra, [185]esmaltados de flores de linho. Volveu a passear a diagonal da sala, e foi junto da secretária premir o botão da campainha.

Veiu um creado.

—Ainda não chegou o mordomo? perguntou.

—Veiu ha instantes.

—Que appareça, immediatamente, a falar-me.

Minutos depois entrava o mordomo.

—Tão grande demora? Recommendei-te pressa!

—Ah! sr. Conde, estava a ver que não dava com o paradeiro do sr. Ruy. Que mais valera não trazer noticia alguma... Sei quanto V. Ex.ª se interessava por elle! Coitado...

—Está doente?!

—O sr. Ruy, informou o mordomo, morreu ha poucas horas... Cahiu ás primeiras balas das tropas fieis, junto ao monumento da Restauração, na Avenida, entre os revoltosos...

XV

Maria Peregrina, que chegou á Figueira muito fatigada e doente, no começo de outubro, foi installar-se na pequena vivenda de Mira-Mar,—á extrema da cidade.

[186]Passou os primeiros dias num torpor de contemplativa de quem mal dá pela vida externa.

O mirante e os alegretes de Mira-Mar eram pontos de vôo á sua imaginação triste para um paiz de bruma, que nem bem sabia onde era, e, a bem dizer, só existia em si propria.

Esse paiz era ella mesma, nevoenta como o espirito que o creára para si.

De Mira-Mar avistam-se as terras barrentas do Cabo Mondego, morrendo na agua, o lindo casario da serra, branco e religioso como um systema de ermidas, bellos poentes, tudo o que o abraço do mar e da serra pode dar de grande, como expressão de paisagem voluptuosa.

Do Mirante distingue-se, nitida, a linha do Cabo, que lembra as navalhas recurvadas que usa a gente do norte, e em que o mar figura como uma lamina, resplandecente de sol, a certas horas.

A Cidade, rica de luz e notas imprevistas, é das que mais convidam a noviciar amores.

Mas Peregrina, crestada pela vida, muito oxydada de alma, passou os primeiros dias do outomno recolhida numa rememoração de si propria, que nem o mar, nem toda a belleza da terra seriam capazes de delir.

Havia uma grande affinidade entre ella e o tempo. Reflectia o outomno na sua physionomia [187]de sombra, vincada de traços melancholicos, que signalavam uma belleza de occaso, especie de imagem de marfim antigo, vivendo o seu crepusculo de idolo abandonado...

Aquella physionomia, talhada em sombra e chamma suave, não era já o involucro, a mascara; era a mulher toda,—a alma a esbater-se em luz de outomno.

Na segunda quinzena de outubro fez-se-lhe no espirito alguma trégua.

Sahia, ás tardes, a percorrer a praia, embevecida no scenario discreto da linda terra de pescadores.

Aves marinhas andavam aos bandos, misturando o som rouco da sua voz á voz da agua inquieta, e esvoaçando sobre o mar que parecia uma geleira arada, muito riscado de fitas brancas, ondas regulares, certas, espreguiçando-se, com volupia, numa luxuria rhythmica.

Quasi toda a adolescencia morena da praia, afrontava nua o mar, confundindo a sua carne côr de mel com as vagas serenas daquelles restos de oceano.

E Peregrina, de olhos fitos naquellas formas, batidas pelas ondas, vivia então sua belleza em massa, irmã em amor dos bronzes que para ali boiavam doidamente, sentindo na alma aquelle mar, aquelles corpos humidos e macios, tudo...

[188]Ia ao outro lado numa bateira branca aos areaes de Lavos, muito sensivel á musica dos remos, espadanados por dois moços fortes.

Tardes côr de graphita.

Era á hora em que as gaivotas, as rôlas e as negrelas põem accentos circumfléxos na tarde, limitando a altura, num sob-ceu de asas.

Passava horas nas praias fronteiras á Figueira, esquecendo-se, até se deixar dominar por aquella belleza de chromo, vivendo as cambiantes do ceu de outubro, duma belleza intima e serena.

Nuvens côr da terra accrescentavam o Cabo até ao sol, que primeiro se projectava em amphora de luz, e depois morria numa brasa, a boiar no mar.

Já noite, tomava um remo, ao lado dos moços da bateira, e ahi vinham todos, muito certos e irmãos naquella labuta embaladora, de olhos fitos no pharolim, que se ergue entre o Mondego e o Oceano—um polyedro verde que lembra um pedacito de mar-esmeralda, gelado, para nortear noctivagos da agua.

Nalgumas tardes ia até á explanada, junto do Forte, para sentir a maré contra a muralha e avistar o recolher do sol.

Passava o tempo a ler as côres em que se dispersava o dia, as tonalidades roxas que preparam a passagem para a treva.

[189]Marcam a extrema do Cabo o casario da mina e o pharol alçado em redoma.

Noite alta, mandava o pensamento em derrota pela agua, e figurava-se a passear por entre as arcadas da mina ou pelas escarpas do fim da serra.

Vieram as chuvas e as primeiras tempestades.

A Figueira, no verão tão cheia de luz, veste de escuro o outomno. Abrem os dias num ceu de cinza que pouco e pouco melancholiza os campos.

Rompem-se em agua a cada hora nuvens de chumbo, enquanto o vento revólta a paisagem, arremessando, escramalhando as pedras, a areia e os ramos.

Em tardes de granizo e trovoada, quando os elementos se assanhavam, Peregrina recolhia ao Mirante a vivê-los de perto, emparedando-se ahi como num biombo de vidro.

A tempestade, aquella agua batida, a dispersão electrica do fogo das trovoadas, davam-lhe impressões que ella casava aos estudos de sua alma em desarranjo.

E, então, nostalgica das tardes da Grecia, procurava viver uns trechos do passado; e, fazendo do Mirante uma réplica do Templo de Amor, mandava vir adolescentes dos mais formosos, fundindo-se com elles numa tempestade esteril ás tempestades de fóra.

[190]Juntavam as vozes em orpheão, cantando as modas creadas pela toada undisona da bahia. Tudo ali condiz:—a voz das aves, o canto rouco da marinhagem, a surdina do mar.

Mas os arrancos da trovoada abriam clareiras naquella toada de porão, pois que as creanças a suspendiam a espaços, agoirando castigos.

Os relampagos, que pareciam abrir o vidro em letras chinesas, quebravam em linhas de fogo contra os bellos corpos de topazio.

Havia sempre na ronda um predilecto com quem Peregrina trocava especiaes lascivias...

Illuminada pelo fogo duma paixão inconsumivel transfigurava-se, fundindo a alma em corpos eleitos, que vestia de delirios em dispersão de beijos. Beijos mudos, impressivos como a alma que os mandava, parecendo romper a seda-lacre dos labios que os praticavam...

No entanto, as dansas continuavam, como um pretexto de enleio daquelles corpos atarantados, rematados por faces pallidas, esbatidas de penumbra, de risos brancos e gelados, inculcando o torvelinho a que se entregavam por mero capricho duma artista louca.

Ia para o mar num yacht oriundo dos estaleiros de Portsmouth. Vivendo na attracção dos perigos, sahia de preferencia em horas [191]de tempestade, pondo á prova a coragem dos companheiros, em geral ephebos.

Era em dias em que o mar respira fundo, erguendo-se em violencias de desejo.

As ondas, que na praia são rolos brancos, morrentes em torvelinhos de catarata, tomam na barra a expressão aguda de fundos verdes, quebrados, de garrafa, esfarrapando cambraias.

Seguia o yacht, côr de turqueza, desenhando letras de alphabeto liquido, mysterioso.

E Peregrina, irmã pela alma daquelle tumulto verde, ia afogando pensamentos no remoinhar de agua em desespero.

O barco, ora arremettia contra as ondas, despedaçando-as, ora as subia, suavemente.

Se subia, era arfante e lento, num rumor de dyspneia que attingia o alto daquellas cordilheiras de agua. Ao descê-las, quasi cahia de chofre, sacudindo e batendo os corpos da tripulação extranha.

Cada onda que partia espiralava alto camarinhas de leite que morriam num veu sem côr.

Nos postos, os da tripulação systematizavam o trabalho aos signaes do mestre.

E Peregrina da camara roxa de crystal, que simulava na amurada uma amethysta, ia seguindo e vivendo aquellas violencias, anesthesiando-se [192]em ondas de som, crente de que uma tal instabilidade a destinára, para o seu caso, o Deus das almas que lhe pedem esquecimentos.

Animava-se a barra, e havia lugres, escunas, a solicitarem para terra a intervenção da pilotagem.

Peregrina, que conhecia o significado das côres, lia de prompto as bandeiras alternadas nas barcas, senhoreando-se do programma de manobras.

Seguia com interesse aquella faina á procura de incidentes, aliás vulgares.

Assistia ao arranco das ondas, despedaçando de raiva os troncos de corda que atavam as barcas aos rebocadores. Interessava-a o espectaculo das suas refregas.

É então que a marinhagem se méde com o mar, e amargura suas intimidades, gosadas em marés suaves...

As ondas empoadas, atravessando as barcas, em doceis de espuma, quebram dentro os seus abraços. Enquanto estas, escramalhadas, apparecem, desapparecem, nas differenças da agua, que ainda ha pouco era planicie e logo se abriu em sulcos de quebrada e montanhas de cordilheira movediça.

Segue a labuta da marinhagem em litigio com o mar.

As tripulações enxergam ao largo leguas [193]de terra; e, apesar de correrem perigo de abalroarem, não se vêem.

Lançam os do rebocador a nova amarra a cada approximação das barcas; e a amarra, que fluctua ao acaso um traço de oiro, colleia, desmanchada, as cristas das ondas que a retorcem, simulando enguli-la.

A meio da faina, passada entre um cyclone de odios e orvalhos transparentes, ha grita da tripulação. Mas esta desordem é suggestão do mar. É a voz de quem vive o elemento, syllabando forte, em ondas roucas, a linguagem da agua.

Afinal, lá vingam atar de novo a amarra. Sôa o grito aspero da sereia do vapor, abrindo notas de falsete na tempestade.

E as barcas, uma a uma, lá vão transpondo a barra.

Se a tempestade acalma, ceu e mar invertem-se nos tons:—o mar simúla uma caixa azul, em que o ceu branco, fofo de brumas, tampa o espaço.

Chega a noite, passando a sombra as figuras tragicas dos maritimos. Aves longas flecham o espaço em traços rectos. Patos bravos, em bandos negros, como gondolas á ventura, regressam ás aguas fundas.

Peregrina regressava ao caes. Era á hora em que os lampiões dos molhes zebravam de luz a ultima agua.

[194]A Artista ia a sahir ao molhe do nascente, junto ao candieiro roxo.

E era ahi, áquella luz de alecrim, sob o docel mysterioso do arvoredo, que despedia os companheiros, recolhendo cedo e só a Mira-Mar.

*
*      *

Recebia cartas de Nuno de quando em quando. E escrevia-lhe todos os dias.

Elle, sem coragem para dizer o seu tormento, mentia por cobardia, e ainda por amor della.

Contemporizava. Ella, sentindo as sombras da antiga tristeza, curava de illudir-se, enchendo o tempo com passeios, e ritos de velhos cultos. Chegaram novas de Lisboa e do Mosteiro.

Helen tinha resvalado ao ultimo degrau da torpeza, fugindo do marido para ir viver num pateo com a Manola, marafona e bebada.

O marido pedira transferencia para uma legação de inferior classe e sahira penitente das vergonhas da mulher.

A Salomé dava-lhe parte do casamento proximo. Resvalára aos braços do lente Amaro, avido de cevar a sensualidade erudita naquella [195]loira de carnes brancas e pennugentas, e prompto a embolsar os duzentos contos que tinham ficado dos Pamplonas, em terras e inscripções.

Maria Peregrina via fugir tudo o que a prendera, á excepção de Nuno.

Mas, ao mesmo tempo que sentia o correr dos dias, via avisinhar-se, cada vez mais, a antiga melancholia, uma tristeza que mal explicava.

Uma tarde, conduzia pelo braço, segundo o costume, monsenhor Andrada até o eirado eminente ao mar.

Seguia-os Jacob com duas cadeiras leves, fechadas.

O ataxico movia as coxas com esforço, atirando ao acaso as pernas de fantoche, dondas como travesseiros de moinha. Sentaram-se os dois, o padre muito amparado por Peregrina.

—Sabe, disse esta, que escrevi ha duas noites o meu testamento? Posso morrer breve...

—Suggestões da minha miseria, disse o monsenhor. Eu hospédo metade da morte. Sou o caixão de metade do que fui. V. Ex.ª a pensar em morrer, uma creança! Isso é para os velhos e doentes, como eu.

—Engana-se. É tão facil morrer, sobretudo quando temos o culto da Morte! Entendi [196]que devia empreitar obras posthumas. Vou dizer-lhe a minha ultima vontade.

E, desdobrando três folhas de papel azul, leu:

—Eu, Dona Maria Peregrina Alvares de Lorena e Villa-Verde, filha de Dona Maria de Lorena Eannes de Castro e Villa-Verde e de Dom Antonio Alvares Muito Nobre Leite Moniz de Sá, natural do Mosteiro, cidade de Guimarães, resolvi fazer o meu testamento pela forma que segue:

Primeiramente elévo a alma a Deus, sagrado em si e nas minhas desventuras; foi reflectindo-o, que soube sentir a majestade do Infortunio. Que ninguem cuide dos meus funeraes; o Acaso os cuidará.

Dos bens de fortuna disponho assim:

Lego o usufructo de cem contos de réis ao antigo prior do Mosteiro, Monsenhor José de Andrada, presentemente em minha companhia.

Á sua morte passará este capital para o meu procurador José Lourenço.

Lego o usufructo de cento e cincoenta contos ás minhas antigas condiscipulas Helen Green, residente na Mouraria, em Lisboa; e a Violet Ioung, actualmente em Londres.

O capital passará á morte da ultima para a administração de Petersfield, Inglaterra, que pelo seu juro creará uma aula de musica com [197]a designação—Instituto-Edgar, destinado a adolescentes musicos.

Lego cincoenta contos aos creados que me servirem ao tempo da minha morte, e vinte e cinco contos ao anão teutão Jacob.

Finalmente, instituo minha herdeira a cidade de Coimbra para que liquide a minha fortuna, resto das maiores casas da Peninsula, e faça construir uma grandiosa Escola de Arte grega com a designação—Parthenon do Ocidente, tendo na fachada os symbolos heraldicos de Portugal e Castella, cujos desvarios e sangue represento.

Haverá annualmente premios para os dois adolescentes mais bellos do Parthenon. Serão eleitos pelo collegio dos alumnos da Cidade. O premio destinado ao alumno designar-se-á—Edgar, em homenagem a um antigo companheiro de Petersfield; o outro chamar-se-á—Helen, em memoria do meu antigo culto por Helen Green.

Faço meu testamenteiro a D. Nuno Alvaro de Sousa e Villar, IIIº Conde de Nevogilde, natural de Traz-os-Montes, escriptor, actualmente em Lisboa, a quem offereço as minhas obras, á excepção do Poema que vou urdir, e desejo fique no Archivo do Parthenon. Na sua falta zelará as clausulas deste testamento a Municipalidade de Coimbra.

(Segue a approvação, e assignatura das [198]testemunhas e testadora. Foi rubricado nas tres folhas).


Quando Maria Peregrina acabou de ler, o padre soluçava.

Ella passou-lhe a mão pela cabeça encanecida e disse-lhe num sorriso triste:

—Chora, antecipadamente, a minha morte?

—Não: abençôo em V. Ex.ª a mulher sagrada por toda a especie de tortura. É preciso ter soffrido para subscrever um testamento assim. Sou insuspeito. Irei adeante para informar o Ceu dos peccados dos honestos, e das virtudes da relapsa. É preciso pecar muito para ser bom... Mas quando tivesse de ficar, não podia receber o que V. Ex.ª me lega. Apesar de condemnado segundo a Egreja, considero-me da Egreja. Sou frade. Não infringirei o voto da pobreza. É tão facil ser pobre!...

Emfim, uma herança recebo eu, que essa não ma veda nenhuma religião,—os carinhos que V. Ex.ª quer protelar além da morte.

E soluçava, abalando a cadeira leve.

Na extrema do eirado, Jacob, de pé, firme, numa mudez de esphinge, fixava o olhar amarelo-metal sobre o collo alto de Peregrina. E dos seus olhos de azeite, exiguas lampadas de altar-mór, expedia filetes de luz duma melancholia lubrica e mortiça.

O padre e Maria Peregrina conversavam.

[199]

XVI

Certa manhã lia ella, sob os loureiros, uma lenda escandinava.

Era uma lenda triste e prophetica, como o genio do Norte. O vento ramalhava as pernadas secas de louro, crepitantes como ralas. A paisagem era dum roxo delido, melancholica como a lenda, como Peregrina.

Chegou Jacob com a correspondencia. O sol, até ahi hesitante, desappareceu, mysterioso.

Peregrina encarou a altura. Depois, descendo a vista, pareceu-lhe vê-lo na salva de oiro que Jacob segurava, com as cartas.

—Deixa ver! disse impaciente.

E apartando a de Nuno pela letra:

—Leva o resto.

O anão expressou um rictus novo na physionomia de pergaminho, sublinhou o olhar de bilis com um riso branco, e sahiu a caminho do alpendre.

Maria Peregrina abriu a carta, sobreexcitada, nervosa. Leu-a, releu-a, espectrou os mais desencontrados movimentos de alma, e quedou, muda, por muito tempo, a olhar para as pernadas secas de louro, mysteriosas, crepitantes...

[200]A carta, dizia:


Peregrina:


Repugna-me continuar a mentir. Não posso mais procurar-te. Beijo as ultimas palavras da tua carta, que denunciam um amor que jámais alguem teve por mim. Mas o proprio enthusiasmo desse amor me atemoriza, ao mesmo tempo que me lisonjeia. Eu sou a contradicção de tudo—de mim mesmo. Acquiesço com a razão aos que me querem; mas só amo os que me desprezam...

Tu comprehendes-me se olhares para dentro de ti, porque, fundamentalmente, somos eguaes. Cada um de nós é o abysmo de si proprio.

Chamavas-me outro dia, no amor dos maiores delirios, o teu Phaon. Ah! como eu visto de razões o proceder do desejado da antiga Sapho! De razões, quero dizer, de fatalidades:—o amor nada tem com a razão. É o Destino, a loucura. É o Deus e o Demonio que temos em nós, rompendo livres, indifferentes aos nossos gosos e torturas. É a fatalidade a entrudar com o sentimento.

Ao despedir-me de ti, não tenho uma palavra de conselho. Nem sequer insinuo que te consultes a ti propria.

A vida está acima e abaixo dos superiores, [201]noutra esphera. Pois que somos a essencia della, alando-nos pela Dor, não podemos entreter esperanças com expedientes. Tratar casos de supersensibilidade com as cabalas que a vida fornece o mesmo é que utilizar a materia a remediar queixas da alma, no fundo a aggravar dores insophismaveis.

O mundo tem revolvido tudo. E, contudo, a sua especulação erudita ainda nem sequer chegou a converter em dogma a Liberdade moral.

Nós, que ha muito conquistamos esporas de oiro na Desgraça, é que sabemos até onde pode ir a nova sciencia por crear—a Philosophia sensual.

É que vivemos na consciente e superior ignorancia do que somos. Para mim, passou o tempo em que acastellava illusões...

Presumo que seja um pouco do que reflicto nos livros—um museu de bellezas mutiladas. Tu eras irreprehensivelmente perfeita no conjuncto bizarro das degenerescencias para que me pertencesses e te pertencesse. E jámais gosei soffrimentos como os que me deste nos teus abraços!

Ah! porque me não matou o delirio das nossas hysterias, quando nos confundiamos na folhada exotica da Villa-Feia!

Ha pouco me interrogava eu ácerca do teu amor, do nosso amor...

[202]Fui ver-me ao espelho. Encontrei a sombra do que fui na adolescencia.

Reconheci o rapaz de ha dezeseis annos, tratado pelo tempo.

Vi ainda nos olhos a negridão da minha antiga virtude atarantada, imprecisa, a procurar o ceu na continencia, e a sophismar sensualidades na oração; volvi-me ao tempo em que fitava os idolos com os olhos da carne, gosando-os com a alma, lubrica de sonho...

Sou o mesmo mysterio sensual, medroso e desequilibrado:—reflicto, impotente, num mar de desesperos, um mundo de desejos.

Tu soubeste exaltar estes desejos, assaltar-me, de chofre, os nervos, vibratizá-los...

Mas foi então que dei por forças intimas, que augmentam os meus receios. Sei lá se ainda tenho nervos á espreita! Que seria de mim?...

Põe na imaginação braseiros de incendio, brancuras e frios de nevada, asphyxias, essencias de requinte, torturas e suavidades religiosas, harmonias bizarras de harpas, psalterios e violinos, saltos macabros de demonios intimos, visões, o Ceu, o Inferno, e terás uma parte do que me fizeste descobrir áquem de mim, da minha fraqueza.

Eis um pouco do que tecia o extranho do nosso viver...

Mas não poderemos mais encontrar-nos!

[203]Perdôa a sem razão destas linhas na logica duma razão que sinto pelos effeitos, mas que não apercebo bem:—a tal fatalidade que nos juntou, a fatalidade que nos afasta.

Adeus, Peregrina! Esquece-me!


Nuno.



Passou uma hora, sem que ella se levantasse.

A manhã sangrou uma chuva miuda, por que mal deu, occulta pela ramaria, abstrahida dos caprichos do tempo, numa contemplação dolorosa.

Veiu um creado lembrar que era a hora de conduzir o monsenhor, que recolhia do alpendre.

—Lá vou.

E sahiu a dar o braço a Andrada.

Dahi a momentos caminhavam os dois, collados e oscillantes. A distancia, mal se extremava o doente.

Symbolizavam as carcassas de dois poderes que o habito juntára, e agora sommavam fraquezas...

No poente, uma nuvem escorria agua. Do norte, o arco-iris desdobrava as sete côres. E o povo dizia, sahindo ás portas dos casaes:—É Deus que está de bem comnosco!

[204]E levantando as mãos:

—Louvado sejaes, Senhor!

E Maria Peregrina, em blasphemia suave, encarando o arco:

—Deus em alliança com os homens, nesta hora, que ironia!

*
*      *

Sahiu de carruagem, demorando cerca duma hora. Ao chegar, o trintanario desceu do coupé varios embrulhos, que levou ao Mirante. Peregrina conversou por espaço de três quartos de hora com monsenhor Andrada. Depois abraçou-o, commovida.

—Só nos veremos tarde, disse, vou escrever...

Ás quatro horas tomou uma refeição leve, e avisou:

—Que não vá alguem interromper-me. Vou trabalhar.


Noite alta, trepava Jacob pelo gradil do nascente, que cerca o Mirante, ganhando o peitoril da janella, fronteira ao Mondego.

Sobre um pequeno bufete Renascença, pousava um pergaminho mal enrolado, que pendia até meio da armação boleada.

[205]Jacob, confundido com a noite, cauteloso de que as trepadeiras que vestiam o Mirante barulhassem a sua presença, quedou, numa estabilidade de simio mal accommodado, esgarçando os olhos á procura de Peregrina.

Ella estava de costas para elle, que a via, mysteriosa, mexer uma mascara, de applicação desconhecida, vasando ether sobre pastas de algodão.

Pelas frestas da janella, xadrezada, mal collada ao peitoril, sentia Jacob o aroma estonteante do liquido extravazando.

Subito, viu-a deixar o contador alto, e recostar-se sobre um canapé João V, cujo estofo côr de brasa lhe illuminava a figura marfilenea, vincada de sombras. Recuperára a antiga compostura fidalga.

Os traços de amargura, que lhe tatuavam a physionomia, não lhe venciam a raça:—era a mulher fraca, simulando força. Tinha o aspecto de quem despreza a vida, cumpria o destino.

A sua figura desbotada, mantinha-se como num tablado, por dar contas a si propria. Nem vigilias, nem dores haviam conseguido deminui-la.

A artista parecia vigiar a mulher.

Preparava-se para morrer. Mas o instincto, e o habito da Belleza, velavam a sua figura estatual, suprema de altanaria.

[206]Ondas fluidas, forças aeriformes, enchiam aquelle quadrado de crystal, em parte opaco pelas folhas das trepadeiras—agora leve como uma asa. Tudo ali parecia voar...

Ella, diaphana, duma transparencia de visão, segurava numa das mãos a mascara que tinha como que á espera, do mesmo passo que applicava ás narinas brancas compressas humidas de ether.

E a boca, da côr das farripas do algodão, delia-se em risos de madrugada, expressões de sentimentos sobrenaturaes.

O ether, fluindo livre, parecia vagá-la pelo espaço; arrebatá-la pela altura.

Mira-Mar era já uma camara alada...

Subito, sentiu um repelão forte na janella estreita do lado do Mondego. E, a seguir, outro, que lhe partiu a fecharia, escancarando-a.

Uma lufada de vento dispersou, rapida, aquella atmosphera de morte e sonho. E Maria Peregrina, como voltando dum mundo de nevoa, encarou, somnambula, o anão, que cavalgava, audaz, o peitoril da janella, com a cabeça rente á ogiva.

—Que fazes? perguntou, numa voz de surdina, que parecia magoar-lhe os labios de lirio pisado.

—Venho impedir que te mates. Concede-me esse direito. É o direito de quem abdicou [207]de tudo, desmentiu até hoje a raça, passando de nomada a escravo muito de vontade.

Eu sei que tens tido amarguras... Ainda esta manhã elle tas causou, a ponto de resolveres esta loucura.

Estamos sós. Deixa-me falar á vontade. Era como exigias que te falasse quando sophismavas o amor commigo. Não é o anão, o rafeiro quem fala. É a alma que a natureza acobertou num corpo infame; e que, no entanto, abençôa a sua forma só porque ella foi alguma vez bem possuida.

Na logica dos teus desejos eu fui o histrião e o tapête. Tudo. Até mulher dos teus amantes!

E ria, num riso de metal.

—Hoje, do mundo só te acceito a ti. Cabe na minha humildade o maior rancor.

Dizias que vestia animo de lobo em pelle de ovelha. Pouco me importa hoje que me descubram o animo.

Odeio quasi toda a gente; e, sobretudo, o odiava a elle que, recebendo-te corpo e alma, te vexava e me vexava, tratando-me como um farrapo. Como era immundo!

—Cala-te! Vae! Quem te permittiu a entrada? Quem te permittiu que viesses discutir Nuno?

Não te condemno; a tua intelligencia é inteira de maldade...

[208]Acredito o que insinuas—que se serviu de ti! Que mais vae que se servisse elle ou eu?

A materia é una, percebes? As almas é que são differentes.

Pois que os superiores não encontram as almas que procuram em corpos bellos vão até vasculhar as dos monstros...

Não pudeste comprehendê-lo. Foste o demonio, a vibora enroscada, que elle, o desvairado, tomou por uma flor exotica e quiz colher...

Deixa-me! Sáe! e apontava-lhe de novo a janella.

—Espera, olha que estive ha poucas horas com elle!

E ria, numa contracção de possesso.

Has de querer novas, vou dar-tas.

Mas, antes, quero contar-te um sonho. Sonhei a noite passada um crime!

A imaginação da noite vestiu-me o somno de delicto. E eu não tomei o delicto como pesadelo, senti-o como um bem...

Ris-te da exiguidade do meu corpo! Pois não imaginas como é grande o odio que arrasta! Pois que sou o avesso dos felizes, o animal corrido pelos sobejos do bem, sinto-me a expiação de extranhos crimes, e é por horas tardas que o instincto do delicto surde e me embriaga em sonhos de morte. A noite [209]é a camara escura onde revelo os perfis tragicos das victimas, que são todos, menos tu!

A noite passada foi elle! Estavamos na Villa-Feia. Lembras-te do eirado que domina o Ribeiro de Cobre? Foi dahi que o vi comtigo, daquella Eira de Vidro, donde tanta vez espreitei os vossos enleios, duma luxuria que eu sentia cá em cima, esporeado por infernos de ciume. Vós estaveis sob o docel fresco e branco das magnolias...

—Cala-te! mandou Peregrina.

—Ah! não queres que fale; calarei as novas que te trazia delle...

Não acreditas que tenha estado com elle? Affirmo-to, juro-te. Juro? Como hei de jurar, se não tenho religião alguma!?

Creio que sou o unico assim, em todos os mundos. Até o diabo tem a sua, pois que é proprietario do Inferno, precisa tambem de cabalas para explorar, negociar almas.

Eu nem inferno tenho!

—Jacob! se sabes alguma coisa de Nuno, dize. Mas não me atormentes.

—Vou então completar o sonho.

Eu beirava o eirado da Villa-Feia, encostado ao galho, meio podre, meio florido, dum medronheiro de muitos pés de altura, testemunha dos meus zelos. Subito, o ramo partiu, e o Destino precipitou-me sobre os dois, sobre vós. Tu mergulhaste na agua suja do Ribeiro [210]de Cobre que foi rapida levar-te ao Douro, que no dia seguinte era mais de oiro, correndo como um grilhão immenso para o mar, conduzido por força mysteriosa. Horas depois, eras o Mar!

Elle ficou na minha frente, mudo e estupido, como a Innocencia que o Destino empreita para fazer mal.

Foi então que, desesperado, o retalhei com uma lamina que recebi do momento. Quem ma deu? Ninguem...

Talvez fosse prenda do Destino que lhe deu a elle a passividade que te servia e me despenhava!

Certo é que lhe bebi o sangue, inundei-me delle, sentindo-me afogar...

A vida partia, ia morrer. Phantasiava já um cortejo de velhacos, conduzindo-me ao cemiterio dos criminosos em Plootzenseel. E eu a pedir-lhes que me levassem no cofre de ébano das tuas joias, aquelle cofre onde uma vez me meteste, a rir...

E a um gesto della:

—Espera! Depois acordei; foi para cumprir o sonho.

Encara-me bem! Assim...

Os sonhos são avisos do Destino. Esta manhã recebi recado para ir falar-lhe.

Fui. Simulei a antiga passividade.

Aprazamos o novo encontro á beira-mar, [211]junto ao Forte, perto da gruta. Era ahi que o fidalgo queria ainda usar o farrapo!

Vinha cevar-se, immundamente, no monstro, contratado pela amante para servir os dois!

Mas enganou-se. Em Villa-Feia, dobrei-me a todo o enxovalho da sua vileza, porque elle era uma parte de ti propria. Eu era o teu escravo; servindo-o, servia-te:—entreguei-me.

Mas aqui, depois de despedir-te, de te enganar, commeter a abjecção de me preferir a ti, que vales um mundo de Belleza! Era muito, era mais do que tentar a Deus porque era tentar um monstro!

Ah! elle não sabia, os grandes como os infimos não sabem, o enigma que a fealdade encerra!

—Que fizeste, Jacob? implorou Peregrina. Dize!

—Que fiz?

E encarando-a a rir:

—Cumpri o sonho; adquiri uma lamina com que sondei o coração que te affligiu e me vexou.

Lá está na areia! Ficou-me num abraço...

Sinto ainda saudades do sangue que lavei para vir falar-te.

Bello noivado na praia, o do monstro com o fidalgo!

[212]—És a fatalidade! disse Peregrina, correndo a abrir o Mirante. Não podias faltar ao ultimo acto da minha vida.

És a imagem do monstro que fui tanta vez!

A nossa distincção está em que eu puz a indifferença onde lançaste o odio.

Vejo entre nós o corpo branco de Edgar, tatuado de fios roxo-lirio. Vejo-o, tão lindo! Elle perdoou-me, o Destino é que não...

E, rapida, num passo incerto, sahiu do Mirante, desceu pela azinhaga guardada de louros que lhe embaraçavam o vestido côr de pervinca, e caminhou ao longo da estrada de Buarcos, que se desdobrava em fita pelo Cabo, listrando a noite.

Parou; ia errada.

Voltou-se; lá estava o pharolim do Forte.

Era ali que o morto quedava, dissera Jacob. Até lhe parecia ouvi-lo, de longe, a chamá-la! Estugou o passo; tinha pressa de vê-lo, de senti-lo.

Desceu á praia; correu sobre a areia côr de zinco, pintada do luar.

A distancia seguia Jacob, como uma sombra.

Era a madona duma Cathedral a silhuetar um monstro!

Fixou, ainda de longe, o morto. Abrandou o andar, como quem reconsidera... Depois, [213]foi-se approximando num passo miudo de alvéloa receosa.

Elle estava deitado de costas, membros abandonados, descomposto, numa nudez de ephebo, morto mysteriosamente á beira da agua.

Os olhos de vidro, salientes do caseado das palpebras, muito abertas, lembravam os dum santo de capella pobre—contas escuras de camandulas, despedindo traços rectos de suavidade.

Era serena a sua face livida, irmã da luz daquella hora, mal cortando o luar.

O peito era de seda crua, côr da camisa aberta em sanefa.

Floriam-lhe o seio glabro redondos signaes vermelhos. Cada punhalada era uma tulipa de sangue.

Peregrina ajoelhou.

A areia phosphoreava luz de sonho, irradiações de phantastica pedraria...

Ella esteve a mirá-lo com uncção de penitente. Curvou-se a procurar os traços de luz vaga do seu olhar de vidro.

Depois olhou em redor como quem acorda ao ruido de passos que não espera.

Era o anão que andava á volta delles como um cão somnambulo, atado a um baraço imaginario, preso á tulipa semi-liquida que marcava o coração do morto...

[214]—Que fazes, bandido? perguntou ella. Podes ir! Já me não perturbas. Segue o Destino!

Erra, segundo o espirito dos cães do teu sangue. Apprende como se transmuda a missão duma raça! Vae dizer aos teus a suavidade das nossas taras e amarguras. Se o genio teutão as comprehende!...

—É cêdo, volveu o monstro, como falando comsigo.

Peregrina voltou a encarar o morto. E, de repente, como batida de luxuria, começou a agitar-se num esvoaçar de aguia tonteada, envolveu-o no seu olhar de treva, falou-lhe, sacudiu-o, afagou-o, até que cahiu sobre elle, mordendo-lhe os labios de camelia pisada, lubricos de morte...


O mar tinha sobre a madrugada uma rhythmica extranha. Parecia ter recebido dos rios e das fontes, que xadrezam a prata a paisagem portuguesa, uma melopeia gemente de melancholias...

As ondas evolucionavam mysteriosamente, encapellando-se ao rhytmo das proprias queixas. Já duas vezes o mar tinha circuitado a renda aquelle grupo, duma selvajaria suave.

Á terceira investida, Maria Peregrina solevou a cabeça, numa atitude de quem trata com o mar como irmã.

[215]Era a descendente de heroes, a desafiar novas fainas e conquistas, agora para além da terra, para além do mar...

Era a Artista a medir a morte, superior á terra, maior do que o mar! Veiu uma onda enorme. Surdiu, ao longe, como um Pegaso, de asas e crinas crespas, requebrando a sua anca azul través a praia.

Maria Peregrina, que a viu, levantou-se a esperá-la. A agua quebrou junto dos dois num lago de saphira. Ella impelliu o amante num carinho de noiva; e esteve um momento a vê-lo partir entre um roldão de cambraias...

Veiu uma segunda onda. Espatulou na areia uma lingua de agua, foi até á muralha do Fortim, e refluiu, volveu ao mar, chovendo os restos em orvalho de pureza.

Peregrina, que sentiu a onda abrir-se atraz della como uma concha liquida, deixou-se impellir, avançou com ella, e foi mergulhar na resaca da primeira vaga que a esperava com o morto.

E seguiram os dois...



Na areia estava Jacob, fixo como o deus Termo dos campos, numa serenidade inquietante.

Quando as ondas remoinharam os dois corpos num funil de espumas, a sua physionomia [216]visajou infernos, como se partisse, interiormente, elasticos que tivesse a arrepanhar-lhe o carão alvar. Trepou como um gamo a escarpa do Fortim, arregaçou as palpebras, parecendo rebentar os olhos de azeite, numa tensão de myope que tenta ver, que quer ver...

Fixou a primeira agua, muito attento ás flores de neve, hydranjas de espuma em que as ondas se volveram; depois o mar fundo. Nada! Tinham desapparecido! Olhou mais, esfregou os olhos, e olhou ainda... Fixou ao longe o vago liquido daquella massa immensa.

De repente, como quem encontra o que procura, illuminou a physionomia da sua faceira glabra num sorriso de idiota manso, que se foi abrindo em riso brando, e mais, e mais, até que lhe distendeu as maxillas, num gargalhar continuo...

Desceu, vagaroso, as primeiras desegualdades da gruta, depois tombou, num novello, levantou-se, descreveu a curva de terra, fronteira á linha de agua; e, a correr, em gargalhar parallelo ao som rouco das ondas, seguiu o desenho da bahia, a esparsar a loucura em movimento, e sempre a rir, a rir, num cascalhar pavoroso!



Era manhã. Um lençol de nevoa intensa vestia as armas reaes do Forte. O tempo concedia [217]aos mortos um lucto branco, um lucto áparte!

Tudo mudára. O mar, ainda ha pouco azul e branco, fez-se rapido em campo glauco.

Era uma larga esmeralda de agua. Nem a antiga côr, nem a velha altanaria!

O ceu, pouco antes zebrado de vermelho e oiro, côres heraldicas de Castella, cerrou em nuvem de sangue.

Só ao longe, para os lados da Grecia, uma nesga de azul delido rompia suave, como para informar que os Deuses velavam os mortos que haviam de resurgir com a velha Attica!




O mar toava a mesma musica extranha...

Enquanto, do outro lado, rente ao Fortim, e eminente á escarpa, um moço marinheiro cantava. Era um maritimo trigueiro, de olhos de velludo e noite, guardados por pestanas longas, que desciam, mysteriosas, como gelosias, voz de levada, corpo flexuoso de ephebo da beira-mar, a reflectir nas linhas a belleza inconsciente dum Povo...

Pleno dia.

E a sua alma dolente, côr dos olhos, a desgarrar, em voz de levada, a Cantiga triste do vate-fidalgo:

[218]Commigo me desavim:
Vejo-me em grande perigo!
Não posso viver commigo,
Nem posso fugir de mim!
Antes que este mal tivesse
Da outra gente fugia:
Agora já fugiria
De mim, se de mim podesse!
Que cabo espero, ou que fim
Deste cuidado, que sigo
Pois trago a mim commigo,
Tamanho imigo de mim.2

[219]

ADVERTENCIA

O rôlo de pergaminho, meio desdobrado sobre o bufete, em Mira-Mar, continha, em letra muito bordada, semelhante á dalguns manuscriptos do seculo XVI, o ultimo canto de Maria Peregrina—Elegia da Morte.[220]

[221]

ELEGIA DA MORTE

POEMA RELIGIOSO

Este Poema é o preludio da Morte, annuncia a Libertação!

Pela primeira vez, depois duma travessia longa, accidentada e rude, venho repousar á sombra do que fui, sonhar alto o mais do que tenho occultado.

O sentimento,—a minha primeira consciencia,—tem-se gasto no mais exhaustivo conflicto—um conflicto dolorosissimo entre o instincto proprio e a mesquinhez alheia.

Houve em mim desequilibrios enormes tendentes a perturbar-me. É que nem sempre a alma se satisfez com os recursos da materia; o corpo foi algumas vezes o involucro imperfeito da grande alma que arrastava.

Quantas vezes ella pretendeu subir, ganhar altura, do mesmo passo que o corpo lhe pautou vôos mesquinhos; e, quando lhe deu [222]amplidão,—lances arriscados, triumphos dolorosissimos! Sempre a materia a entravar tudo, o pêso a embaraçar o vôo.

Eu fui como os zirros que vivem nas fendas dos rochedos. Vivem alto; a raça impõe-lhes vida alta e por isso a natureza lhes deu asas largas e pernas excessivamente reduzidas. Vôam, mas não andam...

Com a seguinte differença contra mim:—o meu ninho fê-lo o Acaso cá em baixo. Ainda subi e desdobrei as asas em linhas de boa desenvoltura. Mas o Destino trouxe-me quasi sempre, misturada com aquelles que teimavam em ser da minha casta; quando a verdade é que meus semelhantes, affins pela alma, encontrei poucos. Atravessei a vida procurando alguem, uma figura rara que o Deus dos bons tivesse sorteado em meu favor. Encontrei figuras talhadas por medida que não era a minha. E ainda hoje não perdôo a Deus que me tenha dado altura excessiva e camaradas infimos.

Permitti-me toda a perversão, se perversão é amar a parte bella da materia, index da Belleza pura, sem o preconceito de sexos, sem preconceito algum...

Quizeram que me lavasse na moral de toda a gente, afinal em agua suja; reagi. Fugi á fraqueza de vencer-me; e, fortalecida pelo instincto, dei-me ao temperamento. Creei uma [223]vida nova, a vida-conflicto entre as aspirações supremas e a bruteza da materia.

Tive de roçar por almas que lembravam a lixa grossa. Excepcionalmente encontrei espiritos brancos em corpos bellos. Os corpos mais brancos e mais bellos guardam quasi sempre almas mulatas, incaracteristicas, pessimas.

Vi-me constrangida a amar simples creações,—as minhas creações. Na impossibilidade de amar as creaturas como ellas eram, dei-me a estimá-las taes como as suppunha. Menti a mim propria, por servir a sensibilidade. Ha mentiras nobilissimas! Mas, em regra, os homens mentem por espirito de trapaça, de torpeza.

Sou um espirito religioso. A primeira razão da minha fé foi a religião de minha mãe, que a tradição me transmittiu. Mas ella era um temperamento puro, suave e bello na accepção simples destes termos.

Eu herdei as taras, as predilecções, os requintes de todos os que me precederam.

Sou uma figura complicada, conseguintemente a minha religião não podia ser a sua.

Evolui com os nervos, a educação, o temperamento. Descubro-me a todos os symbolos, pois que tenho para mim que elles se fundem num Deus de Belleza que começa a surgir, dentre a confusão, aos poetas, aos artistas.

[224]Creio no Deus de todos os cultos, embora aborreça a liturgia que o occulta. A alma deu-me um cerimonial differente. No fundo, um cerimonial de amor, ineffavel...

Alei-me em vicio. Ia comprar quartos de hora daquelle amor ás ruelas onde se vende o Nu, o contacto, onde a intelligencia e o genio da Carne se expandem na belleza fresca da adolescencia.

Sou um firmamento de perversão.

Os meus vicios estrellam fatalidade,—caminhos de luz pela treva azul...

Luz intima, discorrendo fados de amargura e magia. Duros fados! Excedi a Nana, a Manon, a propria Sapho,—todas as mulheres sagradas pela Desgraça!

Fui o genio da Luxuria, parabolando amores...

A sociedade escorraçou-me. Quando o meu talento brilhava, ella, de mãos nos olhos, ia vingando a luz que eu derramava, pregoando as abominações a que me entregava.

Perversos e estupidos, ouvi:

—Tenho a consciencia de que a vida sensual que tenho reflectido é uma derivação fatal e religiosa dum poder occulto que me tem dominado e impellido.

Talvez, por isso, tenha pisado os lupanares com o respeito devido aos templos...

O prostibulo é, tambem, um Templo; a [225]sensualidade uma religião, uma grande e ineffavel religião, o culto immenso do Amor, para além dos ritos, dos mil preconceitos dominantes. Mas, a despeito desta consciencia do Destino, desta razão de talento e de sangue, sinto-me vencida, desilludida.

Cancei a imaginação no encalço de creações precisas á minha razão sensual de existir.

A sensibilidade de que fui dotada não me permitte que espere o fim de toda a gente. Debalde o tentei.

Sinto necessidade de viver em outros mundos. A podridão brilhante que me atormentou a vida vae compensar-me de bens que presinto marcados para além desta valla de torpeza honesta.

Cumpri; não posso demorar-me: basta de conflictos com o semelhante.

Esta lucta é inacreditavel a quem a não viveu. É o conflicto da idéa pura feita Arte, sensibilidade, sentimento, contra a bruteza do temperamento medio.

Quantas vezes afoguei commigo miserias, casos exoticos dum capricho cruel! Embriaguei-me de dor, daquella dor que á volta de mim cachoou desgraça—um mar de fatalidades, para que ali naufragasse.

Afrontei este mar ás braçadas. E nesse Atlantico de verdete, absintho de amarguras, com phosphorescencias tenebrosas me fundi eu [226]toda, alma e corpo, para batalhar e seguir, louca, ora encapellada contra a penedia immensa das praias malditas—as que os homens povoam, ora espraiando-me, numa gaza de mysterio, sobre doirados areaes, suave, ternamente, como um mar vulgar em horas mansas.

As ondas deste mar foram os meus sentidos:—um infinito de sentidos, os que se attingem pelo estado sensual...

Alcancei pelo sonho uma vida vallada e circumvallada de sombras.

Fui a somnambula, soffrendo e amando pesadelos que me eram dolorosamente gratos.

No mar de sensualidade em que me afundei, em que muitas vezes me solvi, tive horas de sêde, duma sêde obsessora, horrivel! Era o desejo inconsumivel, a febre, a chamma eterna duma aspiração de raça condemnada pela grossaria dos outros.

Chamma eterna, de certo, pois que falo por mim e pelos temperamentos que no passado choraram em silencio horas que tenho repetido, e pelos superiores do futuro, figuras talhadas pelo Destino para continuarem a Dor!

Coisa horrivel é roçar o semelhante e proximo!

Entre mim e os desgraçados para quem falo, aquelles que entornam as suas lagrimas no silencio—medeia a minha coragem, um ousio que os passados não tiveram, que talvez [227]os futuros não tivessem sem este exemplo...

Este mundo, que estimei com amizade amorosa, ousando transformá-lo num mundo affectivo, parece-me, á hora deste inventario, obra posthuma, uma ilha de cães vadios, malditos, em saldo de contas com os raros que sahiram a perturbar a sua orchestra de alegrias.

Miseravel exercicio...

A Belleza é una no seu abraço colossal de todo o concebivel e concebido.

E só para ella deve viver-se. Os superiores começam a sentir aquella unidade, na fusão das linhas puras, em toda a obra da materia donde vôe o espirito. Venus e Apollo têem um significado conjuncto; são provas de Belleza que se completam e ajustam numa synthese que o super-sensivel realiza.

Sensualizar a vida, descobrindo fontes novas de prazer e dor, transformá-la num mundo de alma, tal a faina suprema dos apostolos da Belleza.

Myopes e inferiores, ouvi!

—A liturgia em que geralmente resumis o appetite genesico chega para a vossa felicidade, basta aos vossos instinctos, porque a alma vos cabe dentro dos orgãos que vos inculcam o sexo.

Vale uns minutos abjectos o vosso amor...

[228]Nós amamos tudo e sempre. O Amor é para nós a razão unica da Vida.

Por isso Wilde, o condemnado, cantou ternamente o amor dos monstros e das flores; casou os homens com os habitantes imaginarios dos bosques e do mar, e expiou na prisão o delicto de ter gostado tudo, amando e cantando a symphonia das linhas, a intelligencia da Carne, a liberdade da alma!

Quando será a libertação collectiva? Sei lá! Fecho os olhos e perco-me a memorar a fileira interminavel das victimas. Quando se realizará a grande paz no Amor? Talvez nunca... E quem sabe?

Wagner, o mais genial revolucionario do mundo, pretendeu fazer do Universo um canto.

Assombrosa concepção se a completarmos! Exultemos, sobretudo, a Sensualidade, no mais largo significado, no bem infinito que é. Cantar é amar. O Rhythmo das coisas é a expressão sensual do mundo em vibração, a orchestrar, a melodiar o Amor!... Amemos tudo.

Nesta hora de dor agradabilissima, sinto-me inclinada a amar o proprio odio que inspirei—o odio que me votaram e o desalento que o Destino me distribuiu em bem da Morte.

Os philosophos serenos são em regra mentirosos.

Contra Maeterlink affirmo que ha uma fatalidade interna que domina e rege os actos [229]dos homens. A forma suprema da justiça é a Bondade. Mas esta forma, acceite pelo conceito medio dos eleitos, está sujeita aos entraves, ou causas de erro duma força inferior a que imprecisamente chamamos temperamento.

Um dia, na adolescencia, percorria, sózinha, um atalho. Senti barulhar a folhagem num carvalhal murado. Espreitei, e vi, ao abrigo duma lapa, o ultimo acto duma tragedia unica. Uma creança, que podia ter nove anos, acabava de matar outra de cinco! Aproximei-me. A criminosa segurava uma lamina, encarando, attenta, a victima.

—Que fizeste? perguntei.

E ella, serena:

—Não sei, ouvi uma voz que disse:—mata a tua irmã. E eu, que móro além, fui a correr buscar esta faca. Não sei se foi Deus quem mandou... Já está morta?

E sorria, espectrando na lamina o Deus suave das creanças...

A victima era um bocado de marfim e oiro, abandonada no chão, entre a serguilha grossa do vestido, a borbotar do peito alvo cravos de sangue. A outra parecia uma mulhersinha, de olhar quebrado, bandós escuros, face de cobre e sombras, typo de cigana enlouquecida, duma serenidade arrepiante junto ao delicto innocente!

[230]—Não sei se foi Deus quem mandou... dizia.

Seria, penso. Que Elle ás vezes capricha em desnortear os commentadores. Queria as duas creanças; e, por isso, ensandeceu a mais velha que despedaçou a outra como o faria a uma rosa...

Assim alou as duas. Foram quebrar a monotonia do sagrado mundo, pintalgar o Ceu de riso e loucura!

Abracei a innocente que pouco depois vestia de afagos um cordeiro branco que mamava de joelhos, rente á mãe.

Como comprehendo hoje a força duma tal voz, que tutela o genio, o crime, perversões, loucuras...

É a voz da alma a ordenar. Não sei se a voz de Deus!

Quando confronto os actos communs da vida com aquelles que me perturbam, vejo que o meu genio não é uma acuidade da intelligencia—é um mysterio emocional.

Deus reparte-se pelo genio creador dos artistas, e revive o poderio nas suas dores. É por elles que accrescenta o Bem, ampliando a geographia do Ceu com o Mal, ainda contra os da sua Egreja. Mas estas provas produzem as maiores tempestades da alma. E é facil ainda aos mais fortes succumbirem.

[231]Eu elevei-me pela Dor. De mim desfiro melancholia, torturas, suavidades...

A Dor foi a minha Arte e teve um largo apprendizado. Primeiro percorri os museus, dando-me a reconstituir, segundo o meu genio plastico, as bellezas mutiladas,—isto para apprender a ler as linhas, coisa mais difficil do que ler os folios.

Depois apprehendi toda a perfeição, e sensualizei a forma. Fundei em Athenas o Templo de Amor,—um Paço de Luxuria. Havia ali um tracto sagrado, a Sala sensual, que me abrigou loucuras suaves, e tempestades de goso, duma nevrose sacudida e bemdita. Nesta sala, vestida de crystaes, concavos e convexos, duma asymetria e desarranjo de cháos, gosei dezenas de corpos alvos e morenos, que desenvolviam nus as curvas das sereias, em danças desvairantes. Tenho no peito o abraço dessas esculturas enleadas, marmores de innocencia e vicio, corpos sagrados pela pureza ideal da fórma. Se attentava aquella seara de carne, batida pelo temporal duma sensualidade abençoada, eu era o suão morno que beijava e confundia os lindos fructos.

Fui a haste exotica, o joio genial que, afrontando a seara, colhi a sua belleza e fui colhida.

Se alongava a vista ou a quebrava sobre os crystaes, descobria as nossas almas, ricas [232]de imprevisto apocalyptico, desencontros de grotesco, curvas complicadas pelo genio do Feio, atrophias, que eram as sombras dos monstros soberbos que os lindos corpos abrigavam. A minha sensualidade redobrava, e eu, apertada ao corpo moreno ou branco dum principe em Belleza, mergulhava o olhar nos espelhos, que nos espalmavam, engrandeciam, ou afilavam, e vivia aquellas silhuetas e amava nellas o monstro que era, os monstros que eramos!

Fóra, alternavam-se collecções de harpas, violinos, psalterios, e orpheões cantando a Vida.

E os jorros de luz esparsa através dos crystaes de côr, esbatendo-se em manchas de esmeralda, roxo-e-oiro, banhavam de melancholia aquellas notas, deixando suppor que era a Luz que as cantava!

Gosei soffrendo; soffri gosando. Pratiquei actos que foram além de mim; uni-me a corpos de creanças; tive contactos, commercio de sensualidade com os mais bellos adolescentes.

Fui anjo e fera, mas fera de asas que partia ás travessias da Ventura, sem liames, sem programma, viuva de preconceitos. Troquei pela intimidade com poucos as devassidões, os respeitos, a consideração vulgar dos chamados homens moraes, seres aleijados pela [233]grossaria do costume. Mas muita vez o temperamento me chamou a definir-me.

Dahi a predilecção pelos dois adolescentes de Petersfield, e a razão do mais entranhado sentimento de amor por Nuno, essa figura passiva da minha loucura, que admirei em sua lassidão.

Ah! depois das nupcias com o morto de Petersfield e das vigilias com Helen, ninguem me deu ainda a elevação da Dor-prazer em que elle me afogou, nos afogamos...

Mas todas as sensações que me deu eram afinal acasos da sua carne abençoada.

Approximei-me daquella alma que me pareceu transparente como a agua dum ribeiro.

Era geada insoluvel, crystal espelhante, mas denso, que contrafez dolorosamente a minha doce imagem amoral.

Tal qual o que succedeu um dia a um insecto, corpito de esmalte e oiro, que se esforçava por beber os diamantes que trago a calçar os dedos...

Nem eu pude solver á força de amor aquella agua congelada, nem o pobre insecto, sedento, poude mover as duras joias a que se deixassem beber, liquefazendo-se.

É que almas assim são como os diamantes; têem a bruteza dura da Fórma-fixa. Solidificaram as primeiras impressões; cortam, sem se [234]deixarem cortar; são a maldade bella, a estupidez da Plastica!

E é ainda esta sua negação que requinta o culto que lhe voto.

E era a repulsa da sua alma pela minha que lhe quebrava o corpo em hysterias de goso!

E foram as lubricidades que lhe dei, numa prodigalidade de millionaria em exotismos, que o afastaram...

Como a alma é grande em capricho! Que mysterioso é o genio da Dor!

E os semelhantes a pretenderem transformar este Valle de Lagrimas em Valle de Risos, a inventarem palavras, abjecções, religiões de Força, de Alegria, de mil coisas que são a expressão pretenciosa da sua ignorancia magoante!

Que gerações as de hoje! Nem obras, nem instinctos!

Vontades de cera, gibbosas de subserviencia, nem a Morte as eleva!

Infimas creaturas!

Almas assim denunciam esteios molles...

E como odeiam o culto da plastica sensual! Se o não percebem... É o horror dos selvagens pelo Mysterio. Peor do que isso, pois que estes adoram o que não percebem. Ha na natureza ingenua do barbaro instinctos [235]de salvaguarda e cautela para a Belleza desconhecida.

É que a Belleza basta-se, por si se impõe, ponto é encontrar bondade em que se esteie.

O que mal pode é deixar de abrir conflicto com a Biblia burguesa, balizada em dois preceitos: impor ao homem a conquista do pão, á mulher a dos filhos. Uma e outro se juntam, mercê de liturgias que enchem codigos e cartilhas...

Fim primeiro da união, afinal da Vida—a familia, a juncção pelo casamento de gente em que os chefes escravizam corpos e vontades!

Ah! foi o meu erro, rir de taes deveres. Não se foge impunemente da carreira.

Como haviam de ver-me bem as mulheres de ventre cheio,—obesas de divindades, ou fructos de maldição, se eu era o seu avesso?

Ellas deformavam-se pelo goso limitado.

Eu sensualizei toda a Belleza, illustrei a côres novas a Vida, sacrifiquei a dor vulgar de ser mãe á dor suprema de crear pela Arte a segunda alma dos seus fructos.

Podia agitar-me em sofreguidões de prazer, collar o corpo franzino a homens que se alternassem no mister de fecundar, dar á sociedade filhos em vez dos meus tormentos de Arte. Podia. E, se as creaturas com quem commerciasse amores tivessem a marca de maridos,—a [236]sociedade receber-me-ia. A sensibilidade impôs-me uma liturgia propria. Amei a esmo. E destes amores sahiram os livros que por ahi correm,—paginas luxuriantes a reconstituirem horas duma tortura celeste e diabolica.

Livros são filhos. Os meus são-no tambem da Luxuria, duma luxuria extranha...

Assim a Nova Sapho e, sobretudo, a Emparedada.

Estas obras, a que uma élite concedeu foros supremos, fluctuam uma nevrose que a sociedade odeia.

Não fui um pousio. Fecundei á minha maneira. Mas para produzir, crear, exigi uma liturgia complicada, reflectindo-a ousadamente.

Ingenuos! Ha fructos e fructos.

Que horror a tudo o que é extravagante!

Porque foi Christo enorme?—tão grande que projectou a maior sombra divina que um homem tem projectado!

É que o genio universal o derivou de Maria de Nazareth sobrenaturalmente, sem a macula do peccado original.

É filho duma virgem da linhagem de David e de muitas religiões liadas pelo genio indico.

Só assim podia ser o Homem-Deus—encarnar e representar a Divindade.

Quer dizer, o genio universal, innato, postergou [237]as relações vulgares quando quiz filhar alguem que fosse um Principio.

—Sabeis bem quem foi Christo? Foi Aquelle que no mundo soube vestir de grandeza a Humilhação; o mysterio deste poder é ainda da sua Divindade.

Todas as obras de genio, filhas da excepção, têem de ver-se áparte.

Interessae o vosso religiosismo na grande obra de Belleza que annunciei.

Porque as minhas obras são profundamente religiosas. Como todas as obras definitivas. Ultrapassam-me:—fui o pretexto dum poder que simplesmente apercebi.

O genio é a intelligencia tocada do sobrenatural.

Fecunda, pois, além da razão.

Lembro-me do papel da intelligencia quando urdia aquellas obras.

Era a escrava duma força desvairante que a superentendia e obrigava fóra do sentido commum, á mercê dum capricho que era a teia-mestra de tudo...

Assim tambem no desenrolar de intimas paixões.

Não sei se poderia recuar, remeter-me ao vulgar, entregando-me á Moral, como a sociedade a pratica. Creio que não. Mas quando pudesse fazê-lo, não o faria.

E ahi está neste mesmo juizo um traço de [238]tutela extranha, pois que a sensualidade como a Arte que pratiquei só serviram a marcar-me de relapsa, emparedando-me! Sou para toda a gente a desprezivel Sapho, alma e corpo de monturo. E isto porque não acceitei o phalansterio commum, e pratiquei o amor lesbico.

Ora a sociedade não quiz receber-me assim.

Logicamente, o publico condemnou as minhas obras.

Tinha a obrigação de dar talento que não excedesse o estalão perro da sociedade em que vivia!

O meu prejuizo para o grande numero foi mostrar-me toda, dar-me a ler a uma sociedade inferior. Entornei a alma nas paginas que teci dolorosamente, sensualmente.

O publico não sentiu essas paginas, nem sequer as percebeu. Peor para mim como mulher; mas ascendi como Artista.

Este desacordo é a nossa differença em elogio da minha sensibilidade, posta á prova em todos os sentidos.

É grande esta differença?

Quanto maior fôr, maior sou. Quanto mais afastada estiver da minha geração, em geral do meu tempo, mais alta é a minha figura.

Quereis saber ao certo o que vale? Medi o espaço que vae da idéa média á minha Philosophia de Arte.

[239]Esta Philosophia resalta, clara, dos meus versos—moldura propria duma sciencia nova que elegeu principios grandes, como sejam,—a bondade, a sensualidade, a fatalidade do temperamento, a Liberdade da alma dentro de cada homem, salvo o acordo dos espiritos affins.

O Contracto social de Rousseau, que passa por obra de genio, veiu afinal, sacrificar a liberdade individual á alma collectiva.

Quero o inverso, o avesso dessa lei: a limitação do poder social pelo individuo; que os medios e os rudes cedam aos grandes as regalias que lhes são demasiadas, que não cabem na sua inferioridade.

Porque ha de ser millionario o pobre de alma? É bruteza permitti-lo, como tambem o é sanccionar as miserias dos superiores, assentir em que sejam ermos de bens os ricos de Espirito.

Em materia de sensibilidade cada vez me allio mais á minha desventura. Vivo a ultima hora na admiração e amor do que fui.

E é para que os eleitos vivam ao menos uma hora assim que lhes predico:—entregae-vos ao instincto, ao temperamento, ás taras.

Haveis de soffrer? Claro. Mas o soffrimento é das formas mais voluptuosas de goso; ponto é que a abnegação e a acuidade o aproveitem. [240]Não tendes mais do que entregar-vos ao acaso. E o acaso é tão intelligente! Tanto quanto o cuidado é estupido!

Inferiores, a vossa felicidade é uma trapaça.

Superiores, acima! Corações, acima! Dae elasterio á Alma, subi!

Quereis ler um grande livro, o expositor maximo dos grandes preceitos da união livre a derivar á fusão no amor? Está em toda a parte. É a Natureza que interpretaes mal.

Vinde áquella janella. Quero ensinar-vos a ler uma grande pagina.

Além, para lá daquelle renque de arvores mais crescidas, está uma planta brava. Ha de ser enxertada ao morrer do inverno. Nasceu na mata; transportou-a o capricho de um camponio áquelle pomar. Parecia fadada a dar filhos bravos, fruta desprezivel; pois vae ser fecundada pelo garfo nobre duma arvore de linhagem (tambem as arvores têem genealogia e foros fidalgos) e dará em breve tumidos pomos.

Vêde aquella roseira, sustentando rosas de tres côres, resultado de enxertias diversas. Amou e fecundou segundo uma liturgia variada; o Acaso deu-lhe ainda enxertias que falharam, pois que os garfos exoticos morreram depois duma justaposição de dias, porventura [241]mais terna e sensual do que a justaposição fecunda. Bordam o Mondego lindos laranjaes: ide ver como o homem accrescentou Deus, juntando no mesmo tronco raças differentes. Ha, por vezes ali, filhos do mesmo abraço, todos os pomos em que o Divino pôs liga de oiro.

E o vento lá balouça tudo, laranjas, limões e limas, um phalansterio em ramos, num contacto que elles, os lindos fructos, aproveitam, sensualmente.

Ha naquella roseira amores incestuosos. Pois as suas rosas são tão bellas como as das outras roseiras.

Attentae o jardim! Vêde como as flores se collam em beijos de lascivia, quando o vento, animo do tempo, as vaga—como se roçam suave ou tempestuosamente, segundo as marés!

O rosal parece agora, reparae, um mar encapellando-se em ondas sensuaes, num rhythmo religioso, perfumado...

Se vos alcançou a graça do grande sentido da Belleza, attentae bem nas flores:—São a essencia em fórmas,—o perfume em petalas.

Soberbo espectaculo! Lembram assim o amor das freiras nos conventos, enlevo das esposas de Deus,—sonhado, fremido por entre incensos e preces...

Ha naquelle canteiro algumas já fanadas, desfalcadas de petalas, sem viço.

[242]Vêde como procuram o contacto das mais novas, como se activam a explorar a belleza adolescente dos botões gomosos.

Como a fraqueza da edade as pende a fortalecerem-se de vicio, na carnação das mais novas! E ellas lá se lhe entregam, com enleio e graça, generosamente, cumprindo a lei maxima—a Lei da Bondade, que é do instincto. Quem o não entende? A alma grossa dos estupidos, os que arrancam as papoilas da seára, irados de as ver entre os esmaltes dos trigaes.

Que lhes importam os grandes bens da Terra—a Côr, a Fórma, o Perfume?... O ridiculo em que me têem, só porque hei cantado a alma do rochedo, a symphonia da linha, a perversão sensual, fonte da Morte, e, conseguintemente, o melhor elo da Vida, pois que solda o corpo á terra, a alma á planta, fundindo o Universo numa confusão sublime!

Pobre terra que dá videntes cegos, como Milton, e não dá vista áquelles a quem deu olhos. A Vida é a immortalidade pela transformação, religiosa no seu movimento, sempre patente e actual. Mas considerar parcellas de vida é não ver; peor—ver mal.

Nada mais fallivel que o mundo dos aspectos. Acceitemos a Vida como ella é—profundamente metaphysica, religiosa. Eu vergo-me ante o facto positivo do meu genio que o arranjo [243]universal systematizou ao poder, e a toda a fraqueza creada e por crear. Deus resume a Vida. As minhas fraquezas, as fraquezas de todos os superiores, são a sua ampliação infinita... Ninguem póde definir Deus com precisão. Está em tudo, mas só os raros o sentem, dão por si, portanto, por Elle.

Mas, se o vocabulo Deus tem um synonymo, esse synonymo é Amor. Amor universal, entende-se, sem leis, sem peias, segundo o instincto, á discrição e diversificação de cada ser.

É claro que este não cabe nos evangelhos, nas cartilhas. O homem de prazeres restrictos não pode sentir o que de si revela de Universo, de Infinito...

Este Amor lembra o Puzzle, jogo inventado pela nevoenta Inglaterra para tratar o spleen patricio.

Imaginae um xadrez, em que as pedras se destinam a construcções enormes e cujo arranjo leva dias, mêses!

Pois a Vida é um Puzzle de numero colossal de peças, com parte das quaes só Deus joga.

É ainda Elle quem torna o jogo interminavel, infinito, baralhando, accrescentando, substituindo as pedras... Tudo passa ao rhythmo do arranjo universal.

O homem segue, em geral, suave e indifferentemente. [244]Só o Artista desfranze um pouco o cortinado de nevoa que o separa de Deus, para o ver de longe, ajoelhar á sua inconsciente majestade, buscar alentos á sua jornada.

Pois que Deus existe nas paginas ingenuas de Bernardes, e nos livros satanicos e genialmente rebeldes de Annunzio,—curve-nos ante Elle, o Deus clementissimo, que contrasta almas tão apparentemente oppostas.

A ingenuidade luminosa do frade e as paginas luxuriosissimas do italiano, que creou para uso da alma um maravilhoso novo,—tudo é de Deus e para Deus, tudo é Deus!

Que ninguem soffreie o temperamento. Ha um crime maior do que o commetido para com a liberdade do semelhante: é o que commetemos contra a nossa liberdade.

Dêmo-nos ao instincto. Só a continencia é delicto. O instincto é fundamentalmente bom, as leis é que o teem pervertido.

Accusam-me de defender toda a casta de luxuria, de dar nas minhas obras a resultante mental daquelles defeitos—uma philosophia negativa, dissolvente, e muito na logica dos meus desejos inconsumiveis.

Que horror o dos meus juizes! Não veem que é esta sensibilidade a mais a fusão de tantos sentimentos, esta synthese amorosa que a minha alma comprehende, que vem acabar [245]com as distincções inferiores, que geralmente demarcam os actos da creança, do homem e da mulher!

Segundo a Physiologia pondera no homem a razão, na mulher o sentimento, na creança o sentido.

E é isto verdade no que importa á apreciação do typo medio.

Como é um facto, que é a edade de transição—a da vida adolescente—a que põe maior acuidade e interesse no mesmo typo,—o typo medio.

Sou a mulher superior. Por isso mesmo o temperamento me não demarcou fronteiras. Junto na alma os encantos, dores, vida sensual, ingenuidades, fraqueza e forças da creança, da mulher, do homem. Como no apologo das varas, a intelligencia dos dois sexos, considerada em conjuncto, ultrapassa o valor das parcellas em desencontro.

A minha obra tem tambem a ingenuidade da creança, a acuidade da mulher, a razão do homem, sobretudo a uncção, a grandeza, o vago genial da alma collectiva. Sou a synthese. Excedo o super-homem, sou a essencia da propria humanidade, na comprehensão e realização transcendente do Espirito Universal, em Deus.

Sou a super-sensivel!

A minha bondade acceita, em pé de egualdade, [246]o amor idealista de Santa Thereza de Jesus—a mystica, os impulsos bestiaes de Caligula e as ordens alucinadas de Nero, determinando-se em sensualidades, ou incendiando Roma, para mergulhar a alma sublimemente perversa nas labaredas duma civilização a arder.

O instincto é a primeira força. Depois ha a aspiração vaga, que nos faz caminhar para o Desconhecido.

Caminhêmos. Sigamos a mão distante que nos acena. Dêmos por tudo o que formos encontrando.

Chamam-nos visionaria! Que importa? Que tem sido a humanidade, senão visionaria!

E como é grande a creatura quando sonha! E como é bella a alma a viver sentimentos, a visionar!

O que é a Vida nua de chimera?!

São factos o proprio sonho, a chimera...

Creio na vida eterna pelo Amor. O Amor, fundiu em mim—Deus, Perversão, Desgraça...

O Bem e o Mal deram a figura que sou—um bronze de sentimento. Realizo o genio sensual da humanidade nevrosada e a vida suave de toda a Belleza humilde!

Sou Shakespeare e Bandarra:—tenho no peito o cachoar tragico da muita miseria e altanaria heroica, que o inglês referveu em dramas, que são a perpetuidade da Dor-genio; e, ao mesmo tempo, a simpleza ingenua da [247]amargura, delida por uma quasi inconsciencia,—aquelle extranho sentir dos loucos que têem o sestro de viver alegres as suas e as tragedias dum povo, os bellos crimes, como as grandes melancholias duma raça!

Sinto a alma amarrotada, amarfanhada! Mas ha almas e almas. Ha-as que são como a estopa grossa que, quando sujeitas vincam traços grosseiros.

A minha alma, é como a seda e as moires luzentes: amarrotada, maltratada, tem cambiantes e vincos finos, dá traços curvos dum resplendor desmanchado, a esbaterem-se em sombreados duma belleza rara...

Tenho na alma a dor latente. O Acaso, fomenta-a por capricho.

Deitei-me a outra noite, triste, sem saber porque. Estava de mal commigo. Dormi pesadelos. Subito, levantei-me, abri a janella, e vi o roseiral escuro. Nem uma rosa a alumiar-me! Deus cortou relações commigo, pensei, angustiada. Cortou as relações com todos os homens, e por isso escureceu as flores, pintou-as côr do castigo, fê-las côr da fuligem.

Corria o tempo, e eu, muda, quieta, somnambula, a fitar as rosas, todas de seda crepe, e, ainda assim, bellas e cheias de graça no seu desenho fino e desegual!

Depois, a meio da tortura daquella visão sombria, recobrei-me, pensando em Deus. E [248]vi que defraudando-me, se castigava. Elle não podia, sem desfalque da sua divindade, abdicar da Côr:—dar ás rosas o tom da sombra, embora tocado da belleza da noite, podia ser capricho, nunca um proposito eterno!

Chamei Deus a mim, num esforço ingente de Artista que requer o Elemento para trabalhar, produzir, crear...

E, desde logo, o sonho se esbateu em claridades. As flores começaram a colorir—milagre de Deus, da madrugada, do meu olhar!



Deus troca a sua alma com a minha. E sua alma cabe em mim.

Convenço-me de que o lisonjeia a troca—pois a minha abnegação e bondade não têem a caucioná-las immunidade alguma.

Vivo pelo Amor todo o amor, os maiores desalentos, o proprio odio, os fados desgraçados...

A intenção da minha ultima jornada foi duma pureza absoluta.

Elevou-me a isenção; por ella desprezei a Moral. Ser moral é servir a conveniencia; raramente é ser bom. Collidem quasi sempre a Bondade e a Moral.

Esta é muitas vezes hypocrisia a reflectir trapaça, iniquidade.

A minha coragem afronta o estabelecido. [249]Moral alguma vale a Bondade! Ainda que sacrificasse a propria vida infinita, eu não recuaria:—outro Ceu havia de encontrar.

Protegi um dia os amores de dois mendigos. O meu olhar illuminava aquellas almas, que se trocavam para além das suas miserias.

Esbatia seus enleios um resplendor de sol, que espectrava riquezas e caprichos de tom:—era a minha bemquerença, a Bondade, eu propria, desfeita em luz a aquecer aquelles amores, banhando-os de goso divino.

Indifferente aos grandes nadas do mundo—os que geralmente enchem as canseiras dos semelhantes, perturbo-me ao menor symptoma dum grande soffrimento.

Deus parece ter-se enganado, extravazando em mim toda a melancholia que devia ter apartada para uma raça.

Extranha figura sou! No meio de tempestades intimas, as mais batidas, a alma raramente me deu lagrimas; suggeriu-me desalentos. Outro dia chorei, convulsa, deante de um numero, que ainda lembro cheia de medos.

Foi sobre a indicação de forçado (C. 3. 3.) com que Oscar Wilde, o predestinado da Perversão, assignou as paginas magoadas do De Profundis, escriptas no descanço do hard labour.

Vi naquelles numeros toda a severidade votada aos degenerados, o conflicto aberto entre [250]uma sociedade inferior e a sensibilidade acuradissima dum louco genial.

Tambem eu sou odiada; e, para o grande numero, a Sapho, a larva immunda que acommete a adolescencia...

Não me defendo. Quantas vezes senti em mim a alma da grande lesbia, que visitava em meus poemas e loucuras a nova Hellada do Ocidente!

E larva tenho sido. Mas larva a evoluir. A chrysallida que sonha asas. Sinto-as no auge da nevrose. Prendem á carcassa de linhas finas em que o Destino veiu pousar uma grande alma. Erguem a minha belleza amoral.

Esta Belleza é pouco e é tudo. Por ella subjuguei forças proprias e extranhas a um só fim:—sentir.

Toda a gente odeia a Morte. Porque?

Ella é o supremo bem. O que o vulgo toma por acabamento é passagem para o Além... Mas esta passagem sómente é consciente para os que na vida sentiram. Só elles podem avistar com os olhos da alma, áquem da passagem, o eterno da Vida que segue... Como se adquire esta acuidade?

Desconheço-o em parte.

Mas a atmosphera propria a que se manifeste está na ignorancia das leis do mundo, no desprezo da Vida.

O estado mais proximo da superioridade—é [251]o estado sensual, porque é elle que superentende, domina a nevrose, dando o maximo de elasterio á sensibilidade:—é, afinal, a Arte latente, a Belleza no estado puro.

Como obtive o estado sensual? Dando-me ao infinito de sentidos que descubro áquem e para além de mim...

Que ninguem tente reprimir a sensibilidade. Entregue-se-lhe. Ha no povo inculto, como entre os superiores, grandes temperamentos deformados pelo Preconceito. São aquelles a quem o Acaso repartiu almas que são preciosissimos instrumentos, que elles desferem mal.

Foi a guerra movida á minha conducta que melhor acurou os meus vicios, suggeriu a defesa integra dos meus actos, e creou, parallelamente ao meu nihilismo de sentido, uma Philosophia que prende a uma Liberdade amoral que vae além da outra,—a que peja os Codigos, as Biblias...

Sempre que intravazava o odio alheio, reconhecia, após horas de tortura, estados novos, de que manavam fontes suaves de riqueza espiritual. Ás vezes, sentia eu propria necessidade de concitar esses odios.

Esta attracção exprimia o braço do Bem e do Mal,—o instincto duma grande missão de Unidade a colligir os recursos do Novo-Mundo da Belleza. A grande elementação [252]desse mundo não dispensa o Mal. Toda a creação é dolorosa.

Gosar o soffrimento é acceitar aquella missão. Mas, porque só os maiores a acceitam, só elles a gosam, exprimindo em Arte o agridoce daquella dor.

O vulgo mal comprehende a tortura dos eleitos, o que reflecte de grandeza sobrenatural. E a Sciencia não alcança mais! Que eram os apostolos quando se deixavam retalhar, a sorrir, de olhos fitos no Além?

Para o povo eram santos, para a sciencia—loucos. Erro grosseiro é ler a Dor atravez das lentes escuras que vestem os olhos de tanto myope! Como falseiam a missão da Belleza!

Loucos os apostolos duma Religião!

Tambem vou ser acoimada de louca! Quantas affinidades com elles hão de encontrar-me... E talvez, inconscientemente, a Sociedade acerte. O que é um louco?

É o espelho de melhor ou peor crystal, biselado ou lizo duma alma sem artificio a viver desvairamentos. É o absoluto em sinceridade—o que ri, e chora, odeia e ama sem trapaça, indifferente á sociedade que o espreita, o que despe a alma na praça publica sem caridade por si, alheio a quem o vê.

Na escala da loucura ha os criminosos-loucos, que dão á sociedade pretexto a que [253]ella os enclausure, para melhor os explorar, e ha os outros, os que ella frecha de infamias, emparedando-os de preconceitos, dando-lhes a liberdade de sonharem alto, para que possam ouvir-lhes o sonho, e impedir-lhes que realizem desvairamentos, por vezes geniaes...

São os criminosos, os santos,—todos os reduzidos de entendimento, como os que o possuem accrescentado duma sensibilidade incomprehensivel. O mundo ri egualmente da treva dum inferior, como dos supremos desvairados.

Os inferiores desconhecem a grande parte da verdade eterna que o sonho contém, que ha, por vezes, na loucura profecias geniaes.

Parece que os loucos sonham, quando adormecidos, actos que a sociedade toma por feitos de juizo.

Depois ao acordarem abysmam-se do desapontoado dos sonhos...

Exactamente o inverso do que succede ao Vulgo. Este delira no somno os grandes feitos e delictos. Uns e outros relegam o que sonharam.

Ora o Artista, ou acorde na Obra uma aspiração do Vulgo, ou desvaire fóra do tempo e do espaço em que trabalha, é sempre a creatura que vive na Arte o sonho e sonha na Arte a Vida!

Do louco tem o desvairamento, que lhe distende a sensibilidade até á abnegação, o [254]alheamento da conveniencia, a fatalidade do temperamento, agindo livre entre clarões e trevas. Sou a Artista-louca, perdida no cosmorama dos Paizes-Altos da Belleza. Não conheceis estes paizes! São aquelles que o meu genio doente aguarella e o Sentimento repinta e vive.


Deslumbro o entendimento na Fé sonhada—a nova Attica do Ocidente.

Valho o abraço de dois povos, que se estreitam e vivem as ultimas loucuras confundindo as almas!

Sou o Ocidente a alar-se.

Como a Grecia attingi o estado sensual. Deliro na ante-camara da Morte o sonho hellenico que vejo para além...

Triumpho morrendo.

Morrer é simplesmente erguermo-nos. Vou elevar-me, descansar na Altura.

Attingi pela Dor o planalto que me vae ser ponto de vôo. Fui a creatura que o Destino arrancou da pureza humilde dos montes, e que, ao chegar á civilização, deslumbrou de torpeza. Aguia nata em ferocidades puras, quiz o luxo mundano domesticar-me para que eu sommasse á ferocidade selvagem a hediondez civilizada!

Salvou-me a raça. Vivi o temperamento, as taras, tudo o que era meu, bem meu, em reacção com os outros.

[255]Raras alegrias me assaltaram. Tinha de ser:—a Alegria jámais fecundou.

Vi chover sobre a minha obra, que era mais do que eu propria, pois que era eu tocada do sobrenatural, petalas de oiro e lama.

Prosápia, bens, armas, brasões, tudo revôlto, perdido...

Portugal, Hespanha!

As armas, os brasões, vós proprios os derrubastes, esquecidos de que tambem eram vossos, principalmente vossos!

A Historia ha de gelar no coração das creanças, quando os saxões e os outros, as raças praticas, vierem tentar o Ocidente... Antevejo conflictos entre as futuras searas de adolescentes, sortidas de pequenos demonios dourados, sardentos e gulosos dos meus bens.

Deixae-me beijar-vos, oh adolescentes morenos da minha raça,—corpos de sombra e sonho, pelo vosso triumpho!

Reviverá na vossa belleza o meu genio—nos Estados que tereis de crear o meu sonho!

Eu mesma terçarei armas na vossa lucta.

Voltarei, vestida dos vossos corpos de bronze. Sentir-me-eis em vós, como hoje vos sinto em mim!

Mas só resurge quem morre. Entreguemo-nos ao Deus latente em nós, que nos dá na Morte o summo poder.

[256]Por tudo elle a repartiu, como a signalar que em tudo é latente.

O infinitamente grande leva a sua grandeza divina até vestir o infinitamente pequeno.

O infinitamente pequeno é Deus procedendo, transformando. A Morte é o genio divino, tocado da treva, a simular aniquilamento...

É elle a recolher o material disperso, para modelar e animar novos sonhos. É o esboço de novas formas a apparecer.

Bemdigamos o Deus que somos, o Deus que vive em tudo e é Tudo. Amemos a Morte, pois que ella é, definitivamente, Deus.

É isto loucura? Sei lá! Talvez sonho...

Por meu mal, sonho sempre. Batalho ás noites com phantasmas. A outra noite, foi com phantasmas de Belleza. Assisti a uma refeição nova, a refeição da madrugada, na Villa-Feia.

Jehovah, entendeu-se com os do Olympo e a pedido de Apollo, que me convidára, quietou o tempo numa luz branco-cinza. Jupiter emprestou Ganymedes para servir os nectares, o mel, os fructos; Jehovah mandou seraphins, rosas...

Os convivas eram Nuno, Apollo, Venus, adolescentes morenos de culpa, que fui resgatar ao inferno catholico; Sebastião, o ephebo-martyr; Edgar—muito discreto e lindo [257]no seu nu côr de tocha;—Ruy, abraçado a Nuno, a afogá-lo no mar de luz do seu olhar velludento, verde de vicio;—Helen, feita sereia vegetal, erguendo a cabeça airosa e loira dentre petalas de açucena;—finalmente a Hermaphrodita, a Penedia enorme, que vi espreguiçar-se, mover o peito, as coxas de gran, e levantar-se, suprema, para vir tambem tomar parte na refeição, penetrar-se da essencia, do olor das rosas.

O nectar era servido em flores de magnolia e peonias...

Começou a refeição; pedi mel. Veio Ganymedes servi-lo; mediu cem violetas do oiro-doce para a copa dum lirio que beijou e correu a trazer-me. Bebi dum trago o lirio-calice da loira resina. Pedi os fructos, as flores da figueira—figos tumidos de carne-vermelha, coberta a seda-amethysta; quiz romãns, damascos, peros de Deus... Sorvi tudo. De repente, ao tomar a terceira peonia de nectar, senti-me entontecida, deliciosa e horrivelmente nauseada!

Era o olor das rosas, a essencia do nectar, dos fructos, daquella Carne tocada do genio dos divinos oleiros, o perfume das taças,—tudo a perturbar-me!

Evoquei os Deuses e acordei ao grito da sua voz, que era a voz da minha queixa! E, acordada, volvi a pedir-lhes que de novo me [258]remetessem ao sonho, e me asphyxiassem, de vez, pela Imaginação!

Queria morrer imaginando, abrupta ou suavemente, mas do mal-de-sonhar...

*
*      *

O pensamento fixo é partir, morrer.

Jámais alguem sentiu, viveu assim a Morte. Esta é a sua Elegia, o derradeiro e mais soffrido dos meus Poemas. É que sou eu em união hypostatica com o Divino Poeta.

Não obedece ás formas vulgares do verso. Tem as formas espraiadas da massa da agua em movimento. Resume a forma definitiva da Poesia. Nenhuma alma soffre medida. Menos podia soffrê-la a minha, immensa como o genio que a distende.

Eu não poderia contar as sensações intimas da minha tristeza. Quem pode contar as commoções da labareda? Como havia de sujeitar ao metro o infinito de melancholia que sinto agora e dar o espectro da transformação que está a passar-se em mim?

Vou morrer. Nem sinto a dor dos que vão desesperados e sem fé, nem a alegria dos que partem de vez á conquista doutros mundos. Sou a acropole do sentimento. Acceito a Morte como um bem. Vou provocá-la como [259]successão logica duma Vida que só pode continuar-se depois da nova provação.

Esta provação era fatal... Exulto! Matar é transformar. Vou transformar-me. Quando voltar serei outra.

Saudades, levo-as das tristezas que vivi.

A tristeza, a nevoa de melancholia que enchem esta hora de partida, dão-me a nostalgia do mundo que fui, de muitas batalhas de dor, agora decididas.

A Dor tem o sestro dos maus filhos; aferra-se profundamente aos corações que tortura, e domina-os. Mas ha dores e dores!

Nas passadas vivo a Saudade, nas presentes a Morte! Abençôo a Morte que me conduz á nova Vida. E soffro e goso suavemente esta jornada que para tantos é maldita...

Morro no outomno. O Destino quiz que fosse com as ultimas esperanças dos primeiros tuberculosos...

Tisicos, iremos todos! Quero ir cercada das vossas figuras brancas, puras da doença. Os atalhos hão de mandar flores a acompanhar-nos...

Oh! que lindo cortejo. Já as vejo, além, paramentadas! São papoilas-sangue, risos petalados de boas-idas.

Iremos já. Tenho ali a mascara que, embebida em Ether, ha de dar-me passagem para a grande Vida. Começo a viver a suprema Vida.

[260]Não sou já a «Emparedada»; a sombra immensa que projecto rompeu de vez a espessura que me occultava do Deus latente em mim, do Deus que sou.

Que cega estava, que surda fui. Como a Terra, o Mar, tudo é differente!

O Mundo, oh que genial mentira! Como o distingo bem, de longe! Eu propria fui o que elle é—Confusão. O que avisto:—palacios de poderosos, columnados de gelo; choupanas de Luz; corações de tritão em peitos de sereia; fios de aranha alando a Terra; a Humildade a chorar sob doceis de granadas; a Humanidade em arestas á mercê do vento, a mergulhar nos pantanos; monstros a florirem amor; e tudo a morrer para viver, a viver para morrer!

Já converso as sereias, os tritões, as sombras dos Poetas. Phosphorescencias da agua—oh que mysterios de luz!

Quantos espiritos novos! São sátyros estrebuchando amores, na treva; são genios lendo á luz verde dos pyrilampos a vida dos pinheiraes; são levadas chorosas da virtude dos homens e da castidade infame das donzellas; é a onda a trabalhar o granito, a estatuar Belleza; é o vento a ramalhar orações, a petalar a agua, a orchestrar a gargalhadas o Hymno do Desprezo pelas leis da Terra; é a sombra de Wagner, sob o pallio verde-escuro dos [261]laranjaes a apontar as notas altas dos rouxinoes para dar a ultima demão ao Hymno de Amor em que vae cantar o Infinito...

São moinhos a moerem bagos de oiro, de que os homens fazem o pão puro—rodas de moinho a beberem agua e a espadanarem leite, o leite que o ribeiro entorna pelas sementeiras e amamenta o linho, as papoilas, e os trigaes!

Cada tronco de arvore é uma columna de Vida. Folhas são asas batendo Amor. Flores são tulipas, botões de luz... Luz de Carne!

Nem o luar de Granada empresta á noite uma luz como a das flores. É uma luz de opala com cambiantes suaves, luz que reflecte corpos, almas em sonho.

Ah! agora, sim! Já vejo, já palpo e goso as figuras que procurava,—as minhas creações!

Sinto o sussurro, a melodia gemente da transfusão do que fui no que vou ser, no que já sou...

O que ouço é como o murmurio brando de levadas. É Mozart a sonhar... São as Fontes.

Oh! figuras sagradas, esculpturas de nevoa, abraçae-me! Assim... Fundamo-nos!

Chovam sobre mim petalas de borboleta e asas de rosa. Fui na terra irmã das borboletas, parenta das rosas. Subam até mim columnas de incenso, o riso vermelho das creanças, [262]as ondas de sensualidade innocente que encapellam a Terra.

A Artista vae morrer. Distingo o fim da Noite no começo do Dia...

Ahi vem a Madrugada. Abençoada seja a Noite, mãe da Madrugada! Bemdito o eterno Dia!

Aquellas rocadas de algodão, humidas de Ether, são as nuvens que ha pouco vi passar além, que tenho ali e posso apertar na minha mão.

Scenarios e scenarios de pureza! O Mar, o Ceu, a Morte tudo é branco, continuando-se de mim, do meu alvor... Alvor da alma que tudo repassa de Belleza!

Toda a Belleza permeio, toda a Belleza sou:—a Nuvem, o Mar, a Dor...

Sou o Mar que sóbe em cambraias de nevoa, a Nuvem que desce em veu de madrugadas e perolas de granizo...

Bemdito sejas, oh Deus!

Vou ser o Ether que me sóbe á nova Vida!

Sou a Onda, a Nuvem que passa, e se esbate em Nada,—a razão, o inicio de tudo!

Irmãos! vou partir, vou viver! Sou já o Ether, sou a Altura...

FIM

1 Cancioneiro de Resende, Cantigua, partindo-se de João Rodrigues Castello-Branco.

2F. de Sá. Cancioneiro de Resende.

[263]


INDICE

I - MARIA PEREGRINA9
II24
III48
IV55
V86
VI101
VII112
VIII121
IX136
X150
XI155
XII166
XIII172
XIV177
XV185
XVI199
ADVERTENCIA219
ELEGIA DA MORTE221










ACABOU DE SE IMPRIMIR NA TYPOGRAPHIA DO ANNUARIO DO BRASIL, (ALMANAK LAEMMERT) R. D. MANOEL, 62—RIO DE JANEIRO AOS 23 DE ABRIL DE 1921

Notas de Transcrição:

1. Foram encontrados diversos erros tipográficos e gralhas, que foram devidamente corrigidos. Na lista que se segue apresentamos alguns dos erros corrigidos.

Pág.OriginalCorrecção
32vinho do jardimvenho do jardim
48com uma maçocom um maço
67ponto cluminanteponto culminante
95perdida no onda de luxuriaperdida na onda de luxuria
198E preciso pecar muitoÉ preciso pecar muito
217Era uma maritimo trigueiroEra um maritimo trigueiro
223Evoluti com os nervosEvolui com os nervos
248Conevnço-me de queConvenço-me de que
248hypocrisia a reflecitrhypocrisia a reflectir
250Mas larva a evolutir.Mas larva a evoluir.
254Pizes-Altos da BellezaPaizes-Altos da Belleza
259dos primeiros tubercluososdos primeiros tuberculosos

2. O nome Brook aparece escrito no livro original com as seguintes grafias: Brook, Broock e Brooke. Nesta transcrição mantivemos as 3 grafias nos locais onde apareciam.






End of the Project Gutenberg EBook of Nova Sapho, by Visconde de Villa-Moura

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOVA SAPHO ***

***** This file should be named 26371-h.htm or 26371-h.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        http://www.gutenberg.org/2/6/3/7/26371/

Produced by Ricardo F. Diogo and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net


Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
http://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.