The Project Gutenberg EBook of Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento, by Camilo Castelo Branco This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento Author: Camilo Castelo Branco Release Date: July 22, 2008 [EBook #26103] Language: Portuguese Character set encoding: ASCII *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ANNOS DE PROSA *** Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search)
ROMANCE
POR
CAMILLO CASTELLO-BRANCO
ROMANCE
ROMANCE
PORTO.
EDITOR, ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA.
Rua da Cancella Velha, 62
1863
TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA
SILVA TEIXEIRA,
Cancella Velha, 62
1863
Altissima é a missão do escriptor, e a do romancista principalmente. O mestre Ignacio da cartilha velha, amoldurada ás necessidades do seculo, é o romancista. Mal hajam os sacerdotes das letras derrancadas que vendem peçonha em lindos crystaes, e desfloram as almas em luxuriante florescencia da sua primavera. O mau romance tem afistulado as entranhas d'este paiz. Não ha fibra direita no coração da mulher que bebeu a morte, e—peior que a morte—algumas dezenas de gallicismos no que por ahi se escreve e copia. O anjo da innocencia foge de certos livros, como os editores de certos authores. A candura virginal de uma menina de quinze annos é a cousa mais equivoca d'este mundo, se a menina leu cousa em que os pedagogos do coração a ensinaram a conhecer-se, antes que a experiencia a doutrinasse.
Para cumulo de infortunio, Portugal é um paiz onde se está lendo muito.
Acontece aos estomagos famintos, quando se lhes depara [8] alimento bom ou mau, assimilarem-n'o com tamanha sofreguidão, que o encruamento do bôlo, e o marasmo são inevitaveis. Assim e por igual theor, quando os Lucullos e Apicios das letras expõem á voracidade publica as suas iguarias estragadas, a fome de aprender a vida nos romances locupleta-se com tamanha intemperança, que o resultado e as dispepsías espirituaes, tormento de angustias vomitivas, que fazem descer o coração ao lugar do estomago, e subir o estomago ao lugar do coração.
Eu tenho assistido a esta deslocação de visceras com lagrimas nos olhos, enxutos para tudo o mais. Muitas vezes tenho perguntado ás velhas se isto assim era no tempo d'ellas. Faz dó vêr a consternação com que algumas expedem um gemido, unisono com o assobio da pitada! Compunge vêr rolar a lagrima preguiçosa do olho desvidrado d'outra, que se recorda da honestidade com que foi amada pelo seu quinto amante!
Ha cincoenta annos que as senhoras não liam romances, por uma razão cujo descobrimento me custou longas vigilias:—não sabiam lêr. Algumas, rebeldes á vontade paternal, conseguiam soletrar e escrever á tia uma carta em dia de annos, copiada do Secretario portuguez de Candido Lusitano. Os paes aceitavam com repugnancia aquelle abuso de intelligencia, e castigavam a filha, forçando-a a um trabalho litterario semanal: escrever em cada segunda feira o rol da roupa. Este systema penal tinha só a vantagem de tirar ao vicio os enfeites da intelligencia, reduzindo-o á essencia bruta de sua nudez primitiva. Já não era pouco para exemplo e edificação das almas. O melhor moralista será aquelle que despir o delicto do coração das galas que lhe veste o desejo, e o cobrir de farrapos repulsivos.
Por esses tempos, e nos dez annos sequentes, os propagandistas da corrupção tentaram exercitar o seu maleficio, vertendo para pessima linguagem portugueza [9] novellas francezas, que transpozeram as fronteiras no couce da bagagem do Junot.
Em 1814, a immoralidade, até esse anno sopeada pela impertinente virtude das novellas, taes como A virtude recompensada e o Escravo das paixões, quebrou as ferropeas, e despejou do regaço dissoluto a versão de Tom Jones, o Sophá, o Candido, e quejandas faúlas incendiarias, que pegariam nos corações, se a manteiga e o paio das tendas não esfriassem a força comburente d'essa droga, que acirrava os paladares anthropóphagos d'aquelle festim de 1793.
Bemdita e louvada seja a ignorancia! Os romances francezes, até 1830, encontraram as almas portuguezas hermeticamente calafetadas. Ate esse anno infausto, a mulher era o anjo caseiro, a alma da despensa, a providencia da piuga, e sobre tudo, a femea do homem, qual Jehovah a fizera d'uma costella do mesmo.
O salão era um como trintario cerrado, onde, a espaços, uma gosmenta matrona espirrava, e a sociedade, a cabecear de somno, surgia estremunhada, dizendo: Dominus tecum. A menina casadeira não se erguia de ao pé da mãi. O noivo mirava-a de longe em fellina beatitude; e, no auge da sua casquilha audacia, piscava-lhe a furto o olho, onde reslumbrava a paixão.
Não havia então d'estes homens mulherengos, que alambicam a parlenda assucarada, coando por ouvidos incautos o veneno do estilo, que é o mais corrosivo de quantos ha na toxicologia do amor. A mulher actual é quasi sempre victima da rhetorica requentada do romance, que esteril peralvilho lhe encampa como cousa de sua alma. Algumas conheço eu que resvalaram ao abysmo da perdição pela rampa de um adverbio euphonicamente intruso n'um periodo arredondado. Este sortilegio da linguagem, que enfeitiça e dá quebranto ás mulheres, é apanhado no romance. O coração de certos individuos acha-se, muitas vezes, a paginas tantas de tal novella. [10]Sem figurinos e romances, não haveria corpos apresentaveis nem espiritos insinuantes.
Muita gente se espanta das gloriosas aventuras de alguns sujeitos pyramidalmente tolos. Eu não. Tal ha que se vos afigura mazorro d'alma, e, não obstante, ao lado de mulheres, dispara descargas de phrases amorudas que é um pasmar. Asneira, dita em nome do coração, não ha uma só que não seja laureada. Cada Petrarcha lorpa tem, a final, o seu capitolio.
A mulher, por via de regra, é de seu natural tão boa, sensivel e generosa, que chega a recompensar a pertinacia do homem que, primeiro, a nauseou: o segredo d'este paradoxo está na influencia contagiosa da tolice. A mulher que fez chorar o tolo, e viu rebentar lagrimas de uma cabeça de granito, cuida que fez o milagre de Moysés na rocha de Horeb. Alliciada pela serpente da vaidade, succumbe como Eva.
Que mudanças!
D'antes o caixeiro principiava sempre a carta de namoro por: Meu amado bem! Agora já diz: Anjo! ou Seraphim! Era d'antes a phrase sacramental do exordio: Vêr-te e amar-te foi obra de um momento. Agora não é raro encontrar d'estes arrojos: Amar e morrer é meu destino!
E, depois, o maleficio do romance não está sómente no plagiato irrisorio; o peior é quando as imaginações frivolas ou compassivas se entalham os lances da vida phantasiosa da novella, e crêem que a norma geral do viver é essa.
Em quanto a mulher estuda sómente a phrase que applica, bem ou mal, quando a enlouquece a vaidade de parecer o que não é, bem vai. Dá-se um exemplo: A apaixonada de um amigo meu, ao recebêl-o, pela primeira vez, em sua casa, no patamar da escada, antes de deixar-se beijar a mão, estendeu o braço direito em magestosa attitude, deu á frente a regia altivez de uma [11] Phedra de aguas-furtadas, e disse em tom cavo e solemne: Juraes levar-me ás aras? O meu amigo, que balbuciava um prefacio de longo estudo, soltou um frouxo de insolente riso, e desceu as escadas, por não poder com o espectaculo da dama corrida do insulto. Eis-aqui uma que os romances de Arlincourt salvaram; quantas, porém, perdidas por guardarem as phrases ridiculas para o final?...
Grande mal é o identificar-se o espirito ás visualidades do romance. Quando a leitora se ri das crendices da sua infancia e dos absurdos principios que lhe apoucaram o imaginar e o voar do espirito, vem-lhe os enfados, o escutar as mentiras do coração que se emancipa, o crêr que a vida passada foi apenas um vegetar do vulgo, e que o viver da alma assim, será como o do arbusto bravio que dá flôres sem aroma, e fructos sem sabor.
Seja, outra vez, bemdita e louvada a ignorancia de nossas mães, e nossas irmãs, e nossas esposas!
A vida caseira, esta deliciosa monotonia, que a poucos é já saborosa no viver intimo, requer muita estupidez, muito somno a toda a hora, um estomago exigente e forte, muita digestão soporosa de substancias pesadas.
Esta bemaventurança ha-de restaural-a a ignorancia supina, não hão-de ser as palavrosas theorias de Michelet ácerca do amor e da mulher. Comecem os paes de familias por circumvalarem suas casas de um cordão sanitario contra a peste do romance, que não se abonar com a promettida pudicicia d'este, e de outros com que o author, coração aberto a todas as chimeras, e de entranhas lavadas, tem querido enxertar no tronco carcomido da humanidade toda a casta de virtude.
Vou lembrar um alvitre, cuja adopção poderia ser momentosa na regeneração dos costumes.
As reliquias das velhas virtudes portuguezas, se as ha, acham-se nos velhos, que beberam ainda as escorralhas [12] dos seios puros do seculo passado. O Porto, de preferencia, graças á força refractaria da sua organisação, encerra boas quatro duzias de archontes dignos da Grecia antiga. Fôra facil eleger de entre estes—(abstenho-me de os nomear, porque a modestia n'elles dóe de insoffrida como ulcera em lombo de muar, e não é raro responderem ao elogio com o couce)—eleger d'entre estes, digo, uma corporação censoria, encarregada de examinar os livros, que giram no mercado, e referendar os que a juventude feminil podesse lêr sem deterioramento da innocencia. D'esta arte, os anciãos não restringiriam a sua egoista virtude á missão balda de condemnarem o vicio da mocidade inexperiente. O exemplo dão-no optimo; a doutrina é a que nós sabemos; mas não os devemos desquitar de se constituirem entulhos contra a torrente do vicio, desviando-a de levar ao regaço das futuras esposas e mães o romance peçonhoso.
Pelo que, d'aqui já sotoponho este livro á censura, e assim dou publico e voluntario testemunho de quanto venero as cãs e as virtudes. Fadario triste! A minha sina capricha, até hoje, em fazer-me malvisto d'esses que eu mais quizera bemquistar, ainda á custa de um panegyrico á corrupção senil dos raros que desgarram da trilha austera por onde a virtude os vai guiando ao céo, no qual os proprios anjos se espantam das colonias que vão d'aqui.
Porto—1858.
«Em quanto ao fogo d'aquelle meu phantasiar de genio, fadado para desgraças, encendrei as imagens das formosas apparições da terra, as creações do meu espirito eram magnificas e brilhantes como as myriadas do céo estrellado.
«Eu tinha horas de tão dôce scismar! O ideal de Fausto, a melancolia do poeta d'Elvira, os coriscos de Byron, as satyras mordentes do Diabo-Mundo, as facecias elegantes de Fielding, e as vaporosas subtilesas de Senancourt! Ai! havia de todas essas feições do genio um traço de cada uma, no meu espirito.
«Mas, n'aquelle dia, á entrada do meu caminho, n'aquella noite calmosa, quando o sangue estuava nas arterias, [14]quando as azas do coração, como as da aguia ferida, baixavam á terra, aquella mulher...
«A mulher fatidica! O despertar do sonho de dezoito annos. A Beatriz, a Laura, a Leonor, vingando-se na essencia d'uma, porque eu ousára crêr e dizer que mentira Tasso, e mentira Petrarcha, e mentira Dante.
«Que mulher! Bella? Ai! não, não é essa a palavra. Bella como a filha do anjo rebelde, a quem Deus vingativo dera o dom de crear a formosura que mata, o olhar das chammas magneticas do crime, a fascinação do abysmo onde o cahir é perder-se o homem para si, para a humanidade, e para Deus.
«Eu era poeta.
«Com que enthusiasmo eu pedia o meu quinhão na herança das celebradas agonias de tantas victimas de si, mansissimos cordeiros immolados no calvario do talento!
«Este augusto titulo, mercê do céo, rubricado por sello divino no coração do homem, tornou-se epitheto ridiculo ou injurioso.
«Gela-se-me o sangue, quando a ignorancia petulante faz um tregeito de menospreço ao talento, e diz: poeta!
«Mal sabeis que brutal atrevimento, ha ahi no tom de escarneo com que as bestas-feras insultam a intelligencia!
«Um bando de collarejas abrias, atirando-me em injurias a lama que lhes extravasa da alma, seria para mim harmonioso cantico das graças, comparado ao sorriso affrontoso do nescio que me diz: poeta!
«Ha ahi um rir do vulgacho, que dá em terra com a alma. Oh! o rir da gentalha maltrapida é menos fulminante que o escarneo da plebe engravatada, de todas as escorias sociaes a mais alvar e incorrigivel!»
[15]Parou de escrever o meu amigo, quando eu entrava no seu gabinete de trabalho.
Este nosso amigo... Consinta o leitor a apresentação, e de amigo logo, porque eu sei que elle o é de conhecidos e desconhecidos, tirante os estupidos maus.
Este nosso amigo é uma afflicção permanente, um como pelicano que se está continuo espicaçando o peito para alimentar do sangue proprio seus filhos insaciaveis, suas imaginações escandecidas.
Entrou na vida pela porta do inferno. Os olhos da alma abriu-lh'os uma paixão das que alumiam a carreira do crime até á morte moral. A consciencia de sua individualidade, desunida das mil formosas existencias que se identificára, deu-lh'a o ser mais poetico da terra, a soberana da creação—a mulher!
Aos dezoito annos expulso do paraiso pelo anjo a quem dobrára o joelho!
Até então, Jorge Coelho amou sua mãi e irmãos, flôres, estrellas, fontes murmurosas, os pinhaes rumorejantes, o céo azul e as nuvens abertas em coriscos, os repiques festivos do campanario da sua aldêa e o dobre de finados, a cantilena da pastora e o gemer convulsivo da viuva e da orphã.
Tudo lhe era n'este mundo poesia, desde a grinalda de flôres da esposada até á baeta negra do esquife.
Não sou crendeiro em horoscopos de epiderme; todavia, tres rugas que lhe avincavam a testa entre as bossas frontaes, impressionaram-me. Um poeta, da alteza d'elle, diria que semelhantes vincos eram vestigios da vara com que a mão de um genio funesto o ferira, no berço. Moço de dezoito annos, que sobe ao empinado das serras, e circumvaga os olhos lagrimosos pelos confins dos horisontes, e me diz:—«a minha alma não cabe aqui» esse tal é de crêr que se fine na flôr dos annos, depois de haver experimentado as dôres todas de longa vida.
[16]«A minha alma não cabe aqui»—disse-me elle, sentado no tôpo de um fragoedo, com a arma caçadeira encostada ao peito, e afagando com a mão o focinho do galgo que a lambia.—«Nasci hontem, e já me cança a vida. Sou um como hospede, que se sente ebrio antes de assentar-se á mesa do festim. Meus irmãos estão contentes ao pé de minha mãi. De manhã são abençoados e beijados; á noite vão restituir-lhe o beijo com a face alumiada de santa alegria; recebem a segunda benção da virtuosa, e vão dormir serenas horas, em quanto eu, fechado com os meus livros, tento debalde entreter o espirito nos deleites da poesia, ou subjugal-o ás paginas graves da philosophia que me disputa á fé, e da fé que me arranca aos tedios indigestos da philosophia.»
—Nunca sahiste d'aqui?—interrompi, suspeitando da candura de Jorge n'este tecido de palavras presumidas.
—Nunca sahi d'aqui. Fui litterariamente educado por um tio frade, que, ha um anno, me entregou ao ensino de minha mãi, dizendo que a semente da sciencia não podia germinar em terreno, onde faltava o amanho da boa educação religiosa.
Minha mãi não me entendeu melhor que o frade. Fallou-me do temor de Deus como principio da sabedoria humana. Eu tenho um Deus que não temo, porque o amo e adoro com espontanea devoção, porque o vejo luminoso em todas as minhas creações impalpaveis, porque o respiro e converto em seiva da minha alma, que tanto mais se amplia quanto mais se engolfa na immensidade divina.
Minha mãi é uma virtuosa senhora que só acha digna de Deus a linguagem dos psalmos penitenciaes, e os actos contrictos de peccados imaginarios. O circulo, que ella traça ás minhas aspirações, é estreitissimo. Para ella, o futuro é a successão dos dias travados uns nos outros, iguaes e serenos, como os viveram meus avós, [17]e como ella pretende herdal-os a seus filhos. O futuro para mim é o grandioso imprevisto, é a vida com os seus desertos e oasis, é o oceano com as suas calmarias e borrascas, é a peregrinação do israelita, agora perseguido nas aguas do mar vermelho, logo alumiado pela columna de fogo.
Que sinto eu aqui?—proseguiu elle, pondo a mão na testa, cujos vincos se afundavam—Será o pensamento confuso do girondino á vista da guilhotina? Será o abutre gerado n'um sangue que, cedo ou tarde, tem de trazer-me a congestão ao cerebro?... Não sei...
—Porque não será a alma que geme solitaria como a rôla, que, além, no ramo secco d'aquelle azevinho, está chamando o companheiro que ha-de vir?—disse eu em phrase lyrica para não destoar da linguagem levantada de Jorge Coelho.
—Não creio—acudiu logo o meu amigo.—Eu tenho lido o amor dos livros, o amor dos romances, o amor da historia, o amor da poesia. Não me inquieto, nem me acho n'esse sentir. O que não entendia aos quatorze annos, não o entendo hoje melhor. As impressões que então recebi, recebo-as agora semelhantes. Os quadros de Dido e Eneas, de Helena e Páris, são duas telas borrifadas de sangue. O amor não póde ser aquillo. Paulo e Virginia, Julieta e Romeu são duas catastrophes que apertam a alma entre a admiração e o dó. A felicidade não está n'esses amores tão celebrados. Werther e Carlota, Chatterton e Kit-Bell, com o anjo inexoravel da virtude entre si, ao despenharem-se um apoz outro no abysmo da morte, para se salvarem do abysmo da perdição, são dous entes desamparados do anjo bom que nem sequer já serve para galardoar heroicos martyrios. Pois não irão mais longe os meus anhelos de gloria?
A região da felicidade estará delimitada pelas raias do amor, que o romance, e a historia, e a epopea me pintam, glorificado por lagrimas e sangue?
[18]—Mas ha um amor—redargui—que não é o amor da historia, do romance, e da epopea. É amor reflectido de mais alto amor, que as almas adivinham e não entendem. É amor, preludio da bemaventurança, e prelibação da ambrosia celestial.
—É o amor do romance, esse, creio eu...—interrompeu Jorge Coelho sorrindo.
—Não é, meu amigo; e, se me contradizes n'essa idade, inculcas baixeza de affectos, que eu não posso acreditar, por honra da especie humana. O que te authorisa a desmentir um homem de trinta annos, que por sua honra te jura que esse amor existe? Queres achar Vestigios dos trabalhos e calamidades que me custou a descobril-o?
Repara nos meus cabellos brancos.
Colombo achou curtas as fadigas, que lhe deram o novo mundo, e a perpetuidade do nome d'elle, mais valioso que o novo mundo. Experimentaria Colombo as vertigens de prazer, que me endoudeciam, quando encontrei a mulher mais perfeita que os primores da minha phantasia?
Não te allucines, porém—prosegui, vendo nos olhos de Jorge a lucidez do enthusiasmo, accusando o proposito de se abrasar no primeiro amor, que lhe deparasse o acaso.—Não te allucines em presença de qualquer mulher com sorrisos de Virginia, que tanto servem de elogio ao pudor como de epitaphio da innocencia. Não respires com sofreguidão o aroma das primeiras flôres, que encontrares. Lirios e mandragoras são bellas flôres, que matam, se as não lançares de ti, aspirados os primeiros effluvios. Ha mulheres como as flôres venenosas: se te detiveres com ellas mais tempo que o necessario para lisongeares a sensação, e regalares a phantasia, sentir-te-has tomado de um marasmo de espirito, em que serão delidas as tuas mais nobres faculdades, e, a mais válida de todas, o mais nobre apoio da tua dignidade [19]de homem—a liberdade. Esta doença, no começo da vida, deixa achaque para sempre; é como a bala recebida em pleno peito e lá encerrada: o ferido vive; mas, a revezes, a dôr lhe está lembrando que a bala pesa sobre o derradeiro fio da vida. Mulheres, que matem corações generosos, ha muitas para cada homem. Mulher, que salve, ha uma só.
A minha vida é uma elegia continuada desde o berço até esta ante-camara do tribunal da morte, onde estou esperando que me chamem: não tem romance: são desastres concatenados, sem intermedios d'esse contentamento vulgar, que os fortunosos denominam amargura. Todavia, se tivesses mais doze annos, Jorge, seria eu o teu conductor pelos infernos d'este mundo, que Dante não cantou de preferencia aos do outro, porque a civilisação da idade media não tinha em si os supplicios d'esta sociedade em que vaes entrar.
E que lucrarias tu, ouvindo a minha historia? Vêr-me-ias longo tempo enredado na torpeza, na irrisão, e na brutalidade dos differentes algozes, que me suppliciaram a alma. Se quizesses que te iniciassem no segredo de sondar a perversidade dos corações, não poderia eu, porque a aspide, que te mede o salto do seio da mulher, só vibra a farpa mortal depois que varas em terra embriagado de aspirar o aroma do ramilhete, que a esconde.
A sombra da mancenilha é grata como a de todas as arvores; suave é a viração que lhe estremece a coma; o sol nem sequer mosqueia o chão em que refazes os membros lassos; mas agonia mortal será o teu despertar se a formosa folhagem distillou sobre o teu corpo um sumo corrosivo que te faz morrer em acerba palpitação de todas as fibras. Conheces tu a mancenilha n'este deserto, que vaes palmilhar, encalmado das ardencias do coração? Saberás tu, aos dezoito annos, distinguir a mulher, que mata, da mulher, que salva? Os trinta [20]abysmos, d'onde me eu levantei, com as faces a escorrerem sangue, estarão cobertos de flôres para ti? Eu creio que o poeta é um condemnado, a sua patria primitiva um outro mundo, este, em que nos encontramos, amigo, o purgatorio. Que montam os suffragios do padecente experimentado para te remir? Nada. Cumpre a sentença, porque é intransitivo o calix...
Decorrido um anno, encontrei Jorge Coelho, não vos direi aonde, porque ha repugnancia em deslocar uma scena, quando a verdade não póde, por motivos sagrados, ser dita á curiosidade malevola.
Encontrei-o escrevendo os periodos iniciaes d'este capitulo. Outros de igual azedume, assignados por elle, me haviam denunciado a residencia d'esse moço, na terra, em que eu, de passagem, assentára a minha barraca de bohemio.
Reconhecendo-me, ergueu-se, abraçou-me com expansiva vehemencia, e proferiu aquellas ultimas palavras do estirado discurso do anno anterior:
Cumpre a sentença porque é intransitivo o calix.
—E muito amargo? perguntei eu.
—Amargo, e nauseabundo. Fel e lama. O insulto e o aviltamento. Adormeci debaixo da mancenilha, meu amigo; e acordei nos paroxismos de que não posso morrer. Achei uma das mulheres, que perdem. A sociedade applaudiu-a, quando eu cuidava que a indignação do mundo me vingaria. Ajuntei á minha dôr o que devia ser pejo, deshonra, e remorso n'ella. Quiz desafiar a piedade do mundo com o paciente silencio da minha desgraça. O mundo viu-me passar de olhos baixos para esconder as lagrimas, e fez da palavra «poeta» um synonymo chocarreiro de insensato.
Contou-me Jorge Coelho a sua historia. Foi assim:
Sahira, pela primeira vez, da sua aldêa para cursar a universidade. A mãi, abençoando-o, ungira-o de lagrimas, e lançara-lhe ao pescoço um crucifixo.
O tio egresso, vencido na resistencia que fizera á sahida de Jorge, mostrara-se a final condescendente, e introduzira nas malas do sobrinho alguns livros de moral religiosa, que ambos sabiam de cór, um á força de repetil-os, outro de ouvil-os em discursos hebdomadarios, que principiavam sempre com a epigraphe:
Initium sapientia est timor Domini—O temor de Deus é a base do saber humano.
Jorge deu de si boa conta no primeiro, anno, cursando as aulas preparatorias para a faculdade de jurisprudencia. [22]Contou elle que, durante esses oito mezes, apenas sentira o coração na dôr da saudade de sua mãi, de seus irmãos, do tio padre, das suas montanhas, e das sombras dos seus arvoredos. Consolava-o o prazer de uma carta de casa, todas as semanas, em que a expressão maternal pintava o anceio com que lá se contavam os dias, na esperança d'aquelle em que seus irmãos iriam buscar ao caminho o mano doutor, como elles já o denominavam.
O anjo da poesia dos dezenove annos povoava-lhe então a phantasia de ridentissimas imagens. Mezes antes, abafava no extenso horisonte, que descobria do topo das serras onde trepava para dar á sua imaginação sedenta a vaga imagem da immensidade. Agora, parecia-lhe que á sofreguidão da alma lhe bastaria a soledade, o silencio, a tristeza dôce dos saudosos ermos da aldêa, que conheciam o seu poeta desde os onze annos.
Anteviu os tres mezes de ferias como quadra de contentamentos novos. Tudo eram promessas de infantil ledice aos seus arrobos de saudade. Imaginava-se sosinho ao pé da arvore conhecida, em cujo tronco uma vez entalhára a ante-data de seis annos, com uma interrogação ao lado, e como se perguntasse o segredo do seu destino á sibylla dos seus queridos bosques.
O anno assignalado era esse em que estava. A resposta aos vagos presentimentos dos quinze annos ia dal-a agora, mais anhelante e auspiciosa de venturas certas do que elle a previra ao deixar o encargo de responder a mal-agourados futuros.
«Quão longe eu estava da verdadeira felicidade, minha querida mãi!—escrevia elle na primavera de 1855, quando as margens do Mondego reverdecidas lhe festejavam as saudades e as esperanças maviosas. A imaginação enganou-me. Cuidava eu que o coração de minha mãi faria o milagre de communicar uma faisca do seu amor ao seio de cada pessoa que eu encontrasse fóra da [23]nossa aldêa! Pensei que a imaginada formosura da natureza começava áquem dos horisontes, que eu descobria do alto das montanhas. As impressões novas antecipavam-se-me cheias de espiritual deleite, e abundantes da vida que me lá faltava ao pé de pessoas vistas a todo o instante, com o sorrir da amisade, e ao pé das arvores, vistas em cada primavera, com as mesmas grinaldas, e em cada inverno com a mesma nudez funerea, que me confrangia o espirito.
«Castigou-me o desengano, quando dobrei a ultima collina, d'onde via o cume da serra em que tantas vezes me assentára, ideando ao longe o caminho da minha imprevista felicidade. Era tudo estranho para o meu coração. O vento do outono despia as arvores da sua folhagem; mas a poesia melancolica e contemplativa d'essa transfiguração, qual a eu sentia na minha aldêa, convertera-se agora em profundo aborrecer-me, em cerração d'espirito, em arrependimento doloroso.
«A duas leguas de nossa casa, minha boa mãi, quiz retroceder: reteve-me a vergonha. Depois de ter passado uma noite—primeira de minha vida—fóra do meu quarto, n'uma estalagem, ergui-me com proposito de vencer o pejo, e ir lançar-me chorando em seus braços. Conteve-me ainda o receio do ridiculo, palavra e sentimento terrivel, que, ha dez mezes, me foi entalhado no coração por um homem, onze annos mais velho que eu, propheta do meu destino, tão verdadeiro como terrivel propheta, que me vaticinou a sensibilidade immensa do poeta, e as lagrimas inexhauriveis do incessante desengano.
«Já verti as primeiras; essas, porém, são talvez uma puerilidade que o mundo escarneceria, por que, bem averiguada a causa da minha tristeza de seis mezes, encontra-se um bom coração de filho e irmão, a nubelosa saudade dos dezenove annos, e o pesar de haver [24]com tanto afan rebatido o parecer de meu tio, que me quiz demover da tenção de estudar em Coimbra.
«Eu prometti-lhe, minha mãi querida, a noticia exacta das minhas impressões.—Descreve-me ao menos a bellesa dos abysmos como ella se afigurar á tua imaginação—foram as suas palavras. Não posso descrever-lhe nem, se quer, as formosas miragens do meu deserto. Se deponho com fastio os livros, que só abro por obrigação, interrogo de novo o meu espirito, tento sondar a indole mysteriosa da minha vontade oscillante, e encontro sempre enigma. Quer-me, ás vezes, parecer que estou em vesperas de uma grande transfiguração no meu modo de ser e pensar; escuto o surdo rumor das idéas, que ameaçam rebellar-se contra a moderada esperança em que minha alma se acalenta; sinto-me impellido á vereda de angustias desconhecidas, ao passo que as suspiradas alegrias da vida serena no seio de minha familia se me varrem da imaginação como as copas de flôres desmaiadas, que o nordeste sacudiu e dispersou.
«Deverei occultar-lhe alguma das minhas visões, querida mãi? Não posso. A confidencia é a respiração das almas; é, mais ainda, é a supplica do conselho e do remedio para as tribulações, ou de estimulo e fé para crer na felicidade sonhada, se ella um dia me vier provar que não eram mentira os meus delirios dos dezoito annos.
«Ha entre mim e o indecifravel do meu futuro uma imagem como elle indelineavel. Não sei a qual hora da vida acharei a sombra real d'esta idealidade, que se fez corpo e alma, impressão e sentimento para a minha phantasia. Tenho querido collocal-a ao pé de minha mãi, como reflexo do seu amor. Quando assim consigo aproximadas, tambem consigo explicar a influencia, que ha-de ter na minha vida essa imagem, descerrada a nuvem que m'a envolve pela mão luminosa da Providencia. Será a realisação do infinito amor, porque entre Deus e minha [25] mãi falta um élo. Creio que não usurpo a minha mãi o vago affecto dedicado a essa alma estranha, que me visita nas horas de intimo recolhimento e scismadoras saudades de não sei quê, como se do céo perdido nos ficassem saudades para reconquistal-o á custa de lagrimas. Isto que sinto não póde ser, como me dizem os livros sentimentaes, os alvoroços precursores das primeiras devoções, o subir para o altar dos cultos fervorosos e apaixonados. É mais.
«Entrevejo na escuridade do porvir uma scintilla, que me banha de festiva luz o espirito, aspiro o aroma de celestial flôr, que me delicia e adormece em dôces lethargias, tenho um despertar alegre e sereno, como o do homem incapaz de ir abraçar-se á realisação de seus ambiciosos sonhos pelos caminhos travessios da improbidade e do mal-fazer.
«Assim pois, minha mãi, contente-se a sua boa alma de se vêr assim reflectida na do filho, que d'ahi sahiu agourado por tão maus prophetas. Não abordei esses abysmos seductores, que o meu bom tio excommungava de lá, e contra os quaes me premuniu com cabedal de philosophia christã, bastante para defender das tentações todas as nações da Biblia, exterminadas por causa do peccado.
«D'aqui a tres mezes, deporei no regaço de minha mãi o coração inexperiente com que de lá sahi. Dar-lh'o-hei mais rico de contentamentos puros, e desejos de ser bom filho; e, se assim não fosse, iria agora fortalecel-o em seu seio das virtudes, que ainda me faltam.»
Três mezes depois, Jorge Coelho, convidado por um seu condiscipulo das visinhanças do Porto, passou no Porto, quando recolhia a ferias, e alli se deteve, para assistir ao ultimo baile annual da Assembléa Portuense.
Jorge nunca vira um baile, nem ante-gostára pela imaginação o prazer de encontrar duzentas damas reunidas á competencia de formosura e pompas.
[26]Dizia-lhe o condiscipulo, já gasto para as commoções dos bailes (tinha vinte e dous annos, e passára desapercebido em todos os bailes) dizia-lhe o condiscipulo que o coração nascia de improviso no primeiro baile, e muitas vezes lá morria. Contava-lhe, em testemunho de verdade, a sua historia, que era uma historia negra, passada ao clarão de centenares de lumes, nas salas da Assembléa Portuense, no baile carnavalesco do anno anterior. Com quanto nos seja sempre ingrato violentar as glandulas lacrimaes dos leitores, e sacudir-lhes com patheticas descargas electricas os nervos engelhados, não nos abstemos de contar em poucas linhas a historia negra do snr. Pires, condiscipulo de Jorge, em geographia e historia.
Parece que o snr. Pires chegára de Coimbra a ferias de entrudo, e conseguira ser convidado para o baile. Alugou um dominó de seda, entrou nos salões, e remoinhou longo tempo por entre centenares de pessoas desconhecidas. Dizia-lhe a consciencia que era um tolo, por não buscar ao acaso uma particula da felicidade, que brincava nas physionomias de toda a gente, ao passo que das d'elle apenas escorria o suor debaixo da mascara suffocante.
Deliberado a demonstrar a si proprio que não era absolutamente nescio, dirigiu-se a uma dama de aspeito melancolico, e disse-lhe «que os anjos do céo, quando cahiam cá em baixo na morada dos homens, ficavam tristes como ella.»
Ora, um maganão, tambem mascarado, que por alli gravitava em redor do mesmo astro, disse ao estudante, radioso da feliz amabilidade, «que não só aos anjos do céo acontecia ficarem tristes e atordoados quando cahiam cá em baixo, mas tambem acontecia o mesmo aos gatos, quando cahiam de um terceiro andar á rua.»
Ficou fulo de raiva Pires. A melancolica dama levou o leque ao rosto para esconder o riso.
[27]O estudante, voltando-se para o entremettido, replicou-lhe que era de pessimo gosto a chufa, e o gosto da senhora não era de melhor quilate festejando com riso complacente tão deslavada semsaboria. Redarguiu o incognito mascarado, perguntando-lhe se tinha duvida em sahir fóra das salas para lhe estender uma orelha de modo que por ella o conhecessem todos, visto que elle tivera a habilidade de a esconder no capuz do dominó. Trocaram-se algumas finezas mais d'este tomo, até que um homem de porte grave travou do braço ao snr. Pires, e, levando-o ao salão menos frequentado, perguntou-lhe que motivos se haviam dado para desavença tão impropria de cavalheiros. Pires, querendo dar ao successo, uma causa digna de transmissão, contou que merecêra lisongeiro acolhimento da senhora com quem estava trocando as phrases previas de uma paixão, que rebentára subita e reciprocamente, quando o indiscreto e villão interventor lhe dirigira palavras descomedidas, que denotavam o ciume d'elle.
—Pois aquella senhora, a quem o dominó allude, trocava com v. s.ª as phrases previas de uma paixão?—perguntou o interlocutor do estudante com sorriso de affectada serenidade.
—Sim, senhor, respondeu o outro emproando-se.
—Antes de dizer-lhe que mente, preciso vêr-lhe a cara.
Dito isto, o sujeito, que era o marido da dama, arrancou a mascara ao snr. Pires; e, vendo um rosto imberbe, e acerejado, chamou o escudeiro, que passava com bandeja de dôces, e disse-lhe: «Dê a este menino dous bolinhos, e mande-o embora.»
Eis aqui a historia negregada do snr. Pires, a qual, contada por elle, era muito mais dramatica e engraçada, visto que terminava por dous duellos mallogrados, um com o rival, outro com o marido, e por tres desmaios da dama, um no salão, outro na carruagem, e o ultimo [28]em casa, na presença do marido, que, pelos modos, a quizera enforcar.
E, como as lagrimas d'este acerbo conflicto cahiram todas no coração do snr. Pires, o resultado foi afogarem-se lá os embriões da sua felicidade, e ficar aquella viscera árida e resequida como enxundia secca de gallinha.
Ouvira Jorge Coelho estas calamidades com a respiração suffocada, e teve instantes em que duvidou do bom siso do seu amigo;—tão descozido lhe parecêra o conto, e tão ineptas as consequencias.
Entrou Jorge Coelho nos salões da «assembléa,» e julgou-se em regiões de houris. Durou-lhe alguns minutos o atordoamento da primeira impressão. Não o enleava esta ou aquella physionomia; eram todas. N'aquella harmonia do bello, até as senhoras feias—se ha senhoras feias, vistas á luz do coração—recebiam homenagem do extatico moço. No espasmo delicioso do academico, se algum amor influia, era de certo o amor da especie, porque seus olhos não haviam ainda estremado o individuo, que os olhos d'alma entreviam no todo.
Do cisco lucido, que volita no ar, faz douradas palhetas o raio do sol coado pela fresta. Na dourada lucidez que Jorge via por magico prisma, não haveria muito cisco, muito atomo de poeira humana, que sómente [30]refulge aos reverberos dos lustres, consoante o variegado das côres? Decidam os que lá andam.
Aquietado dos alvorotos da surpreza, o estudante sentiu o vacuo, porque se viu sosinho alli. O apresentante doudejava no redemoinho das danças, e raros intervallos perdia, perguntando ao condiscipulo se estava contente.
Jorge não sabia dançar, porque não tivera tempo de aprender esse appendiculo grutesco da boa educação. Muitas vezes lhe dissera o tio padre, authorisado pelo oratoriano Manoel Bernardes, que danças eram ansas do demonio armadas á alma.
Não se glorie, porém, o crendeiro egresso de ter instillado no animo do sobrinho o horror das mazurcas. Jorge não dançava porque não sabia se quer a nomenclatura d'essa galharda tolice de que por vezes impende o accesso ás almas, e o passar-se uma noite menos tediosa n'um salão em que o espirito se retouça em piruetas, mais ou menos ridiculas e parvoinhas, da materia.
Á meia noite, Jorge procurou o seu condiscipulo para dizer-lhe que se retirava. Atravessando uma sala, quasi despovoada, viu duas senhoras reclinadas n'uma ottomana, em postura de fatigadas ou aborrecidas. A mais velha não excederia vinte e cinco annos; a outra, que teria dezoito, foi a primeira que prendeu o exclusivo reparo de Jorge, senão antes uma contemplação absorta em que ellas mesmas repararam.
O academico devia captivar a attenção das duas senhoras, melancolicas por indole ou artificio. Tinha elle um semblante de si tão meigo e affectuoso, que as pessoas tristes sentiam-se melhorar em suas magoas, pensando que outras acaso maiores e mais carecidas de lenitivo denotava o brando olhar do moço. Estava, por ventura, este condão sympathico na magresa do rosto, cujo pallor mais era signal de compleição mimosa, que effeito de vigilias e desperdicios de vida com que muitos [31]conhecidos nossos se recommendam ás senhoras idealistas, affectando langores e martyrios de alma, dos quaes a victima principal é, em verdade, o corpo.
—Sympathica physionomia!—disse a mais velha das duas senhoras.
—Conheces?!—perguntou a outra sem fugir os olhares de Jorge, o qual, por mero disfarce, encarava objectos, que realmente não via.
—Não o conheço, nem me lembra de o ter visto em parte alguma.
—Tinha curiosidade em conhecer... Não achas n'aquelle rosto um não sei que de distincção?
—Tem alguma cousa não vulgar...
—Uma tristeza insinuante, achas?
—E não sei que de magoa supplicante...
—É verdade... e as supplicadas somos de certo nós...
—És tu, Silvina... és tu a examinada com um ar de espanto ou ternura que compromette. Olha um grupo de homens, que nos observam e mais a elle...
—Não olhemos mais. Elle já sabe que o vimos e discutimos. Achamol-o sympathicamente triste, e bem póde ser que seja um tolo com bastante coragem para nos dizer que o é... Mas quem será?!
A curiosidade das duas damas é menos racional que a dos leitores que desejam conhecel-as.
A mais velha é a snr.ª D. Francisca da Cunha, creatura galante, com quanto morena, grandes olhos pretos, sobrancelhas travadas e negras, opulentos cabellos, e espirito de improviso bastante a fingir illustração. Pertence a uma familia heraldica da provincia de Traz-os-Montes, e veiu ao Porto com seu pai, fidalgo arruinado pela politica e pelas proprias dissipações, com o fim de acirrar a cobiça de um noivo conveniente, cujos paes almejam por enxertal-o no nobilissimo tronco dos Cunhas. Tem esta menina genio exquisito e romanesco. Por muitas [32]vezes tem mallogrado os esforços casamenteiros do pai, mofando da figura e palavriado, um pouco para rir, do noivo. Á força de ser má, conseguiu fazer-se anjo no conceito do mal-fadado que espera em ancias ser marido d'ella. Maravilhada do poder que tem na alma do capitalista, com desdens e despresos, espanta-se do presumido dominio, que poderá ter sobre o homem a quem der os sentimentos embrionarios no seu coração. Para experimentar, sem risco da sua nomeada, recebe cartas de varios oppositores á sua alma, e responde regularmente a umas com idéas respigadas nas outras. Nos grupos, que se vão formando na sala, em que está com Silvina, sua prima carnal, avultam quatro dos seus correspondentes activos, e dous, que obtiveram promessa de resposta, e alguns, que esperam aso de solicitarem aquella gloria, no entender de cada um negada a todos, chegando a fazerem-se a mutua justiça de julgarem-se parvos uns aos outros.
D. Silvina de Mello, prima de D. Francisca, é tambem provinciana, e veiu de uma aldêa do Minho a banhos do mar, convidada por sua prima, de quem é hospeda. O que ella aprendeu em quatro mezes de convivencia é possivel que o não acreditasse quem lhe visse o rosto de anjo, olhares de innocente acanhamento, sorrisos de escrupulosa timidez, palavras desanimadas e preguiçosas, e, no todo, uma despresumpção de maneiras, que fazia suppôr grande limpeza d'alma e de... de intelligencia!
Fôra D. Silvina da sua aldêa para o Porto com uma paixão por um morgado, que a não seguira por fortissimos impedimentos. O pai do morgado tinha feito extraordinarias despezas na construcção de uma eira, na reedificação da capella solarenga, no muramento de algumas cortinhas, que comprara, não fallando já nas desastradas mortes de um macho, que tinha trinta annos de bom serviço na casa, e duas juntas de bois atacadas de epizootia. [33]O moço pedira debalde soccorros, fingira-se mesmo epileptico para que o cirurgião da terra lhe receitasse banhos salgados; o velho, porém, passaro bisnau, e avesso á inclinação do filho, deu grandemente louvores a Deus por propiciar-lhe ensejo de acabar-se um namoro inconveniente, attenta a mediocre legitima de Silvina. Facil foi a D. Francisca obliterar no coração da prima a imagem do seu primeiro amor, zombeteando-a á proporção que a ingenua provinciana lhe ia mostrando as cartas do saudoso morgado.
Não podémos averiguar porque traças o morgado de Santa Eufemia arranjou dinheiro com que foi ao Porto, tres mezes depois que Silvina cessára de responder-lhe ás cartas, tanto mais irrisorias quanto a paixão as dictava em estilo talhado para matar paixões. O certo é que o allucinado homem chegou ao Porto na vespera do baile da assembléa, e alcançou cartão de convite. A sua idéa era encontrar Silvina.
Todo sorvido na ancia de vêl-a e fulminal-a com olhadura terrivel de accusações, o morgado de Santa Eufemia não cuidou, com tempo, de mandar fazer casaca. A que trazia na mala era dos figurinos de Guimarães, e, posto que em bom uso, era anachronica na gola, nas lapelas, na largura e comprimento das abas, na pequenez dos botões, e rebordo dos punhos. Consultou a pessoa, que lhe alcançára o convite, ácerca da casaca; mas, desgraçadamente, a pessoa consultada era um d'aquelles individuos de juizo, que não tiram o monge pelo habito, e reprovam que seja sacrificada aos caprichos da moda uma casaca de bom pano, farta e commoda, sómente porque alguns casquilhos perdularios, ou alfaiates especuladores, inventam feitios novos.
Concordou o morgado, e foi ao baile com a casaca velha. Melhor lhe fôra ter morrido da epizootia! A sua entrada na primeira sala foi um acontecimento. As petulantes lunetas saudaram-n'o, e seguiram-n'o com insultuosa [34]curiosidade até ao salão da dança. As senhoras, em regra, pouco curiosas do trajar dos homens, não repararam na casaca, mas não podiam deixar de vêr o collete e a gravata. Era esta descommunal na altura, atravessada por um laço, cujas pontas, como orelhas de lebre morta, cahiam caprichosamente sobre os hombros. A côr verde da gravata contrastava com o encarnado-ginja do collete de uma abotoadura e colchetes apertados até ao pescoço, e acairelado na abotoadura e bolsos com vivos roixos. Sobre isto cahiam as lapelas enxovalhadas da casaca, com as quebras e vincos dos apertos que soffrera na mala em que viera, para irrisão e descredito de Freixieiro, cujo elegante era.
Desconfiou o morgado de Santa Eufemia de alguns indiscretos que o seguiram, desde o vestibulo da assembléa. Viu, depois, que as damas se trocavam olhares suspeitos, que o não impediam de procurar Silvina com aspecto entre o furioso e o comico. A obstinação, porém, dos chasqueadores era inexoravel, e o morgado teve um intervallo de lucidez, em que olhou em si, e se viu ridiculo. Do fundo de sua alma deu, então, graças á Providencia, se Silvina o não tinha visto; mas o derradeiro olhar, que lançou aos descaridosos mofadores, era provocador.
Resolveu, pois, retirar-se, maldizendo o velho amigo de sua familia, que o demovera do proposito de fazer roupa nova. Quando ia sahindo, atravessou por engano a sala em que se achavam D. Francisca, D. Silvina, e Jorge Coelho. Os grupos de homens, que por alli estanciavam, deram com elle de cara, seguido d'um cortejo de folgazãos, que tinham passado da zombaria cautelosa á risada descomposta.
Silvina corou até ás orelhas, quando Francisca exclamou:
—Oh! que original! Repara, prima, tu não vês aquelle homem?!
[35]A este tempo o morgado estava em meio da sala, e fazia machinalmente uma cortezia ás damas.
—Aquillo será comnosco?!—dizia, com desdenhosa zanga, D. Francisca.—Conheces aquelle phenomeno?! Olha que elle está esperando que o comprimentemos... Conheces, Silvina?
—Conheço...—balbuciou Silvina, acaso tão afflicta como o desastroso morgado, que estava alli chumbado ao pavimento.
—Quem é? é da tua terra?—tornou Francisca já envergonhada de que julgassem ser ella a causa da attentiva paragem de semelhante entrudo.
Silvina ergueu-se, tomou o braço da prima, e disse:
—Vem, que eu te contarei tudo.
Sahiram.
Jorge Coelho foi o unico dos circumstantes que examinou com seriedade o morgado. Achava estranho o personagem; mas dizia-lhe a boa alma que o insulto era improprio de pessoas bem educadas como deviam presumir-se aquellas, que estavam alli representando a melhor sociedade.
O fidalgo de Freixieiro sahiu com os olhos a marejarem lagrimas. Foi ainda Jorge quem unicamente viu este signal de afflicção; e, sem saber o porquê, sympathisou com a dôr do homem, que levava de poz si o escarneo de tanta gente, e na alma a certesa de que viera dar-se em espectaculo aos olhos da mulher, que nunca lhe perdoaria o ser ridiculo. Pobre criança! como vivias enganado pelas maximas dos teus romances francezes! Não sabias tu que ridicula, sem rehabilitação, é só a pobresa.
D'ahi a uma hora, Francisca e Silvina desciam do toucador para o salão do baile. A primeira compunha o semblante ainda descomposto das gargalhadas com que recebera a revelação da prima. Esta, mortificada pelo amor proprio, se não antes vexada pela indecorosa eleição [36]d'um amante chulo, captivava lastimas com a tristesa que devêra acarear despreso. Despreso! Talvez piedade, que a situação era digna d'ella, por que é a mulher, quem mais a si se mortifica, se a consciencia a accusa d'uma escolha, que não só lhe não disputam, se não que, peior ainda, lhe injuriam com motejos. O morgado de Santa Eufemia, até á noite infausta do baile, era uma recordação, se não saudosa, ao menos magoada. D'ahi em diante, pelo menos n'aquella hora, causava-lhe tedio, e forçava-a a participar da zombaria.
Estava Jorge, outra vez, defronte das duas senhoras. Sentia-se outro. Já tinha interiormente um mundo, uma imagem reflexa do mundo exterior a remuneral-o vantajosamente da insulação em que se via no meio de tantos indifferentes á sua tristesa. A todo homem esta mutação tem acontecido, uma vez na vida. O baile é triste para quem leva da soledade do seu quarto o coração de lucto; porém, áquelle mesmo conforta, ás vezes, uma chimera, lá onde menos a esperança lh'a promettia. Chimeras são que desbotam, como as flôres dos enfeites, ao repontar da manhã; mas Deus sabe quantas almas se retemperam nas illusões de um baile, e que horas de abençoado engano lá divertem as tristesas dos mais desenganados!
[38]Não era assim que Jorge Coelho scismava comsigo—que a aurora do seu breve dia de fé e amor principiava alli—quando o amigo Pires, lançando-lhe o braço em redor do pescoço, lhe disse:
—Que fazes aqui parado? Contemplas aquellas duas Evas, mal assombradas de gesto, como se tivessem comido a fatal maçã?
—Contemplo uma, e acho-a celestialmente formosa.
—A côr de cêra?
—Sim.
—Eu gosto mais da morena. Nigra sum sed formosa. Aquillo sim que é mulher para incommodar a fleuma d'um sceptico!... Queres ser apresentado?
—Pois tu conheces?
—Não, nem preciso. Vou tiral-a para a primeira quadrilha, apresento-me, e depois tenho a honra de ser o teu apresentante. O estilo, cá na boa roda, é este.
—Mas a quem me has-de tu apresentar? é necessario, a meu vêr, que ella te diga quem é.
—Pois não lh'o pergunto eu?! Essa reflexão é piegas. Se queres ouvir o que eu digo, colloca-te ao pé de nós, e escuta-me nos intervallos das marcas.
O snr. Pires não reconsiderava uma tolice, nem tolerava replicas.
D. Silvina, vendo um sujeito conversar com Jorge, olhou-o curiosamente, para, se acaso visse pessoa de suas relações com elle, podesse, de conhecido em conhecido, chegar a colher alguma informação do seu mysterioso observador. Mais propicia do que ella ambicionava, lhe foi ao encontro a fortuna protectora de sua innocente curiosidade. Pires, com elegante desembaraço, solicitou de Silvina uma contradança: esta, com adoravel aprazimento, aceitou logo o braço do cavalheiro porque se estavam alinhando os pares.
Aqui, porém, falhou uma vez a felicidade a um tolo. Esquecera-se Pires de procurar vis-á-vis, e era já [39]fóra de tempo o procural-o. A dama deu primeiro pela falta, e o academico fez-se da côr do rabano. Silvina relanceou os olhos supplicantes a D. Francisca, e esta, chamando o primeiro cavalheiro conhecido, deu-lhe o braço, e entrou no lugar fronteiro á prima.
—Esta falta, disse Pires, retesando no pulso a luva até a rasgar, deve-se ao enthusiasmo com que eu pedia a v. exc.ª esta contradança.
—Enthusiasmo?! Ora!... parece-me que queria dizer distracção, respondeu Silvina ao adiantar-se para executar a primeira figura.
Chegado o grande intervallo, Jorge Coelho quizera ir postar-se perto de Silvina; mas um burguez intolerante, zangado da pertinacia do moço, que envidava os recursos todos da delicadesa e do encontrão para romper a barra compacta dos olheiros de espadoas nuas, chegou a dizer-lhe, franzindo a testa:«O senhor não cabe? se quer passar espere que acabe a polka!» O bom do burguez não sabia ao certo se era contradança ou polka o que se estava dançando.
No entanto, o nosso amigo Pires, com quanto pesaroso de que Jorge alli não estivesse, para maravilhar-se dos recursos da eloquencia afeita ás difficuldades do salão, conversava assim com a senhora attenciosa:
—Quando tive a honra de impetrar de v. exc.ª a graça d'uma contradança... (Silvina poz o leque diante dos labios) acabava eu de dizer a um amigo meu que o olhar contemplativo, la réverie, com que elle fitava v. exc.ª, era merecida, justificada, e...
—Muito agradecida;—atalhou Silvina, tregeitando com o leque e a cabeça uma evolução de movimentos indescriptiveis—mas eu não reparei bem no amigo de v. s.ª, que me distinguia de modo tão lisongeiro.
—Se v. exc.ª tem a bondade de olhar em frente, ha-de encontral-o extasiado...
[40]—Extasiado?! Ora isto parece-me que vai passando da lisonja á galhofa!
—Oh! minha senhora... Isso offende-me e punge-me, acudiu Pires com o mais comico azedume.
Silvina relanceára a vista como quem não via, e voltando-se para o cavalheiro, disse:
—É do Porto aquelle senhor?
—É da provincia, minha senhora, estudante de Coimbra, meu condiscipulo, chama-se Jorge Coelho, pertence a nobilissima familia, e assevero a v. exc.ª que é um coração virginal, intacto, fervoroso, sentindo hoje pela primeira vez os impetos juvenis do amor.
—Não admiro, porque é muito novo.
—Muito novo! oh! minha senhora! Quantos velhos n'aquella idade! Aqui estou eu, de pouca mais idade que elle, e me considero já desillusioné, decrepito.
—Realmente?!... Perdoe-me a curiosidade—disse Silvina, com muita graça de fina ironia, sustentada com imperturbavel seriedade.—Queira dizer-me em que romance poderei encontrar o seu caracter, já que não devo esperar uma revelação das tempestades que o fizeram tão cedo naufragar!
—O meu caracter ainda não está escripto!—respondeu Pires, avincando a testa, e fitando-a de esguelha.
N'este comenos entraram os pares latentes em movimento, e a phrase ficou engasgada até ao proximo intervallo. Enganou-se, porém, o sceptico. Silvina, como esquecida da suspensão da lugubre narrativa, perguntou ao cavalheiro:
—O seu amigo demora-se no Porto?
—Não são essas as intenções d'elle, minha senhora; mas é de presumir que um aceno de v. exc.ª o faça esquecer a familia carinhosa que o está esperando.
—V. s.ª depois que envelheceu—replicou Silvina cortando as palavras com frouxos de estudado riso—julgou [41]salutar cousa o distrahir-se da sua gotta moral zombando das pessoas que ainda crêem e esperam alguma cousa d'esta vida?!
Acudiu Pires:
—Eu que digo isto é porque sei o que v. exc.ª é para Jorge. Respondo gravemente ás suas facecias adoraveis. Sei que as virtudes de v. exc.ª...
—V. s.ª conhece-me? perguntou Silvina de golpe, e formalisada.
—Não tenho essa honra, minha senhora.
—Quem lhe disse que ha em mim virtudes?
—Rosto angelico e véo translucido: homem experimentado adivinha o coração do anjo.
Pires ia dizer mais quatro aforismos do seu uso, quando terminou a contradança. Conduziu a dama á sua cadeira, e disse-lhe:
—Eu queria ter a felicidade de apresentar a v. exc.ª o meu amigo Jorge Coelho; porém, rogo-lhe me diga se devo procurar alguem que me apresente a v. exc.ª
—Não tenha esse incommodo. Fico sabendo que v. s.ª é um cavalheiro da boa sociedade, e tanto basta. Sei tambem que é academico, e sympathiso com essa qualidade porque tenho em Coimbra dous irmãos no seminario, e não sei que analogias me fazem presar os estudantes.
—Direi mais, acrescentou o academico, enclavinhando os dedos para ajustar as luvas, e tirando pelas lapelas da casaca a puxões de gentil effeito—direi mais a v. exc.ª que me chamo Leonardo de Sousa Pires e Albuquerque, a minha casa é na Maya, e costumo passar as ferias no Porto, porque sou avesso á vida pastoril, e não tenho senão mediocres tendencias para admirar a natureza bruta...
—Não é poeta?—interrompeu Silvina, ageitando o lindo rosto a um ar de zombeteira admiração.[42]
—Se sou poeta!...—disse Pires, enviezando para o estuque do firmamento olhos de lastima.—A poesia é flôr muito delicada, que o primeiro vendaval do coração desfolha. Desfolhada a primeira flôr, o vaso que fica não tem seiva para outra: é como a terra ferida de maldição.
—Isso é triste—acudiu Silvina, tregeitando com a cabeça e olhos umas gaifonas piedosas.
—Tristissimo, minha senhora!
Agora eram de victima os ares do Fausto da Maya, e a dama já pedia a Deus que não viesse para junto d'ella a prima, com medo de espirrar uma d'aquellas casquinadas de riso, que a mais sisuda prudencia não refreia.
[44]Jorge Coelho, no entanto, sem bem saber o que o impacientava, não podia tolerar a detença do amigo. «Se eu soubesse dançar—dizia de si para si o academico—teria feito o que fez Pires... Será de mim que elles estão fallando? É natural, porque a vejo fitar-me com attenção... Se me eu avisinhasse, daria melhor occasião a Pires de me apresentar...»
E, obedecendo á hypothese, deu alguns passos; mas tão a medo o fazia, que antes parecia querer que o não vissem. N'isto, já o amigo o andava procurando, e Silvina, vendo a direcção errada de Pires, acenou-lhe de longe, indicando com disfarce onde estava Jorge.
O pobre moço tremia quando viu que era procurado. A sua primeira idéa foi fugir da sala, e não duvidamos crêr que fugiria, se Pires lhe não trava do braço, dizendo:
—Olha lá como lhe fallas: a mulher tem espirito, e é um genio.
Isto foi peior.
—O meu amigo Jorge Coelho que eu tenho a honra de apresentar á exc.ma snr.ª Dona...
Pires estacou. Silvina sorriu-se. Jorge corou, baixando os olhos.
—Não sabe o meu nome? isso não importa disse a dama.—Eu me apresento. O meu nome é Silvina. Tenho a gloria de ser tambem aldeã. Nenhum dos tres póde rir dos outros. Então o snr. Jorge não dança?
—Não, minha senhora, eu não sei dançar—disse Jorge com infantil ingenuidade.
—Não sabe, porque não ama a dança, não é assim?
—Em minha casa ninguem aprendeu a dançar. Minha mãi foi educada n'um convento, e de lá sahiu para ser esposa, e governar sua casa n'uma terra onde nunca se deram bailes. Eu sahi da minha aldéa ha menos d'um anno, e tenho consumido todo o meu tempo no estudo...
[45]Estava Silvina gosando sem motejal-a a simplicidade de Jorge, ao passo que Pires lamentava as pueris historias do seu acanhado amigo. Como quizesse salval-o, o imaginoso academico interrompeu-o com não sabemos que espirituosa semsaboria, que Silvina atalhou logo:
—Deixe fallar o seu amigo que me está encantando com a singelesa do que diz...
—Eu retiro-me, minha senhora—disse Pires, arqueando-se—porque estou compromettido para a seguinte polka.
—Tambem eu...—disse Silvina, já quando o par se avisinhava, ao qual pediu desculpa, de não dançar, por causa de uma forte dôr de cabeça. E voltando-se para Jorge, que não soubera avaliar a fineza do fingido incommodo:
—Tem aqui esta cadeira... Sente-se, e conversemos da sua familia, porque talvez precise desafogar saudades d'ella em coração que o comprehenda.
Jorge cobrára alento com este ar de familiaridade. Fez-se para elle profundo silencio em todo aquelle borborinho da sala.
Era a primeira vez que se via em face de uma mulher, que lhe não chamava irmão ou filho; e, todavia, tanta ingenuidade fraterna respirava o rosto de Silvina, que, por encanto, o timido moço, sem forcejar contra o enleio da alma, tirou de lá expressões de sorte affectuosas que nem os mais destros comicos de sala as diriam assim.
—Tem muitas saudades dos seus, snr. Jorge?—disse Silvina com brando mimo.—Está ancioso por chegar aos braços de sua mãi?
—Quizera que v. exc.ª a conhecesse—disse Jorge maviosamente.—Havia de amal-a... que minha mãi está tão longe d'este mundo brilhante, vive d'um modo tão differente do das pessoas educadas como ella foi, que me faz dó o que era e tem sido ha vinte annos, [46] contando hoje apenas trinta e seis, n'uma aldêa, sem outra convivencia senão a de seus filhos, e sempre magoada das saudades de meu pai... Ha duas horas que penso em v. exc.ª e n'ella...
—Em mim?—atalhou Silvina, com sorriso de bondade—lisongeia-me infinitamente a companhia que me deu no seu pensamento; mas poderá dizer-me que analogia de imagens achou entre mim e sua mãi?
—Immensa, e não sei dizel-a. Se eu podesse bem interpretar este sentimento mysterioso, diria, d'outro modo, que hoje, pela primeira vez, se espelharam em minha alma duas imagens de mulher. Até ha pouco, havia lá a de minha mãi sómente, e os traços informes, a sombra, o indefinido do ser que vaga entre o céo e a imaginação do poeta. Agora...
—Essa segunda—interrompeu Silvina com uma gravidade impropria de sua idade e modos usuaes—não poderá jámais deslumbrar a de sua mãi, porque os entes de imaginação, visualidades passageiras, nunca usurpam a posse aos entes que a natureza nos está dando todos os dias em realidade de amor e carinhos. E depois, snr. Jorge, verá que é inutil esperar aquelle puro original da cópia que a sua phantasia vai debuxando, em quanto o coração novo e enganado lhe empresta as côres do céo. Affirmo-lhe, senão authorisada pela experiencia, amestrada pelo exemplo e confissões sinceras das minhas amigas, affirmo-lhe que o seu indefinido de poeta nunca lhe ha-de avultar em corpo e alma, se os olhos descerem do céo a procural-o na terra. Guarde, pois, com extremosa avareza a imagem de sua mãi, e não consinta que outra lhe dispute o exclusivo amor que lhe dá.
Disse.
O academico ouvia, pela primeira vez, a expressão floreada, a linguagem musical, o periodo arredondado, como de folhetim ambicioso, na bocca de mulher. Achava elle certa incongruencia entre as feições menineiras [47] da provinciana e o tom sentencioso do discurso. Relanceou-lhe subito na memoria o meu nome, segundo me elle contou depois. Lembrou-se d'aquelle meu estirado discurso, na sua aldêa, dezoito mezes antes. Tropeçou na hypothese de que o singelo exterior da palavrosa menina mascarava um coração desbaratado por desenganos, e engenhoso de armadilhas a corações noviços. Alguem diria que o silencio de Jorge, seguido á ultima expressão de Silvina, era acanhamento. Já não: era a duvida.
—Ficou tão pensativo, snr. Jorge—tornou Silvina.—Está pesando no seu juizo a verdade das minhas palavras? Impressionaram-no tanto!...
—É verdade, minha senhora; estava pesando as palavras de v. exc.ª com outras que me disse um homem de trinta annos.
—Contrarias ás minhas?
—Semelhantes na intenção; mas muito mais desconsoladoras na fórma. Disse-me elle que ha muitas mulheres que matam, e uma só que salva.
—Mas affirmou-lhe haver uma que salva?
—Sim, minha senhora.
—E quantas vezes lhe disse elle que podia ser victima de sua devoção e generosidade a mulher que sente em si o coração salvador?... Creio que me não fiz comprehender...
—Comprehendi, minha senhora. Pergunta v. exc.ª se a mulher capaz de erguer a alma despenhada de sua grandesa, não se despenhará ella mesma n'essa generosa tentativa;
—Entendeu.
—Não sei responder, snr.ª D. Silvina. Eu não sei nada do mundo. Ignoro os precipicios em que póde cahir o homem, e não sei tambem a que alturas póde levantal-o o amor. Já imaginei o mundo mais agradavel: começo a dar cem illusões por cada realidade. Não cuide v. exc.ª que eu fiz pé atraz á vista da verdade despoetisada, [48] e feia como dizem os pessimistas que ella é, vista á luz da razão pura; vejo, porém, que se vão fenecendo as flôres da minha imaginação á maneira que escuto e pondero, com religiosa crença, as palavras que v. exc.ª me diz, e as que me disse o bom ou funesto despertador da minha razão, que dormia acalentada nos braços da poesia. De que serve o desengano antes que a fatal experiencia no'l-o dê?! Para que me diria v. exc.ª, com ar de tanta verdade e segurança, que eu nunca encontrarei o puro original da cópia que a minha phantasia entrevê?!
—Diz bem! atalhou Silvina meigamente triste, ou adoravelmente dramatica—diz bem! Arrependo-me da injustiça que fiz ás mulheres, e mesmo da crueldade com que me tratei a mim propria. Fallei pela bocca da sociedade, snr. Jorge Coelho. Tenho ouvido, e lido nos romances as palavras geladas e desanimadoras que lhe disse, com o immodesto animo de distinguir-me a seus olhos. Menti-lhe, e menti ao meu coração. Não se desalente ao entrar na vida, e nunca de mim se lembre como de fada má, que lhe fadou a desventura. Espere, creia, e obedeça aos impulsos do coração, em quanto a peçonha da mentira o não contaminar. No mundo deve existir a imagem da mulher digna de senhorear-lhe a alma com a de sua mãi, cuja face eu beijaria, hoje, se podesse, com respeito e ternura de filha. Quando estiver nos braços d'ella, diga-lhe que encontrou no Porto, e n'um baile—onde raro sentimento grave entretem por momentos o espirito—diga-lhe que encontrou uma mulher que lhe manda n'esta rosa um beijo de sympathia e veneração.
E, dizendo, tirou do decote espeitorado do vestido a rosa, chegou-a aos labios, e deu-a com gracioso ademane a Jorge, que lh'a recebeu com mão tremente.
—Cumpre o meu pedido? tornou ella.
—Pergunta-me se cumpro? É este um encargo doce [49] que v. exc.ª faz ao meu coração. Farei que minha mãi receba nos labios o beijo que vai n'esta flôr. Depois, pedir-lhe-hei que m'a ceda, que eu possa chamar-lhe minha, enthesoural-a como se ella para mim cahisse da grinalda d'um anjo... Se ha no coração poesia mais sublime que a da saudade...
—Ha, sim... a da esperança...
—A da esperança!... balbuciou Jorge, levando machinalmente a rosa aos labios, e córando da irreflectida acção que se lhe afigurou menos respeitosa.
(Oh santa innocencia! não sei se és mais tola que santa!)
Desculpem o parenthesis que desfeia um pouco o bello e harmonioso da fórma dialogal. Guarde-me Deus de motejar com insulsas facecias a candura, o rubor, a timidez encantadora dos vinte annos de Jorge. Invejo-lhe o que já não posso haver nem sequer com grande esforço d'arte; mas rio-me d'elle e de mim, quando as galhofeiras memorias do que fui, ha hoje quinze annos, sahem d'entre as flôres mirradas da minha primavera, e vem cá a este glacial dezembro da vida fazer-me assuada e zombaria, para que eu me dôa e corra das criancices de então. Pois rio-me com effeito, que é para isso a cousa, e riam-se, á vontade, os que de mim souberem que muitas vezes todo eu me incendiava em carmim e rosa, quando o olhar logrativo da mulher me alvoroçava o pudor a ponto de afeminar-me, e fazer de mim uma menina que... Quasi me escorregava agora dos bicos da penna uma necedade das que se não desculpam á propria santa innocencia que, repito, não sei se é mais santa que tola.
Vamos á historia com ajuda da providencia dos romancistas, a qual providencia, muitas vezes, abre mão d'elles, e deixa-os para ahi parvoejar que é mesmo cousa de peccado.
Silvina deu fé do rubor de Jorge, e...—querem [50] saber a verdade inteira?—não gostou. É um segredo da essencia mulheril o dissabor que a molesta, a seu pesar... (vá, diga-se a seu pesar) quando o homem se amulherenga ao pé d'ella, e lhe não deixa o exclusivo de mulher. Receios de desmerecer em graças quando lhe é força ser mulheril? Consciencia ingrata d'uma superioridade que a desenfeita? Recursos que perde de captivar pelo mimo, com a brandura caridosa, por estremecimento do pudor, toques do pejo virginal, que ora lhe transluzem nas faces, ora lhe cerram os labios? Não sei se é tudo, ou alguma cousa, ou nada d'isso. A verdade é que a mulher não gosta de homens que coram, de homens que choram, de homens que... não são homens, está dito tudo, e n'isso ficaremos, se acham que está discutida a materia. Materia... que aleivosia! Isto é espirito o mais espiritual que póde ser. Espirito transcendental, d'aquelle que devia andar na mente de muito casquilho, paralta, janota, ou como é que se chama a tal alimaria, que se desentranha em lufadas de cynismo nos botequins, e vai ao pé das costureiras tartamudear jaculatorias de ternura.
Fica, pois, justificado o desgosto de Silvina, quando viu Jorge córar, por ter beijado a flôr, onde os labios da peregrina minhôta haviam imprimido o beijo de encommenda para a provincia.
—Agora, disse ella; são dous os beijos que leva a sua mãi, em uma só flôr. Queira Deus que o halito dos labios do filho não tirasse o perfume ao dos labios da amiga.
—Creio que sim—disse Jorge corando outra vez—creio que sim...
—Porque?!—atalhou Silvina com despeito mal comprimido.
—Porque sinto no coração o perfume do seu beijo.
Sahiu-se melhor do que eu pensava. É aquella uma das respostas que costumam ir de casa gizadas; mas [51] creio no improviso. E assim, explicado o segundo accesso de escarlate, desvaneceu-se o desaire em que estava Jorge na opinião caprichosa da dama, que replicou muito requebrada:
—Pois não esperdice o perfume, porque nunca sentirá no coração outro mais puro, mais digno de incensar o seu amor reflectido do céo.
—Amor!—interrompeu Jorge com exaltado impeto de criança—Olhe que essa palavra póde ser-me veneno para toda a vida, se v. exc.ª consentir que eu a guarde...
—No mais intimo de sua alma... Guarde... que nunca a proferi com tão pouco conhecimento de quem a dou, e tão pouca esperança de a vêr florir em venturas.
Jorge Coelho ia naturalmente córar terceira vez, quando Francisquinha da Cunha chegou, com ar de zanga, e disse:
—Vamos, prima, que o pai quer sahir... e é tão cedo... que raiva! estava agora ouvindo uma enfiada de tolices tão peregrinas...
—De quem?
—Eu sei cá de quem? d'um homem que se chama Pires, e que este senhor conhece... Não lh'o diga, não? Eu fui indiscreta...
—Não diz nada—acudiu Silvina—pois não, snr. Jorge?
—Eu, minha senhora!...
—Asseverou-me—continuou Francisca gesticulando vertiginosamente com cabeça e braços—que se eu o não amasse, havia de espirrar á minha fronte de algoz o seu sangue de Larra, de Werter, de... Ai que homem, que homem aquelle! O que se produz na Maya! Ó filha, eu não posso perder aquillo!... Pires é meu...
Ai! o pai... Vamos, Silvina.
[52]Silvina estendeu a mão a Jorge, e disse a meia voz:
—Vá vêr-me ámanhã ao jardim de S. Lazaro.
Jorge balbuciou alguma cousa que não vinha do coração. N'este momento, um receio doloroso o affligia com esta pergunta: «Esta mulher irá escarnecer-te, como viste escarnecido o teu amigo?»
As occorrencias do jardim de S. Lazaro, no dia immediato, não merecem chronica. O que póde, porém, succeder a um moço, que passeia o coração amante, no jardim do Porto, é bom de dizer-se, e folga a moral de ouvil-o.
Se o leitor está no Porto, e vai apaixonado ao jardim de S. Lazaro, e conhece a familia da menina casadoura, por quem anda em brasa, faz a sua primeira cortezia, e foge de encontral-a segunda vez, porque repetir a cortezia é, além de provincianismo puro minhoto, cousa que cheira a inconveniencia, e póde ser até escandalo. Resta-lhe o expediente commum, e salva assim a honra das familias: é amoutar-se como fauno por entre [54]as murtas e bosques de acacias, lobrigando aqui, e além, a caça estranha.
No jardim de S. Lazaro os dous sexos dão ao passeio o que as sovinas municipalidades não tem querido dar-lhe; isto é, uma luxuosa superabundancia de estatuas, as quaes, tirante a alma, nem sempre se avantajam ás do marmore nacional. Sentam-se as meninas, mui bem compostas e ageitadas de mãos e cabeça, e alli se estão deleitando na vista do repuxo, em quanto o papá rufa com tres dedos na tampa da caixa do tabaco o compasso da modinha conhecida de Verdi ou Donizetti, que as trombetas bastardas estão executando... executando, sim, é a palavra.
Ao relance artistico dos olhos não é feio aquillo. Cuida enxergar o myope em cada renque de cadeiras uma fileira de madonas de la sedia; mas a illusão d'um myope não vale os desconsolos de tanta gente que tem a sua vista escorreita, e pensa que a estatua deve ter um quantum satis de espiritualidade.
Ha pontos na casca do globo em que a virtude custa pouco. Não sei se a bemaventurança é accessivel por igual de todas as terras; mas, convencido da rectidão que assiste aos negocios dos outros mundos, quer-me parecer que quatro virgens a um tempo, sahidas em espirito, uma de Pekin, outra de Constantinopla, outra de Paris, e a quarta do Porto, devem de ter differente recebimento e quartel nas regiões da gloria, onde ha premios para a virtude.
Na razão directa da tentação, nos esforços em rebatel-a, é que deve ser aferida cada alma victoriosa que, apesar dos demonios succubos e incubos, se alista nas legiões do céo. Não se dogmatisa, entendam: quer-se escassamente enunciar idéa nova, resaibada de heresia, a vêr se algum hypocrita illustra o livro, com as injurias da sua caridade apostolica. Não ha no romance outro [55]merito que o inculque, nem perspectiva melhor agourada para o editor.
As adoraveis virtudes das senhoras do Porto não são de todo um merecimento: orçam mais por uma necessidade. O homem d'alli sente um terço, ou ainda menos das precisões espirituaes que, n'outras partes, incommodam o coração humano. Esta feliz frugalidade procede do geito d'aquella sociedade, geito antigo que degenerou em aleijão, rachitismo moral, corcunda hereditaria, e de mais a mais pegadiça, por quanto, se não é do Porto, e por lá apégar alguns mezes, leitor, apalpe as costas, e topará uma protuberancia a crescer, a crescer, até se formar corcunda, que irá comsigo a stoda a parte.
Aquelle aleijão, de barreiras do Porto a dentro, não fica mal a ninguem. Os liliputianos, conta Swift, chanceavam o viajante europeu, que tinha a ridicula felicidade de ser um homem bem apessoado e perfeito. As bellezas do Congo recuam de puro nojo diante de um formoso nariz branco sem pingentes. No Porto ha o escarneo e o tedio que explicam o paradoxo do selvagem.
A juventude masculina da cidade heroica está em contacto com a civilisação d'este seculo pelo alfaiate. Não poderam os velhos trancar as portas do burgo de Moninho Viegas á invasão dos figurinos. Calção e rabicho foram banidos; o tamanco e o chinelo d'ourélo cederam, constrangidos, o joanête indigena ao verniz, e ao couro da Russia; o difficil, porém, era pentear, vestir e calçar o espirito de gaito e arte que a gente, fitando em rosto o filho da civilisação portuense, não tivesse de descer os olhos a buscar-lhe nos pés o tamanco. É o sestro das transfigurações de golpe e abruptas.
Um joven bem estrellado de minas e camapheus, chama-se no Porto um janota. A menina ingenua diz á visinha: «conhece aquelle janota?» ou «fulaninha namora [56]um janota louro.» Não se cuide, porém, que este epitheto implica mofa ou menospreso como em Maçãs de D. Maria, ou Lamas d'Orelhão. O janota portuense é uma cousa séria, que póde ser vereador, e irmão da ordem terceira.
Por via de regra, o janota é uma creatura que nasce, cresce, abre-se em florescencia variegada de frakes, e colletes, e pantalonas; toma posse do balcão paterno aos trinta annos, corta o bigode para que lhe descontem as letras, põe oculos se teve o infortunio de estragar a vista com a luneta que lhe servia de não vêr nada, fructifica em crianças gordas que entrajam á escoceza, e escôa-se de vida através de quarenta annos de lerda pachorra de espirito, legando á prole um nome limpo, com pequenas farruscas que se ensaboam na barreia de um necrologio, e dous legados de cincoenta mil reis ás entrevadas da Cordoaria, e alguma cousa ao hospital do Terço.
D'este viver assim resultam duas cousas que explicam muitas outras: primeira, que o elegante portuense dispende os annos perigosos da adolescencia vestindo-se de manhã para sahir de tarde; segunda, que as meninas, ao despegar da costura, ageitam os laçarotes do toucado, entufam os punhos das manguinhas, encostam o cotovello ao peitoril da janella, seguem o olhar de esguelha que lhe vai revirando o terceiro ou quarto janota predilecto, e fecha a janella quando a passagem do quinto é duvidosa.
D'est'arte, as paixões são innocentes e ao mesmo tempo substanciaes como um caldo de gallinha. As relações epistolares não derrancam a pureza das olhaduras. A carta, em regra, é declaração escripta que tolhe a poesia da declaração muda. Palestras, quer de sala, quer a horas mortas, da rua para a janella, que piedosa criada deixou aberta, são, se a patrulha o tolera, a morte de ambas as declarações, porque o janota que falla é [57]muito menos soffrivel e grammatical que o janota que escreve. Ainda assim, o casamento remata isto que se chama o namoro. E o mais é que ella e elle, nas suas horas de recolhimento, cada qual a só por só com a sua consciencia, contempla saudoso o passado e diz: «Que bella mocidade eu tive! muito me diverti!»
Ponderam alguns authores que a morigeração dos costumes portuenses é o necessario effeito do atraso da civilisação e policia da classe media, em que as outras no Porto se embaralham e perdem. Esta palavra «civilisação» anda mal trazida para tudo. Se o refinamento das industrias, se a arte de crear capitaes, no minimo do tempo e com diminuto trabalho, constitue a maxima civilisação material, o Porto ganha a aposta aos mais ambiciosos prospectos de riqueza aventados pelos economistas. E assim é que alli enxameam os Midas no ouro e nas orelhas; porém, menos castigados que o fabulado Midas da theologia grega, logram digerir o boi e o toucinho na succulenta substancia que a natureza lhes deu.
Os que negam ao Porto a vanguarda do progresso industrial, que é a mesma civilisação, irmã gemea da intellectiva, e fonte da sã moral, derruem desde os alicerces a sciencia moderna, confessando assim a utopia do systema vulgarisado nas escolas, nas gazetas, e nas fórmas de governar das nações mais cultas. No Porto, dão-se as mãos a riqueza e os costumes edificativos, para se justificarem estes por aquella, e a primeira pelos segundos. A industria é a de hoje: os costumes são os de ha um seculo. O chefe de familia poderá ser moedeiro falso, negreiro aposentado com exercicio na casa real, alliciador de escravos brancos, contrabandista tolerado; mas a filha d'esse homem da época vive intemerata como a filha de Virginio; cuida que seu pai, recolhendo a casa encalmado e suado, vem de servir a patria como Cincinnato; e, chegada a occasião de exercitar as [58]virtudes antigas, não duvidará ser Lucrecia, e Lucrecia menos equivoca que a de Colatino.
Sobre este assumpto, mediocre seria o engenho que não produzisse um volume. Em louvor do Porto, escreveu o socio da academia real das sciencias Antonio Augusto Teixeira de Vasconcellos dous folhetins de nervo e polpa, com muito sal attico á mistura. O abundoso escriptor escreveria in-folios, se lhe aprouvesse, porque já um dos sete sabios da Grécia, Pittacus, parece que era, escreveu um volume dos louvores da mó d'uma atafona; e, para encarecimento do rábano, deixou Marciano um tractado muito de vêr-se. O talento é uma cousa temivel.
Ora não vão já d'aqui os malsins de intenções maliciarem essas inoffensivas palavras, que não desprimoram, nem arguem deshonra ao paladium das liberdades patrias, como usam dizer os artigueiros da terra a proposito de qualquer empeço que lhes assombre o seu municipio, se acontece o governo ir de encontro a alguma postura sobre a carne de porco, ou cousa assim em que valha a pena lembrar ao mundo que o Porto é o paladium das liberdades patrias.
N'isto pensava eu no jardim de S. Lazaro, n'aquelle dia em que Jorge Coelho, mais imprudente que atrevido, se avisinhára de Silvina, que, passados minutos de conversação, lhe disse:
—Não se demore mais tempo, porque toda a gente nos observa com ar espantadiço. Eu cuido que estamos dando grande escandalo.
Jorge Coelho retirou, e deu o braço ao amigo Pires, que fremia de raiva resultante d'uma desfeita que recebera de D. Francisca.
—Desfeita!—disse Jorge—pois uma senhora faz desfeitas!?...
—O requinte hediondo da insolencia!—vociferou o fidalgo da Maya tascando com phrenesi a ponta do charuto.
[59]—Que te fez?
—Ouviu-me hontem na «Assembléa » uma declaração, acolheu-a com doudo enthusiasmo, disse-me que eu era um homem tão admiravel como perigoso; tremeu de pavor quando eu lhe fiz sentir o desfastio com que me arrancaria as entranhas, se me ella não aceitasse a vida como complemento da sua. Tudo isto me authorisava a offerecer-lhe hoje uma carta, com a certeza de me ser aceita. Offereço-lh'a, e ella responde-me que não sabia lêr se não letra redonda! Leonardo de Sousa Pires e Albuquerque sabe vingar-se. Vou ámanhã á Maya; depois... ai d'ella e de mim![60]
Christovão Pacheco de Valladares, morgado de Santa Eufemia, esteve sete dias e sete noites emparedado no seu quarto da hospedaria da «Aguia d'Ouro» depois d'aquelle desastre da «Assembléa.» Alguns hospedes repararam na reclusão, e averiguaram dos criados que exquisito homem era aquelle. D'estes hospedes, o mais grado era o morgado de Matto-grosso, solarengo de «Entre-ambos-os-rios» homem de grandes brios e musculos. Apenas informado, foi bater á porta de Christovão Pacheco, dizendo pela fechadura que abrisse que era parente e amigo. A identidade do parentesco foi de facil prova.
—O primo Pacheco não póde duvidar—disse o morgado de Matto-grosso—que um irmão de meu setimo [62]avô, que havia nome Heitor Moniz de Valladares foi casar á casa de Santa Eufemia com D. Urbana Pacheco, filha de Lopo Pacheco, governador de Cochim...
—A fallar-lhe a verdade—disse o de Santa Eufemia—eu não sei nada de linhagens; mas tenho ouvido fallar a meu pai n'esse governador de Chacim.
—Cochim, primo Christovão, Cochim.
—Ou Cochim, ou lá o que é...
—E saiba que da sua prosapia sahiram os mais illustres sangues das familias do Minho. Talvez v. exc.ª, primo, não saiba que a nossa linhagem está mui de perto aparentada com Porto-Carreiros!
—Não sabia, nem sei de que sirva isso.
—De que sirva isso!—acudiu Egas de Villas-boas Cão e Aboim Encerra-bodes, que assim se chamava o morgado de Matto-grosso. Não diga tal, primo Christovão Pacheco. Pois ignora que do solar dos Porto-Carreiros, fidalgos mais velhos que a monarchia trezentos annos, sahiu ha cinco seculos um infanção, que casou em Castella, e foi tronco da descendencia que vem illustrar-se na pessoa da actual imperatriz de França?1
—Não sabia, palavra de honra, e isso que faz?—tomou o de Freixieiro.
—Faz que somos parentes da imperatriz, e que podemos dizel-o á bocca cheia a esses de sangue azul da capital, que nos chamam a nós fidalgos de meia tigella, esquecidos de que os mais nobres barões da côrte de [63]Affonso edificaram os seus solares entre Douro e Minho, e d'aqui, por si ou seus filhos, acompanharam os reis da primeira dynastia ás conquistas do restante da Lusitania, e d'além-mar.
—A fallar-lhe a verdade, primo, quando entro a pensar n'essas cousas com que meu pai me quebra a cabeça, parece-me que trocava toda a minha fidalguia por algumas libras.
—Oh! que blasphemia!—Exclamou Egas n'um impeto de sincera indignação.—Troca-se por libras um neto de Heitor Moniz de Valladares!?
—Não é trocar-me por libras;—acudiu desabridamente o de Santa Eufemia—é que eu estou de vinte e oito annos, e ainda não pude sahir de casa senão duas vezes com esta; e não tenho remedio senão ir-me embora para Freixieiro, por que meu pai escreve-me hoje essa carta que o primo póde lêr, e depois me dirá se me não era melhor ser antes um caseiro das minhas fazendas, que me não servem de nada, n'esta idade em que eu preciso de dinheiro.
—Vejamos isto—disse o de Matto-grosso, abrindo a carta, e lendo o seguinte:
«Meu estimado filho.
Já te disse que venhas para casa, que não ha dinheiro para andar em folganças. Os tempos estão muito bicudos, e o bicho já pegou nas videiras. Os bezerros do caseiro da Portela lá estão com a molestia, e a cheia levou a parede do lameiro do Quinchoso. Tudo são despezas. O abbade pegou-me pela palavra, e quer que eu mande pôr a porca no sino da igreja. O milho ainda não chegou á conta; os quatro carros que se venderam não chegaram para pagar as decimas. O garrano está de todo espravonado; pozes-te-o bom com a tua ida ao Porto. Tudo são desgraças. [64]Em quanto á roupa nova, deixa-te disso; a casaca que levaste está muito boa, e o melhor é fazel-a em Guimarães, que são mais em conta os alfaiates. Anda-te embora, logo que esta recebas, que eu dou ordem ao meu amigo brasileiro para te dar para a jornada cinco pintos; olha se ajustas a cavalgadura sem gorgeta. Dou-te a minha benção, e sou teu pai carinhoso,
«Vasco.»
—Que me diz a isso?—exclamou Christovão.
—Eu sempre ouvi dizer—respondeu o primo Egas—que meu tio Vasco era um tanto fona; comprehendo que na idade do primo Christovão custa muito não brilhar na sociedade, a que o nosso nascimento nos dá direito; não obstante, seu pai está accumulando para o seu filho unico uma grande casa, e é preciso perdoar-lhe a intenção que é boa. Vamos ao mais importante: o primo quer dinheiro? quer os meus cavallos? quer os meus lacaios? tem tudo ás suas ordens; o que eu não consinto é que diga que trocava os seus brazões por algumas libras. Vamos, franqueza, precisa de fato? Chama-se já aqui o alfaiate: hoje mesmo póde sahir de ponto em branco. Tenho cá dous cavallos, o corisco e o phaetonte: o primo monta qual quizer. Diga-me agora a que veiu ao Porto.
O morgado de Santa Eufemia, entre jubiloso e magoado, contou ao primo a historia do seu amor de raiz, como elle dizia. Mostrou as cartas de Silvina, que elle tinha atadas com um barbante n'uma bolsa interior da mala. Passou á ingenuidade da galhofa que lhe fizeram na «Assembléa» narrando as miudezas da casaca, e expoz o collete ginja e a gravata das orelhas fabulosas. E terminou em tom de lastima, accusando a perfidia da mulher a quem elle quizera dar o seu nome.
Egas de Encerra-bodes, depois de provar que na [65]linhagem de Silvina havia um reles sargento-mór e um capitão de milicias, afóra duas bastardias e um filho sacrilego no seculo XVI, entrou a fuzilar colera dos olhos, tocando no ponto mais grave dos queixumes do neto do governador de Cochim.
—Eu, dizia elle batendo no peito com a mão aberta, eu, primo Christovão, na sua posição teria açoutado os perros que o escarneceram na «Assembléa.» Esses que riram de Christovão Pacheco é a villanagem, cujos paes vieram para o Porto de rabona de cotim, chapéo braguez, e o tamanco herdado. Os nossos caseiros, quando a liberalidade de nossos paes, lhes concedia poderem enroupar de cotim os filhos, mandavam-os para aqui. Os filhos d'esses que para aqui vieram, primo, são os insultadores da risada boçal, os miseraveis que através da casaca, da pelle da luva, e do verniz das botas, estão accusando o costado proprio do fardo, o pé que reclama o tamanco, e a mão que suspira pelo cabo da enxada. Tenho visto esse gentio nos botequins, e por sobre o hombro observo os risos de grosseira mofa com que recebem o despreso dos que elles denominam parvalheiras. Parvalheiras, a nós, primo, que temos em nossas casas a educação que elles tem entre as balanças, e timbramos em honrar os appellidos de nossos avós, descendo até elles para que elles não subam até nós. Se quer vêr quanto é villã a basofia d'estes tendeiros, que trocam por titulos ceiras de figos e costaes de bacalhau, tenha o primo a longanimidade de os admittir á sua convivencia, e verá como se elles desfazem em lorpas cortezias, e citam a cada instante o seu nome, como um dos seus amigos d'elles... Vamos ao ponto essencial. Christovão Pacheco foi ultrajado. Um primo de Egas de Matto-grosso não é ultrajado impunemente.
Tem um rival, primo?
—É de crer que sim.
—Fidalgo?
[66]—Isso não sei.
—Cumpre sabêl-o.
Uma hora depois entraram fardos de fato feito no quarto do morgado de Santa Eufemia, e logo botas do sapateiro francez, e chapéos da melhor fabrica. Vestiu-se Christovão Pacheco, e era de vêr em que gentil moço se transfigurou, e que nova alma entrou n'aquelle corpo. Se elle tivesse lido frei Luiz de Sousa, aquelle esbelto cortezão que se sepultára no frade, recordaria estas palavras escriptas com tanta sciencia do absurdo coração do homem: «É nossa natureza muito amiga de si, e experiencia nos ensina que não ha nenhuma tão mortificada que deixe de mostrar algum alvoroço para uma peça de vestido novo. Alegra e estima-se, ou seja pela novidade, ou pela honra e gasalhado que recebe o corpo: até os pensamentos e as esperanças renova um vestido novo.»2
Assim foi o morgado de Santa Eufemia. Quando se viu, desconheceu-se. Outro corpo e outra alma. Olhava para o polimento das botas, e o vidrado d'ellas reverberava-lhe na alma em lampejos de alegria. Não se cançava de correr a mão pela macia seda do chapéo, e remirava-se ao espelhinho que o imaginoso chapelleiro enquadrára no centro da copa. Com o que elle se ia zangando foi com as luvas de nove pontos e meio, que gemiam pelas costuras, com a pressão do dedo polegar que queria á força entrar com os outros de uma assentada. O do Matto-grosso explicou ao primo os mysterios da luva, com muito mais siso que um certo folhetinista do Porto inventor dos mysterios da dança. No Porto ha gente para inventar tudo quanto ha.
Os dous morgados sahiram da «Aguia d'Ouro» no domingo posterior áquelle em que Silvina fallára um momento com Jorge, no jardim. Para o jardim foram [67]tambem elles, seguindo Silvina e Francisca, que saturam da missa dos Congregados. Quando subiam a rua de Santo Antonio, um grupo de elegantes, para quem a physionomia do morgado ficára indelevel, desde o baile, pararam maravilhados da reforma, fixando-o com impertinente reparo.
O morgado de Matto-grosso estacou em frente do grupo, e disse:
—Ora vamos: andem, ou desandem!
Os elegantes abriram alas, encarando-se mutuamente com um ar de pasmados da propria docilidade.
—Bravo! exclamou Leonardo Pires, que seguia de perto os morgados.
Egas de Encerra-bodes voltou-se rapido para o da Maya, e disse mal assombrado:
—Que é lá isso?
—Disse bravo!—replicou Pires com serena jovialidade, porque gostei immenso de vêr aquelles bigorrilhas ladearem á esquerda e direita, e comprehendi a razão porque elles pararam contemplando este cavalheiro que eu vi, mutatis mutandis, no baile da Assembléa Portuense. Eu honro-me tambem de ser parvalheira, e como tal me apresento, pedindo-lhe que me recebam no numero dos seus conhecidos em quanto me não conhecerem digno da sua amisade. Sou da Maya, da familia dos Pires e Albuquerques, e primeir'annista da faculdade de direito. Tenciono formar-me porque não tenho que fazer, e não me conformo á vida de meus antepassados, que viviam dos galgos e dos cavallos. Abomino cordialmente o Porto; mas ha aqui uma mulher que me tem preso a esta terra pela fibra vingativa d'um coração nobre. Aqui estou esperando a hora de provar-lhe que senão brinca com um homem que tem esculpidas no seio as maximas herdadas de avós.
Pires foi fallando n'este estilo até ao jardim. O morgado de Matto-grosso, scismando com o que seria no livro dos costados [68]a familia de Pires e Albuquerques da Maya, escassamente ouviu o enfatuado palavrorio do mettidiço. Christovão ia um pouco desconfiado da bacharelice de Pires, que já o tratava por «vossê» quando entrou no jardim.
Lá estava Silvina. Rodeavam-na alguns cavalheiros do Minho, censurando-lhe a crueldade com que abandonara o morgado de Santa Eufemia. D. Francisca da Cunha chanceava com remoques os patronos da victima do collete-ginja. A fidalga de Freixieiro, esporeada pela prima, fazia tambem riso do morgado, calando os rumores da consciencia que a não louvava. Era, pois, certo que o coração d'esta menina, degenerado acaso do seu bom natural, em poucos mezes de pratica de outra sociedade, se estava doendo de ter desconfessado, no baile, o amor de um homem, cuja mão tres mezes antes apertára com fervoroso amor e esperança de ser d'elle.
Jorge Coelho presenciava de longe, e cioso, a attenção que Silvina dava aos cavalheiros minhotos. Não os conhecia, para afoutar-se a entrar na roda, e interrogar com uma palavra vaga o coração de Silvina. Esta, porém, repellindo com desdenhosa philosophia os pesares que secretamente a remordiam, ergueu a fronte desanuviada, poz os olhos nos de Jorge, e fez uma ligeira cortezia, que todos julgaram ser um aceno para chamal-o.
A este tempo chegavam, perto de Silvina, Egas de Encerra-bodes, Christovão de Valladares, e Leonardo Pires. O do Matto-grosso comprimentou alguns primos que estavam na roda; e o de Santa Eufemia, voltando as costas para as senhoras, respondia, sem saber o que, a algumas perguntas d'um cavalheiro. O inquieto Pires, furando por entre todos, foi apertar a mão a Silvina, e dizer-lhe que estava o ideal da quinta essencia das fadas, com o que D. Francisca se riu, e riso fôra aquelle que [69]abrira na testa de Pires um vinco dos que promettem cataclismos.
—Dá-me novas de Jorge?—disse Pires a D. Silvina.—Eu cheguei hontem da Maya, e não pude ainda encontral-o no hotel. O amor reduzil-o-ia a Sylpho, minha senhora?—proseguiu o estabalhoado, mordendo o charuto ao canto esquerdo dos beiços, e arqueando os braços na cintura.
—O seu amigo, disse Silvina, em voz alta, para desaffrontar-se da grosseira postura do morgado—está defronte de mim.
Pires fez uma pirueta sobre o calcanhar direito, fitou a luneta no condiscipulo, contemplou-o da altura da sua critica, volveu de novo o rosto risonho para a dama, e disse:
Sobre a pyra fumegante,D. Francisca deu largas a uma risada estridula. Silvina sorriu prasenteiramente á tolice. Alguns morgados receberam o dito como cousa de espirito. Pires, contente do seu auditorio, ia retirar-se quando o morgado de Santa Eufemia, voltando a cara jubilosamente soez para o grupo, soltou uma cascalhada secca e desafinada que assanhou cruelmente os nervos de Silvina.
Ardem ternos corações.
Todos estes movimentos foram seguidos de outro mais significativo. Os olhares convergiram todos sobre Jorge, que ficou encarnado até ás orelhas. Alguns dos cavalheiros murmuraram o quer que fosse, e nomeadamente Egas de Encerra-bodes fitou-o insolentemente, e disse a meia voz:
—É aquelle?!
—Pelos modos!—respondeu o primo.
—Pobre criança! é preciso dizer ao pai que o mande buscar.[70]
Tinha Leonardo Pires, á volta com muita pequice, assomos de brios capazes de enganar a gente. Não levou em paciencia que os morgados rissem do seu amigo. Encarou com ferocidade o de Matto-grosso, e disse, estendendo o braço em attitude esculptural para o lado onde Jorge estava:
—Aquella criança, que alli está, tem um dedo de homem, que faz recuar perfeitamente o gatilho de uma pistola.
Os circumstantes algum tempo não tugiram. Se não fosse o melodramatico da postura, a cousa não era para rir; mas a lentidão, com que Pires desceu o braço, fez espirrar uma cascalhada universal, salvo Silvina que arquejava em ancias de raiva.
[72]Jorge conheceu que o escarneciam. Ergueu-se, veiu direito ao grupo, accendeu o charuto no de Egas de Encerra-bodes, murmurou seccamente um obrigadissimo, e foi saudar Silvina e Francisca com a desenvoltura desacostumada que lhe dava agora o ciume e a ira.
Silvina, contente da façanha, deu-lhe lugar immediato no seu banco. Porém, o pai de D. Francisca da Cunha, adivinhando tempestade nos olhares coriscantes de Christovão Pacheco, ergueu-se, puxou para baixo as pantalonas que tinham marinhado até meia-canella, e disse:
—Vamos, meninas, são horas de jantar; vamos ás sopas.
Levantou-se Jorge, sem ter dito palavra; mas Silvina, estendendo-lhe a mão, de sorte lh'a apertára e sacudira, que fez evidente a intenção de tornar bem reparado o feitio, muito de notar-se em menina de sua idade e educação aldeã.
Mal as damas voltaram costas, o morgado de Santa Eufemia foi bruscamente a Jorge Coelho, e disse-lhe:
—O senhor é um petisco! Não se me ande a fazer fino, quando não...
Jorge respondeu assim á brutal arremettida:
—A phrase é de carreiro; e, se não é carreiro quem me insulta, deve de ser um embriagado.
Leonardo Pires dá um passo á frente de Jorge, põe a mão no peito, e exclama nem facundo nem irado:
—Eu sou insultado na pessoa do meu amigo: exijo uma satisfação.
O fidalgo de Traz-os-Montes, fazendo signal de retirada á filha e sobrinha, entremetteu-se no grupo que se ia cerrando, abriu os braços, e tirou do peito estas memoraveis palavras:
—Os senhores estão aqui desacreditando a provincia. Se querem ser o que lá no matto são os homens de figados, peguem em dous carvalhos cerquinhos, e [73]deem até tocar a quebrado; mas não queiram que os botem ás gazetas ámanhã. A minha opinião é esta. O menino vá para um lado—disse a Jorge, empurrando-o com brandura—e o senhor morgado para outro. Em quanto á rapariga, minha sobrinha, ámanhã eu a porei em casa do pai.
Jorge, tirado pelo braço de Pires, sahiu do jardim, e pôde ainda vêr nos olhos de Silvina, um movimento de radioso orgulho da bravura d'elle.
Na tarde d'esse dia recebeu Jorge a primeira carta de Silvina que resava assim: «É bello ser amada por um homem de coração e esforço. É bello poder testemunhar a desaffronta do homem que se ama; mas é triste não poder, na presença de Deus e dos homens, dizer-lhe:—TUA POR TODA A VIDA!»
O academico da Maya ouvira lêr a carta, e disse, com quanta vehemencia lhe permittiu a posição horisontal n'um canapé, e as pernas sobre as costas d'uma cadeira:
—Essa mulher tem espirito, palavra de honra! Amor e estilo, amigo Jorge, são o alpha e omega d'esta humanidade perfeita em que tivemos a dita de cahir das nuvens. De que diabo serve a rhetorica com que estragamos a memoria em Coimbra, não me dirás?! Se o padre Cardoso, que fez um compendio da arte de fallar, escrever uma carta como essa, diz tu que eu sou um parvo e que me não hei-de vingar da Francisca da Cunha! Diante d'estes talentos brutos, sem mão d'obra, como é o da tua Silvina, os Quintilianos e os Longinos ficam no tremedal da sua protervia explicando a enallage e o hyperbaton. Oh! o estilo é muito mais a mulher que o homem! Eu dispensava bem tres partes do coração na mulher que me soubesse acepilhar e lapidar um periodo! Ha lá nada mais lindo? A formosura fenece como as flôres; o estilo fica. Silvina, a eloquente Silvina, quando de pura velhice não tiver aquelles dentes [74]de marfim e esmalte, ficará com a bocca cheia de phrases melodiosas, como o canto do cysne. Tu és feliz, Jorge, mas a mesada deve estar nas vascas da morte. Estás sem vintém?
—Não; meu tio padre mandou-me cincoenta mil réis para lhe eu comprar dez volumes da Encyclopedia Catholica, e eu...
—Já devoraste cinco volumes em rost beef, e luvas brancas e charutos, não é verdade?
—E minha mãi encommendou-me duas peças de durante, e não sei que mais, que está esperando ha oito dias... Hontem recebi d'ella uma carta, que me fez pena e saudade...
—Tem estilo?—interrompeu Pires, sentando-se estabalhoadamente.
—Não brinques com cousas sagradas: minha mãi não tem estilo, e n'esta carta o que me diz é copiado do seu livro de orações.
—Ora essa!... Isso é original! Deixas-me vêr a carta-jaculatoria de tua mãi?
—Deixo... Aqui a tens... eu leio.
Jorge Coelho, commovido, leu o seguinte:
«Abro o meu livro de orações e copio estas palavras para que meu Jorge as leia:—A infeliz mãi, cujo filho começa a frequentar as sociedades põe toda a sua esperança na protecção de Maria. Começa o joven mancebo por alguns desmanchos que fazem conceber grandes receios ácerca do restante da sua idade. A mãi assim lh'o diz, e dá os mais ternos conselhos; elle, porém, rebella-se contra aquelle tão puro affecto, contra aquella dolorosa previsão de mãi, e assomando-se lhe pergunta porque duvida de sua honra e prudencia, e acrescenta: Parece-vos o meu comportamento reprehensivel, porque não frequentaes a sociedade: eu faço o que fazem todos.—Infeliz!—a mãi exclama—que te deitas a perder por isso que fazes o que todos fazem.—Ri o [75]insensato dos temores maternos, e adianta-se ás cegas n'um caminho semeado de escolhos. Tudo está posto em aventura: a honra n'este mundo, e a salvação no outro. Não sabe a mãi o que faça para salvar o objecto de tantas lagrimas e crueis angustias. Vê perdido o filho, e perdido para sempre. Maria, porém, consoladora dos afllictos se lhe mostra como dôce visão... E a mãi afflicta, de joelhos, com as mãos postas, exclama: «Ó Maria, auxilio dos christãos, salvai meu filho, rogai por elle!»—Jorge, eu orei com estas palavras: a Mãi de Jesus ha-de ouvir-me, e fallar-te commigo ao coração. Vem, vem para nós: teus irmãos chamam-te com saudade, e eu com lagrimas.»
Leonardo Pires respeitou a commoção de seu amigo, e principiava um discurso de molde segundo o caso pedia, quando o morgado de Matto-grosso, e outro dos cavalheiros que entrava na roda do jardim, assomaram na porta.
—Temos duello—disse a meia voz, Pires, entalando no olho direito o aro circular da luneta e esguelhando a bocca.—Queiram entrar—proseguiu elle, adiantando-se para a porta—se é que entende com o meu amigo Jorge a honra da visita dos cavalheiros.
Egas de Encerra-bodes entrou e disse:
—Vem aqui commigo o snr. Theotonio Tinoco Pitta de Lucena, da casa da Trofa, fidalgo tão antigo como o solar dos Lucenas. O snr. Jorge não me conhece. Eu sou primo do morgado de Santa Eufemia: tenho dito de sobra para justificar o meu nascimento.
—Ha-de perdoar-me—disse Pires,—não precisava v. exc.ª dizer tanto para justificar o seu nascimento...—E atalhou logo a ironia vendo que o vulto do morgado se anuviava de mau agouro:—o senhor morgado é tido e havido na conta de muito bom sangue da provincia...
—E do melhor de Portugal—cortou logo Egas—Vamos [76]ao ponto da nossa missão. Christovão Pacheco de Valladares manda perguntar ao snr. Jorge Coelho se algum de seus avós lhe transmittiu o fôro que torna iguaes no campo da honra, nobre com nobre, as pelejas do pundonor aggravado.
Jorge ficou atalhado com o espavento da pergunta, e ia pedir explicação da linguagem que lhe fez lembrar o tedioso Clarimundo, quando Pires, sacudindo as borlas do seu rob-de-chambre respondeu:
—Jorge Coelho herdou de seus avós a honra, é quanto basta. Na sala do palacio de Cintra não está lá o escudo dos Coelhos, porque o cobre a mortalha da
«..............misera e mesquinhaJorge por sua mãi, é Sepulveda, appellido que traz á memoria o caso miserando, aquelle naufragio de que por ventura das letras patrias nasceu um poema!...
Que depois de ser morta foi rainha.»
—Deixemo-nos de lerias!—interrompeu Theotonio Tinoco.
—Lérias! o snr. Pitta de Lucena chama a isto lerias!—acudiu Pires—Então que quer o senhor?
—Queremos que esse amigo dê uma satisfação ao outro a quem elle chamou bebado hoje.
—Mas, primo Tinoco—disse o do Matto-grosso—bem sabes que o primo Christovão não propõe, nem aceitaria desafio, a quem não tiver nascimento.
—Ficamos agora sabendo que este cavalheiro é de familia de bom sangue...
—Eu não sei de que sangue é a minha familia—atalhou Jorge serenamente.—O meu amigo Pires não o sabe melhor que eu, e vv. exc.as hão-de ter a bondade de dizer ao snr. morgado de Santa Eufemia que a côr do nosso sangue lá a veremos no campo, quando elle quizer.
[77]—Nomeie os seus padrinhos, para nos entendermos com elles—disse Egas.
—Um serei eu, se derem licença—disse a voz de um homem, que entrou de subito no quarto.
—Meu tio!—exclamou Jorge, beijando-lhe a mão.
Era, com effeito, o padre João Coelho.
Leonardo Pires e os outros olharam com veneração para a figura sublime do velho, que trajava rigorosamente as vestes de sacerdote. Jorge baixara os olhos, em quanto o padre, com as palpebras humidas, e as mãos convulsas, fitava e comprimia ao seio o sobrinho. Passados instantes, disse compassadamente:
—Tantos annos e trabalho para te aproveitar, Jorge, e tu em tão pouco tempo te perdeste! Ha menos de nove mezes que sahiste dos braços de tua mãi, e venho-te encontrar na vespera de expôr o corpo e a alma com menos desculpa que o salteador que traz o peito á bala e o coração damnado pela perversidade!
E voltando-se para os tres cavalheiros, disse com uns assomos de nobre authoridade e sorriso ironico:
—Quem são estes folgados rebentos de illustrissimas prosapias que vem aqui desenfastiar-se dos tedios da sua inercia, estragando a alma de uma criança? Ouvi aqui nomear appellidos estrondosos que representam varões de grandes serviços á religião e á patria: é lastima que os netos dos Tinocos e dos Pachecos andem pregoando o desafio, o derramamento de sangue, como prova de honradas consciencias e altos espiritos. Melhor lhes fôra que as suas consciencias fossem mais christãs que honradas. Não se illustram memorias de avós derramando doutrinas impias. Se o seculo as aceita, senhores, então reneguem vv. exc.as das virtudes de seus avós, que outros seculos laurearam. Se os costumes barbaros d'esta civilisação, que por escarneo se chama assim, se conformam com os seus animos, não andem hypocritamente chorando saudades de Sião, os que se [78]atascam nas immundicies de Babilonia. Jorge, eu fui aqui mandado por tua mãi: não quererá Deus que tu desobedeças á voz que te chama. Eu só quero exercitar sobre ti a authoridade do conselho; tua mãi chama-te: deves hoje mesmo sahir do Porto commigo. A vv. exc.as rogo eu mui humildemente que se não afflijam da perda de um noviço na confraria dos heroes do tempo. Costumavam nossos avós, antes de entrarem na cavallaria, velarem as armas no templo do Deus vivo; meu sobrinho vai armar-se cavalleiro, que não é ainda, e depois voltará á arena. Riem-se os nobres senhores? Velar as armas é sacramento de tanto ponto, que nem o fidalgo da Mancha se deu por bem posto na sua missão, antes de armar-se cavalleiro no curral d'uma bodega, e o mesmo foi dar sova brava nos arrieiros. Tens tu já Dulcinea, meu sobrinho? Claro é que sim. Ora, pois, aguarda melhores dias para as tuas façanhas, e diz aos teus padrinhos que te deixem ser mais algum tempo bom filho, bom irmão, e bom christão.
Egas de Encerra-bodes já não estava muito de bons humores com o padre. Tinoco Pitta não o tinha entendido, e abria a bocca pela terceira vez. Leonardo Pires não se atrevia a despregar da lingua aquellas espontaneas e por vezes graciosas parvoiçadas que lhe vinham á flux da abundancia do coração. Jorge Coelho tinha tão de negro cerrado o espirito que não balbuciou palavra. Era impossivel a desobediencia; mas deixar Silvina, sem levar comsigo a certeza de que a distancia não mataria n'ella a paixão nascente, isso era uma dôr que o pobre moço desafogou em pranto desfeito, passando ao quarto immediato que era o de Leonardo Pires.
O morgado de Matto-grosso, para evadir-se á posição embaraçosa em que se via, despediu-se com estas palavras:
—Muito bem: eu vou dizer ao cavalheiro offendido por seu sobrinho, que o offensor não tem imputação, [79]attendendo á sua criancice, e mais ainda ao facto de a mãi o mandar chamar para o seu regaço, como criança que é desmamada de fresco.
—Não, senhor, atalhou o padre com seraphica brandura, diga ao senhor morgado de Santa Eufemia, creio que assim se chama o seu amigo, diga-lhe que seja generoso no perdão das injurias; que não desdoure os seus antepassados barateando o sangue honrado que elles lhes transmittiram; diga-lhe sobre tudo v. exc.ª que seja christão. Lembre-lhe que o desafio é uma ferocidade que nem se quer prova coragem, porque a verdadeira coragem é aquella admiravel abnegação dos louvores do mundo aos impetos da raiva, e valoroso louvavel aos olhos do Senhor é só aquelle que tem mão de suas iras, e desarma com humildade sem baixeza os féros e acommettidas do inimigo.
—Teu tio é grandemente lido nos classicos!—disse Pires, no quarto immediato, a Jorge Coelho, que enxugava as lagrimas teimosas.[80]
Pobre coração! Tão puras lagrimas não has-de choral-as mais. D'essa grande afflicção de que tu appellas para a morte, has-de lembrar-te sempre com saudade, meu amigo. Na tua angustia ha os prantos do anjo, saudoso do céo. Na mulher que deixas, cuidas que te fica a santa companheira do Eden que a tua candura via na terra, aberto ao amor sem mancha, convidativo de santos gosos. De dez em dez annos pararás, no caminho da vida, peregrino da sepultura; voltarás o rosto para aquelle teu dia dos dezenove annos, e verás em flôres, fenecidas mas ainda graciosas, os espinhos por onde a pedaços te fica, meu pobre Jorge, o coração. Saberás então o que é a saudade; pedirás á desgraça dôres semelhantes ás da tua mocidade para abençoal-as; atirarás [82]com o peito ás sarças das paixões vertiginosas para espertares os pungitivos desgostos do amor contrariado. Não já lagrimas, se não fel derramará o coração, que devêras ter dado a Deus, desde que o mundo t'o desbaratou a repellões e injurias. Chora, filho da sina maldita dos poetas, chora no seio de tua mãi; bem póde ser que ainda lá te espere o anjo da tua guarda.
Jorge Coelho não proferira uma palavra desobediente ao tio padre. Apenas, quando enfardava a roupa nas malas, enxugando as lagrimas antes de erguer o rosto disse:—Meu tio entende que me é honroso sahir do Porto sem responder ao desafio?...—Padre João, que abria o seu enorme lenço escarlate para se assoar, ficou algum tempo com os braços suspensos, e o lenço pendurado, e assim esteve, como estupefacto cravados os olhos no sobrinho, que esperava a resposta. O nariz, porém, urgia: padre João Coelho levou o trombetear da limpeza até á hyperbole, dobrou o lenço em quadro, depois enrolou-o, deu com elle mais alguns torcegões ao nariz, armou-se de pitada, e disse:
—Não é Deus que os perde; é o demónio que ensandece aquelles que quer aproveitar. Que é honra, Jorge? O evangelho que te diz das injurias, do odio, das affrontas, das injustiças? O filho de Deus dictou e rubricou com o seu sangue a lei, a regra, os deveres da humanidade; não importa ser o evangelho obra de Deus; não importa que alli venham prescriptas as maximas da boa e honrada vida: o evangelho é já inefficaz por que a humanidade inventou uma honra que se prova e sustenta com o duello: a vossa honra, cegos miseraveis dignos de lagrimas, lava-se no sangue, justifica-se pelo homicidio, ao qual a legislação decreta a forca, e a convenção social o galardão da bravura. Jorge, quem te disse que o assassino era honrado?
O academico apenas respondeu:
—Meu tio, vamos; eu estou prompto.
[83]Leonardo Pires já estava no largo da Batalha, chamando a attenção dos numerosos transeuntes que paravam em magotes para verem o cavalleiro com as esporas cravadas nos ilhaes de uma égua de fina raça que se empinava, e corcovava, e atirava ora couces, ora galões medonhos. É que Leonardo Pires vira D. Francisca da Cunha n'uma janella do palacio do snr. Manoel Guedes, e de si para si entendeu que lhe ia bem dar-se n'aquelle espectaculo hyppico, mesmo com perigo de quebrar a cabeça, como de facto quebrou, e tão desgraciosamente o fez, que Francisca da Cunha, anciada de riso, dizem que cahira extenuada n'uma othomana.
Andava o infeliz Pires atraz da egua espavorida, com ajuda dos gallegos do chafariz, quando Jorge e o tio desceram da hospedaria da Estrella do Norte para a praça.
Apanhada a cavalgadura, indiscreta e desasada para heroismos de amor, Pires montou de salto, e acompanhou até Vallongo o condiscipulo, com evidente desagrado do padre. No caminho, em quanto o egresso ficára atraz compondo os loros do macho fleumatico, o amador infausto de Francisca da Cunha disse a Jorge:
—Que queres que eu diga a Silvina, se o tio a não mandar para a aldêa?
—Diz-lhe, respondeu Jorge commovido, com os olhos marejados de lagrimas—diz-lhe que eu não posso contar com a minha vida para lh'a offerecer. Diz-lhe que eu não fugi de cobarde; por quem és, Pires, não consintas que me ella ultraje, duvidando da minha coragem. Falla-lhe de minha mãi, que eu sei que ella me amará ainda mais, vendo que eu respeito tanto as lagrimas da que me formou o coração que eu lhe dei, e ella achou digno de si. As minhas cartas mando-t'as a ti para lh'as entregares... Silencio, que ahi está meu tio.
—Snr. padre João Coelho, disse alegremente Leonardo, pique o bucephalo cá para a frente.
[84]—Alexandre Magno não montava machos, senhor estudante, respondeu o padre. Andaria mais acertado com a historia se me honrasse antes com as tradições de Sancho Pança. O machinho sabe que leva em cima um engenho velho, que se acerta de inclinar na carga cahe cada peça para o seu lado.
—Mas leva uma grande alma, replicou Pires.
—O macho? perguntou o padre, sorrindo.
—Sim, senhor.
—Lá em Coimbra estuda-se essa psycologia de veterinaria? As grandes almas passaram, pelos modos, dos Aristides e Catões para estes quadrupedes! Se assim é, que nos fica para nós, senhor academico?
—Eu queria dizer ao meu nobre amigo que o macho leva um cavalleiro com grande alma.
—Muito obrigado ao seu favor, snr. Pires. Eu tambem o entendi; mas metti-me a engraçado a vêr se desafiava o riso, do meu pobre Jorge, que vai ahi melancolico, como nunca foi filho algum para os braços de sua mãi e irmãos.
—É que Jorge Coelho, tornou o estouvado infanção da Maya, está como a avesinha a pairar emplumada, que salta para o rebordo do ninho, e vacilla entre ir para a mãi que a está dentro chamando com o cibo, ou voejar para a arvore em flôr que a está enamorando de longe.
—É uma bucolica bonita que o senhor vai poetisando—tornou o padre, fechando o olho direito e sorvendo uma canora pitada pela venta correspondente.—A avesinha (se dá licença, eu componho em linguagem chan e fradesca uma estrophe do idyllio) a avesinha deixou piar a carinhosa mãi, e desferiu as tenras azas na pontaria da arvore florida; e, como quer que as forças lhe cançassem do desusado vôo, não teve a avesinha remedio senão abater-se ao chão para pousar. E vai n'isto, andava por alli á caça de ninhos um gato ou uma gata brava, seja gato ou gata; o essencial é que apenas o [85]triste passarinho apegou, o animal damninho fez-lhe o salto d'entre umas balças, e o filho da pobre mãi, que se morria de paixão no ninho, lá foi empolgado pelo gato ou pela gata... Lafontaine não inventou este conto, e merecia a pena; não importa: compuzem'ol-o nós, snr. Pires, ad usum delphini, e seja delfim o nosso Jorge.
A allusão desgraciosa da gata foi tão clara quanto desagradavel a Jorge. Era uma injuria á mulher querida, á sombra lagrimosa que o ia acompanhando, e instigando a reagir contra o dominio de parentes, e exhortando a emancipar o coração d'uma tutela que lhe deixava da vida as regalias que bastavam á criança, mas não ao homem.
Azedado, pois, pelo motejo da bucolica do padre João, Jorge disse com vehemencia:
—Meu tio offereça a moralidade dos contos a quem lhe pedir lições.
Padre João, depois de breve pausa, respondeu brandamente e com magoada tristeza:
—Não te envergonhes de pedir-me lições, filho, que as não pedes sómente a um velho; dá-t'as um amigo, que foi homem antes de ser frade, e estudou os homens, depois que o mandaram sahir da sua cella, como cousa inutil á sociedade. Se me não quizeres as lições, de que sirvo eu, Jorge? Já agora irei prégando sempre, quer me ouçam, quer me repulsem, como manda o apostolo.. Desagradou-te a allegoria do conto, e convidas-me assim a ser mais natural. Jorge, repara bem no que te diz este velho que, no teu modo pouco respeitoso de fallar a uma mãi, «te premuniu com cabedal de philosophia christã, bastante para defender das tentações todas as nações da biblia exterminadas por causa do peccado.» Sei de cór as tuas palavras, porque m'as entalhou na alma o espinho da ingratidão. Deves-me bons desejos de te fazer bom e honrado: não me sejas ingrato. Agora, escuta, filho. Vinte e quatro horas antes de [86]te apparecer, procurei-te, porque do Porto fui avisado dos teus desvios: como te não encontrei, fui colher mais informações; voltei á noite á hospedaria tres vezes, e ás duas horas não tinhas ainda recolhido. No dia seguinte, que foi hoje, procurei-te ás nove horas da manha: tinhas já sahido. Déste-me tempo de sobra para eu me instruir das miudezas da tua historia de tres semanas. Sei quem é a creatura que te ourou a cabeça. É uma feia alma n'um formoso estojo; é uma aventureira...
—Meu tio, isso é crueldade e calumnia—interrompeu Jorge allucinado.
—Bate, mas escuta, dizia o philosopho: é uma aventureira de maridos, que engodou o morgado de Santa Eufemia, em quanto julgou desnecessario o consentimento do velho fidalgo para a realisação do casamento que a fazia rica. Desvanecidas as esperanças do morgado, cuja rudeza lhe não desdizia com o espirito arteiro, voltou-se para um rico brazileiro de Cabeceiras de Basto; mas o brazileiro não lhe entendeu os pespontes da eloquencia, e disse que queria mulher com quem elle se entendesse. Chamada por uma prima, professora em armadilhas ao casamento...
—Francisca da Cunha?—exclamou Pires, erguendo-se nos estribos.
—Justamente, Francisca da Cunha, menina matreira que...
—Olhe que eu amo essa mulher, snr. padre Coelho!—interrompeu solemnemente Leonardo.
—Pois faz v. s.ª muito bem: o amor do proximo é preceito divino: sou de parecer que a ame; mas não lhe dou os parabens... Vinha eu dizendo que a tal Silvina já no Porto, de mãos dadas com a prima, não duvidou visitar uma estalajadeira de Margaride que viera a banhos de mar, porque esta estalajadeira tinha um filho que viera do Brazil, com alguns centos de contos, negociados na escravatura. E como o filho da estalajadeira [87]não andava acostumado a comprar senão negras possantes e trabalhadoras, recusou comprar a compleição melindrosa da fidalga de Margaride. D'ahi veio o saber-se, pelo dizer a snr.ª D. Silvina, que o poderoso brazileiro é filho d'uma taverneira, e que fôra para o Brazil com umas soletas e chapéo de Braga que lhe dera de esmola o pai da fidalga. Eis aqui o que eu pude averiguar da pessoa por quem meu sobrinho troca os carinhos de sua mãi, a dôce amisade de seus irmãos, e as lições amoraveis de seu velho tio.
Jorge Coelho ficou enleado, e não replicou; Leonardo Pires, porém, que nunca em sua vida pensára o que dizia, senão meia hora depois de o dizer, exclamou:
—Mas ha-de confessar, snr. padre João, que ellas são boas mulheres!
—Boas!...—murmurou o padre, que não entendeu o sentido do adjectivo—boas... quer-me parecer que não são muito!
—Ora essa! pois não as acha bonitas e elegantes?
—Eu não as conheço; mas creio que são bonitas e elegantes: e d'ahi?
—E d'ahi! Amor omnia vincit! o amor tudo vence.
—Agradeço a traducção—disse, sorrindo, o padre, que, a fallar a verdade, tinha uns sorrisos que muito justificavam o dito de ter sido «homem» antes de ser frade.—O snr. Leonardo Pires não tem mãi?—acrescentou o padre, após um curto intervallo, com summa seriedade.
—Tenho, sim senhor; mas não tenciono namorar minha mãi—disse precipitadamente Leonardo.
O padre fitou-o com tristeza e admiração, um momento, e depois disse-lhe com bons modos:
—Praza a Deus que o coração esteja menos derrançado que a linguagem... snr. Leonardo Pires, eu tenho setenta annos; deprava-se um rapaz; mas respeita-se um velho.
[88]D'esta vez, o imperturbavel Pires não teve que responder.
Tinham chegado a Vallongo. Jorge estendeu a mão ao seu amigo, e disse-lhe suffocado:
—Adeus! não sei se te verei mais... Sinto a morte no coração!
O padre fez um frio comprimento ao amigo de seu sobrinho, dizendo-lhe:
—Deus o tenha de sua mão.
Leonardo partiu; e o egresso, com os olhos embaciados de lagrimas, murmurou:
—Jorge! quem te abriu as portas da desgraça foi aquelle homem.
Não esqueceram de certo ao leitor attento estas linhas da carta que o morgado de Santa Eufemia recebeu do pai:—Anda-te embora, logo que esta recebas, que eu dou ordem ao meu amigo brazileiro para te dar para a jornada cinco pintos.
O brazileiro amigo do fidalgo de Freixieiro era o snr. José Francisco Andraens, natural de Cozelhas, desde 1844 estabelecido no Porto, onde viera tratar do baço, do pancreas, e d'outras entranhas importantes do snr. José Francisco Andraens. Na mente do illustre enfermo estava retirar-se para a provincia de Piauhy, onde tinha a sua feira de pretos, logo que restaurasse o estomago e as mais partes circumjacentes da sua alma. Porém, como quer que um seu amigo velho, e companheiro [90]de viagem para o Brazil, em rapazes, estivesse no Porto com o titulo de visconde dos Lagares, e este o fizesse conhecido por meio das gazetas por uma esmola de cincoenta mil réis ao hospital da Santissima Trindade, o snr. José Francisco viu-se tão festejado, tão requestado, tão necessario ao Porto, que mandou vender os pretos em ser, e liquidar os creditos.
Tentemos um debuxo de José Francisco. Deve estar entre cincoenta a cincoenta e cinco annos, estatura menos de mean, com tres barrigas, das quaes a primeira, começando pela parte mais nobre do sujeito, principia onde o vulgar da gente tem os joelhos, e, depois d'uma arremettida adiposa, retrahe-se na linha imaginaria da cintura, e estreita-se em fórma de cabeça. A segunda barriga pega da primeira, ondeia com tres ordens de refegos por sobre as falsas costellas, ladêa tumida e retesada como os flancos d'um ôdre posto de través, e vai perder-se nos sovacos, mandando para as costas uma corcunda da sua mesma natureza. A terceira barriga pendura-se da face interna do queixo inferior, amplia-se flacida e lustrosa como um buxo mal cheio de vitella, e assenta sobre a segunda, no ponto hypothetico do esterno. A parte anatomica d'este bosquejo toda ella se libra em conjecturas. O author não assevera senão a existencia das barrigas.
Isto tudo tem uma base caprichosa: são cousas que a linguagem do paradoxo denomina pés. Vacilla a critica no confrontal-os com objecto dos tres reinos: uma tartaruga envolta em bezerro dá-nos uns longes da realidade; mas falta-nos o simile para os declivios, gargantas e barrocaes dos joanetes. Os pés de José Francisco são a desesperação dos Gavarni. O marrão do alvanel poderia arrancal-os d'um golpe d'uma pedreira por acaso; mas Apelles mais depressa pintaria uvas que enganassem o bico sequioso da passarinhada.
No tocante á cara o snr. Andraens é homem, apesar [91]d'outros animaes que lhe não disputam os fóros da humanidade, porque não teem um curso de historia natural. O rubor do tomate desmaia ao pé das papeiras faciaes do brazileiro. O nariz enfronha-se de envergonhado entre as trouxas de tecidos, que lhe debruam os olhos de oppilações carnosas, sebaceas e luzidias. A menina do olho é rutilante e azougada, posto que as secreções visinhas lhe bezuntem a raiz das pestanas.
O snr. Andraens é commendador da ordem de Christo, desde que o seu amigo visconde dos Lagares foi nomeado trinchante da casa real. Afóra isto, o brazileiro de Cozelhas, na qualidade de accionista do Banco Commercial do Porto, é orador vitalicio d'aquella assembléa, em que não são raros os talentos de maior porte. Tal era o amigo do velho fidalgo de Freixieiro.
José Francisco esperava que o filho de Vasco procurasse os cinco pintos, segundo a ordem que recebera. Decorridos alguns dias, escreveu ao seu amigo, a dizer-lhe que o fidalgo novo não apparecera para receber o dinheiro. Tornou o velho a escrever ao brazileiro, encarregando-o de procurar o filho, aconselhal-o que fosse para casa, e pagar a despeza que elle tivesse feito na estalagem.
Foi o snr. Andraens á Aguia d'Ouro, e como não encontrasse Christovão, deixou dito ao criado do quarto quem era e a precisão que tinha de fallar com o morgado. Já vinha descendo as escadas, e voltou acima a chamar o criado.
—Olhe lá, disse elle, o fidalgo deve muito cá na casa?
—Não, senhor: o fidalgo paga todas as semanas.
—Está bom, está bom, vossê não diga que eu perguntei isto, e pegue lá para matar o bicho ámanhã.—Dizendo, abriu uma bolsa de retroz coalhada de missanga, e tirou trinta réis que deu ao criado com a mão direita [92]fechada, para que a esquerda se não escandalisasse da prodigalidade.
Na manhã do dia seguinte, foi o morgado de Santa Eufemia a casa do brazileiro, e conduziram-o ao seu quarto de dormir, porque José Francisco estava ainda recolhido com a barriga n.º 2 envolta de papas de linhaça.
—Estou aqui emplasmado, senhor morgado—disse José Francisco, arqueando os braços por sobre a esphera abdominal.
—Então o snr. José que tem?
—Mande-se sentar, meu fidalgo. Eu estou aqui com uns calores cá de dentro, que dão que fazer á botica; mas isto, se Deus quizer, não é nada. Pois, meu senhor e amigo, seu pai escreveu-me, como ha-de saber, para eu lhe dar um dinheirito, e depois tornou a escrever-me para eu ir ter aonde a v. s.ª e dizer-lhe que o melhor é ir-se para casa, quanto antes, porque o velho, pelos modos, está lá arrenegado por si. Então, vai ou não vai?
—Por estes dias, irei; mas já já não se me arranja cá a minha vida, snr. José.
—Então o senhor, ainda que eu seja confiado, que tem cá que fazer? Ahi, por mais que me digam, anda derriço... Eu hei-de saber o que é quando fallar com a fidalga de Margaride que o conhece muito bem ao senhor morgado...
—Então o senhor conhece a D. Silvina de Mello?
—Conheço-a como os meus dedos...—respondeu o snr. Andraens, com um sorriso intencional, que passou desapercebido ao morgado.—É bem boa estampa, ó senhor morgado, não é? ora diga a verdade!
—É muito bonita, isso é.
—Rapariga d'uma vez! e bem-fallada!? isso então quando calha de fallar, aquillo não despega nem á mão de Deus-padre! Falla em tudo quanto ha! Até em Sebastopool, [93]senhor morgado! Um d'estes dias tinha eu lá ido a troco cá de certa pendencia, e veiu á collecção a guerra da Russia, e ella começou alli a manobrar as batalhas, e se fôr como ella diz o snr. D. Miguel (Deus o traga) não tarda cá. Eu não tenho partidos, e até a fallar a verdade, sou commendador por esta gente, mas em fim, quero-me cá com os velhos, e gente como era a antiga já se não topa. Pois é verdade... eu...
—E a fidalga—atalhou o morgado—nunca lhe fallou em mim, snr. José?
—Fallou, pois então? disse-me até que o senhor queria casar com ella... é assim ou não é?
—Isso é verdade. Paixão de raiz como a que eu tenho por ella não a torno a ter pela mais pintada.
—Ah! que me diz?—acudiu o brazileiro com espanto—pois a cousa é isso? Quer apostar que o senhor está aqui pr'a-mor d'ella?
—Em fim, o coração não mente... Á conta d'ella é que eu aqui estou. Passaram-se uns poucos de mezes sem eu ter carta, desde que ella veiu para o Porto. Arranjei como pude licença do pai, e vim encontral-a cá a namorar outro, um trampolineirito a quem eu queria dar uma escovadela, mas antes de hontem fugiu lá para cascos de rolha.
—Conte-me isso, conte-me isso—exclamou José Francisco com vehemente interesse.
—É como lhe digo, snr. José. Agora preciso demorar-me alguns dias a ver o que ella faz.
—Com que então diz-me o senhor morgado—disse meditabundo e detidamente o brazileiro—que ella andava já com o miolo ás voltas por outro sujeito!... As mulheres são o diabo!... Quer o senhor saber?! Mas isto é pedra que cahe em poço, ouviu o senhor?
—Eu não digo nada; póde fallar snr. José.
—Pois então, vou desembuchar... Eu tenho emprestado algum dinheiro ao Pedro de Mello, pai da Silvina, [94]para elle mandar aos rapazes que andam a estudar p'ra doutores em Coimbra. A casa do Mello é boa, mas está empenhada até aqui.—(O snr. José Francisco poz um dedo na barriga n.º 3, que deu de si como um balão de borracha). Ha-de haver tres mezes que eu fui levar á filha umas libras que o pai lhe mandou dar para vestimentas. Eu andava com o olho em cima de uma quintarola bem boa d'elle, que parte com os meus terrões da Lixa, e não se me dava de lhe ir dando aos poucos algum dinheiro até lhe apanhar a propriedade que me faz muita conta. E vai se não quando, meu amiguinho e senhor morgado, veiu a fidalga á sala assignar o recibo, e p'ra'qui p'racolá, palavra puxa palavra, eu deixei-me estar ao cavaco com ella e com a prima, e jantei lá n'esse dia, e fiquei p'ra a noite. A fallar-lhe a verdade nua e crua, como o outro que diz, eu não sei o que sentia cá no interior! Que diabo é isto que eu sinto? disse eu cá c'os meus botões. Eu andei por lá por esses mundos de Christo, vi muita mulata e branca de encher o olho, tive as minhas rapaziadas, porque em fim, a gente é de carne e osso; mas nunca me buliu cá por dentro mulher nenhuma como esta! Se o senhor morgado ouvisse o palavriado d'ella! Deixe vêr se me lembro... Não encarreiro... Ora deixe estar o senhor.. Eu tenho alli uma carta d'ella...
—Uma carta d'ella!—interrompeu o morgado a fumegar.
—Pois então? uma carta d'ella, umas poucas; mas ha lá uma em que ella escreve o mesmo que tinha dito de bocca. Faz o senhor favor de me ir áquella gavetinha do meio da commoda, e dar-me de lá um caixotinho de vidro, que tem uns bordados de papel dourado na cobertoira?...
Christovão Pacheco abriu com a mão convulsa a gaveta, e levou á cama do snr. Andraens a caixinha indicada. O brazileiro tirou um feixe de cartas, cintadas com [95]uma fita de nastro, abriu algumas, regougando palavras soltas de cada uma d'ellas, e por fim acertou com a carta que procurava, e exclamou:—Cá está ella! tal e qual. Ora faz favor de lêr, que eu não estou hoje muito escorreito dos olhos.
O morgado de Santa Eufemia, entalado, enfiado, tremulo e escarlate até á raiz dos cabellos, leu o seguinte:
«Meu bom e muito querido amigo. Tanto eu como minha prima Francisca, ella por amisade reconhecida, e eu do coração affectuoso lhe agradecemos o valioso mimo com que se dignou brindar-nos a sua generosidade...»
—Isso foi, interrompeu o brazileiro, a respeito de umas pulseiras de ouro que eu mandei ás duas, que me custaram dezesete libras e mais uns pósinhos, não fallando na caixota em que foram os estojos que me tinha custado em Paris quarenta e oito francos. Empreguei bem o meu dinheiro, não tem duvida! Ora faz favor de continuar com essa trapalhice:
O morgado proseguiu na leitura acerba, limpando as camarinhas de suor que lhe transpiravam da testa:
«Apreciamos a dadiva já pelo que ella vale, já pelos sentimentos delicados que ella representa...»
—Isso é bem dito, não é, ó senhor morgado?—interrompeu o snr. José Francisco.—Lá que ella tem uma cabecinha como não ha outra, isso pau pau, pedra pedra, a verdade ha-de dizer-se. O que lhe falta é miôlo... Ora ande lá... vá lendo:
«Nunca eu aceitaria—continuava a carta de Silvina—uma prenda de homem, que não tivesse uma explicação honrosa. Esta, que eu tenho no meu pulso, não me faz estremecer a mão de pejo. Os meus sentimentos a respeito de v. s.ª tenho-lh'os dito tantas vezes, que repetil-os seria abusar da sua attenção, e descer um pouco da minha senhoril, dignidade. V. s.ª sabe como eu aprecio as paixões proprias dos meus annos...»
[96]José Francisco Andraens deu dous galões no leito, e clamou:
—É ahi, é ahi onde está a cousa!
Christovão continuou, já deletreando, porque a raiva lhe nublava os olhos:
«Não creio na duração do amor impetuoso. A violencia da vibração fatiga as cordas da alma...»
—Olhe lá—atalhou o brazileiro—isso que vem a dizer? esse bocado não o percebi bem... A violencia da vibração fatiga as cordas... que diabo!...
—Quer dizer, respondeu o morgado com anciado esforço, quer dizer que... sim... eu acho que isto vem a dizer... que as paixões fortes adoentam a gente...
—Ah! sim, senhor, ha-de ser isso... eu cá sinto os estragos no interior... Ora faz favor de vêr o resto.
O morgado leu:
«A minha ambição é encontrar um amigo verdadeiro, um coração sereno, um homem para quem o mundo não tenha abysmos, dos que tem no fundo a desgraça da esposa trahida, e esquecida. Receba no coração estas palavras da sua dedicada e constante amiga, Silvina.»
—Que me diz o senhor a isso?—interpellou José Francisco, dando uma palmada no hombro do entorpecido morgado.
—O que eu lhe digo, snr. José!...—tornou o morgado, atirando a carta para sobre o leito.—O que eu lhe digo é que esta mulher...
—É uma mulher de pouco mais ou menos—concluiu o brazileiro, atando as cartas com o nastro—Ora ahi tem... Agora, á vista d'isto, deixe-se andar por cá atraz d'ella...
—E o senhor continua o namoro?—perguntou o morgado com os olhos vidrados de lagrimas.
—Qual namoro, nem qual diabo! O que eu queria era melhorar da barriga!
José Francisco Andraens, mentiste á tua consciencia! Supposto que as tuas barrigas te mereçam quantos desvelos cabem na alçada do oleo d'amendoa dôce e da linhaça, o coração em ti é um musculo cheio de bom e sadio sangue, sangue cruorico que por vezes te borbulha nas arterias, e reçuma á cara em brazumes de ternura lubrica. Mentiste, José Francisco, quando respondeste áquelle pobre morgado, que o que tu querias era melhorar da barriga. Musculo enorme! tu amavas abrasado no lume da faisca electrica em que se estremece cada uma de tuas fibras, rijas de vida, saturadas do boi copioso que assimilas, e das tortas de frango com que pejas diariamente as algibeiras do sobretudo, e das planganas de farinha de pau e araruta que emborcas todas [98]as manhãs. Commendador da ordem de Christo! se o incognito da Providencia, chamado acaso, te houvesse dado a faculdade de desafogar em vociferações contra a fementida Silvina, dirias, no auge da tua angustia, blasphemias contra as mulheres, injurias insultadoras contra a fidalga de Margaride, e juramentos, por tua honra, de despresal-a e diffamal-a onde quer que fosse a tua lingua peçonhenta e a dos teus amigos famintos de detracção e escandalo. Os que assim procedem, fariam de ti riso, se te ouvissem o dialogo com o teu amigo de Freixieiro; tu, porém, José Francisco Andraens, que não sabes os quatro epithetos triviaes com que se vingam amantes abandonados, ergueste os alçapões da tua alma, e deixaste romper a torrente represada, com estas palavras: «Qual namoro, nem qual diabo! o que eu queria era melhorar da barriga!»
Ai! se elle a amava!
Não houve ahi cancro de amor que afistulasse, tão no intimo, coração de homem. Aquella propria dôr de estomago, rebelde á linhaça, nos está dizendo finezas do amor de José Francisco, procedida, como é, do uso do chá a que o forçavam successivas noites que passou em casa do tio de Silvina. No principio, o hospede cauteloso recusou a chavena; mas a fidalga teve a impiedade de dizer-lhe que não era extremamente do bom tom rejeitar o chá, a pretexto de ser bebida nociva ao estomago. O brazileiro, no dia seguinte, em vez d'uma, tomou tres chavenas, e em sua casa, para affazer a tripa como elle dizia, mandava cozinhar grandes chocolateiras de chá, que a moça inexperta chamava o cozimento, e carregava de folha até sahir negro na fervura. José Francisco conhecia o veneno, punha a mão no buxo, e, se não dizia como o papa Ganganelli: «hei-de morrer d'isto...» gritava pela cataplasma de linhaça, mitigava a inflammação, e de puro amor continuava [99]a immolar o estomago, como fino amante que não tem mais que dar.
Ha ahi amadores, José Francisco, que cubiçam a pedraria oriental para construirem um nicho para a mulher amada; pedem a Deus estrellas para lhe marchetarem a alcatifa das botinhas; queriam a lua e as duas ursas para o pavilhão do leito nupcial; os coriscos para lhe brincarem aos pés; os jardins de Semiramis, recendentes de nardo e cardamomo, para lhe deliciarem o olfacto; o sceptro do globo para a mão soberana, e o diadema do universo para a fronte inspirada. Farelorio. Homem de Cozelhas! o teu estomago estragado pelo chá, sobreleva em dolorosa realidade a tudo quanto inventaram poetas, invejosos dos bens de Deus, em quanto tu deixas em paz a lua e as estrellas, e compras dezesete libras de pulseiras, ás quaes a propria Diana caçadora te estenderia os seus divinos braços.
Ai! se elle a amava!
Por uma tarde de Agosto, na alamêda da Lapa, se andava José Francisco passeando com o seu amigo visconde dos Lagares. A espaços, o amador de Silvina desprendia uns como gemidos desentranhados com estridor de arroto, e o açafroado das belfas, ora se enrubecia mais intenso, ora desmaiava n'um pardacento, que deu nos olhos solicitos do visconde:
—Que tem vossê, sôr Andraens?!—perguntou o trinchante da casa real, afervorando o zelo da pergunta com um suave empurrão.
—Que hei-de eu ter, amigo visconde? Vossê bem sabe que eu ando mettido n'uma camisa de onze varas. A minha sina, que me lêram quando eu era rapaz, dá-me que eu hei-de passar por um grande desgosto. Até ao presente, em boa hora o digamos, a cousa não me tem ido mal; d'aqui por diante como o outro que diz, um bomem deve estar tem-te não caias.
—Mas então vossê que medo tem?—tornou o visconde, [100]variando a mimica com uma palmada na espadua boleada de José Francisco.
—Homem, vossê casou quando era moço, e deu-se bem com a mulher, e tem vivido sem sustos; mas eu já cá estão os cincoenta, não sou dos rapazes da moda, e tenho ás vezes umas lembranças que me derrancam o coração.
—Ora, deixe-se d'isso, sôr Andraens! Pelos modos a senhora, com quem vossê vai casar, é menina bem comportadinha, e vossê, quando casar, deixe-se de ir muitas vezes ás assembleas, e pouco de visitas, e de theatros; metta-se em sua casa a mais a mulher; trate da sua labutação, e não a deixe pôr pé em ramo verde, sem ir com ella.
—Pois não pozeste!—acudiu José Francisco soltando uma risada aspera de sacões, que valia bem um programma.—Vossê ainda está n'essa?
A minha mulher, quando eu a tiver, é cá para o amanho da minha casa. Comer e beber, e vestidos, e enfeites d'ouro, não lhe ha-de cançar; mas ir a bailes e a comedias... isso, snr. visconde... olhe cá se me vê algum T na testa! É verdade que a minha futura noiva é toda pronostica e está avezada ao palavriado dos pantomineiros que não tem senão aquillo e a sua miça; mas eu logo que case hei-de pôl-a na lei em que ha-de viver.
A mulher é do seu homem, e casou para tratar-lhe das doenças, e do arranjo da familia. Quem quer andar á tuna nas comedias e nos balancés deixa-se estar solteira; não é assim, amigo visconde?
—Assim é; mas não será bom apertal-a muito, amigo Andraens... Isto de mulheres, olhe que nem o diabo as quiz guardar, e quando ellas entram a desatremar, adeus, minha vida!
—A desatremar!—clamou José Francisco com iracundia.—Então um homem não é senhor de fechar as suas portas, e viver como quizer com a mulher com [101]quem reparte do que tem? do seu dinheiro? do que lhe não custou a ella a ganhar? do seu dinheiro?
—Vossê diz bem, sôr José; mas é que ella a isso póde dizer que estava melhor solteira.
—Homem, vossê nem parece visconde n'isso que diz!—atalhou com ironia pungente José Francisco.—Eu vou já embuchal-o com uma pergunta:—Quanto vale a tal madama?
—Pelos modos, disse o visconde, acho que pouco tem.
—Por tudo que ella tem não dou eu seiscentos mil réis. A casa é do morgado, e os bens livres, repartidos por seis irmãos, nem p'ra pagarem a minha divida chegam. E quanto acha vossê que eu tenho, ó amigo visconde?
—Vossê, cá segundo os meus calculos, ha-de ter o melhor de cem contos... p'ra cima que não p'ra baixo.
—Aqui que ninguem nos ouve, snr. visconde, disse José Francisco muito á puridade, se não fosse aquella tapona que eu levei na costa d'Africa, podia ter os meus quatrocentos contos; agora, mais cem, menos cem mil réis a minha fortuna ha-de andar ahi por duzentos contos, e se as cousas correrem regularmente, cá nos engajados, escuso de bulir no que tenho apurado. Ora ahi tem vossê. Faz favor de me dizer se a rapariga, que não tem nada, casar commigo, não fica a ser rica e respeitada no mundo! Responda a isto, amigo, se é capaz!
—Sôr José Francisco, tornou o visconde com sisuda gravidade, olhe que eu tenho andado muito mundo, e visto muita cousa. A rapariga, se casa comsigo, é por que quer figurar. Vossê já não é muito moço, e não sei como ha-de estar em casa mettido a entreter a mulher. Sabe que mais? se está na teima de a não deixar ter alguma folga, o melhor é deixar-se estar solteiro até lhe apparecer moça mais azada p'ro seu modo [102]de vida. Deixe cá o arranjo ao meu cuidado, que eu conheço muito negociante aqui no Porto que tem raparigaças como castellos, e vossê não tem senão escolher.
—Cale-se lá, homem!—interrompeu com azedume e paixão o de Cozelhas—Eu gosto de Silvina d'uma vez! E, se quer que lhe diga a verdade, já fiz alguma despeza com ella. Vossê inda a não enxergou?
—Ainda não á minha vontade; mas na semana que vem vou dar um baile só para a vêr a preceito; já a lobriguei de longe, e alvidou-se-me que ella era bem tirada das canellas, e que tinha a cinta muito delgada.
—Isso então!—exclamou o snr. Andraens, com os olhos rutilantes de jubilo, e um sorriso de satyro, que lhe fazia recuar os refegos das bochechas até ás orelhas, como dobras de cortinas apanhadas.—Bem feita até alli! O pescoço é branco como a cal da parede; os braços parecem de leite, e aquillo hão-de ser macios que nem veludo; os olhos, continuou José Francisco, com precipitada torrente de imagens orientaes, parece que entram no interior da gente, e andam sempre a bulir nos buracos como dous grillos; os dentes são da côr d'essa camisa, e tão iguaesinhos que parece mesmo cousa de fazer crescer a agua na bocca; quando ella anda pela casa, aquillo é um gosto vêl-a! parece que está a casa cheia! E ouvil-a fallar?! Vossê não faz uma pequena idéa! Até falla de Sebastopool! (Vê-se que esta feição do talento de D. Silvina foi a que mais deu no gôto do snr. José Francisco Andraens.) Em fim, amigo visconde, mulher como ella não espero topal-a. Tenho-lhe sympathia cá de dentro; sonho com ella todas as noites; dia em que a não veja, ando como a cobra que perdeu a peçonha; se adrega d'ella ir visitar alguem, e eu não a vejo, vou zangado p'ra casa, e já me tem acontecido não ceiar! As cartas d'ella tenho-as na cabeça, e já comprei um livro muito grande, chamado... chamado elle... assim uma cousa a modo... de... vossê hade [103]saber? Aquillo que ensina a escrever direitas as palavras!...
—Uma pauta, ha-de ser pauta...
—Qual pauta, nem qual diabo! é um livro, que ensina a escrever com as letras todas... Já me lembra: um breviario.
—Ha-de ser isso, ha-de ser isso...—disse o visconde, que apreciou o ensejo de saber que o breviario ensinava a escrever com as letras todas—mas, a fallar verdade—continuou ingenuamente o brazileiro—não me ageito com o tal livreco, e vou-lhe escrevendo como sei. Aqui trago eu na carteira uma carta, respondendo á d'ella de hontem, a vêr se lh'a entrego esta noite. Quer vossê vêr, amigo visconde? Eu p'ra si não tenho aquellas. Ora escute lá; mas o mais acertado é lêrmos primeiro a que ella me escreveu. Vossê vai ficar pasmado; ora ouça.
José Francisco sentou-se n'um dos bancos de pedra da alamêda da Lapa, e leu correntemente o seguinte:
«Meu caro amigo.
«Soube que hontem me procurou. Quiz o meu infortunio que eu não estivesse em casa. O tio anda a pagar visitas, e ordenou que eu o acompanhasse. Passei uma noite insipida, lembrando-me que podia passal-a no remanso duma dôce paz e contentamento d'alma ao lado do homem cujas tão amantes como paternaes palavras me embalam o somno para os sonhos d'um delicioso futuro...»
Aqui José Francisco sacudiu na mão o papel, e exclamou radioso:
—Olhe isto, amigo visconde! os sonhos d'um delicioso futuro!... Pelos modos, quer dizer que o que ella quer é uma vida socegada para, em vez d'andar em visitas, dormir na sua cama á sua vontade. Não é isto?
[104]—Pois elle que ha-de ser senão isso?—disse o visconde gostoso da modestia consultiva do seu amigo, e ia continuar reflexões a proposito, quando José Francisco, menos jubiloso, continuou, lendo:
«Estará ainda longe o dia suspirado, meu amigo? Não tem já do meu caracter um profundo conhecimento? Não se demore a confirmar o destino que minha alma anceia, porque desgraçadamente a minha vontade não é de todo livre, e bem póde ser que meu pai, antes da resolução de v. s.ª, tome outra, contraria aos nossos intentos. Sua do coração, S.»
—Á troca d'estas linhas do fim—disse o brazileiro um pouco recolhido e melancolico—é que eu hoje tenho andado azoado, e a suspirar cá de dentro. Ora escute lá a resposta:
«Meus amores!!! (Na pontuação guardamos a fidelidade que descuramos na orthographia, cuja liberdade concedemos a José Francisco e pedimos alternativamente para nós). As vossas letras recebidas ao fazer d'esta até ao meio consolaram o meu coração saudoso!!... mas as que vem no cabo da vossa carta penetraram qual duro ferro no meu coração saudoso!! Se vosso pai não levar a bem o nosso casamento, ó céos!!! tanto faz querer como não querer o arranjo ha se de fazer, ainda que eu vá ás do cabo; estai descançada, joven Silvina amada!! Logo que eu tenha a nossa casa da Lixa arranjada (que andam lá os estucadores e os pintores) estamos casados e arruma-se d'aqui o pensamento!!! D'este vosso idolatrado até á morte, J. F. Andraens, vosso futuro esposo.»
—Que tal?—murmurou com certo ar de pudica modestia o erotico compositor de cartas incendiarias.
—Onde diabo aprendeu vossê tanto, ó sôr José?—disse o visconde com sincero espanto.
—Isto que aqui vê fil-o de fio a pavio, sem ir ao [105]breviario, amigo visconde. Ponto é ter cá dentro o amor a puxar pelas memorias.
José Francisco ergueu-se triumphante com miraculosa agilidade; deu alguns passeios floreando a bengala, e rindo a revezes do espasmo do visconde, que, em sua consciencia, suspeitava de que fosse a carta apocripha; mas, por delicadeza, calou as duvidas.
José Francisco tinha desafogado. O arroto já não vinha acompanhado do suspiro. As tres barrigas funccionavam em toda a sua plenitude phisiologica. O jubilo doudo da sua esperança sorria aos arreboes que cintavam o horisonte do oceano; a viração da tarde, brincando na folhagem dos alamos e acacias, rumorejava um soido mellico aos ouvidos d'alma d'aquelle amante feliz.
Ai! se elle a amava!
Este expansivo dialogo fôra anterior quarenta e oito horas áquell'outro que ouvimos entre o brazileiro, e Christovão Pacheco de Valladares.
Quem te ha-de crêr agora, José Francisco Andraens! Que se te dá a ti da barriga, se tu amas tanto a mulher predestinada?! Descança, anjo do amor, no teu céo de duzentos contos, que as filhas dos homens lá irão buscar-te![106]
Ai! como elle a amava!
Quantos Paulos, e Romeos, e Othellos mettidos n'aquella côdea grossa de José Francisco Andraens! Que requebros de namorado, e que furias de cioso! Aquella é verdadeira paixão que ora se refrigera com orvalhos do céo, ora se calcina nas labaredas do inferno. A paixão de José Francisco era assim. Ha pouco vimos aquella alma a derramar-se em blandicias de Petrarcha; agora arripia o vêl-a a espirrar coriscos da cratera que lá referve dentro.
Mal Christovão Pacheco sahira, galgando atordoado as escadas quatro a quatro, José Francisco arrancou de si a cataplasma d'um impeto que faria lembrar Catão arrancando o proprio redenho. Saltou para o chão, calçou [108]as mouras escarlates que lhe serviam á farta de tapete, lançou sobre as espaduas um capote de camelão de quatro cabeções, enfiou as mangas do mesmo, e sentou-se á escrivaninha, resfolegando vaporadas pelas ventas, que nem javali monteado por lebreus. A criada entrava n'esta occasião com a terceira camada de linhaça, e fez pé atraz, enfiada de puro horror.
—Que queres tu, moça?,—mugiu José Francisco.
—São as papas...—balbuciou a espavorida criada.
—Não quero mais papas. Vai chamar o meu compadre Amaro, e que venha já de marcha para ir com uma carta a Margaride.
O brazileiro escreveu na pojadura da veia. O traslado da carta, com a authenticidade do de todas as outras, não pude havel-o, apesar de suadas canceiras que este paiz tão sovinamente remunera aos indefessos obreiros das suas glorias. O que pude tirar a limpo foi ser a carta dirigida a Pedro de Mello, pai de D. Silvina. José Francisco lembrava ao fidalgo a sua divida de um conto oitocentos e vinte e cinco mil e setenta réis que lhe emprestára sobre hypotheca da quinta da Lixa. Dizia mais que não podia continuar a remetter as mezadas para os academicos da universidade. Instava pelo prompto pagamento do seu credito, ou trespasse da quinta hypothecada. Ameaçava-o com o poder judiciario, e terminava com estas quatro linhas, unicas authenticas:
Pr'ámor da sua filha é que é tudo isto. Se ella andasse direita comigo outro gallo lh'avia de cantar. Assim o quiz, assim o tenha. Comigo não se manga, e está arrumada a pendencia.
Ai! se elle a amava!
A carta partiu, e José Francisco, aplacado o maior afôgo da convulsão, chamou a moça, pediu uma tigela de tapioca, e comeu á tripa fôrra.
Cotejemos agora com os do negreiro os ciumes do morgado de Santa Eufemia. Egas de Encerra-bodes esperava [109]o primo no hotel, curioso de saber o fim a que o chamára o brazileiro. Christovão contou lealmente o acontecido, já barafustando furioso, já enternecendo-se a lagrimas. O de Matto-grosso descompunha-se em gargalhadas, e nem os prantos do primo lhe embargavam as guinadas de riso. Começava a desconfiar o de Santa Eufemia, quando Egas, composto o gesto e a postura, fallou assim:
«Um Pacheco Valladares a correr parelhas com um José Francisco na conquista d'uma mulher! Um neto do governador de Cochim a disputar meças de merecimento com um chatim de negros! um moço no mais florido dos annos, gentil de sua pessoa, sacrificado á mazorral caricatura, que ahi está symbolisando uma fortuna tão besta quanto assignalada das vergoadas do látego com que o infame de Deus e dos homens fazia espirrar sangue das costas dos escravos!... Primo Christovão, torne sobre si, peje-se d'essas lagrimas que ahi derramou, e que eu escarneci para não tomar ignominioso quinhão da sua dôr aviltante para evos e para vindouros! Que mulher é essa, a neta do sargento-mór d'Amarante, que anda ahi a chafurdar nos chiqueiros da sua cubiça um appellido que usurpou? Mello! Quem lhe deu a ella Mello?! Seu visavô era Antonio Gonçalves; seu avô era Francisco Antunes Gonçalves; quem enxertou no pai esse pomposo appellido? Silvina Antunes é como ella se chama, essa farrapona que mendiga para uma carruagem e seis vestidos o preço dos ultimos doze pretos que José Andraens mandou acorrentados ao mercado. Primo Valladares, neto de Heitor Valladares, bisneto de D. Mafalda Pacheco e Alvim, açafata illustre da côrte do snr. D. Pedro 2.º, descendente dos Alvins de Braga, onde casou o condestavel D. Nuno Alvares Pereira! primo, lembre-se de quem é, e esmague debaixo das solas das suas botas o coração, se sente que uma gotta de seu nobre sangue se ha degenerado no vilipendioso affecto [110]que prodigalisou á esposa promettida de José Francisco!»
Este aranzel fez bem ao coração do morgado. Entrou em si, coçou-se com ambas as mãos algumas vezes, estirou os braços convulsivos com os punhos cerrados, e exclamou de golpe:
—Que a leve o diabo!
Egas estreitou o primo ao coração com vehemencia, levantou-o tres vezes em peso, e bradou por fim:
—Reconheço o meu sangue!
Sem embargo d'isto, o morgado de Santa Eufemia precisava de ar, abriu a janella, sorveu tres grandes haustos, e repetiu a phrase que provára ao de Matto-grosso a identidade da sua estirpe:
—Que a leve o diabo!
N'este comenos, vinha atravessando o largo da Batalha Leonardo Pires.
—Lá vem aquelle!—exclamou Egas—Vou chamal-o para lhe dar a noticia que ha-de ser muito agradavel ao seu amigo Jorge. Olé! snr. Albuquerque! Psio.
Pires fez uma continencia militar com o chicote.
—Suba cá—tornou o fidalgo de Entre-ambos-os-rios—temos que contar-lhe.
—Viram aqui passar a Francisca da Cunha?—perguntou Pires.
—Não.
—Ando-lhe na pista, como galgo que perdeu a lebre, que eu desconfio bem que seja gata, que a minha paixão me dá por lebre.
—É muito possivel...—redarguiu a rir o de Matto-grosso—Suba, e verá que não está longe da verdade.
O da Maya circumvagou com a luneta em torno da praça duas vezes, e subiu.
—Então que temos?! Dou-lhe parte que o meu [111]amigo Jorge Coelho não tarda ahi, e que o duello, se os cavalheiros insistirem, ha-de consummar-se.
—Quem falla aqui em duello?—acudiu Egas—Escreva ao seu amigo, e diga-lhe que se deixe estar com a mãi e com o padre lá na sua aldêa, se não quizer vêr Silvina, o anjo de candura, de braço dado com as fronhas carnosas de José Francisco Andraens...
—Quem é José Francisco Andraens?—interrompeu Leonardo.
Egas de Encerra-bodes compelliu o primo a contar a historia, que, d'esta feita, não sahiu com intermittentes de lagrimas. Era de vêr com que graça soez o amante ultrajado ia já apimentando os sarcasmos detraidores de Silvina, e os projectos de cynica desforra que elle offerecia ao parecer dos seus amigos, projectos que, realisados, collocariam José Francisco n'uma situação tão irrisoria como bemquista do siso commum, o qual é uma cousa muito ao envez do que por ahi nos grandes alcouces da opinião publica se denomina senso-commum.
O programma do morgado de Santa Eufemia foi applaudido com razões pouco para se estamparem. Leonardo Pires disse que não avisava o seu amigo para não perder occasião de o ter no Porto alguns dias, e cural-o mais facilmente com a vista do espectaculo hediondo. N'isto, como estivessem os tres á janella, viram assomar no topo da rua de Santo Antonio Silvina, e Francisca da Cunha, seguidas de um criado de farda.
—Ellas ahi vem!—disse Pires, e sahiu a encontrar-se com ellas. O morgado de Santa Eufemia, a rasoavel distancia, quando as damas vinham com os olhos postos n'elle, fez recuar o primo, e fechou-lhes a janella na cara. Silvina ria tanto como a prima, quando Pires, com o chicotinho em arco, e quasi aos pulinhos como funambulo que vai fazer a sorte, se lhe atravessou no caminho, dizendo:
—Criado de vv. exc.as
[112]—O snr. Pires!—disse Francisca toda graça e affabilidade ironica—Faziamol-o no seu chateau... Que é feito de si?
—Agoniso, minha senhora, agoniso.
—Ai! que funebre vem!—disse Silvina—póde-se agonisar com esse rosto tão de vida, e rubicundo?
—Póde-se padecer muito, minha senhora, com o rosto rubicundo—replicou Pires—Eu sei de creaturas, metaphoricamente chamadas humanas que soffrem muito, sem impedimento das massas de toucinho que as envolvem. Darei a v. exc.ª um exemplo. Conheço uma metaphora chamada José Francisco Andraens... (Silvina córou e franziu a testa) monstro cevado em sangue humano, que elle distilla em banha e asneiras, o qual monstro,—ninguem o ha-de crêr, minha senhora—neutralisa o combustivel da paixão com o refrigerante das cataplasmas de linhaça. Ahi tem v. exc.ª um exemplo que justifica de sobra a minha agonia.
—Vamos, prima, que são horas—disse Francisca da Cunha, condoida do enleio desacostumado de Silvina.
—Pois sim, vamos—disse esta, corrida de modo, que incutiria compaixão em homem que não fosse Pires.
—Dão-me as suas ordens, minhas senhoras?—disse elle, ladeando—Ah!—continuou Pires de sobresalto—esquecia-me dizer á snr.ª D. Silvina que o nosso Jorge vem ahi...
—Ah! vem?—disse machinalmente Silvina.
—Vem, sim, minha senhora, a requerimento meu, por que lhe conheço grande curiosidade de naturalista, e desejo mostrar-lhe José Francisco Andraens, a hyperbole de enxundia, monstro, de quem eu tive a honra de fallar a vv. exc.as, e que até ouso recommendar-lhes, para que vv. exc.as admirem não só o bruto, mas o effeito prodigioso da linhaça.
O enleio de Silvina redundou em colera.
[113]—O senhor, disse ella, está-me insultando por que eu e minha prima, confiadas na cortezania da sociedade em que vivemos, sahimos sem um homem, cujo desforço nos desafronte com honra.
—Dizes bem, prima—acudiu Francisca, tambem colerica por contagio—Deixemos o villão.
Pires, quando lhe voltaram as costas, deu dous passos em seguimento d'ellas, e tomou-lhes o passo.
—Continua a petulancia?—disse Silvina irada—olhe que eu trago um criado!
—Com libré emprestada, minhas senhoras?—disse o imprudente fidalgo da Maya, que trazia os ouvidos cheios das diffamações geanologicas d'Egas de Encerra-bodes.—Snr.ª D. Silvina, eu fui quem lhe apresentou a nobre alma de Jorge Coelho, que v. exc.ª quiz estragar. Empeçonhou-lh'a, mas não ha-de enlameal-a. Quem vinga Jorge sou eu, Leonardo Pires de Albuquerque. Saiba v. exc.ª que José Francisco Andraens é meu. Aquelle problema de carne hei-de desatal-o eu com o escarneo, e v. exc.ª ha-de ficar submersa nas avalanchas d'aquella montanha de cebo. Agora nós, snr.ª D. Francisca da Cunha. V. exc.ª, que só sabe lêr as cartas do linheiro das Hortas, e que tem tido o indiscreto recreio de me andar ridicularisando no boudoir das suas dignas amigas, ou se encastella com o linheiro das Hortas lá no seu burgo de Traz-os-Montes, ou tem de esconder-se nas rimas de estopa em que seu futuro esposo lê de pernas ao ar as suas epistolas. Sem mais.
Pires, vibrando no ar estalinhos com o chicote, entalou a luneta no olho esquerdo, e foi expandir o jubilo em folgada palestra com os morgados, que o espreitavam.
Silvina, quando entrou n'uma casa nobre de Traz da Sé, soffreu um insulto nervoso que desabafou em gritos. Queria Francisca da Cunha consolal-a; mas estava esperando de instante a instante ser assaltada tambem [114]do mesmo insulto. As senhoras da casa á competencia desfaziam-se em desvelos; mas Silvina respondia apenas: «hei-de vingar-me!»
Desiderio Erasmo, como sabem, escreveu a «Apologia da tontice.» Eu não me afouto a encarecer a de Leonardo Pires; porém, assim como os regedores das republicas nobilitam com mercês e titulos não só a estupidez—isso é o menos—mas a infamia soberba d'uma opulencia cevada e medrada em cruezas e deshumanidades, que muito se aventurarmos um voto de louvor a alguns selvagens da civilisação, doudos providenciaes que atiram a vaza do insulto a caras já de si tão sujas, que não ha medo de enferretal-as?
Alguns homens, como Pires, seriam muito proveitosos n'uma sociedade como esta. Houve-os sempre com differentes nomes e appellidos. Na antiguidade, chamaram-se Aristophanes, Diogenes, Marcial e Plauto; na meia idade eram os prophetas, os padres da igreja, e, com menos caução de suas prerogativas censorias, os histriões palacianos. Na correnteza d'esta geração por excellencia policiada, mas de todas a mais gafa do que ahi se chama «ridiculo» e do que mais é para chamar-se lastima, ha muito quem tire a campo de zombaria os «ridiculos» do mundo; mas ninguem se vê copiado n'elles, e os copistas de modo o fazem que fique salvo o orgulho de cada azêmola que fita a orelha ao ornejar da copia, mas não responde. A isto é o que ahi dizem «guardar as conveniencias»: á mesma cousa, chamavam d'antes «guardar as costas.»
Seja o que fôr, a satyra assim não vinga fructo de servir á geração que está nem á porvindoura.
Satyra prestadia, se alguma houve, é a de Leonardo Pires. Eis ahi um doudo, que tolos e sisudos lançarão de suas casas com horror; e todavia qual de nós não sente um Pires, na consciencia, a travar-se de razões e murros com a nossa soberba? Seis Leonardos [115]activos no Porto purificavam o ar pestilencial que para alli veiu das terras de Santa Cruz. Na idade media, os tabardilhos, as pestes fulminantes; no seculo 16.º o verme roedor que desmedula os ossos através de vinte gerações que hão-de lembrar-se sempre de Colombo pelo mimo; no seculo dezenove, mais que nunca, a peste do Brazil, de que adoecem espiritos empinados em seu orgulho como o de Silvina e Francisca da Cunha.
D'um lado Leonardo Pires; de outro lado José Francisco Andraens, e o linheiro das Hortas. Quem levará a melhor? É tola a pergunta. Ha-de ser o linheiro das Hortas, e José Francisco.[116]
O apostolico e dicasissimo padre João Coelho, desde Vallongo até Amarante, excedeu-se a si proprio prégando ao sobrinho o melhor e a maior parte do que disseram philosophos, santos padres, moralistas e casuistas ácerca do amor mundanal e da mulher. Jorge não replicava, por que o não escutava. O egresso, tomando o silencio como victoria, tirava dos corollarios theses novas, que ia defendendo com tamanha profusão de tiradas latinas que, a ser verdade o que elle disse abordoado a Seneca, Santo Agostinho, Euzebio cezariense, e Bredembachio, o amor mundanal e a mulher são cousas muito peores do que pensa o vulgar da gente. Padre João não era erudito que sómente fizesse praça dos exemplos que authorisa a historia. O pulso rijo da engenhosa [118]memoria d'elle entrou nas idades fabulosas e trouxe pelas orelhas certos heroes que os poemas orphicos e os homeridas nos encamparam como sujeitos apresentaveis na boa sociedade. Marte, segundo o padre, era um adultero; Apollo um valdevinos que se andava lamuriando na piugada de Daphne; Hercules um maricas que fiava de cocoras na roca de Omphale; as heroinas da odissea, da iliada, e das tragedias de Eschylo um femeaço impudico e deslavado. Do Olympo desceu padre João aos antigos imperios, e poz pelas ruas da amargura Xerxes, Ciro, Dario, Holophernes, Absalão, Sichem, Salomão, Herodes, Marco Antonio, e muitos outros que pelos modos não deram boa conta de si, ou as mulheres não deram boa conta d'elles.
O leitor de certo se convertia ouvindo o egresso; mas Jorge Coelho ia tão dentro em si, tão lacerado pelo abutre da paixão sem esperança, que as palavras do douto velho lhe eram como esponja de fel e vinagre espremida nas chagas. Pernoitaram na Amarante, onde chegaram ao fim da tarde do segundo dia de jornada. Em quanto o egresso entrou no velho templo a fazer oração a S. Gonçalo e visitar os cubiculos onde viveram santos varões da sua creação, Jorge foi sentar-se á beira do Tamega, e ahi rompeu em pranto desfeito, com os olhos postos nas ondulações das serranias para além das quaes lhe ficava o Porto. O padre sahiu indignado do mosteiro praguejando, menos evangelicamente que de seu costume, contra o governo que permittia á municipalidade amarantina que as vivandeiras do destacamento aquartellado nos dormitorios do mosteiro dançassem ebrias e meio nuas a canna verde e a sirandinha no refeitorio e na claustra. É de crer que as mulheres recebessem com galhofa o egresso venerando, cujas botas de borla e chapéo tricorne deviam de parecer cousa de entrudo ás bacchantes que a onda da civilisação revessou [119] no remanso dos monges, em quanto outra engolfou os monges no porto suspirado da sepultura.
Ahi me vou eu sahindo com o impertinente vêzo de lastimar os frades! D'esta vez hei-de represar a piedade com que n'outros livros tenho desdourado, no conceito de muita gente, os meus altos espiritos de operario que trabalha á candeia do seculo XIX. Que me importa a mim que nos cubiculos do mosteiro de S. Gonçalo se alojem as vivandeiras do destacamento, e que na claustra sobre as cinzas dos frades vão ellas, repletas de vinho e despejo, dançar a sirandinha e a canna verde? Se eu disser que no tempo dos frades não se viam semelhantes desacatos, hei grande medo que me ponderem que outros desacatos mais attentatorios da religião de Jesus ahi se viram no tempo em que os frades comiam no refeitorio, e medravam nas cellas, onde agora coze o seu vinho o mulherio da tropa. Se o padre João Coelho quizesse, esse é que podia responder a preceito; mas, para bem do leitor, ninguem n'aquella hora se lhe atravessou com argumentos, estando elle na estalagem da Amarante, sentado no escabello, a dizer cousas de sorte magoadas, a respeito da profanação do convento, que todo o auditorio chorava, sendo tres das carpideiras as mais lubricas bailarinas da claustra.
Entretanto, Jorge escrevia a Leonardo Pires, dizendo-lhe que resolvera não escrever a Silvina, em quanto lhe durasse a impressão amarga que recebera das revelações do tio, impressão immorredoura, dizia elle. Recommendava-lhe que se informasse da verdade d'aquellas revelações, e sem piedade lhe transmitisse o excesso de peçonha que havia de matal-o. Ajuntava elle que já não amava Silvina; mas que não podia despresal-a; e que entre o amor e o despreso estava o odio, serpente insaciavel que se lhe enroscara no coração.
Esta serpente de que se queixa Jorge Coelho é uma alimaria a que os poetas de animo socegado chamam [120] cupido, deus de Gnido, de Paphos, e Amor em estilo chão. Permitte a rhetorica aos amadores enraivados denominar serpente a cousa que d'um dia para outro se transforma em rola gemedora. Não é raro encontrar sujeito que tem aninhado no seio um viveiro d'estas serpentes, as quaes, depois de cuspirem a peçonha, n'uma carta arrufada, em meia duzia de adjectivos azedos como malagueta, metamorphoseam-se em pombal de candidissimas pombinhas que se catam e beijam umas ás outras com langorosos requebros. Da metamorphose o que fica é a peçonha instillada e derramada na circulação sanguinea. Na correnteza do tempo, vem esta peçonha a consolidar-se no coração, e d'ahi procedem as postemas, que degeneram em aleijões, commummente denominados scepticismo, cynismo, devassidão, libertinagem, impudencia, e outras molestias pegadiças. As rolas e as pombas, desde que o coração inficionado as afugenta, passam para o dominio do estilo, e concorrem para que no banquete d'um amor revelho, gotoso e glutão hajam sempre aves.
Vem a pêllo fallar da gorda gallinha que padre João trinchou na estalagem da Amarante, em quanto Jorge Coelho, recolhido ao seu quarto, se atirava vestido sobre o leito abafando contra o travesseiro os soluços da afflicção, que o egresso, tão de boa fé como crente na efficacia da historia, julgára minorada com a quarta dissertação que fizera ácerca do amor, segundo a carne, e nomeadamente do amor em Roma na época dos Cezares.
Citou versos de Marcial e Juvenal, como prova de que o amor era mau em toda a parte; e, sem elle querer, tambem provou que nas livrarias dos mosteiros entravam livros de moralidade muito equivoca. A ultima these de padre João Coelho assentava n'esta proposição de S. Paulo: «Quem não ama está na morte;» mas tão engenhosamente o erudito frade torceu o bico ao prego que as conclusões eram todas contra o baixo amor [121] terreal, e pregoeiras do amor divino, que elle orador por sua parte cumpria á risca, sem embargo de se pascer em delicias na choruda gallinha, em quanto o sobrinho abafava de dôr no quarto. Esta é a grande vantagem dos que andam empinados em amores do céo, que nunca deixam de comer ás suas horas, e de digerirem em regalados somnos a materia bruta que lhes não pesa na consciencia. Não ha pois duvidar de Montesquieu (parece que foi) que disse—que a religião christã, depois de nos felicitar n'este mundo, nos segurava a felicidade do outro.
Padre João dormiu nos coxins macios da sua limpa consciencia; Jorge, apenas o tio se fechou com o breviario, e adormeceu ao quarto psalmo penitenciario (um egresso repleto de gallinha cozida a resar um psalmo penitenciario! parece um paradoxo! Tomára eu saber se David compoz aquellas lastimas antes que as caricias de Bethsabé o enfastiassem!)... Estas incisões intermittentes hão-de perdoar-m'as os leitores que souberem o que é escrever um romance n'um carcere, onde já não ha carrasco, mas existe o espirito do carrasco identificado a uma cousa que nós cá os assassinos e os salteadores denominamos as authoridades, que medram no cêvo do erario, uns chamando-se procuradores do rei, outros carcereiros, outros chaveiros, outros guardas, a mesma familia representando o rei de theor e modo que fazem odiosa a palavra do symbolo que lhes legitíma a crueza, a barbaridade que lhes tem ladrilhado o coração, e muitas vezes a infamia que se abona com a justiça, essa divina irmã dos anjos, que os cafres trazem tão nusinha e pustolosa por sobre os esterquilinios d'elles.
Agora é que me eu perdi de todo... Perdido devéras andava aquelle pobre Jorge Coelho, pelas ruas da Amarante em quanto o padre dormia o somno do justo. Chegou á celebrada ponte, curvou-se no parapeito, e teve tentação de precipitar-se. Foi instantaneo o accesso [122]de loucura. Jorge viu a imagem de sua mãi no scintillante reverbero da lua que se espelhava no Tamega, Levantou os olhos para o céo, e disse:
«Ó Providencia Divina! leva esta dôr ao coração de minha mãi, para que ella, a santa, peça por mim!»
Eram onze horas d'aquella formosa noite de Setembro. Soava apertada nos rochedos a torrente, que scintillava em escamas de prata. De longe vinha a toada soidosa d'uma flauta que tocava a chacara popular dos «Dous renegados.» Jorge amava desde os doze annos os versos maviosos e truculentos d'aquella canção de amor que chora como anjo e obsecra como demonio. Proferiu a letra cadenciando-a com a flauta, e rematou chorando, já não em ancias, mas suavissimamente, como se o espirito de sua mãi lhe alcançasse do céo a mercê das lagrimas que desopprimem.
Um vulto entrou na extremidade direita da ponte: era uma das mulheres que padre João vira com santa indignação, a tripudiarem sobre as ossadas dos monges na claustra. Veiu direita a elle, e pediu-lhe uma esmola. Jorge deu-lhe tudo quanto tinha. A mulher viu bastantes moedas de prata, e, estupefacta ou douda de jubilo, nem se retirava nem agradecia.
—Vá-se agora, embora, mulher—disse Jorge, sem enfado, mas desejoso da solidão que tão suave lhe estava sendo.
—O senhor dá-me este dinheiro todo?!—disse a mulher, que os homens chamam perdida, e que não o estava, nem o podia estar aos olhos do seu Creador.
—Dou, sim.
—Bem haja, meu senhor!—tornou ella, com lagrimas na voz—já tenho com que ir para a minha familia. Eu sou uma desgraçada, que vim do Algarve, ha tres annos, fugida a meus paes, com um rapaz meu parente, para casarmos onde podesse ser. Elle requereu ao commandante; mas não teve licença para casar commigo; [123] eu depois fui lançar-me aos pés da senhora do commandante, e consegui licença. Quando estavamos muito contentes, mandei buscar a minha certidão e mais papeis á terra; mas disseram-me de lá que nós eramos primos, e não podiamos casar sem dispensa. Não tinhamos dinheiro para ella, e fomos vivendo até vêr se Deus dava remedio. N'este entrementes, o meu primo namorou-se de outra, e deixou-me a morrer á fome. Agora com este dinheirinho vou já amanhã para o Porto, e de lá vou n'um hiate para Tavira, e vou botar-me de joelhos aos pés de minha mãi.
—Pois vá, não mude de resolução, e faça por ser boa filha—disse Jorge com maviosa caridade.
—O senhor será um anjo do céo?—disse a feliz creatura lavada em lagrimas.
—Não sou anjo do céo, não... Vá com Deus.
A mulher retrocedeu, e foi ajoelhar diante de um antiquissimo retabulo de granito em que na fachada do templo de S. Gonçalo sobresahem os grosseiros relevos de uma Senhora com Jesus morto no regaço. Jorge viu, ao clarão sereno da lampada que pende sobre a imagem, a mulher ajoelhada. Banhou-se-lhe o espirito de um contentamento, que não poderia existir na terra, se acima d'este tremedal, não velasse um Deus as acções do homem que póde erguer-se do seu rasto até hombrear com os anjos.
Entre Jorge e aquella peccadora que resava, avultou ainda a imagem da mulher pura, a mãi, a santa, onde chegára talvez a revelação das penas do filho. Silvina, n'esse momento, nada era na vida de Jorge. Nem a poesia da paixão pôde disputar o espirito do mancebo á poesia da caridade.
Entretanto, o varão justo, o padre João Coelho, acordava com a digestão consummada, voltou-se para o outro lado, e reatou a nota quebrada de um beatifico ronco.[124]
As prelecções de historia antiga que padre João fizera, desde o Porto até casa, não tocaram o juizo nem o coração de Jorge; mas as singelas palavras da indulgente mãi, e as caricias dos irmãos, acalmaram algum tanto a febril paixão do academico. D. Antonia, de proposito, passou com o filho no adro da igreja rural, quando, ao fim da tarde, se celebrava dentro um baptisado. Entraram na modesta igrejinha, e foram ajoelhar no arco. A viuva, depois que orou, foi sentar-se n'um banco tosco da capella-mór, e chamou para junto de si o filho.
—Senta-te aqui, Jorge;—disse ella—quero fallar com o meu filho ao pé da sepultura de seu pai. Não a esqueceste ainda, pois não?
[126]Jorge desceu a vista sobre uma das lages que formavam o estreito pavimento da capella-mór. D. Antonia continuou:
—Tenho fé em que o meu coração n'este lugar, onde ha cinco annos venho chorar todos os dias, te saberá dizer o que teu bom pai te diria, filho. Se Deus me não fizer o milagre de ajuntar ao teu espirito mais dez annos, serão perdidas as minhas consolações, e tu as tomarás como conselhos importunos...
—Não, minha mãi...—atalhou Jorge, commovido pelo terror santo do local, e pela imagem de seu pai, em cuja fronte morta elle dera um beijo cinco annos antes—os seus conselhos...
—São conselhos de mulher, conselhos de mãi, que quer desterrar da tua alma lembranças d'outra mulher que me rouba o coração de meu filho. Deus levou-me teu pai, Jorge; e Deus não me podia enganar quando d'aquella tribuna, estando eu ajoelhada sobre esta lousa, me dizia que a compensação da boa alma que chamou para si, eras tu. Lembras-te d'uns beijos fervorosos que eu te dava, quando erguias as mãos ao pé de mim n'este mesmo sitio? Não te deixava eu a face molhada de minhas lagrimas, Jorge? Lembras-te?
—Lembro-me, minha mãi... E porque está chorando agora?—disse compadecido o moço.
—Parece-me que é saudade das dôres de então, filho... As de hoje são inconsolaveis... Nunca tive orgulho peccaminoso, Deus sabe que não; mas orgulho do meu dominio no teu animo, Jorge, tinha-o muito grande; e agora vejo que pequeno valor tem o dominio de mãi, logo que um acaso infeliz depara aos dezoito annos de uma criança os affectos verdadeiros ou simulados da mulher que nunca se viu, nem conheceu nos brinquedos da infancia. Isto é triste! A natureza poderá justificar este vulgar infortunio; mas a piedade e o dever choram-se, e não ha razão que convença uma mãi [127] a conformar-se com a desvalia em que tu tiveste os meus rogos durante tres mezes.
—Eu não desvaliei os seus mandados, minha mãi—disse Jorge em tom de carinhosa submissão—Havia uma corrente invencivel que me prendia á desgraça...
—E partiu-se essa corrente, filho?... O teu silencio diz-me que não... Olha, Jorge... se essa mulher fosse digna de ti, eu dizia-te que me trouxesses para casa mais uma filha; se ella fosse virtuosa e pobre, seria um thesouro, na nossa casa onde sobra o necessario; se fosse rica e creada nas regalias da sociedade, aconselhava-te que a não sacrificasses á nossa solidão e pobreza comparativa; mas, filho, essa menina, que te enganou o coração, não tem virtudes que suppram a riqueza, nem a riqueza que possa compensar o coração estragado e sem escrupulos do homem, que não és tu, mercê do Senhor! Antes de teu tio ir ao Porto, já eu sabia, meu filho, quem era Silvina. Nada disse ao padre do que sabia, quando lhe pedi que fosse em meu nome pedir-te que viesses para nós, que te choravamos. Tu sabes que eu tive uma companheira no convento de Braga, menina de muitas virtudes, que mereceu a Deus casar com um negociante do Porto. Foi a ella que eu escrevi pedindo-lhe informações da tua vida, e não se demoraram. O marido d'esta senhora procurou-te varias vezes, e nunca pôde encontrar-te. Andavas perdido na tua cegueira, meu pobre filho! Abre os olhos da tua alma, e attenta nas lagrimas da pobre mãi que não póde contar com o amparo de tres meninas, nem ellas contam com outro amparo senão o teu. Não achas tanta gente boa a pedir-te amor, filho? Tudo nos queres tirar a nós para o atirar aos pés de uma mulher que d'aqui a um anno será na tua memoria apenas um remorso, senão fôr antes uma vergonha?
—Uma vergonha!... atalhou Jorge, mais ferido na vaidade que surprehendido da qualificação.
[128]—Pois qual é o nome que dá o mundo ás paixões que humilham os que as soffrem, e mortificam uma familia que não espera d'ellas senão amarguras, desgraças, e abysmos?! Jorge, meu querido filho, faz um esforço de vontade! Vence-te, que podes. Ajuda a efficacia das minhas orações. Em nome d'estas cinzas queridas, peço-te em nome de teu pai, que tantas vezes me disse, quando te via triste, aos quatorze annos; «não tires da tua vista este menino, que ha-de perder-se, se entrar no mundo, d'onde me eu salvei com o teu amor»; é teu pai que te pede pela minha bocca, Jorge, esquece essa mulher; não lhe escrevas, os teus amigos que te não fallem d'ella; absorve-te no meu amor; folga com a innocencia de tuas irmãs: volta a Coimbra quando o desejo do estudo renascer no teu animo socegado; entrega-te de novo aos teus prazeres da caça; restaura a tua saude, que trazes tão quebrantada; eu pedirei aos amigos da nossa casa que a frequentem mais a miudo; teu tio ha-de saber conversar com o teu espirito instruido; compra os livros que quizeres; satisfaz todos os caprichos que te não arruinem a saude nem a alma; tens a duas leguas d'aqui uma villa onde ha sociedade, e familias que te estimam. Lucta, filho, deixa triumphar tua mãi do prestigio d'essa mulher, que nunca te deu uma lagrima, nem sabe o travor das que tu me tens feito chorar...
—Basta, minha mãi—murmurou Jorge, levando aos labios a mão tremula da magoada senhora—Luctarei, e... morrerei, se não vencer.
—Vences, filho, vences! exclamou D. Antonia com a vehemencia da sua fé e da sua razão.—Vences, porque Deus não dá ás más paixões o poder de matarem uma creatura, que póde desafogal-as nos braços de sua mãi.—E erguendo as mãos para o altar, disse com a voz convulsiva—Graças, meu Redemptor!
Anoitecera. Padre João, que era o vigario da freguezia, [129]andava discretamente passeando no adro, e entretendo os sobrinhos para não interromperem a pratica, cujo assumpto elle adivinhara. D. Antonia ergueu-se, tomou a mão do filho, e sahiu da igreja. No adro, estavam brincando as tres irmãs de Jorge, a mais velha das quaes tinha nove annos, e o irmão mais novo que nascera depois da morte de seu pai. Saltaram os mais novos aos abraços á mãi, e as duas meninas ao pescoço de Jorge, com grande alarido. Sentou-se elle nos degraus do cruzeiro do adro, e tomou para sobre os joelhos as duas meninas, que á fina força queriam ennastrar-lhe nos cabellos as suas rozas brancas. D. Antonia contemplava o grupo com o semblante banhado de alegria. O egresso, debruçado sobre a parede baixa que contornava o adro, fallava com o mordomo da festa de S. Sebastião ácerca do numero de padres e do prégador que devia chamar. Os meninos mais novos já tinham largado a mãi para apedrejarem as andorinhas que chilreavam em redor do campanario, cuja sineta unica era movida debaixo por um cordel, que os pequenos a muito custo respeitavam por alli estar o tio padre.
Resolvido o negocio da festividade do orago, padre João tirou pela corda, e tocou as nove badaladas das Ave-Marias. Todos ergueram as mãos, e resaram em voz alta. «Ora, Deus nos dê boas noites.»—Disse o padre. Rodearam-no os meninos a beijar-lhe a mão, e Jorge tambem depois que sua mãi lhe deu a fronte.
Terminado este lance, cuja poesia santa não ha pedil-a a corações que deram com ella no pégo da lama brilhante onde dizem que a poesia está, Jorge Coelho fitou os olhos no occidente, e reconheceu o anoitecer dos seus dias passados; viu o boleado pardacento das serranias longiquas que lhe estavam redizendo os pensamentos da sua infancia; ouvia ainda as vibrações do sino que repicava no baptisado de seus irmãosinhos, e dobrára na morte de seu pai, reconcentrou-se; sentiu [130]uma secreta amargura que não era angustia de saudade, nem pavor de previsões afflictivas... Que era, pois, esse vulto lá muito ao longe, ao pé d'aquella myriada de estrellas que repontava na cumieira da montanha? Era a imagem de Silvina ainda perto do céo, porque de lá vinha cahindo, bella como os anjos que lá nasceram; e, rebeldes á piedade, á virtude, á suprema graça, aqui se despenham, e despenhados vencem ainda disputando ao Senhor as almas immaculadas. Era Silvina, toda de festa e risos, reptando-o á lucta com um sorriso affrontoso, e esgares de escarneo ao protesto santo jurado sobre a sepultura d'um pai, e assellado com lagrimas de mulher sem macula. Era a visão maldita, a fada inexoravel dos que vem a esta hecatomba, predestinadas victimas, que o mundo sacrifica e cospe.
Era Silvina, sempre Silvina, a dizer-lhe:
«Que mulher viste mais linda que eu!? Quem te deu philtros de mais saborosa peçonha!? Vê se te sorriem uns labios com mais dôces favos de phrases que assignalaram a mais bella hora da tua vida!»
Meu pobre Jorge Coelho! Tua mãi não te salva d'esse captiveiro. Teu pai, esse resgatava-te, se te désse um lugar no seu leito!... É intransitivo o calix!
A primeira carta de Leonardo Pires ao condiscipulo dizia que Silvina ia todos os dias á Foz de carroção, e almoçava bifes e fiambre no hotel inglez. Ajuntava a isto o picaresco informador que a menina usava de anquinhas no vestido de banho, e fazia de nereida saracoteando-se na agua, requebrando-se em risos e ditos galanteadores aos tritões de baêta azul que a rodeavam, e sahindo dos braços de Neptuno mui peneirada aos saltinhos pela praia, que eram umas delicias vêl-a. Dizia mais, que Francisca da Cunha, ao sahir do banho, era uma cousa desazada como perua que saltasse de um tanque a escorrer agua. Este era sempre o estilo do fidalgo da Maya. Rematava dizendo que o morgado de Santa Eufemia fazia todos os dias a Silvina o sacrificio de se [132] lavar no oceano, dando grandes urros, e devorando bois assados no hotel da Boa-vista.
Jorge Coelho tragou este veneno, e odiou o amigo que sem piedade lh'o vasava no coração. O innocente esperava que Leonardo lhe enviasse, senão uma carta, ao menos palavras consolativas de Silvina, incentivos apaixonados á esperança, lagrimas de saudade e protestos de firmeza eterna.
Na segunda carta dizia Leonardo Pires que tendo elle azo de encontrar-se com Silvina na calçada dos Clerigos, na loja do snr. Antonio das Alminhas, lhe fallara de Jorge, contando-lhe o motivo da sua repentina partida para a provincia, com o que a boa da menina se rira grandemente, dizendo que seria muito de receiar que o tio padre trouxesse uma palmatoria debaixo da sotaina. A isto respondera Leonardo—e não duvidamos acredital-o—que Jorge devéras merecia meia duzia de palmatoadas, quando sahiu do baile da assemblea, apaixonado por um anjo que fizera presente das suas azas á gravata do morgado de Santa Eufemia. E como quer que Silvina redarguisse com voltar-lhe as costas, Leonardo fôra fallar a Francisca da Cunha que estava á porta do snr. Antonio das Alminhas, conversando amores com um linheiro das Hortas, o qual linheiro lhe estava dizendo que o dia estava muito bonito.
Jorge Coelho respondia a estas cartas sem fallar de Silvina, e dizendo pouco de si. Divagava por assumptos tristes, dissabores da vida que em seu começo tropeça na desgraça; rebates de saudade d'um tempo que mais não voltaria; os encantos perdidos do céo, das arvores e das montanhas que elle amara tanto; a magia do viver em familia despoetisada; o coração desaffeito das caricias maternaes e já insensivel ao sabor d'ellas; longos dias, sem um sorriso, encadeados a noites desveladas sobre livros em que elle, como Hamlet, não via senão palavras, palavras, palavras.
[133]Na terceira carta dizia Jorge ao seu amigo que talvez não fosse a Coimbra, porque a saude lhe minguava com a vontade, e a perspectiva da morte era a visão mais risonha que o visitava ao cahir da folhagem dos seus bosques, onde elle passava os dias com um anjo de nove annos, a sua irmã Angela.
D. Antonia não entendia o filho. Via-o triste; mas triste o vira sempre desde criança. Espreitava-o de noite no seu quarto, e achava-o sempre com os cotovêlos na mesa de estudo, o rosto entre as mãos, e um livro aberto. Se o interrogava ácerca da sua saude, Jorge respondia sempre que não soffria senão o mal-estar da sua doentia imaginação. A mãi, fiada em suas orações, esperava o melhor, e agradecia já a Deus a cura completa de seu filho.
Padre João, porém, via mais de perto o fio ás cousas.
—O rapaz come muito pouco!...—dizia o sagacissimo egresso á cunhada—Não nos fiemos n'aquelle exterior pacifico, mana. Alli ha amargura secreta enfronhada n'uns ares de serenidade, que não é d'aquelles annos. Jorge está magro, macilento, e não dorme. Debaixo da janella d'elle encontro a miudo muito papel rasgado. Já pude concertar uns pedacinhos, e lá encontrei o nome da fada má, que nos ha-de perder Jorge.
—Perder!... não diga tal, mano João!—exclamou a viuva, estorcendo os dedos, e já com as lagrimas, a fio.
—Perder, sim!... Mana Antonia, eu já tive vinte annos, e entrei no mosteiro aos trinta e dous... Vou aconselhal-a. Quer resgatar o seu filho das ciladas da sereia?... Olhe que só Ulysses venceu uma vez sereias. Que me conste; desde Ulysses até nós, as vencedoras são ellas sempre, quando as victimas as não podem examinar de perto, e vêr que ellas escondem na [134] agua a metade monstruosa do corpo. (A erudição mythologica do padre nem D. Antonia poupava!)
—Então que conselho me dá, mano?—atalhou a senhora.
—Quando Jorge der signaes de doença grave, quando uma ponta de febre lhe accender as faces, mande-o para o Porto.
—Para o Porto?! Que desproposito é esse!?
—Deixe-o ir examinar de perto o monstro. Deixe-o cahir na conta da sua indigna paixão. Deixe-o ir ouvir o descredito da tal mulher. Ha mulheres como a lança de Pélias: curam a ferida que fazem. Eu já me arrependi de obedecer aos rogos da mana. Jorge devia deixar o Porto espontaneamente. Logo que eu sube que mulher era a tal Silvina, devia abandonal-o a elle á miseria da sua illusão. A esta hora estava elle talvez desenganado. Sabe porque? Aqui tenho uma carta do negociante Ferreira, casado com a sua amiga do convento. Diz-me que Silvina arranjara a final um brazileiro millionario, tão monstruoso em corpo como ella é monstruosa na alma. Se Jorge estivesse a esta hora no Porto, cercado de homens que fazem zombaria das affeições serias e das ridiculas, curava-se. Aqui, se lhe eu annunciar as baixezas da Circea que o bestificou, não me acredita; e, se me acreditar, não temos balsamo que lhe feche a chaga; verá que elle a rasga mais com as suas proprias unhas, Mana Antonia, o meu parecer é este. Não me argumente, que não sabe, nem póde. Se a sua vontade fôr outra, lavo d'ahi as minhas mãos...
D. Antonia foi direita ao quarto do filho, e entrou de sobresalto. Surprehendeu-o a escrever. Jorge fez um gesto machinal para entremetter n'outros papeis a folha em que escrevia.
—Escondes de mim o que escreves, filho?—disse D. Antonia, com magoada brandura.
—Não, minha mãi, não escondo...
[135]—Pois eu não vi?!—tornou ella, sorrindo tristemente.
—São cartas para os meus condiscipulos.
—Deixas vêr-m'as, Jorge? Que poderás tu dizer aos teus amigos, que não dissesses a tua mãi?! Fallas das tuas amarguras? Conta-m'as tambem a mim.
—Eu não fallo de amarguras, minha mãi—disse Jorge, erguendo-se, para afastar a mãi da banca.—Communico a um amigo os meus estudos, as minhas impressões de leitura, cousas que não podem recrear uma senhora...
—Assim será, Jorge... Tu nunca me mentiste, nem mentirás, pois não?
Jorge guardou escrupuloso silencio, respondendo com um tregeito, que valia tanto como a supplica de perdão.
N'este momento, apeava no pateo um cavalheiro da villa proxima, que vinha visitar o academico. Jorge foi logo á sala, a mãi acompanhou-o até fóra do quarto; e retrocedeu a examinar os papeis, logo que o viu entretido. Foi fácil estremal-o dos outros pela frescura da tinta. No alto da folha, leu estas palavras: «AO ANOITECER DA VIDA.» Depois seguia assim:
«Vou d'este mundo, quando custa morrer aos que se estorcem entre uma saudade e uma esperança. Saudade! de que hei-de eu tel-a?! E que posso esperar? Quem me dera já as trevas! Esta luz, que me alumia, é ainda a d'aquelle clarão infernal do baile. Queria fugir de mim proprio, como de um inimigo. Não me has-de tu matar, paixão! Morro porque não podia viver. Se não fosse aquella mulher, era outra. Eu vejo e palpo a morte ha muitos annos. A fugir da morte, refugiei-me no coração de Silvina. Porque me disse ella: «no mundo deve existir a imagem da mulher digna de senhorear-lhe a alma com a de sua mãi, cuja face eu beijaria com respeito e ternura de filha?» E como Deus pôde crear no coração humano para zombaria pensamentos [136] assim! Á mulher infame devia morrer a memoria das palavras com que se exprime a virtude... Sinto-me tranquillo... A compensação dos affrontados é esta. No mal e no bem te reconheço, Providencia Divina!... Mas o mal para que é? Se é necessaria na ordem do mundo a ignominia, a crueza, a infamia, a desgraça, fôra digno da perfeição divina deixar ás almas inculpadas o galardão de não sentirem a absurda justiça do Creador.
«Que és tu, bem? que és tu, virtude?... que és tu...»
Aqui fôra interrompido Jorge pela subita entrada da mãi.
D. Antonia quasi não entendera o escripto; mas algumas palavras, as do titulo só, bastaram a compenetral-a de consternação e terror. Ouviu os passos de padre João, chamou-o anciada, e mostrou-lhe o papel. O egresso leu, e respondeu risonho:
—Não tem de que se lastimar por em quanto, minha irmã. Isto é um accesso de febre; mas não me assusta; o que eu receio é a outra que não interroga a Providencia, e obriga o enfermo a inclinar a face para o seio, e esperar resignadamente a morte. Vá á sala, que o hospede quer comprimental-a.
D. Antonia sahiu, e padre João escreveu o seguinte no papel que lêra:
«O pucaro pergunta ao obreiro porque o fez quebradiço. O oleiro responde: porque eras barro antes de seres pucaro.»
«Virtude é o diamante em que se pulverisam os raios da desgraça. Aquelle é virtuoso que olha em torno de si, e vê prostradas as calamidades.»
«O reino de Deus não está em palavras sonoras; mas em virtudes. (S. Paulo—aos impacientes de Corintho).»
«Coração apoucado, sossobra, se não podes com a tua miseria; mas não abandones a tua memoria a uma piedade vã, que é quasi uma zombaria.»
Traslado fiel de uma carta de Leonardo Pires a Jorge Coelho:
«São 6 horas da manhã. Venho do baile do visconde dos Lagares. Tenho o coração a trasbordar de amargura! Deixal-o trasbordar, que é uma gotta de absintho n'um oceano de champagne. Um bago de uva matou Anacreonte. Eu sinto-me triplicar de existencia na uva. Evohé! Como a vida é linda! que vergeis de flôres recendem á tona d'este lamaçal! Vem cá, Fortuna! Schakspeare chamou-te prostituta. Linda, vem cá, que eu bem te vi no baile, como o poeta inglez te via nos paços e nas tavernas! Senta-te aqui nos meus joelhos, impudica! Solta d'essa larynge recozida de alcool um dithyrambo! Ri-te commigo, e não me venhas dizer que és filha da Providencia, infame blasphema!...
[138]Cançou-me o folego, Jorge! O meu vinho nunca foi para grandes apostrophes. O descriptivo é o meu forte.
Fui ao baile. Pude lograr a causa da moral publica. Deves presumir que estou desacreditado no Porto, e em vesperas de um duello. Sou o varão justo a braços com a adversidade: vir fortis cum mala fortuna compositus—a maravilha que punha Seneca em extasis! O champagne do visconde é litterario como as aguas da Aganippe. Que abundancia de pegasos eu vi beber na sala da ceia, e apparecerem Homeros na sala do baile!
Pedi a quatro conhecidos que me arranjassem convite. Era impossivel. O visconde respondia que eu era um bolas, que descompozera no largo da Batalha uma menina, noiva de um seu amigo. Eis que encontro o João da Thereza da Cancella! Este João é meu caseiro ha cincoenta annos. Vê-me, corre a abraçar-me, e exclama: «Fidalgo, o meu Francisco chegou!»—«Quem é o teu Francisco, amigo João?»—«O meu Francisco—tornou elle—que estava no Maranhão! pois não sabe?»—«Não sabia... Vem rico?»—«Rico como um burro!»—«Está bom; estimo; é barão de...?»—«Não, senhor; barão ainda não é; mas está aquartelado em casa do snr. visconde dos Lagares.»—«Sim?!»—«É como digo, fidalgo, e, pelos modos casa-lhe com a filha; é arranjo tratado já lá do Brazil.»—«Fazes-me um favor, João?»—«É pedir por bocca.»—«Teu filho será capaz de me arranjar que eu seja convidado para um baile que vai dar o visconde amanhã?»—«Que remedio tem elle, senão arranjar?! Quem foi que lhe pagou a passagem para o Rio senão o paisinho do fidalgo?!»—«Vai depressa, e volta aqui com a resposta.»
Meia hora depois, voltou João da Thereza da Cancella, com a carta, e disse-me: «Olhe que o homem não queria dar o officio; foi preciso eu dizer que dava duas libras por elle, sendo preciso; o meu Francisco chamou-me[139] bruto, e depois lá se mexeram como poderam, e aqui tem.»
Dei um abraço democrata no meu caseiro; procurei os meus quatro conhecidos, mostrei-lhes o cartão, e fiz o elogio do seu valimento d'elles.
Apenas entrei no baile, fui comprimentar a viscondessa, que fallava com Silvina. Esta, quando me viu, resfolegava como se eu fosse uma grande botija destapada de vinagre de sete ladrões. Retirei-me a rir, e, na reviravolta impetuosa, bati n'uma grande esponja: era José Francisco Andraens.—Perdão!—disse-lhe eu. José Francisco grunhiu, e enviezou-me um olhar sanhudo—Perdão!—tornei eu. O cerdo poz as mãos na linha hemispherica do seu globo, constituiu-se vaso etrusco, e regougou: «O senhor anda a embarrar pela gente?!»—Foi uma embarração inopinada, snr. Andraens!—repliquei eu—Se lhe offendi os tecidos, desculpe-me.—«Estes meliantes...» disse o brazileiro, e foi-se embora.
Adiante encontrei os morgados de Santa Eufemia, e de Matto-grosso.
—Que ha de novo?—perguntei eu.
—O casamento de Silvina com o brasileiro está definitivamente tratado—disse-me Egas de Encerra-bodes.
—Com o brazileiro?
—Com o brazileiro. Veiu ahi o pai d'ella; expoz á filha as vantagens do casamento, e ella poz os olhos no céo, e disse:—cumpra-se a vontade do Senhor,... e a de meu pai!
—E cá o amigo Christováo Pacheco que diz a isso?—perguntei eu, voltando-me para o de Santa Eufemia, em quanto Egas ria estrondosamente.
—Eu digo—respondeu elle—que já cá botei as minhas contas, e que hei-de tourear o tal José Francisco!... Estou civilisado;—cá o primo tosqueou-me o pello.
[140]—Vi-te n'aquelle momento, meu caro Jorge. Vi a tua candida alma, n'esse ermo, a penar, em quanto a vil, que te mentira o apunhalara, se andava alli glorificando de que a indigitassem como futura quinhoeira dos duzentos contos do negreiro. Fervia-me o sangue em borbotões de raiva. Jurei tirar alli uma vingança em teu nome, a vêr se me assim despenava da culpa de te apresentar, de te immolar aos rasos instinctos d'aquella mulher. Busquei ensejo de fallar-lhe; mas ella evadia-se, não largando nunca o braço de um ou outro homem. O millionario, filho do João da Thereza, levou-me á casa da ceia, e serviu-me tres copos de um vinho que tinha um nome barbaro. Abrazou-me as arterias; mas a minha raiva medrava nas chammas como a salamandra. Tornei ás salas, encontrei Francisca da Cunha pelo braço do linheiro das Hortas; parei diante d'elles, e disse, com a solemnidade do estilo:—Boccacio e Fiammentta! Bettina e Goethe! Fornarina e Rafael de Urbino!
O linheiro, voltou-se para Francisca e murmurou:—Não conheço este sujeito.
Eu continuei: Beatriz e Bernardim!
—O senhor está enganado comnosco—disse o linheiro na sua boa fé de linheiro. Francisca, tirou-lhe pelo braço com força, e afastaram-se. Não sei o que lhe ella segredou. O homem, pouco depois sahiu-me de cara, e disse-me:
—V. s.ª parece que, ha bocado, me quiz insultar.
—Eu não o quiz insultar ha bocado, senhor... como é a sua graça?
—Eu chamo-me Antonio José Guimarães.
—Pois senhor Antonio José Guimarães, como passou?
O linheiro açafroou-se, mediu-me tres vezes perpendicularmente, e disse:
—O senhor ha-de dar-me uma satisfação.
[141]—N'esse caso, satisfaça-se, e, quando estiver satisfeito, avise-me, snr. Antonio.
—Na rua nos encontraremos.
—Pois sim, repliquei eu, na rua nos encontraremos. O snr. Antonio quer duello a todo o trance e sem misericordia? Eu não me bato com armas brancas nem pretas. O snr. Antonio, como tem a materia prima de casa, leve uma corda, que o hei-de enforcar.
O linheiro ficou chumbado ao tapete, e suava como uma abobora porqueira em manhã de orvalho.
Tocou á ceia. Entrei na sala. O champagne estalava. Os crystaes retiniam. Os talheres tilintavam. Eu tinha no craneo a musica das espheras. José Francisco Andraens ia atamancando um empadão de pombos, cujos arcabouços lhe pendiam das belfas em fragmentos. Silvina defrontava com elle, e comia a duodecima Sandwich. Estavam tres perús, ou seis, ou não sei quantos perús intactos na mesa. Fui collocar-me atraz de José Francisco Andraens, e chamei um servo agaloado de prata. O snr. commendador Andraens—disse-lhe eu a meia voz—quer que vossê leve um d'estes perús de mando d'elle áquella senhora que tem uma grinalda de flôres brancas. Disse e fui collocar-me a pouca distancia de Silvina.
Chegou o criado com a travessa, e disse:—Minha senhora, o snr. commendador Andraens manda isto a v. exc.ª
—Isto a mim!—tartamudeou ella entre admirada e vexada.
—Sim, minha senhora, a v. exc.ª—teimou o criado.
Silvina pregou os olhos abrasoados em José Francisco, que lhe abria um sorriso apaixonado por entre o costado d'um pombo. Ao sorriso respondeu ella com um tregeito de colera. Cheguei ao ouvido de Silvina, e segredei-lhe:
[142]«Minha senhora, José Francisco envia-lhe um suspiro d'alma; e como a alma de José Francisco é uma ucharia, os suspiros de José Francisco são perús.»
Quando Silvina volvia os olhos fuzilantes, tinha eu desapparecido. Fui ao ouvido de José Francisco, e disse-lhe á puridade:
—A sua noiva está indignada de o vêr comer assim! Sacrifique a Cupido o oitavo pombo, amigo José.
O que decorreu depois d'isto, não sei dizer-te meu caro Jorge. A minha cabeça não podia já com encargo da chronica até final: sahi. O ar fresco da madrugada, que aspirei até ás cinco horas, restituiu-me á bestial vida commum. Não posso mais.
—Resta-me dizer-te que, se choraste uma lagrima por Silvina, envergonha-te de chorar segunda.
Adeus. Teu
L. PIRES.»
Verificaram-se os presagios do padre João. Jorge, depois da ultima carta d'aquelle singular e diabolico Pires, quiz reanimar-se, e já não pôde. Debil de compleição, quebrantado de insomnias, sorvido incessantemente na funesta scisma de que não havia ahi na terra voz humana que o chamasse ao amor da vida, nem no céo misericordia que o remisse da immerecida pena, Jorge, sem um queixume, sem uma lagrima, sem dar de si incentivo á piedade dos seus, desculpou-se com um ligeiro incommodo, e ficou um dia no leito. A pobre mãi alvoroçou-se, e com ella toda a familia, que via chorar. Veiu logo a sciencia que trata magistralmente dos achaques do estomago, e d'outras visceras nobres, e declarou que a molestia do doente era cousa moral, paixão, hypocondria, [144]ou romance. O facultativo capitulou assim a enfermidade com um sorriso supicaz, e disse á viuva que não era nada aquillo, e ao padre, piscando o olho, acrescentou que era aquella uma das feridas que se curam com o pello do mesmo cão. Chiste de cirurgião de aldêa.
D. Antonia recobrou-se do seu desmaio; mas o egresso entrou em maiores cuidados.—Para o Porto, e sem demora, o rapaz—disse o padre á cunhada.
—Mas o cirurgião não receia, nem Jorge se queixa...—acudiu D. Antonia, temerosa da separação.
—Deixe fallar o cirurgião, senhora. Seu filho morre sem se queixar.
—Não me diga isso!...—exclamou a mãi consternada.—Pois as suas palavras tão persuasivas, mano, e a religião não hão-de poder nada?
—A religião póde muito: se elle fizer uma confissão contricta, e morrer com sincera dôr dos seus peccados, a religião encaminha-o para Deus; mas o que nós queremos é que elle viva. Que me responde a isto, mana Antonia?
—Eu antes o queria com Deus, que perdido no mundo—disse ella suffocada pelos gemidos.
—Respondeu acertadamente; mas a supposição de que Jorge se perde no mundo, acho-a exagerada. Deixe-o ir onde elle se envergonhe de padecer, que eu lh'o dou por salvo. Torno a repetir-lhe, mana, que eu fui homem antes de ser frade, e a senhora foi sempre o que é—uma alma cheia de innocencia, de bondade, e de ignorancia.
—Pois bem, meu amigo, faça o que entender, mas salvem-me o meu filho.
—Aceito o encargo com uma condição: a mana não chora mais uma só lagrima na presença de seu filho; finge acreditar que elle precisa de banhos do mar; exige que vá já para o Porto, e de lá para Coimbra, se [145]fôr vontade d'elle ir a Coimbra este anno. Conforma-se com isto?
—Com tudo que de mim quizerem—murmurou ella enxugando as lagrimas.
—Agora cuide da bagagem de Jorge, que eu vou fallar-lhe.
Jorge Coelho estava sentado na cama, lendo a Nova Heloisa de J. J. Rousseau. O egresso foi de mansinho ao pé do leito, tirou pausadamente os oculos d'um enorme estojo escarlate, montou-os na ponta do nariz, abriu e arredondou os beiços, pendido o queixo, e examinando o livro, disse:
—Era um grande homem esse Saint-Preux, ó Jorge!...
—Pois o tio conhece Saint-Preux?!
—Relacionei-me com esse cavalheiro e com outros da sua estofa ha bons quarenta annos. Nunca t'o apresentei, quando praticavamos litteratura, por que sempre entendi que o ias encontrar a Coimbra, de parçaria com os muitos filhos que elle gerou para amparo de muitas Heloisas novissimas, de que está inçado o mundo, graças ás novellas, e ao descredito a que baixou a roca e o fuso. Que carta lés?
O egresso levantou o nariz com os oculos á linha horisontal dos olhos, e leu algumas linhas da pagina.
—Ah!—continuou elle—trata do suicidio... Está mui atiladamente debatida a questão por uma e outra parte. O Rousseau era mestre em paradoxos; e sabia bastante de musica; mas os paradoxos dava-os de mimo á humanidade, e para elle guardava a vida com todas as suas paixões villãs, mal resguardadas por uma côdea de soberba e orgulho. Ensinava o mundo a educar os filhos, e mandava os d'elle para a roda. Atassalhava a impudicicia do seu confrade Voltaire, e escrevia as suas Confissões, com esqualido recheio de desvergonhamentos, para prova de que até o impudor tem a sua [146]soberba. E depois, meu sobrinho, o philosopho, a luminaria do seculo, vendo que a ulcera, aberta no coração da sociedade pelas más doutrinas, ia lavrando, defendeu de concerto com os seus tresvalios, uma these apologetica da ignorancia... Vou-me alongando, e já receio de ter dito de mais. Isto são reminiscencias das minhas leituras de ha quarenta annos. Quando orçares pelos sessenta, Jorge, has-de abrir a tua Nova Heloisa n'essa pagina, e has-de rir da impressão, que te magoava, quando a lêste, aos vinte annos.
—Não me sinto magoado por impressão alguma, meu tio—disse Jorge, sorrindo, e depondo o livro.
—Não mintas, meu sobrinho—tornou o padre com branda severidade—Faz quanto em ti couber por salvar dos teus temporaes desfeitos do coração, o melhor thesouro d'elle, a verdade, filho. Sofres, e soffres muito, Jorge. Pensas em morrer, e dás de bom grado a tua vida a Deus, se é que a Divina Providencia transluz nas tuas imaginações negras. Não te culpo, rapaz de vinte annos. O mesmo seria culpar-te e reprehender o naufragado que não soube salvar-se. Nem de fraco te accuso. Se eu quizer que uma tenra vergontea, dobrada pelas minhas mãos, se levante commigo, não hei-de molestar-me se me chamarem insensato. No mais verde dos annos, não responde o mancebo de suas fraquezas: a sociedade que responda por elle, e o temperamento tambem. Isto do temperamento, digo-to aqui muito á puridade, que nós cá, os theologos, não queremos ceder nada aos temperamentos. Ora vamos, Jorge, a pé d'essa cama!
—A pé!—disse Jorge—e poderei eu?!
—Pódes porque queres. Hoje e ámanhã de convalescença; depois de ámanhã para banhos do mar.
—De que me servem banhos de mar, meu tio?
—A resposta é do fôro da medicina. Vaes para o Porto. Hospedas-te em casa de D. Marianna Ferreira, a [147]amiga da creação de tua mãi. Vaes do Porto á Foz tomar o teu banho. Se, no fim do mez, quizeres ir frequentar o primeiro anno juridico, vai; se não quizeres, fica o inverno no Porto, e vem para casa em Maio, caso tenhas saudades nossas e da primavera dos teus arvoredos.
—Peço licença—disse Jorge com amargura sincera—para contrariar a vontade de meu tio.
—Teu tio não concede a licença pedida.
O moço fitou os olhos nas mãos cruzadas sobre o seio, e não respondeu. O egresso lançou-lhe sobre o leito o fato, e sahiu, dizendo:
—Vou mandar pôr o teu talher na mesa.
Jorge disse entre si:—Morrer aqui ou lá... que importa?
Na passagem do seu quarto para a casa de jantar, Jorge recebeu de um criado duas cartas. Uma era de Leonardo Pires; o sobrescripto da outra fez-lhe uma convulsão: era de Silvina. Abriu, e leu o seguinte:
«Não sei que mal fiz a v. exc.ª para merecer-lhe uma vingança tão baixa! Collocou ao meu lado um insultador petulante que me vexa em toda a parte. Que fiz eu ao snr. Jorge Coelho?
«Aceitei os seus galanteios com amor, e aceitei o seu abandono com paciencia. Que queria que eu fizesse para não ser insultada pelo seu amigo? Diga-me se é necessario pedir-lhe perdão de ter sido abandonada. Não hesitarei em fazel-o com tanto que v. exc.ª me garanta a certeza de que não serei injuriada nas praças e nos bailes. De v. exc.ª—eu muito respeitadora, Silvina de Mello.»
Jorge cahiu extenuado n'uma cadeira: a orla roixa das palpebras fez-se negra; apanharam-se-lhe as faces, como se a doença, em poucos minutos, progredisse mezes. D. Antonia vinha chamal-o, e encontrou-o assim, com a carta na mão tremula.
—Que tens, meu filho?—clamou ella ajoelhando diante d'elle, e abraçando-o.
[148]—Nada, minha mãi, é fraqueza... Não chore, por piedade, não chore, que eu estou bem.
E, erguendo-se com vacillante esforço, foi para a mesa. Forcejou por comer; mas as lagrimas cahiam-lhe das faces no prato, e a violencia não conseguia desentalar-lhe a garganta.
—Que é isto?—disse o egresso.
—Foi uma carta...—respondeu D. Antonia.
—Não é nada, meu tio. Recebi uma carta que me fez mal. A impressão gasta-se, e eu d'aqui a pouco estou bom. Agora pedia licença para me erguer da mesa, e dar um passeio no jardim.
—Vai—disse o padre.
—Eu vou comtigo, meu filho—acudiu a mãi levantando-se.
—Não vai, mana; deixe-o ir sosinho.
Eram imperiosas as palavras do padre: D. Antonia sentou-se. Jorge desceu ao jardim, e foi sentar-se n'um banco de cortiça encostado a um maciço. Abriu a carta de Pires, que resava assim:
«A Providencia não é uma mentira. José Francisco Andraens apanhou uma indigestão de pombos, salame e salmão no baile do visconde, e está em risco de rebentar. Eu estou de atalaia a vêr quantos Jonas sahem d'aquelle bojo! O morgado de Santa Eufemia veiu dar-me a noticia, jubiloso, como quem espera empalmar Silvina, extincto o bruto. O qual bruto já se confessou, a vêr se a gente se persuade que existe uma alma n'aquellas cavernas de sebo!
Parte o correio.
Teu do intimo
L. Pires.»
«P. S. O linheiro das Hortas ainda não appareceu com a corda.»
[149]Se a carta de Silvina fosse uma dorida invocação ao amor de Jorge, simulando razões e desculpas, ou accusando o silencio do desleal amante, que a despresara sem motivar o menospreso immerecido, é de presumir que o brioso moço nem respondesse á carta, nem se doesse dos hypocritas queixumes de uma caprichosa estouvada. Porém, o estilo, assim magoado como arrogante d'aquella carta, turvou de tal sorte a cabeça e o coração do academico, que já elle a si mesmo se accusava de indiscreto, de ingrato e de extremamente facil em acreditar o tio. E—o que é mais é—sentiu rancor áquelle leal amigo da Maya, que, por conta d'elle, se andava expondo no Porto a ser expulso de todas as casas!
Quantas idéas lhe occorreram todas advogavam a innocencia de Silvina. Absolvida e amada eram a mesma cousa. Agora já a esperança de ir vêl-a ao Porto lhe era um desafogo, e não sei mesmo se contentamento. O pobre moço, como nem sabia se quer contrafazer-se, denunciou nos exteriores de inquieto regosijo quanto a resolução do tio lhe era grata. A mãi, compondo a roupa no bahu, chorava sempre; os irmãos choravam ao pé d'elle, e elle fugia de todos para que o não vissem alegre.[150]
O leitor é uma pessoa de juizo limado e occupações serias. Estou que não lê romances de ninguem, e muito menos os meus, que são escriptos em lingua portugueza e modelados em cousas de Portugal, onde é sabido que não ha imaginação que invente a novella, nem modos de vida que saiam bem no romance. D'onde vem que o romance portuguez, se não é copia do estrangeiro, e aborrecida inverosemelhança, orça por cousa peor, que é a semsaboria.
Eu tenho escripto alguns volumes de semsaborias: creio que são vinte e tantos. Entre estes, mergulharam de cachapuz no rio
do negro esquecimento e eterno somno
[152]tres livros denominados: ONDE ESTÁ A FELICIDADE—UM HOMEM DE BRIOS—e a VINGANÇA.
N'estes tres romances figura um homem, ao qual eu nunca puz nome. Umas vezes chamei-lhe poeta, outras jornalista, outras litterato, e assim fui aguentando com embaraços da composição, mas venci a minha. Custava-me a falsificar o nome d'um homem que copiei com esmeros de rigorosa fidelidade; figurava-se-me irreverencia o que em si não era senão escrupulo banal. Ainda agora me deixo levar da criancice, e não acabo commigo dar um nome qualquer ao homem. Quer-me parecer que ha uns longes de poesia n'este segredo. Diga o leitor que é tolice, e saldemos assim as contas amigavelmente: eu dou-lhe a troco da injuria esta revelação da minha crendice, e guardo as chimeras como o homem de boa fé guarda o tôco de cera benta para se alumiar á hora da morte.
Pois é verdade. Aquelle poeta era o amigo de Guilherme do Amaral e de Augusta.
Espectros sombrios, memorias queridas e amargas da minha alma em infancia de illusões, passai um instante luminosos na escuridade d'esta recamara da sepultura, onde até a lampada da esperança se vai extinguindo na mão do anjo do conforto! Vinde a mim, corações amigos, cujas lagrimas eu vi, e contei uma a uma, quando apenas tinha a intuscepção da alma, predestinada ao vosso fel, para lhes avaliar o travo. Na vossa mortalha foi o melhor da minha vida, o crêr nas promessas do coração, nos levantados desejos do espirito que não caiam á terra sem se infamarem; foi comvosco a fé na religião da poesia, que era a minha fé unica, porque não havia crêr nem sentir em mim em que não estivesse Deus, que eu convidava, sem temor sacrilego, a gosar-se das delicias que eram d'elle, creações suas, umas sujas, outras empestadas pelas mãos dos homens! Comvosco foi o meu ultimo dia de oração, a minha ultima acção de [153]graças, a palavra final da profissão de fé, que devia, a meu vêr, remontar-me ao céo, e que, ao revez das mais espirituaes theorias de Platão, de Socrates, de Jesus, e de todos os Messias da redempção das almas, deu commigo em baixo n'um golfão de lama, onde ha o ranger de dentes d'estas bestas feras, que até na lama sustentam o egoismo da sua propriedade!
Ó visões immorredouras, que me ensinastes o amor e o sentimento, e levastes comvosco o segredo de morrer antes do longo paroxismo do tedio da vida, vós bem vistes com que saudosa unção eu vos offertei dous livros e um ramo de perpetuas, que valiam mais que os livros, e menos que esta pagina em que bem vedes com que fervor me atrevo á prosa d'estes annos, á mofa d'estes industriaes, que me estão perguntando se a apostrophe ha-de ser muito comprida, para tomarem fôlego, e accenderem o seu charuto.
Pois accendam o seu charuto, e retirem-se as almas evocadas, e mais os romances, que não tem que vêr com elles o leitor, que tanto conheceu as almas, como se lhe dá dos romances.
Veiu isto a ponto de estar aqui já comnosco o amigo de Guilherme do Amaral e d'aquella Augusta por quem choram as flôres do Candal, e as almas desamparadas d'aquelles que... Lá ia já sahindo outra tirada de sentimento. É enguiço, que me ha-de retirar a protecção de muita gente boa, que não precisa de lêr um folhetim para convencer-se do seu direito de espriguiçar-se, e voltar a gazeta de costas, e calcular perspicuamente as relações economicas que podem dar-se entre a alta do cravo dito girofe e a baixa do cacau.
Ora ahi vai agora o conto direito. O antigo jornalista, amigo da defuncta baroneza de Amares, estava no Porto de visita em casa de Bernardo Joaquim Ferreira, ahi nos ultimos dias de Outubro de 1855.
D. Marianna, esposa do snr. Ferreira, e suas quatro [154]filhas, e dous meninos, e varias outras pessoas, estão sentadas em roda de uma grande mesa jogando o quino. O jornalista está sentado n'um sophá, conversando com o dono da casa, sobre cousas do Brazil, d'onde o primeiro tinha vindo depois de cinco annos de ausencia. A conversação foi interrompida pela entrada de uma filha do snr. Ferreira, que a mãi e irmãos receberam com muitas vozes de alegria, ás quaes ella respondeu dando um beijo na fronte da mãi, e outro nos labios das irmãs. Com a bem vinda entrou tambem o marido. O litterato, já de pé, deu dous passos, e disse á dama que entrára:
—Quero vêr se me conhece ainda, minha senhora.
—Se o conheço!—exclamou Rachel.—O mesmo que foi para o Brazil; o mesmo que era ha cinco annos... Não se admire da nenhuma surpreza com que lhe fallo porque eu já sabia que o vinha encontrar. A mãi, quando o senhor chegou, mandou-m'o dizer para a quinta, e deu-me sempre noticias suas. Agora pertence-me a mim perguntar-lhe se me acha muito mudada.
—Quando, ha cinco annos, me despedi de v. exc.ª—disse o poeta—se bem me recordo, tive a honra e o prazer de ser propheta, dizendo-lhe que a viria encontrar cinco, dez, ou vinte annos depois, bella como a deixava, minha senhora. Noto-lhe apenas uma differença sensivel.
—Qual?—perguntou D. Marianna com solicitude de mãi.
—Acho-a mais bella—respondeu o poeta.
Por entre os dizeres usuaes que vem sempre depois de um dito feliz como aquelle, ouviu-se a voz aspera do snr. Manoel Pereira, marido de Rachel, dizendo:
—Então, vamos a isto?—E escolhia cartões do quino.
Queria dizer na sua o snr. Manoel Pereira que bastava já de comprimentos, em que a formosura de sua [155]mulher era encarecida por um homem da antipathia d'elle.
As senhoras sentaram-se, e Rachel, obrigada, pela indicação do marido, ficou com as costas voltadas para o jornalista.
—Não vem jogar?—disse Rachel ao hospede.
—Vou, sim, minha senhora.
As damas deram-lhe lugar immediato a Rachel. Manoel Pereira estorcegou machinalmente um cartão entre os dedos convulsos, e fez-se escarlate, cravando os olhos no rosto descuidado de sua mulher.
O jornalista viu tudo isto, e riu-se para dentro.
Agora descreve-se Rachel; depois Manoel Pereira; por fim alguns traços geraes d'esta familia, e fechará o capitulo.
Rachel tem vinte e quatro annos. É encorpada, mas a robustez não desdiz da gentileza. Não tem attitude alguma de estudo, e parece esculptural em todas ellas. Nos mais communs movimentos ostenta graça, e garbo que vem de seu natural, e ninguem o dirá se a não tiver visto em toda a sua desaffectada singeleza no recesso das suas occupações caseiras. Quando Rachel está n'um baile... N'um baile foi que eu a vi a primeira vez. Era ella solteira, e teria quinze annos. Isto já lá vai ha quinze. Se eu me não lembrar do que ella era então, melhor me será despedir de mim esta bruta alma que nem para a saudade já serve. As minhas reminiscencias dão-me Rachel vestida de branco. Não lhe hei-de aqui chamar anjo, porque não foi essa a impressão. Era tudo magestade, tudo estatuario n'aquella criança; não a vi a descer do céo, onde os poetas teimam em ir buscar tudo que é excellente, como se o céo não fosse um puro congresso de espiritos que valem de certo lá muito mais do que pesam, mas que passariam desapercebidos nos nossos bailes, se não tivessem a esperteza de entrarem em corpos como o de Rachel. Eu quando a vi lembrou-me [156]a Grecia, as artes, em requinte de pompas, a numerosa familia das Venus, todos esses marmores eternos, que hão-de sobreviver á mythologia dos anjos, dos archanjos e dos seraphins. Os olhos de Rachel... estou-os vendo; nem as franjas sedosas e longas das palpebras m'os escondem; poderiam as arcadas espessas e travadas do sobr'olho quebrar a luz d'aquelles olhos; mas nem assim! Como tu olhas, Rachel! Diz a antiguidade que na Scythia havia umas mulheres que matavam olhando se o rancor lhes fuzilava nas pupillas; porém tu que paixão tiravas da alma toda amor, para a lançares de ti como um incendio que te abrasaria, se eu, se todos, que te viam, não tomassem de joelhos um quinhão d'esse fogo! Que haverá alli de mysterios n'aquelles olhos, se o fluido electrico não basta a dizer o que é que vem de lá como corpo estranho que vos entra no seio, e vos não cabe na alma, e quer fugir ás ancias do coração que o aperta, e vos leva do amor ao transporte, do extasis ao phrenesi, do rir ébrio da felicidade ás lagrimas incessantes de noites desveladas! E, depois, porque não eram só os olhos o condão d'esta mulher? Diante de Deus todos somos iguaes! Na alma se quizerem, e o Creador, lá se avenha com os que o injuriam assim; mas que desigualdade diante do divino artista! Lembra-me que a um lado de Rachel estava uma menina de olhos vesgos; do outro lado uma senhora com um nariz impio; mais longe outra menina em torturas para esconder quatro dentes enclavinhados; além aquell'outra franzindo os labios, e exercitando uma laboriosa mechanica do sorriso para corrigir a natureza que lhe dera uma bocca limitrophe das orelhas. E ella, Rachel, toda primores, a estremecida creatura, com uma luz serena de céo n'aquella face em que se espelhava o seu Creador, o Deus que nos fez para a adorarmos, a rever-se n'ella! Abençoada sejas tu de todas as venturas, que tão perfeita és, tão cheia de tua belleza, [157]tão digna dos thronos da terra, já que o Creador, o teu Pygmaleão, te não arrebatou para si! Onde está, ó Senhor Deus das maravilhas, o homem digno d'aquella obra tua, aqui posta entre nós que apenas temos thronos, imperios, talentos, epopeas, as riquezas da Asia, e o sangue das nossas veias para lhe offerecer! De que barro, ó mão divina, fizeste o homem que ha-de primeiro embriagar-se nos aromas que recende aquella virgem? Onde está o homem que...
O homem elle aqui está. É o snr. Manoel Pereira. Já quinou tres vezes. Feliz no jogo, infeliz no amor; é certo o proverbio... até com elle!
Manoel Pereira tem cincoenta e cinco annos! estatura mean, cabeça quadrilatera, e plana como um queijo do Além-Tejo desde o occipicio até á cisura do coronal. As arcadas zygomaticas (vejam um compendio de anatomia comparada) entestam com o rebordo esponjoso dos olhos arrastando cada uma para o seu lado a venta correspondente que termina em fórma de fava. O nariz não tem canas; parece que é formado de parafusos. Começa do centro da testa por uma verruga, transforma-se em lobinho, ladea em pequenos abscessos escarlates, e pega no beiço superior, repuxando por elle de modo que o dono não póde exercitar as funcções olfactorias sem enviezar o beiço. Este nariz ha-de ser lithographado e distribuido aos assignantes, concluido o romance. O nariz é o homem. Quem o vir organisa o complexo de Manoel Pereira, como Cuvier recompunha o reptil iguanodo, e o megaterio.
Temos á roda da mesa a snr.ª D. Marianna e quatro filhas. É de notar em Rachel o typo perfeito d'aquella familia. A mãi, senhora de quarenta annos, é bonita ainda. Se a perfeição das raças é admissivel, nunca mais sensivel foi a gradação do aperfeiçoamento como entre D. Marianna e Rachel. Das outras filhas, uma é formosa, se bem que já ferida da tisica, que d'ahi a mezes [158]a levara para o lado de uma sua irmã que a mesma enfermidade matou, quando lhe sorriam duas primaveras, a das flôres, e a dos prazeres da vida. Outra é uma linda criança de doze annos, com os olhos de Rachel. A que porfia em belleza desvantajosamente com a mais bella é já casada, e tem vinte annos. Ha uma outra de aspecto vulgar, posto que o não pareça entre outras que não sejam suas irmãs.
Bernardo Joaquim Ferreira, o pai d'estas lindas meninas, tem uma agradavel physionomia de homem de cincoenta annos, e maneiras polidas, sem embargo do trafego commercial em que labuta desde rapaz. Revela a esperteza ordinaria na sua classe, temperada pelo uso da boa sociedade em que desbravou as rudezas congeniaes, e as adquiridas nos seus primeiros annos.
Ácerca d'esta familia, outras miudezas seriam intempestivas agora.
Saudemos com lagrimas a entrada de Rachel n'esta historia, que principia desde hoje a tomar as proporções d'um escandalo monumental.
—Não sabes quem hoje me escreveu?—disse D. Marianna a Rachel, terminada a partida do quino?
—A minha Antoninha do convento.
—Sim? que novas lhe dá ella do filho? A mãi disse-me que a pobre senhora vivia muito consternada com a paixão do rapaz pela tal Silvina.
—Segundo me ella diz, continuou D. Marianna, o pobre Jorge está enfeitiçado, e cuida ella que a maneira de o desenguiçar é mandal-o para aqui, a fim de elle, á vista do comportamento de Silvina, se desenganar. Acho esquisito o remedio.
—O remedio é eficacissimo, snr.ª D. Marianna—disse o litterato.—O que a mim me espanta é ser uma senhora quem o receita. O fim da sua amiga é fazer [160]com que o filho se sinta aviltado por amor de uma mulher ridicula. O amor rompe todos os tropeços, transige com muitos defeitos e mesmo vicios da pessoa ou... cousa amada; mas da mulher escarnecida é que não ha cegueira que o aproxime.
—Conhece a tal Silvina de Mello?—disse Rachel.
—Já a encontrei em algumas partidas na Foz, minha senhora.
—Que idéa fez d'ella? A sua apreciação deve chegar-se muito á verdade.
—Pareceu-me, respondeu o poeta, que era galante, e até mesmo esperta. Ouvi-a declamar acrimoniosamente contra uns folhetins que denomina Felizardas as senhoras provincianas, e pasmei da imprudencia com que desprimorou as damas portuenses, chacoteando-as por um lado que é justamente, a meu vêr, o mais vulneravel da fidalga do Minho...
—Qual é?—interrompeu Rachel com vivacidade. O jornalista, reconhecendo a inconveniencia da resposta ajustada, fez, como por disfarce, esta pergunta:
—Não é certo estar tractado o casamento da tal senhora com um commendador fulano de tal Andraens?
—Assim dizem—respondeu D. Marianna—pelo menos cuido que...
—Parece-me que não é anno de fortuna para ella... atalhou o snr. Manoel Pereira, coçando a verruga media da aza esquerda do seu nariz.
—Por que?—disse Rachel olhando de través o marido.
—Por que o meu amigo commendador, desde que foi o baile do visconde dos Lagares, nunca mais se levantou, e vai cada vez a peor. O homem já soffria molestia interior, e comeu tanto á ceia, que esteve a rebentar-lhe a tripa... Ainda ha quem queira bailes!... Se elle estivesse em sua casa...
[161]Rachel, prevendo que seu marido aproveitava o ensejo para uma enfadosa e desconchavada diatribe contra os bailes, cortou-lhe logo o fôlego comprido das tolices com esta fina ironia:
—Nem toda a gente leva aos bailes as tripas dos teus amigos... Com que então—continuou ella, voltando-se para o jornalista—o amor não será capaz de vencer a indigestão do noivo?
—Segundo ouço ao snr. Manoel Pereira—respondeu o litterato em tom lastimoso—a gentil menina está em risco de vêr o coração, que tão caro lhe era, romper-se, batido pelas explosões do estomago que rebenta, deixando a seu dono a gloria de morrer como Tito.
Rachel e uma das irmãs sorriam; Manoel Pereira desconfiou do riso da mulher, e disse mal encarado, com o nariz já roixo:
—Se elle quizesse mulher tão bonita e mais rica que ella, não lhe faltavam por ahi ás duzias.
—Ninguem contesta o dito de v. s.ª—redarguiu o escriptor.
—Mas o senhor parece que estava caçoando com o meu amigo...—tornou Manoel Pereira.
—É injusto o cavalheiro. Eu se tivesse quatro irmãs dar-me-ia por ditoso se o seu amigo quizesse casar com todas quatro, e lamento não saber o segredo de um tal Lucius que Plinio viu transformar-se em mulher; por que se me eu podesse felizmente mudar em mulher, havia de galantear o amigo de v. s.ª, e morrer de amores por elle se uma indigestão rival m'o arrebatasse.
Rachel soltou uma risada contagiosa: riram todos, salvo Manoel Pereira, cujo nariz reluzia ao reflexo da luz, em differentes côres desde o açafrão até ao talo da couve lombarda.
O jornalista continuou, fallando para D. Marianna:
—Tive tambem occasião de conhecer no hotel da [162]Aguia d'Ouro o filho da amiga de v. exc.ª Fallei com elle, e fez-me bem o perfume d'aquelle coração em flôr. Que candura, que adoravel innocencia a dos vinte annos de Jorge... creio que se chama Jorge! E, ao mesmo tempo, que singularissimo typo de rapaz eu conheci com elle, e todos os dias encontro por ahi atraz de uma prima de Silvina, e de um tal Guimarães, linheiro, ou pregueiro, ou cousa que o valha... Que homem se fará d'alli, se o céo o não leva d'este mundo e d'esta sociedade que tanto precisa de um cenaculo d'aquelles apostolos!... V. exc.as de certo não conhecem Leonardo Pires de Albuquerque, fidalgo da Maya, descendente de D. Martim Pires da Maya, que gerou D. Pedro Pires, que gerou D. frei Martim Martins, mestre da ordem do Templo no seculo XIII? De certo não conhecem...
—Nem é preciso conhecerem—exclamou Manoel Pereira—É um patife, que concorreu muito para a doença do meu amigo Andraens!
—Eu não pensava—replicou o poeta—que Leonardo Pires era um alimento indigesto!... Se bem me recordo, v. s.ª disse ahi que a enfermidade do snr. Andraens era uma indigestão!
—Como de facto; mas, pelos modos, o tal brejeiro insultou-o no baile, o homem atrigou-se, e sahiu cá para fóra afflicto, e nunca mais foi bom.
—Não sabia isso; apenas me disseram que elle recommendára ao snr. Andraens que não comesse tanto; e quer-me parecer que este conselho, longe de ser insultuoso, tendia a prevenir a indigestão fatal que se deu.
—Deixemo-nos de contos...—instou o marido de Rachel.
O sorriso d'esta era já forçado por vêr que o jornalista não tinha a cortez caridade de conter as ironias que Manoel Pereira não percebia.
—E D. Antonia que diz, mãi?—interrompeu Rachel.
[163]—Diz que Jorge Coelho vem para esta casa.
—Para esta casa?!—acudiu Manoel Pereira abrindo a bocca, e arregaçando o nariz até á testa.
—Não tenho n'isso duvida nenhuma—respondeu Bernardo Joaquim Ferreira, que tinha sahido e voltára momentos antes.—E dou-te parte, Marianna, que Jorge já está na hospedaria, e não sei se será dever meu ir já buscal-o esta noite. Aqui tenho um bilhete d'elle, pedindo-me que o desculpe de não vir directamente aqui.
—Como ainda é cedo, disse D. Marianna, podes ir buscal-o. O quarto está preparado. A mãi descrevendo n'um estado tal de amargura que eu tenho pena de o deixar sosinho na hospedaria.
—Mas ha um inconveniente—redarguiu o snr. Bernardo.—Tenho gente no escriptorio á minha espera para liquidar umas contas, e não posso deixal-as para ámanhã, que os negociantes são da provincia, e partem de madrugada. Se o snr. Pereira tivesse a bondade de ir á Aguia d'Ouro...
—Homem, eu a fallar-lhe a verdade—disse Manoel Pereira—tenho aqui n'este pé direito uns callos que me não deixam dar passada; se não da melhor vontade; mas, sempre lhe direi o que penso respeito á vinda d'elle para aqui. Eu não sei o que me parece metter n'uma casa onde ha meninas novas um peralvilho que não gosa dos melhores creditos, e que de mais a mais é amigo do tal Pires, que ha-de cá vir onde a elle, e o mundo pega logo a fallar pr'aqui, pr'acolá, e ás duas por tres... Em fim, meu sogro lá sabe o que faz...
D. Marianna replicou com vehemencia:
—O snr. Pereira não ouviu dizer aqui a este senhor que o filho da minha amiga era um moço muito digno?!
—Todos elles são muito bons, mas em minha casa [164]é que elles não põem o pé.—Disse Manoel Pereira, e fez menção de procurar o chapéo.
Rachel relanceou sobre o marido um olhar severo. O escriptor fazia figuras geometricas com as marcas do quino. As meninas olhavam-se entre si com sorrisos rebeldes á prudencia. O bom Ferreira, apesar da sua superioridade relativa de sisudeza e bom senso, não deixou de vacillar ao choque das reflexões do genro. D. Marianna, porém, voltando-se com energia para o jornalista, disse-lhe:
—O senhor faz-me um favor dos que se pedem sem embaraço a um amigo antigo?
—Faça-me a honra de mandar-me, minha senhora.
—Tem a bondade de ir á hospedaria, e acompanhar o filho da minha amiga, o filho d'uma senhora a quem eu devi na minha mocidade o que não posso pagar-lhe d'outro modo?
O jornalista ergueu-se, e disse, tomando o chapéo:
—Se elle estiver doente, ou na cama fatigado, mandarei um bilhete para que o não esperem. Até já, ou muito boas noites, minhas senhoras.
Sahira o jornalista, e D. Marianna enxugando lagrimas que não tinham na apparencia muito cabimento alli, fallou assim:
—Eu nunca disse a minhas filhas os favores que devo á mãi do meu hospede; escutem-me, e depois dirão se o filho de tal anjo não será digno de ser recebido como seu irmão. Eu fiquei orphã e pobre aos onze annos. Entrei nas ursulinas de Braga, entregue á caridade da prelada, que me achou com habilitações para ser uma simples criada grave de convento. D. Antonia de Sepulveda tinha tambem entrado, n'essa occasião, e era rica. Tratei-a com respeito, e ella a mim com familiaridade, para chegar ao fim de me offerecer metade da sua mesada, e habilitar-me a ser senhora entre as outras, que me olhavam com desestima, e com a falsa piedade das [165]ricaças do convento. Aceitei os favores da minha amiga, e tão suave era o dever-lh'os, que nunca me julguei devedora, se não depois que vim a esta sociedade conhecer o valor dos beneficios que recebi de Antonia. Vivi cinco annos á sombra da generosidade d'ella: prendei-me á sua custa, instrui-me com ella d'essa apoucada educação que nos davam no convento; e já depois que a minha amiga sahiu para casar obedecendo ás ordens de seus paes, continuei a receber as mezadas e os presentes que ella recebia. Casei tambem passado um anno, fui feliz, enriqueci, presenteei-a, mas a cada lembrança de amiga que lhe eu mandava, respondia ella com mais valiosos mimos da sua casa. Penso ha vinte e quatro annos no modo de ser util á minha querida Antonia; a Providencia depara-me agora occasião de velar as commodidades do filho d'ella. Haja ahi uma pessoa de boa fé a dizer-me que devia ser outro o meu procedimento...
—Ninguem se atreve a tanto.—disse Rachel com enfado.—Eu, se minha mãi, por desgraça nossa, não existisse, levaria para minha casa o filho da nossa amiga, da protectora de nossa mãi. Se eu tivesse um marido que me quizesse roubar o prazer da gratidão em tão pequeno serviço, amaldiçoaria a hora em que meus paes me subjugaram a tal homem...
—Não te irrites assim, Rachel...—disse Bernardo Ferreira, ferido pelas palavras da filha, que lhe apontavam direitas á consciencia, onde as fibras do remorso doiam sempre.
Entretanto, Manoel Pereira, franzindo o nariz, dilatava as ventas hediondas, por onde vaporava a zanga.
O incidente, passados minutos, foi cortado por um bilhete do escriptor, dizendo que Jorge Coelho pedia desculpa, agradecia extremamente a delicadeza, e convalescia da fadiga para no dia seguinte cumprir as ordens de sua mãi.[166]
O jornalista encontrou Jorge Coelho na cama, e Leonardo Pires sentado á banca. No semblante de ambos eram visiveis os signaes da altercação, que fôra interrompida pela chegada do terceiro. O filho de D. Antonia estava escarlate de febre, e anciado; o da Maya, se bem que de má catadura, esboçava distrahidamente, a lapis, uns perfis de narizes caprichosos. Jorge conheceu o litterato, e maravilhou-se da visita; Leonardo Pires, mais familiarisado com o sujeito, ergueu-se, abraçou-o, e exclamou:
—Aqui está o teu medico, Jorge! o teu Christo, Lazaro!
—Temos ecce homo?! Dar-se-ha caso que o snr. Pires—disse o jornalista sorrindo—me prepare algum [168]calvario?... Como está o snr. Jorge Coelho? O aspecto denota inquietação...
—Não é inquietação;—atalhou Pires—é a sina maldita d'este desgraçado que nos tortura a ambos...
—Todos temos o nosso demonio familliar, snr. Pires—tornou o escriptor—Socrates queixava-se do seu, e eram nada menos de dous os demonios do divino philosopho, sendo o peor dos dous uma tal Xantippa... Querem vêr que o snr. Jorge é energumeno d'alguma Xantippa ideal, que... (O jornalista escreveu, e entregou a um criado o bilhete que foi recebido em casa de D. Marianna). Jorge entretanto, sorrindo contrafeito, respondia:
—Não, senhor. Eu sou apenas victima das loucuras do meu condiscipulo.
—Ó cavalheiro—clamou Pires irritado—diga ahi a esse ingrato quem é Silvina de Mello. Não se trata aqui de desfolhar lindas chimeras, e matar illusões queridas. A paixão de Jorge é uma nodoa que eu quiz delir-lhe do coração, á custa mesmo do meu descredito e abominação n'esta sociedade devassa. Tenha vossê a franqueza de dizer a esta criança o que eu tenho sido, já que eu tive a boa sorte de lhe referir ao senhor as minhas acções e palavras.
O romancista achou de riso a gravidade da appellação de Pires para o seu testemunho; mas perseverou-a na seriedade que o proposito pedia, e disse:
—O snr. Leonardo Pires tem dado provas exuberantes de amisade ao snr. Coelho, verberando com prosperos sarcasmos uma menina em tudo respeitavel, menos na sua virtude.
—É de mais!—atalhou Jorge—Póde ser que Silvina mereça censura como inconstante, sem com isso...
—Deixar de ser virtuosa?...—interrompeu o poeta...
—Justamente.
[169]—Não julga bem, snr. Coelho. A deshonestidade não póde ser virtude. A mulher que enfeira o coração, e o põe á concurrencia, mirando ás vantagens do pedido, poderá ser uma sagaz professora de economia politica applicada ás mercadorias do coração, mas virtuosa é que ella de certo não é. Para mim tenho que a virtude póde coexistir com a miseria da mulher perdida que não tem a hypocrisia de expor o coração á venda; porém, quero eu que não prostituamos a palavra, que é santa, cedendo-a á que cuida cobrir as suas ulceras com o amicto de virgem. A snr.ª D. Silvina de Mello, que eu vim, depois de cinco annos de ausencia, encontrar occupando a vagatura d'outras aventureiras que eu cá deixei, é uma senhora aleijada.
—Ainda mais essa!—atalhou Pires—Eu nunca dei pelo aleijão de Silvina!
—Aleijada de espirito, quero eu dizer, snr. Albuquerque. Que outro nome se ha-de dar á lamentavel enfermidade moral d'uma menina que desperta das suas illusões de infancia, esfrega os olhos, e começa a procurar em redor de si um homem com alguns saccos de dinheiro? Ha ahi nada mais torpe, mais nauseabundo na face da terra! A mulher que assim faz tem alluido a sua virtude pela base, que é a vergonha. D'ahi ávante o pudor é uma mentira, as côres que sahem ao rosto são irrupções de sangue como as empigens, é um mechanismo da materia que o observador encontra mesmo nos prostibulos. Que é o que bate no peito d'essa mulher, desde que a ancia do dinheiro fez d'ella um estimulo de sensações? Quando ella fallar nos affectos da sua alma, qual é de nós o que voluntariamente se immolará ao escarneo de sua propria consciencia, respondendo ás Silvinas com expressões de candura e boa fé? O snr. Jorge Coelho tem a sinceridade de me dizer se me entende?
—Entendo; mas não creio que Silvina seja a mulher que o senhor qualifica.
[170]—Eu não a qualifiquei ainda: o que eu quiz foi a certeza de que o meu joven amigo me entendeu a theoria: agora pertence á pratica o qualificar Silvina. Está o snr. Jorge Coelho no Porto. Fez bem em vir. Isto é uma questão de tempo. Faça as suas experiencias desde ámanhã em diante; mas tenha a condescendencia de me ir communicando os seus descobrimentos. Entretanto, restitua ao snr. Leonardo Pires o bom conceito em que o tinha, que estes amigos são raros. Outro objecto. A minha commissão não era vir discutir Silvina: Eu fui aqui enviado pela snr.ª D. Marianna Ferreira e seu marido a fim de conduzir o snr. Jorge a casa d'elles, onde foi recebida uma carta de sua mãi.
—Oh! bravo!—exclamou Pires.—Temos homem!
—Não atino com o seu enthusiasmo, snr. Albuquerque!—disse o escriptor.
—Que mulheres, que mulheres tu vaes vêr, ó Jorge!—continuou bracejando o da Maya.—As Ferreiras! a nata, a quinta essencia das mulheres bellas do Porto! E a Rachel! ai! aquella Rachel, casada com o nariz mais indecente que fez o acaso estupido, a quem o Creador entregou a repartição dos narizes! A Rachel! a mulher dos olhos de antilopa! as mais bellas carnes que ainda vestiram uma alma, se é que uma mulher d'aquellas precisa de ter alma para ser perfeita! Ó Jorge, tu estás curado! Quando vires Rachel, sentirás um coração novo, um coração caldeado nas fragoas dos olhos d'ella! Eu vi-a uma vez, e creio que se a visse segunda...
—Iria á missa dos Clerigos vêl-a terceira, não é assim?—interrompeu o poeta, rindo, com Jorge, dos transportes sinceros de Pires.—Rachel é uma bella senhora, e uma nobilissima alma—continuou o escriptor gravemente.
—Mas, segundo a sua theoria—atalhou de golpe Jorge Coelho—essa Rachel é uma das muitas aleijadas [171]que por ahi ha. Não a conheço; mas sei que ella casou com um brazileiro hediondo e rico.
—Aquelle nariz!—disse Pires.—Tambem me quer parecer que a mulher pouco vale na alma, quando contemplo o nariz de Manoel Pereira!
—E eu creio que a sociedade—tornou Jorge—não desconsidera Rachel porque ella escolheu um homem rico, podendo ter aceitado a desinteressada pobresa e o coração opulento de muitos rapazes que a cortejavam. Já se vê que a opulencia d'um sordido não desluz aos olhos da sociedade a virtude d'uma senhora que se deu por ella.
—São contos largos...—disse o romancista.—Custa-me que o cavalheiro confunda Rachel com Silvina. Creia que offende uma martyr, snr. Coelho, Rachel supporta o supplicio de Mezencio, com a resignação que santifica a baixeza, se ella tivesse existido, e as culpas futuras, se ellas podem existir. Não levo em paciencia o aggravo feito á pobre menina. Vou contar-lhe em quinze minutos a historia do casamento de Rachel. Bernardo Joaquim Ferreira conhece o valor do dinheiro, e duvida da existencia d'umas paixões, que podem vingar e prosperar sem dinheiro.
Ás filhas chama-lhe suas, e não exclue d'esta propriedade o coração. O seu pensamento fixo d'elle é casar ricas as filhas. Rachel era querida de alguns amigos meus, espiritos dignos d'ella, que lhe teriam dado a ventura, se os encontros predestinados dos espiritos não fossem o mentiroso poetar de infelizes que nunca se encontram. Um d'esses amigos, fui procural-o ao hospital de alienados, quando desembarquei ha cinco mezes em Lisboa. Conheceu-me ainda, e as primeiras palavras que me disse foram: «Morreu Rachel! A minha alma foi com ella.» Pobre moço! bem sentia elle que já não tinha alma! Depois de dous annos de loucura, por ignorados motivos, esquecido de tudo que fôra, tinha uma [172]só reminiscencia, como se todo o seu passado se concentrasse n'ella... Vamos ao ponto, e desculpem-me d'estas intercadencias melancolicas. Os senhores não sabem ainda o que é olhar para o passado aos trinta e cinco annos, e vêr uma longa fila de espectros uns gotejando sangue, e outros lagrimas...
O poeta dissera isto tão do intimo amargurado, que nem Leonardo Pires deixou de o escutar com magoa. Jorge, já dorido de suas tristezas, não era para espantar que desse em lagrimas uma prova de sympathia á dôr alheia.
Proseguiu o romancista:
Ha seis annos eram dous os homens indicados para maridos de Rachel. Quem os indicava, e negociava com ardis, e negaças ignobis, sobre serem immoraes, era o pai. Rachel detestava-os ambos. Manoel Pereira era um; o outro era brazileiro tambem, menos repulsivo, melhor alma talvez, e amigo do primeiro. Desde que se toparam a amar a mesma mulher, odiaram-se, intrigaram-se e depreciaram mutuamente os seus haveres, porque bem sabiam que Ferreira tinha a filha em almoeda. O primeiro que a pediu foi Manoel Pereira, abonando-se com cem contos. O segundo não dizia o seu valor. Foi o primeiro preferido, sem ser consultada a victima.
N'este tempo, Manoel Pereira entra em transacções com o governo, e perde cincoenta contos. Ferreira, sabedor da perda, acolhe de novo o outro concurrente, e cede-lhe a filha. Este carecia de ir liquidar o seu negocio ao Rio de Janeiro. Mas, como a liquidação se detivesse mais d'um anno, Manoel Pereira aventura-se em especulações mercantis, estas prosperam-lhe, restaura-se das perdas, e rehabilita-se para esposar Rachel. O negociante, que sabia o anexim do passaro na mão, receia que o outro não volte, e quebra pela terceira vez o contracto. Rachel ignorava estas asquerosas mercadorias. [173]Annuncia-lhe o pai que ella é esposa promettida de Manoel Pereira. A pobre menina quer defender-se primeiro com razões, depois com lagrimas. Tudo lhe é rebatido com indifferença, ou com palavras violentas de soberania paternal. Desde o dia em que se fizera definitivamente a operação commercial dos quinze annos d'um anjo formoso, como a esperança d'uma alma pura, com o homem de cincoenta annos, sem o desconto de alguma feição boa do corpo ou da alma, Rachel era perseguida pelo seu porco demonio de todas as horas. Se acontecia Manoel Pereira estar na sala, e a lagrimosa criança se demorava no seu quarto para encurtar as horas do supplicio, ia lá o pai buscal-a; e se as grosserias a não compelliam a aligeirar o passo, não era raro ameaçal-a de pancadas, e mesmo fazer executiva a paternal justiça. Quantas vezes Rachel entrou na sala, com as faces escarlates das bofetadas que o pai lhe dava como incentivo para saber aproveitar-se da fortuna caprichosa! Era esta a lastimosa situação de Rachel quando eu fui para o Brazil. Recordo todas as palavras que a formosa criança me disse a ultima vez que fallamos.—Tenha animo para a obediencia—disse-lhe eu—Bem póde ser que Deus a remunere d'essa virtude com imprevistas felicidades.
—Eu dou por terminada a minha vida—respondeu-me Rachel com os olhos enxutos—Tenho quinze annos, e ha tres mezes que olho para a minha existencia, como se ella fosse já longa de trabalhos. Os paroxismos hão-de ser rapidos. Sei que nem eu nem alguma de minhas irmãs podemos sobreviver á mocidade. Estamos todas feridas da mesma morte. D'aqui a pouco lançarei o coração em golfadas de sangue, e meu pai não terá remorsos de ter cooperado para a minha morte, por que elle já viu dous irmãos meus cahirem no verdor dos annos na sepultura onde cahiremos todos. Vá, que não me torna a vêr...
[174]Eu sahi de ao pé de Rachel, com o coração opprimido, mas contente de mim porque chorava as primeiras lagrimas, depois d'outras que eu julguei serem as ultimas... Rachel casou. Não morreu. Mentiu-lhe o anjo que fallava áquella sua innocentissima alma. Vive. É uma agonia sem nome... O quarto de hora já lá vai. Agora, meus amigos, não venha mais o nome de Silvina como um escarro á face de Rachel. Até ámanhã, snr. Jorge. Depois d'estas reminiscencias, eu tenho um singular coração que se brutifica, e uma alma que detesta a sociedade. Boas noites.
Cuidava o leitor que estava livre do sujo José Francisco Andraens; do estouvado Leonardo Pires; do nariz de Manoel Pereira; da erudição mythologica de fr. Antonio; do mettediço jornalista; da fidalga de Margaride, adeleira fraudulenta do seu roto coração; da Francisquinha da Cunha, promettida esposa do linheiro das Hortas; do morgado de Santa Eufemia, rival do Andraens; do Egas de Encerra-bodes, illustrissimo sangue neogothico; de Jorge Coelho, alma pura e candida e apaixonada até enfastiar o bom siso de quem nos atura, a elle e a mim; e, finalmente, de Rachel.
Ai! não me digam que estavam enfastiados de Rachel!... As lindas mulheres só enfastiam os seus maridos, e desagradam ás mulheres feias. Parece que a propria [176]moral, severa como a directora d'um collegio, se compraz ás vezes de as vêr louquinhas, se o ellas são. A belleza é o poder moderador dos delictos do coração. Uns lindos olhos são a mais commovente rhetorica em defeza das culpas que a intolerancia lhes assaca. Um braço gentil, que descuidosamente se denuncia nu, abala o animo do juiz austero com mais vehemencia que a mimica de Hortencio e Mirabeau. O sorriso discreto, se não é bem despreso nem expressão de orgulho da culpa, abranda e enternece mais o peito abroquelado de indifferença, que a lacrimosa peroração dos que vingam apertar com os cilicios da piedade o coração de um jury.
Mas a que proposito cahe esta especie de defeza de Rachel?! Peccou ella, por ventura? Não, minhas senhoras. Rachel tem um só peccado de fraqueza; foi optar pelo marido, entre o marido e o suicidio. Desceu ao plebeismo das outras, que lhe haviam dado o exemplo da renuncia de si proprias, podendo afidalgar-se e ser unica pelo heroismo de se entregar á justiça de Deus, fugindo ás injustiças do mundo. A morte moral, que a sociedade inflige ás malfadadas, que a cupidez d'um pai acorrentou a um marido abominavel, se o coração, em phrenesis rompeu o grilhão, é, mais dolorosa que o suicidio tantas vezes, quantos são os repellões que a sociedade lhes dá até as engolfar no abysmo sem sahida.
Querem dizer-me que Rachel, se tivesse aceitado o beijo da morte, e fugisse ao beijo marital de Manoel Pereira..., (um beijo de Manoel Pereira, com aquelle nariz na vanguarda... santo Deus!) ninguem se lembraria do seu heroismo a estas horas? Dizem mais que o desdem da gente séria, e a censura da gente religiosa, e a irrisão da gente parvoa, e o contentamento de outra que Manoel Pereira iria escolher, entre mil, n'esta grande feira, fariam do suicidio de Rachel assumpto de reprovação e de affronta á sua exquisitice? Tambem o [177]penso assim. Estou que ninguem já hoje se lembraria do pobre anjo que fôra queixar-se a Deus de o terem querido despir de suas pompas, de suas flôres, de sua aureola, de sua virginal pureza, para o prostituirem aos regalos d'um satyro revelho, que perdeu alma e coração no grangeio da riqueza, com a qual vem mercar um recreio para a sensação do corpo, abrazeado na vida ociosa! Ninguem se lembraria da nobre alma, que preferira deixar as graças do corpo aos vermes, para o não dar ao cêvo de uma besta-fera. Assim é; porém, se uma vez Rachel voltar o rosto de enojada do cadaver a que a prenderam; se a força, que o coração lhe fizer, tiver comsigo a força do exemplo bem succedido e quisto da sociedade; se o seu fragil batel de virtude, forçada e violenta, se desconjuntar e abrir, rebatido pela tempestade das paixões; se em fim, aquella honra, a constrangimento, e não de vontade aceite, se fôr a pique, a sociedade que dirá?
A sociedade—replica o leitor que a conhece e se conhece—a sociedade faz-se desentendida por cortezania; por conveniencia; porque sabe a historia do olho com trave, que se abria espantado de vêr uma aresta no olho alheio. A sociedade fez uma convenção tacita, de que é fiadora a civilisação. Em substancia, este contracto social dá os seguintes resultados:
1.º Respeitar a liberdade do coração humano, sem prejuizo do soalheiro das salas, em que é preciso entreter o tempo, e fingir a gente que não conhece senão as pessoas que estão fóra das salas.
2.º Fingir, outro sim, a gente que está convencido da tolice dos outros, para que os outros nos tenham em conta de boçaes de boa fé, e não de espertos sem pudor. Dá-se um exemplo em hypothese: tal marido sabe que o mundo o lastima ou moteja; mas como a lastima e a irrisão cauterisam, sem curar, a chaga do vilipendio, o lazaro finge-se de optima saude, e aproveita occasião [178]de gemer pela molestia do seu amigo, gafado da mesma lepra. Estes dous homens, se se topam, e fallam da corrupção social, voltam as costas a rir um do outro, e vão cada qual por seu lado, espalhando a risada contagiosa.
3.º Não perdoar o que se chama «escandalo». Escandalo é não ter a sagacidade da hypocrisia, e o despejo de injuriar o senso publico, tratando-o de nescio. Escandalo é tomar a serio as brincadeiras do coração, e vir dar alguem á sociedade uma prova de que despresa o contracto social. Escandalo é cahir da prostituição legal á honra do coração, que cuida ennobrecer-se e regenerar-se; victimando o nome, o estado, e o que a inveja chama fortuna, ao goso de conhecer a liberdade na miseria. Escandalo, a final, o escandalo maximo e abominavel e imperdoavel é a mesma miseria.
A sociedade sabe que o crime é um dos elementos da ordem das cousas, e julga-o um mal necessario, sem o qual não haveria bem-aventurança nem inferno, nem anjos, nem demonios, e Deus seria inutil por não ter que fazer, visto que os theologos lhe não attribuem occupação que não seja julgar, premiar, condemnar, e perdoar, segundo lhe pedem, ou conforme a sua espontanea misericordia quer. Ora, sem o crime, este complicadissimo funccionalismo, cujo presidente é o Creador do céo e da terra, do mar e do sol, da avesinha que regorgeia nas moitas, e do leão que atrôa os desertos, do homem como Alexandre e Napoleão e do homem como José Francisco Andraens, e Manoel Pereira... dizia eu... eu! eu não dizia nada: quem dizia que o crime é necessario era o jornalista, amigo de Guilherme do Amaral, conversando na «Aguia d'Ouro» com Jorge Coelho, alguns dias depois do encontro em que os vimos no capitulo ultimo da primeira parte d'estas biographias.
Vamos agora á historia.
[179]Achou Jorge em casa de D. Marianna Ferreira o seu quarto e sala adornados com muito aceio e selecção. Melhor que isto, era o gosto de se vêr acolhido sem estranhesa nem demasias de ceremonia. Os filhos e filhas de D. Marianna, logo ao segundo dia, o tinham como pessoa da familia, e porfiavam em divertil-o d'aquelle geito de tristeza, que era natural, e das abstracções penosas, que tinham a sua razão de ser na dôr do coração.
D. Marianna, senhora algum tanto despreoccupada do artificio, que tão preciso é, chamado delicadeza, logo que Jorge lhe deu uma aberta, fallou na paixão, que o seu hospede tinha por Silvina, e nos desgostos, nascidos d'esse louco amor, para a sua querida Antonia.
D. Marianna, em termos desabridos, disse de Silvina o que era notorio, e talvez lhe exagerasse os defeitos.
Jorge escutou-a respeitosamente, e ao mesmo tempo admirou-se de ouvil-a assim fallar na presença de suas filhas, que todas estavam presentes, salvo Rachel, a quem elle não tinha ainda visto.
Lembrado está o leitor de ter sahido Manoel Pereira zangado de casa de sua sogra, por que a maioria lhe rejeitára o parecer de não ser recebido Jorge em casa d'aquella. Como Rachel sahisse então da sua paciente annuencia aos votos irracionaes do marido, este, mal afeito a ser contradictado, protestou convencer a mulher e a sogra de que não queria relações com tal sujeito.
No dia seguinte, ao abrir da manhã, mandou preparar alguns bahus, entrou n'uma carruagem com Rachel, e foi conduzil-a a uma quinta, seis leguas distante do Porto, nas immediações de Barcellos. Quizera a submissa senhora despedir-se de sua familia; mas Manoel Pereira, franzindo as verrugas do nariz, e enviezando o beiço na sua ordinaria expressão de zanga, atalhou as intenções da saudosa Rachel, dizendo que a mulher casada [180]não tinha familia senão seu marido. E Rachel, fitando os olhos coruscantes de raiva no nariz do esposo, disse com o fel do coração nos labios, que sorriam sardonicamente:
—Deus te livre que eu alguma hora me esqueça de que tenho uma familia, que não é meu marido... Se lhe eu perder o respeito a ella, se os estimulos de minha exemplar mãi me faltarem, tu verás então que eu não tenho outra familia.
O marido, arregaçando os musculos businadores, e as azas nasaes com elles, regougou:
—Põe lá essas doutorices em miudos, que eu não te entendo.
—Se me tu entendesses—redarguiu Rachel—nunca me forçarias a fallar assim á tua ignorancia.
Manoel Pereira cascalhou uma risada de velhaco, e coçou-se atraz da orelha esquerda.
Não se trocaram palavra no decurso de seis leguas. Rachel ia linda pelo escarlate da sua colera; e Manoel Pereira bufava, quando não cabeceava de somno jogando contra o hombro de sua mulher.
A gentil senhora, a espaços, encarava no marido, e dizia entre si: «Que destino o meu! Este é o homem, que me deram para a vida! Querem que seja d'este homem o meu coração! Ter uma só existencia, e curta como hade ser a minha, e hei-de sacrifical-a toda a esta cousa que vale duzentos contos de réis!
«Que aproveitou meu pai d'este monstruoso enlace? Que lucrou este homem em se aviltar para me chamar sua, se elle mesmo conhece que lhe obedeço abominando-o? Mas eu não devia soffrer, porque Deus bem sabe que fui levada de rastos, e que me perdi por ser boa filha, e me tenho atormentado para ser uma victima obediente dos calculos de minha familia! Calculos! quaes, e de que serviram? Quem foi feliz com elles?!...»
[181]Estes mentaes soliloquios eram cortados por algum ronco pavoroso, ou espertar estremunhado do negociante de couros, quando não era uma pancada da mão esponjosa que algum sonho sacudia ao peito de Rachel.
Chegaram ao seu destino, e pouco depois as cargas da bagagem, e as criadas de Rachel. Manoel Pereira passou na quinta aquelle dia e o seguinte; ao outro, voltou para o Porto a fim de fazer uma carregação de couros, e activar uma leva de escravos brancos para o Rio de Janeiro.
Rachel, á hora crepuscular da noite d'esse dia, foi sósinha sentar-se nas escadas do cruzeiro, que defrontava com o portal da quinta, e então chorou as lagrimas represadas em tres dias de exasperada angustia.
Como tu serias linda alli de uma formosura do céo, Rachel! Qual Magdalena mais linda inventou o buril aos pés da cruz misericordiosa! E se anjo tu eras de purissima alma; se as mesmas lagrimas te depuravam de intenções culposas, que alegria não seria a do teu Creador, vendo-te assim incontaminada, com menos ventura que muitas que não tinham no coração uma fibra incorrupta!
Se a essa cruz voltares, n'outra tarde, a pedir perdão da queda, hão-de os anjos chorar-te, ó Rachel; mas pedirão a Deus que te leve para si e para elles, como se houvesses cumprido immaculada o teu desterro do céo.[182]
José Francisco Andraens venceu a morte, que lhe entrára no buxo, disfarçada nos dez pombos, que elle ceiou, em casa do visconde dos Lagares.
Das recahidas é que ia sendo impossivel salvar-se. Quando a medicina lhe empunha um caldo simples com meia onça de pão esfarelado, José Francisco desfazia meia gallinha na tigela. A inflammação gastrica reaccendia-se-lhe nas cavernas, e a morte voltava de novo a espremer-lhe os succos das tres barrigas até descorçoar rebatida pela brutal compleição. A final nem a medicina pôde acabal-o!
Ergueu-se José Francisco algum tanto abatido, um pouco pallido, quebrado de vista, e mal seguro das suas pernas zambras. Deu um passeio de carroção até á Foz, [184] e almoçou com appetite. Voltou no dia seguinte, e almoçou duas vezes. Cubiçou pescada, por que a viu sahir das redes, e mandou cozer uma com cebolas e batatas. Depois de jantar, dormiu um somno de justo, com a barriga repleta, (cousa que não succede muitas vezes aos justos)—e sahiu de tarde a tomar a fresca em Carreiros, onde a fortuna lhe deparou uma vendedeira de manjares brancos e pasteis de Santa Clara, que lh'os vendeu todos a olho, e elle comeu, empinado sobre um penedo sobranceiro ao mar.
Tomada a refeição, José Francisco limpou o suor da papeira, e lambeu os beiços pulverisados do assucar dos pasteis. Depois descobriu a cabeça á bafagem fria do oceano, cruzou os braços em postura de quem medita, e pensou assim:
—Como isto é tamanho! Como se faria o mar? Por que será que o mar cresce e minga? Quantas pescadas haverá no mar? A gente sempre a comer peixe, e nunca se acaba!
Entrava José Francisco na solução d'estes problemas, quando a linha do seu horisonte foi cortada por um barco a vapor. Topetaram então com o sublime do engenho humano as suas meditações:
—E o vapor!?—dizia elle—Sempre os homens tem idéas! Pelos modos o que faz girar as rodas é o fumo do carvão! Uma cousa assim! E como a gente come boa carne a bordo d'um vapor inglez! Bons tempos eram aquelles em que eu viajava, e comia tanto, sem me sentir enfartado como agora que qualquer cousa me trabalha cá no interior!...
Estas considerações entristeceram José Francisco, e o espectaculo do oceano enfastiou-o. Ergueu-se, desceu do seu throno de caranguejos e algas, e foi dar alguns passeios na lingueta de pedra, onde então passeavam muitas familias.
Entre estas estava Francisca da Cunha conversando [185]com Antonio José Guimarães, o linheiro; e Silvina de Mello procurando conchinhas na praia.
O linheiro foi comprimentar o commendador, e D. Francisca chamou a attenção da prima.
José Francisco, logo que viu Silvina, perdeu a cabeça.
É preciso explicar o que o leitor já devia saber, se esta historia fosse contada com mais arte.
Quando Andraens cahiu doente, Silvina mandou saber do seu estado, e teve quem lhe assegurasse que o illustre enfermo succumbiria ao typho, resultante da gastrite. Ao mesmo tempo, disse-lhe alguem que José Francisco fizera testamento, sendo uma das verbas testadas aos seus parentes de Cozelhas a quantia de um conto oitocentos e vinte e cinco mil e setenta reis, de que lhe era devedor Pedro de Mello, declarando a quinta hypothecada ao pagamento da quantia, e juros da lei.
Silvina não mandou saber do homem; e Pedro de Mello, que viera ao Porto para apressar o casamento, tão indignado ficou da avareza do moribundo, que deu louvores a Deus de matar a tempo o villão, para que sua filha se não conspurcasse na lama de tal javardo. Era o sangue escandecido do sargento-mór d'Amarante que refervia nas veias do neto. E, ao mesmo tempo, como o morgado de Santa Eufemia andasse ahi nas ruas do Porto, exhibindo um rosto de amargura e uma gravata verde-gaio com alfinete de cabeça d'ouro rendilhada, Pedro de Mello disse á filha que seria prudente não dar de mão ao morgado, porque lhe constava que o pai tinha soffrido um insulto apopletico, e não poderia viver longo tempo.
Silvina, anjo de submissão, accedeu á vontade paternal, e trocou algumas palavras com Christovão Pacheco, quando ambos immergiam no mar, e recebiam a unção conciliadora da mesma onda. Succedeu assim o caso em que pegou o desamuarem-se:
[186]O morgado, ao aproximar-se a onda, dava urros, e mettia-lhe a cabeça com furioso impeto, perneando fóra d'agua. Como Silvina estivesse perto d'elle, viu que o sapato d'ourêlo n'um d'esses pinotes de arlequim maritimo, lhe saltára de um dos... dous pés—digamos dous pés por deferencia á historia natural.—E, quando o sapato, entumecido de agua, ia ao fundo, Silvina disse á banheira que apanhasse o sapato do cavalheiro. A tempo foi isto que o morgado o andava procurando á tona d'agua; e, como ouvisse a magica voz da dama, e visse o sapato na mão da banheira, que lh'o atirava a elle, Christovão, bem assombrado, disse a Silvina:
—Obrigado á sua attenção, minha senhora!
—Não tem de quê—respondeu Silvina, sorrindo.—Porque não toma o senhor o seu banho mais quieto?
—Gosto d'isto assim;—respondeu o morgado.
—Eu cuidei que era o nervoso que o obrigava a dar cambalhotas na agua.
—Nada, não é, minha senhora; é que eu gosto de brincar com o mar; com o amor é que eu já não brinco.
—Nem deve brincar, porque o amor gosta de ser tratado seriamente; e o senhor zomba com as victimas d'elle...
—Eu é que zombo, minha senhora!... Não perca esta onda, que é boa.
O de Santa Eufemia arremetteu com a onda, e fez proezas de natação, deixando-se ir de costas no dorso da vaga, que o levou á praia.
Como Silvina sahisse do mar, o morgado sahiu tambem, vestiu-se, e esperou, disfarçadamente, a sua mulher fatal. Sahiu Silvina da barraca, e deu de rosto com Christovão Pacheco. Sorriu-se, e respondeu á cortezia do fidalgo de Freixieiro. Deu alguns passos, procurando Francisca da Cunha; e, como a visse entre duas barracas protectoras conversando com o linheiro, sentou-se a um recanto, sosinha, e meditativa. O morgado sentia [187]caimbras nas pernas e saltos do coração. Girava em roda d'ella, puxado por magnetismo irresistivel. A final fez ao seu acanhamento o que fazia ás vagas: metteu a cabeça, e foi.
Silvina recebeu-o agradavelmente, e conversou com elle um quarto de hora. D'esta conversação resultou ficarem convencionados para tomarem o banho juntos no dia seguinte, e assim nos oito dias que decorreram.
José Francisco Andraens convalescia da ultima recahida, quando teve noticia da deslealdade de Silvina. Desafogou no seio do visconde dos Lagares, e deu procuração para ser demandado Pedro de Mello por um conto oitocentos e vinte e cinco mil e setenta reis, e juros da lei. Com estes acontecimentos coincidiu a ida do commendador á Foz, e o seu encontro com Silvina em Carreiros. Agora está dada a razão de ter perdido José Francisco o tino, quando a viu á cata de conchinhas.
—Ó prima Silvina—disse Francisca—olha que está aqui o senhor commendador Andraens.
—Bem se lhe dá ella que eu esteja aqui ou em casa do diabo—disse com ira e amargura José Francisco.
Silvina avisinhou-se do grupo, e disse serena e em tom severo:
—Folgo muito em vêr restabelecido o credor de meu pai. Ser-me-ia dolorosa a sua morte, por muitas razões, sendo a primeira o receio de vêr meu pai soffrer alguma penhora a requerimento dos herdeiros do senhor commendador.
José Francisco respondeu com promptidão sem mudar de côr:
—Quem deve, paga. É como é. A senhora esperava ser minha herdeira?
—Não, senhor; esperava merecer-lhe a consideração de mulher que estivera para ser sua esposa. Esperava que o senhor não andasse jogando entre mim e meu pai com um punhado de ouro, que não vale para [188]mim este punhado de conchas. Esperava, finalmente, que o snr. José Francisco Andraens não viesse por si mesmo certificar a conta, em que é tido, de possuir uma riqueza que é o seu flagello, e o das pessoas a quem empresta uma migalha das suas sobras. O senhor, logo que se viu em perigo de morte, esqueceu-se de que eu me tinha desembaraçado de todos os obstaculos para ser sua mulher, e testou a insignificante divida de meu pai, para morrer sem deixar saudades a alguem n'este mundo. Desde que v. s.ª praticou semelhante baixeza em que conceito queria que o eu tivesse?
José Francisco tartamudeou esta resposta:
—Eu não estava escorreito do miolo quando fiz o testamento. Lá foi o meu amigo visconde que arranjou tudo, e eu assignei sem dar tino de mim. Se offendi o senhor seu pai, queira perdoar.
Não ha que vêr: Silvina era a mulher fatal de tres corações, que por ella andavam perdidos. Andraens, como a visse e ouvisse, perdia a consciencia da sua dignidade, e—o que mais é para assombro—a consciencia de credor. Quanto mais arrogante Silvina lhe castigava a natural grosseria, mais escravo se humildava José Francisco. Fulminava-o a electricidade dos olhos d'ella, e tinha a sua voz um encanto, que faria lembrar o da magica da Colchida, se elle não fosse pôrco, antes de ouvil-a. Pasmava elle do feminil predominio d'aquella mimosa mulher que o sopesava; mas este espanto era submisso, e a submissão amor, que os romancistas chamam o fatidico, o predestinado, o invencivel.
Antonio José Guimarães, avesso á reconciliação de Silvina com o morgado, e desejoso de a vêr ligada ao seu amigo Andraens, esforçou-se em desamual-os, dando explicações a favor d'um e d'outro, de modo que ambos já as escutavam silenciosos. José Francisco acompanhou Silvina e Francisca, promettendo vir jantar com ellas no dia seguinte, e authorisou o linheiro a dizer de [189]sua parte á menina que por causa d'elle não se havia de desarranjar o que estava tratado. Mandou immediatamente sustar a começada execução sobre Pedro de Mello; presenteou com alfinetes e pulseiras as duas fidalgas; tomou casa na Foz; deu a Pedro de Mello as satisfações que o pundonor do fidalgo exigia, e deixou ao arbitrio d'este as condições da escriptura nupcial.
E o morgado de Santa Eufemia? Esse continuava a dar cabriolas nas ondas.[190]
Em fins de Setembro, foi Jorge Coelho, na companhia de Leonardo Pires, á Foz. D. Marianna contrariára-lhe o desejo, até áquelle dia, por saber que a ventoinha de Margaride lá estava, desafiando, com as suas evoluções amorosas, a irrisão da gente frivola e a indignação das pessoas sérias. O jornalista, porém; que era oraculo em casa do negociante Ferreira, aconselhára a excellente amiga de D. Antonia a não impedir que Jorge visse o espectaculo irrisorio ou repugnante em que Silvina se exhibia.
Estava ella sentada nas ribas fragosas, que marginam o «caneiro» onde os grupos se banhavam. Francisca da Cunha estava, ao lado da prima, conversando com o linheiro. O morgado de Santa Eufemia, n'outra [192]eminencia do fragoêdo, abarcava as pernas com os braços, e apoiava o queixo entre os joelhos. Na especie de ilha que fórma a outra riba do caneiro, andava aos pulos Egas de Encerra-bodes, ensinando um cão da Terra-Nova a saltar ás ondas. E era aquelle o vulto mais pitoresco da praia, envolto no seu cobrijão escarlate, franjado de borlas verdes, e cahido a um lado com a natural graça, que usam dar-lhe os provincianos, vesados áquella elegancia de feiras.
Jorge de Sepulveda avistou de longe Silvina, e disse a Pires:
—Lá está ella... Não passemos d'aqui.
—E que quer dizer não passarmos d'aqui?—acudiu o da Maya, accendendo o charuto no cachimbo denegrido d'um banheiro—Queres tu, amigo Jorge, fingir o que não és? Apraz-te passar por tolo no conceito d'aquella mulher?!
—Julgue-me ella como quizer...—replicou elle—concedo que seja tolice isto, mas... é cedo ainda para ser... homem. Eu amei seriamente Silvina. O amor e o remorso são espinhos, que não desencrava do coração quem quer. Para que te hei-de eu mentir, se me não posso enganar a mim? Não a esqueço, nem se quer a despreso áquella mulher. Minha mãi ajoelhou commigo sobre a sepultura de meu pai, e pediu-me, pela memoria d'elle, que me vencesse e levantasse da minha miseria. Quiz, e não pude, meu amigo! Como queres tu que eu possa dissimular á penetração de Silvina o que por ella sinto?! Melhor é que me ella não veja. Vai tu, se queres: eu espero-te aqui, e voltaremos logo para o Porto.
Jorge sentou-se n'uma fraga a distancia; e Leonardo Pires, vibrando o chicote, foi postar-se a pouca distancia de Silvina, conversando com o morgado de Santa Eufemia.
—Então quem namora agora a menina?—disse o da Maya—O meu amigo de certo não, que o vejo aqui [193]amuado. Jorge Coelho tambem não, que está acolá conversando com a natureza, e lendo o seu destino no vôo das gaivotas, como Catão d'Utica.
—Que é?!—disse Christovão, receioso de que o nome do romano fosse algum chasco á sua ignorancia.
—Catão d'Utica, disse eu, meu caro senhor; não conhece este personagem?
—Nada, não conheço—replicou o morgado, voltando o rosto para o lado de Silvina, que o remirava com disfarce por entre o franjado da sombrinha.
—Mas ha-de conhecer aquelle outro personagem que lá vem—retorquiu o da Maya.
Christovão olhou na direcção indicada, e viu José Francisco Andraens, que descia lentamente a calçada que conduz á praia. Não teve mão da sua raiva, de mais a mais aguilhoada pela facecia de Pires: fitou Silvina com um sorriso de ironia bruta, e disse-lhe em alta voz:
—Lá vem o nosso homem!
E soltou uma casquinada de riso, dando upas sobre a pedra, com as pernas apertadas entre os braços.
Silvina virou-se de lado com repellão, e Leonardo Pires exclamou:
—Estão bonitos! isto sim, que daria idéas a um Gavarni cançado! Ó humanidade tu és a caricatura dos monstros que a imaginação cria nos seus delirios de cognac e absyntho!
Dito isto, com pasmo d'algumas familias de Traz-os-Montes, que por alli se agrupavam, Leonardo desceu do fragoedo para a praia, ao mesmo tempo que José Francisco se aproximava de Silvina.
—Ora viva!—disse o commendador á fidalga de Margaride—Como passou?
—Excellentemente, e o snr. Andraens?
—Está feito; não me dei muito bem com a ceia. Appeteceu-me uma lagosta, e trabalhou-me cá dentro toda [194]a noite. Agora, estou mais desempachado, e acho que vamos ao banho.
—Quando quizer.
—Sempre me sento um bocado a arrefecer—tornou José Francisco, apalpando as pedras, e ajustando, o melhor que pôde, com as asperezas d'ellas as roscas de carne cuja flexibilidade se moldava ao anfractuoso da rocha. Depois, bramiu um urro de satisfação, e cruzou as mãos sobre a barriga n.º 2.
—Com que sim—continuou elle—Em que estava a senhora a malucar?
—A malucar?!—disse Silvina, franzindo a testa.
—Sim, dizia eu, se estava a cogitar n'esta vista do mar...
—Ah! sim... estava...
—A fallar a verdade,—tornou elle, recolhendo-se—isto é uma obra que faz pasmar a gente! O que me dá no goto é isto de crescer e mingar o mar!... A senhora sabe a razão?
—Dizem que é effeito da attracção da lua.
—Da lua!—atalhou com espanto José Francisco.
—Sim, senhor, da lua; é o que dizem os entendedores; mas como se faz o fluxo e refluxo do mar é que eu não sei, nem mesmo me importa saber...
—Da lua!—tornou o commendador, olhando para a abobada celeste, e gesticulando mudamente com os braços, como quem se esforçava por entender a acção da lua sobre a agua, com um imaginario artificio de alcatruzes.—Da lua não póde ser!—disse elle por fim, com a energia e aprumo de Galileu, á sahida do carcere.
—Pois então não seja!—disse Silvina com enfado.
—Porque a lua—tornou José Francisco, com os olhos no céo, e os dedos das mãos afastados entre si—a lua está lá em cima, e...
—E o mar está cá em baixo...—atalhou a menina, espirrando um frouxo de riso.
[195]—Ora ahi está! E a senhora ri-se!? Eu queria que os doutores me explicassem como é que a lua empurra o mar e puxa depois por elle... Ó snr. Guimarães! olhe aqui que vai já.
O snr. Guimarães era o linheiro, que estava a pouca distancia com Francisca da Cunha. Vieram ambos ao chamamento de José Francisco, e ella principalmente attrahida por um tregeito da prima.
—Diga-me cá: vossê sabe como é que a lua faz isto de crescer e mingar o mar?
—Eu não estudei nada d'isso—respondeu o linheiro—mas, em quanto a mim, a maré cresce quando o vento é de mar, e minga quando o vento é de terra.
—Ah! pr'ahi, pr'ahi! diga-me d'isso!—acudiu radioso o commendador.—Mas da lua!... É que estava cá a minha Silvininha a dizer que era a lua. Quem lhe metteu isso na cabeça, menina?
—Foi alguem que estava a zombar de mim!—disse Silvina gargalhando francamente com Francisca da Cunha.
—Isso entendo eu... Agora—tornou José Francisco—se querem ir lá conversar sosinhos, vão, que eu tenho que dizer aqui a esta menina uns arranjos cá da nossa vida de noivos.
Francisca e o homem da rua das Hortas afastaram-se para irem occupar as cadeiras, que deixaram junto d'uma barraca; mas encontraram-nas tomadas por Leonardo Pires e Egas de Encerra-bodes.
Ergueu-se Egas, e Francisca sentou-se, cuidando que Leonardo cederia a sua cadeira a Antonio José Guimarães; mas Leonardo não se moveu, e o linheiro estacou diante d'ambos, com os olhos fuzilantes sobre o da Maya, que assobiava apparentemente distrahido a canção popular, cuja letra é: Muito bem seja apparecido n'esta funcção...
Francisca ergueu-se, e deu alguns passos em retirada. [196]O linheiro, porém, bamboando a cabeça, resmuneou estas palavras, mal ouvidas de Pires:
—O que vossê merecia, sei eu.
—Que regouga?—disse-lhe o da Maya.
—O senhor...—replicou Antonio José—ainda ha-de topar quem lhe dê uma boa lição.
—Vá-se embora—redarguiu Pires—Se não, atiro-lhe areia aos olhos.
—A mim?!—disse com um sorriso azedo o linheiro.
—E enterro-o n'esta praia, como quem enterra um safio pôdre. Vá-se embora, homem, e diga lá á fidalga que não ame parvos, se não quer receber d'estas affrontas.
O linheiro fez um arremesso com a bengala, e Leonardo Pires tomou do chão dous punhados de areia, dizendo com semblante de quem brinca:
—Olhe que vossemecê leva!
Egas de Encerra-bodes, que estivera, a um lado, rindo debaixo de uma dobra do cobrijão, deu dous passos para a retaguarda do linheiro, e fez um gesto ao «terra-nova». O cão começou a tirar com os dentes pelas abas do paletó de Antonio José, e este a sacudir-se, e a florear a bengala, que infelizmente embarrou no focinho do animal. O remate d'este episodio foi cousa triste de contar-se. O linheiro, se não tem botas de cano alto, sahiria com as canellas estrincadas; e póde ser que os dentes do «terra-nova» procurassem afiar-se em porção das pernas, não abroqueladas das botas, se Egas lhe não fallasse de modo que elle, de cauda cahida, veio rastejar-lhe aos pés.
Terminou isto por ir o misero queixar-se ao regedor que alli estava perto, homem de bom siso, que se dirigiu a Egas, pedindo-lhe que fizesse saber ao seu cão que nem todos os cidadãos traziam botas de cano alto.
Francisca da Cunha, fugindo para perto de Silvina, podéra forrar-se á vergonha de semelhante conflicto; apenas [197]dissera ao commendador que um doudo furioso a perseguia em toda a parte; e, citando o nome do doudo, viu, com grande pasmo de Silvina e d'ella, erguer-se o commendador, e descer agilmente as fragas resvaladiças, para se entremetter na desordem, que encontrou no periodo final do cão arremettendo ás pernas do seu amigo.
Aplacado o incidente, entraram Silvina e José Francisco, cada qual em sua barraca, para se vestirem.
Leonardo Pires dirigiu-se a um banheiro, e pediu sem demora um fato de banho alugado. Vestiu-se, e sahiu da sua barraca a tempo que o commendador, a par de Silvina, entravam no mar. Seguiu-os, e passou-lhes adiante, indo postar-se n'um ponto em que as ondas batiam mais fortes, e onde só os nadadores ousavam esperal-as. Quando a onda vinha, Leonardo mergulhava, e vinha com ella, até marrar nas pernas de José Francisco. Erguia-se, sacudia a grenha, pedia perdão e tornava para o seu posto. José Francisco retirava-se a um lado; mas, na volta de outra onda, a marrada era infallivel. Á terceira vez, o brazileiro ladeou, quando viu mergulhar o monstro da Maya; este, porém, nadando com os olhos abertos, lá foi abalroar com o homem, e pedir perdão pela terceira vez.
José Francisco esbofava no mar como tubarão ferido. Sahiu á praia atordoado, em quanto Silvina, estranha ao successo porque ficára longe do noivo, se deixava contemplar pelos olhos lagrimosos de Jorge, que a via, resguardando-se de ser visto.
Leonardo Pires, no perpassar por ella, disse-lhe a meia voz:
—Jorge de Sepulveda está acolá, minha senhora! Anda aquelle seu bom anjo a quer salval-a de um eterno ridiculo, e v. exc.ª a cahir, a cahir, a cahir, n'um dos tres abysmos das tres barrigas de José Francisco Andraens!...[198]
Muita gente honesta, lendo, quinze dias depois, nos jornaes do Porto, a noticia do casamento de José Francisco Andraens com D. Silvina de Mello, observou que esta menina tinha muito mais juizo do que mostrava. As mães de familia citaram-na como exemplo ás suas filhas; e estas, bem que exteriormente se rissem d'ella, invejaram-na.
Ás suas amigas particulares dizia Silvina que o seu casamento fôra um sacrificio do coração á dignidade propria; por quanto, dous implacaveis homens, o morgado de Santa Eufemia e um tal Jorge Sepulveda, calcando aos pés quantos deveres a civilidade impõe a sujeitos, que não podem ser amados, lhe andavam sempre dando desgostos, vergonhas, e descredito. Estes dizeres, comprovados por umas lagrimas que ella arranjava com prodigioso artificio, apiedaram as proprias amigas, que diziam d'ella mil maravilhas.
[200]José Francisco Andraens arrijou de suas frequentes dyspepsias, quando o mundo e a medicina menos o esperavam. Muitos rapazes indiscretos paravam a contemplal-o á porta dos snrs. Pintos Leites, na calçada dos Clerigos, nos primeiros quinze dias depois do seu matrimoniamento. José Francisco estava um todonada melado de rosto; mas não lhe iam mal aquelles ares de noivo: tudo tem n'este mundo a sua hora e côr de poesia.
O morgado de Santa Eufemia recebeu ao mesmo tempo o golpe da morte e o balsamo da vida: morrêra-lhe o pai na vespera do dia em que Silvina casára.
D. Francisca da Cunha casou com o linheiro das Hortas. As duas meninas com os respectivos maridos foram para o Bom Jesus do Monte, local sagrado que dá luas de poesia a quantos parvos ha ahi que vão celebrar n'aquelle sanctuario uma festa, irrisoria, se não tôrpe, na essencia.
Jorge de Sepulveda, quando viu a local da gazeta agoureira de muitas prosperidades a José Francisco e Silvina, estremeceu, empedrou, e invocou do anjo da piedade o desafôgo do pranto.
Ora, o amigo de Guilherme do Amaral, se não era o anjo da piedade, tinha em si um santo e mysterioso condão de espremer entre os dedos inexoraveis da sua philosophia algum tanto cynica, toda a peçonha dos corações, cancerados pelo amor.
Alguma vez verá o leitor que boleus deu toda esta gente com as costumadas voltas do mundo.
O livro complementar d'estas biographias ha-de denominar-se: REACÇÃO DA POESIA.
É o natural seguimento dos Annos de prosa.
FIM.
1 Não vá entender alguem que o romancista está phantasiando. Quando Napoleão III casou com a condessa de Montijo, duas familias ventilaram em Portugal e porfiadamente, a origem dos Porto-Carreiros que levára a Castella os embriões da imperatriz. As familias litigantes eram os Porto-Carreiros da casa da Bandeirinha no Porto, e outros de igual appellido de Abragão, ahi para as cercanias de Penafiel. O pleito heraldico andou nas gazetas, e nomeadamente no Portugal, jornal realista do Porto. A critica oscillou longo tempo indecisa entre as duas familias, até que um dia, cançada de oscilações, cahia a rir deixando ás duas familias nobilissimas o direito salvo de enxertarem o imperio francez lá em casa.
2 V. do Arcebispo.
Em tempos da minha mocidade costumava visitar a miudo uma boa velha, minha visinha, que me honrava com a sua estima e amisade. Humildemente confesso que não ha sociedade mais deleitosa e agradavel, do que a de uma mulher que soube envelhecer. A sua conversação instructiva e divertida, é um inesgotavel thesouro de lembranças, anecdotas, observações chistosas e reflexões circumspectas, é finalmente uma revista do passado.
D. Mafalda, deixem-me assim chamar-lhe, juntava á amenidade da conversa, a do caracter, que era brando e indulgente.
Quando tinha occasião de ir passar uma noite com ella, parecia-me que as horas voavam ligeiras e que corriam mais rapidas, do que quando as gastava a distribuir [204] finezas e galanteios ás mais formosas rainhas dos mais brilhantes salões. Era sempre com vivo pesar que a via apontar para o relogio, indicando-me que a hora de me retirar tinha chegado, e voltava a minha casa com o espirito mais rico, e o coração satisfeito e melhor.
A historia que vou contar-vos, minhas caras leitoras, foi-me dita por D. Mafalda n'um d'estes serãos em que vos fallei.
Era n'uma bella noite de Junho; fui encontral-a sentada na sua cadeira á Voltaire, tendo a seus pés, deitado em um cochim, o seu cãosinho querido; os olhos tinha-os semi-abertos, um sorriso nos labios, e parecia respirar com prazer a aragem, que, embalsamada pelas flôres do jardim, se coava pela janella meia aberta. Quando cheguei junto d'ella vinha indignado por que um de meus parentes tinha sido victima d'um abuso de confiança; contei-lhe o succedido, e no calor da narração não poupei ao culpado as maiores imprecações, nem deixei de lhe dizer que desejava fazer-lhe todo o mal possivel.
—Devagar, meu querido amigo—me disse ella—não o julgava tão irrascivel, nem que tivesse tão pouca caridade para com o proximo. Sabe lá, se, com a vida, não tiraria ao culpado o merito de para o futuro se poder rehabilitar pelo arrependimento, e se o momento em que lhe infringisse o castigo não seria o destinado por Deus para esse arrependimento?
—Eis-ahi, minha cara visinha, uma doutrina, permitta-me a expressão, um pouco subversiva da ordem social.
—Deus me defenda—me replicou—de querer que o culpado não seja castigado, e que a sociedade fique indefeza dos crimes que um seu membro praticou contra ella; quiz dizer sómente que devia deixar ás leis o cuidado de castigar o delinquente, e que o meu querido [205] amigo, não devia, como individuo, fechar assim desapiedadamente o coração a todo o sentimento de commiseração por um desgraçado e infeliz, no coração do qual talvez ainda bruxelei algum clarão de virtude, que uma occasião favoravel e propicia, que se apresente, ainda póde despertar, e fazer com que esse membro da sociedade, que julga inutil, se torne bom e aproveitavel.
Como eu respondesse a isto, fazendo um d'estes movimentos de cabeça, que são um protesto mudo e respeitoso, ella acrescentou:
—Está com paciencia para me aturar ouvindo uma historia, pois que ainda temos algumas horas?
Não recusei: uma historia era uma fortuna para combater a exaltação d'espirito em que estava.
D. Mafalda principiou assim:
—Emilio da Cunha era o mais velho de tres irmãos, dos quaes, o mais novo, vivia ha muitos annos no Rio de Janeiro, onde tinha alcançado fortuna. O segundo nunca deixou o Porto, sendo sempre infeliz nos seus commettimentos e especulações. Emilio da Cunha, á custa de muito trabalho e economias, pôde alcançar uma fortunasinha, que lhe permittia esperar com socego, o momento de descançar da vida laboriosa em que tinha vivido.
Uma quarta pessoa completava esta familia, que era uma irmã, que tendo seguido seu marido á India, para onde elle tinha sido despachado, e não vindo nenhum d'elles a figurar n'esta minha historia, não lh'os recordarei mais.
Aconteceu que o irmão de Emilio da Cunha, que residia no Porto, por uma d'estas catastrophes que occasionam os jogos de bolsa, falliu. Teve tal sentimento por este facto, que falleceu tres dias depois, atacado d'uma febre cerebral. A herança, que deixou, foram dividas e um filho.
Emilio da Cunha, que tinha um coração bondoso, e [206] um caracter pundonoroso, para que a memoria de seu irmão não ficasse deshonrada, comprometteu-se a pagar as dividas e recolheu em sua casa o filho para lhe substituir o pai, que tinha perdido; procedimento louvavel, e digno de se admirar, sabendo-se que elle tinha uma filha, para quem, passados quatro ou cinco annos tinha a procurar um casamento vantajoso.
Roberto, se chamava o sobrinho de Emilio da Cunha, tinha já 15 annos d'idade, mas o pai, inteiramente entregue ás especulações, e aos cuidados, que ellas trazem comsigo, descuidou completamente a sua educação, por isso o seu retrato moral, n'esta occasião, nada tinha de vantajoso; o espirito tinha-o completamente inculto; as noções que possuia do justo e do injusto eram as mais erroneas e disparatadas; o respeito aos direitos d'outrem era para elle uma invenção estupida dos homens, condemnada pela natureza, e a verdadeira liberdade consistia em fazer o mal impunemente. Se algum bom instincto, ou algum vislumbre de virtude, existia no coração de Roberto, ainda estava em embryão, por que se não tinha demonstrado. Quantas e quantas vezes, em quanto que o pai, cego pelas especulações, concentrava todas as suas faculdades intellectuaes na realisação d'um impossivel, não deixou Roberto de ir ao collegio, fazendo o que em termo escolar, se chama gazear, e gastava as horas d'estudo em andar a vagabundear pelos campos e praças. D'ahi proveio o tomar relações com meia duzia de garotos, ou vadios, permitta-me a phrase, para quem nada era sagrado nem nas acções, nem nas palavras. D'ahi nasceu a falta de respeito pela propriedade alheia, roubando os pomares; e o endurecimento de coração, castigando barbaramente animaes inoffensivos.
Emilio da Cunha reconheceu logo os maus instinctos de que seu sobrinho era dotado, e a desmoralisação, que já se tinha infiltrado no seu coração, mas concebeu a esperança de o regenerar com desvelos, paciencia, e [207] sobre tudo bons exemplos. Sua filha, a que chamarei Valentina, de 14 annos d'idade, contribuiu poderosamente para a realisação d'este seu empenho, tão justo e louvavel. Era uma menina para quem a natureza tinha sido prodiga em encantos de rosto, d'espirito e coração, a ponto de qualquer que a via a admirar, e de quem a ouvia amal-a immediatamente. Tinha uma tal influencia, ou magia sobre os que se acercavam d'ella, que aos bons tornava-os melhores, e aos maus fazia-lhe retirar envergonhados para o fundo do coração os maus instinctos. Esta magia não teve menos poder sobre Roberto, do que sobre os outros, de sorte que a regeneração que elle soffreu, nos seus costumes e acções, foi tão sensivel, que o bondoso Emilio da Cunha revia-se alegre e contente na sua obra, e congratulava-se dos resultados que tinha colhido.
Deu-se porém uma circumstancia feliz, mas que ao mesmo tempo foi desgraçada, que deteve Roberto repentinamente na boa estrada em que se tinha embrenhado, e na qual parecia caminhar resolutamente. Por uma carta chegada n'um dos paquetes inglezes do Brazil, soube Emilio da Cunha, que seu irmão mais novo tinha fallecido, deixando-o, por elle ser o seu mais proximo parente, herdeiro d'uma fortuna consideravel. Bens rusticos, e estabelecimentos industriaes é no que consistia a fortuna, dos quaes se poderia colher bons lucros, sendo bem geridos, conforme o tinha praticado o seu defunto proprietario; mas Emilio da Cunha, além de se não julgar com conhecimentos e forças para bem gerir a industria com que seu irmão tinha feito fortuna, não tinha desejo, nem queria expatriar-se. Foi até com immensa repugnancia que se resolveu a ir ao Brazil tomar posse e liquidar a herança; parecia que um secreto presentimento o avisava do que tinha de acontecer, levando-o a considerar como uma desgraça esta viagem, a que os sagrados direitos de sua predilecta filha Valentina, o obrigavam a emprehender.
[208]Partiu finalmente, depois de ter tomado todas as precauções para a tranquillidade de seu espirito. Valentina entrou em um dos collegios de educação mais acreditados do Porto, e Roberto ficou n'uma casa particular, onde lhe deviam prestar todos os cuidados, que exigiam a sua idade, pois que já então tinha 17 annos, e a sua completa ignorancia, de que até uma criança de 8 annos poderia zombar.
Emilio da Cunha aportou a salvamento ás terras de Santa Cruz, e logo que saltou em terra, desenvolveu a maior actividade, e procurou por todos os meios possiveis abreviar rapidamente os seus negocios, mas infelizmente os resultados não correspondiam aos seus esforços e desejos, porque de todos os lados, e a todos os momentos estavam sempre a surgir empecilhos e embaraços não prevenidos nem esperados. Havia já um anno que Emilio da Cunha tinha chegado ao Brazil, e ainda os seus negocios não estavam mais adiantados, que no primeiro dia.
Cançado, desanimado e affectado de melancolia, ou spleen, como lhe chamaria um nosso fiel alliado britannico, mortificado por um desassosego de que não podia explicar a causa, deliberou entregar os seus negocios e a liquidação e arrecadação da heranca a um procurador, e embarcar-se no primeiro paquete, que seguisse viagem para Portugal.
Que se tinha porém passado no Porto, durante este tempo?
É o que lhe vou contar, meu visinho, se ainda tiver paciencia para me ouvir, me disse D. Mafalda, e o que vou fazer ás minhas leitoras, se ellas quizerem ter a mesma paciencia de me lêr.
Roberto, separado de sua prima, aborrecido e dominado pela priguiça, fugiu um bello dia da casa onde se achava hospedado, foi procurar, e infelizmente encontrou, os seus antigos companheiros da vadiagem, que tinham [209] quasi todos seguido a estrada do vicio e do crime. Arrastaram portanto comsigo o desventurado Roberto para esse despenhadeiro, na baixa do qual se encontra a escoria da sociedade. Roberto tinha por companheiros habituaes homens criminosos, de cara sinistra, maneiras brutaes, linguagem grosseira e vestidos esfarrapados, n'uma palavra mendigos, ou ladrões. Adoptou-lhe portanto os costumes as maneiras e as maximas, e quem o visse emmagrecido pela devassidão, com os vestidos em desalinho, os cabellos eriçados, tomal-o-ia por um bandido de trinta annos, quando elle não tinha mais que dezenove incompletos. Valentina, pelo contrario, tinha crescido em corpo, belleza, espirito, talento e virtudes.
Conduzi-o do Porto ao Rio de Janeiro, e do Rio de Janeiro ao Porto, agora, querendo-me seguir, leval-o-hei a Lisboa, onde se passa um pequeno episodio d'esta muito veridica historia.
De bordo d'um paquete inglez, chegado dos portos do Brazil, tinha desembarcado um passageiro, que se dirigiu a um hotel para descançar, e ahi passar até ao dia seguinte, em que devia seguir viagem para o Porto, na mala-posta, a fim de se vir unir a seus filhos, que estava ancioso por abraçar e apertar contra o coração. Julgo desnecessario o dizer-lhe, pois me parece já o adivinhou, que este viajante era Emilio da Cunha, que se considerava feliz por pisar o solo da sua patria, que tanto amava, e onde estava tudo o que elle mais presava n'este mundo. Logo que no hotel lhe prepararam o quarto e tomou uma pequena refeição, deitou-se e adormeceu, embalado por sonhos felizes.
No dia seguinte ainda o sol mal tinha despontado, já subia pela escada do hotel e entrava no corredor commum, sobre o qual deitavam uma duzia de portas de quartos, um homem de má catadura. Era um d'estes cavalheiros d'industria, a qual consiste em entrar, sob qualquer pretexto, de manhã cedo nos hoteis, e aproveitar-se [210] do primeiro quarto que encontram aberto para empalmarem destramente um relogio, ou uma mala, se o acordar do hospede ou locatario do quarto, os não obriga a retirar-se de mãos vazias, desculpando-se de que se tinham enganado na porta.
No andar, vacillante, e como desconfiado, do cavalheiro d'industria se reconhecia facilmente, que era um noviço, que ia tentar os seus primeiros ensaios, ou que ia fazer a sua primeira escamoteação.
Depois de ter estado por bastante tempo em lucta com a sua consciencia, e irresoluto se devia ou não penetrar no quarto de que a porta se achava meia cerrada, metteu primeiro a cabeça, depois uma perna, e por ultimo todo o corpo; mas fazendo algum ruido com este ultimo movimento, o hospede, que estava deitado, acordou, e virando rapidamente a cabeça, Roberto, por que o cavalheiro d'industria era elle, encarou com seu tio Emilio da Cunha, ficou estupefacto e como fulminado por um raio.
N'esse mesmo dia de tarde Emilio da Cunha tomou lugar no caminho de ferro até ao Carregado, e ahi na mala-posta até ao Porto, onde trinta e seis horas depois se achava nos braços de sua querida filha Valentina, que immediatamente tinha ido procurar ao collegio.
—Tu sahes já, já do collegio, minha filha—lhe diz Emilio da Cunha—para retomares, e nunca mais deixares, o teu lugar a meu lado.
—Que felicidade—exclamou Valentina toda alegre e folgazã—que vida socegada e feliz não vamos passar todos tres, não é assim meu querido pai, por que Roberto tambem vai para a nossa companhia?
—Roberto, morreu—respondeu Emilio da Cunha com rosto severo, e voz soturna.—Não quero que me falles mais n'elle, entendes Valentina?
Valentina admirada da resposta, ainda fez diversas perguntas a seu pai, mas a todas ellas não obteve outra [211] resposta, senão a completa prohibição de nunca mais lhe fallar em Roberto.
Ainda porém não tinha Emilio da Cunha soffrido todas as provações, que Deus lhe destinára. Haviam decorrido seis mezes desde que tinha chegado do Rio de Janeiro, quando recebeu a participação de que o procurador, que ficára encarregado da liquidação e arrecadação da herança, tinha cumprido a sua missão, mas que, depois de ter arrecadado a somma importante, que produzira a mesma herança, tinha desapparecido, sem que as pesquizas feitas para se descobrir o lugar de seu refugio, tivessem dado o desejado resultado.
Emilio da Cunha ficou completamente arruinado por este facto, porque, impaciente por satisfazer os credores de seu irmão, pai de Roberto, tinha vendido tudo o que possuia em Portugal.
O golpe foi forte, mas ainda assim não o foi bastante para poder subjugar a coragem do bom e respeitavel velho, mostrando-se Valentina n'esta conjunctura, digna filha d'um tal pai.
Renunciando heroicamente ás commodidades da vida, em que até então tinham vivido, foram habitar, em um bairro mais afastado da cidade, uma pequena casa, na qual soffreram privações diarias e penosas, tratando sempre d'obter alguns recursos para a sua subsistencia, mesmo em trabalhos mal retribuidos.
Valentina, que Deus tinha dotado de bom gosto, e bastante habilidade, principiou a trabalhar para uma modista, a qual satisfeita com os seus primeiros trabalhos, lh'os deu em seguida mais delicados e por isso melhor retribuidos, o que foi para elles uma grande felicidade, e que assim lhes proporcionou meios licitos de pagarem regularmente o seu aluguel, e de já não receiarem tanto nem o frio, nem a fome.
Valentina ia entregar a sua obra á modista, a qual satisfeita com ella lhe dava sempre mais, e muitas vezes [212] mais do que a que ella podia fazer. A uma crise terrivel tinha-se seguido uma abastança mediocre, que era por isso uma felicidade mais agradavel e estimada.
Decorreram assim dous annos.
Um dia, em que Valentina estava só, lhe entregou o carteiro uma carta, e qual não foi a sua surpreza quando reconheceu a letra de seu primo.
Roberto contava n'esta carta tudo o que tinha passado, desde o momento em que o vimos no hotel em Lisboa preparando-se para escamotear seu tio. Fulminado pela vista d'Emilio da Cunha tinha recobrado os sentidos para na fuga se salvar ás imprecações d'indignação do velho. Chegou offegante ao Terreiro do Paço, onde se sentou, ou melhor se deixou cahir n'um dos assentos de pedra, que alli se acham, e assim esteve por muito tempo, com a cabeça escondida entre as mãos, mergulhado em acerbas e crueis reflexões.
Experimentou ou sentiu dentro em si uma completa revolução; o seu procedimento indigno e infame se lhe apresentou em toda a sua nudez e hediondez; teve horror de si mesmo e por um instante pensou em suicidar-se; mas com o arrependimento entraram-lhe no coração sentimentos mais generosos. Lembrou-se que, tendo d'ora avante uma conducta honrosa e illibada, ainda poderia chegar a fazer esquecer os seus erros passados, e reanimado por esta feliz lembrança, que o seu anjo bom lhe tinha suggerido, levantou-se resoluto a trabalhar para a sua rehabilitação, e a não descançar sem a ter chegado a alcançar.
A occasião favoravel não se fez esperar muito, por que um capitão d'um navio mercante, que estava apparelhando para a California, lhe concedeu passagem gratuita, mediante os seus serviços e o seu trabalho na viagem.
Aportou Roberto á California e sorrindo-lhe a fortuna, em lugar de se embrenhar no jogo, arriscando assim [213] as suas economias, fundou um estabelecimento, que ia prosperando, faltando unicamente para a sua felicidade se tornar completa, o obter o perdão de seu tio, e a esperança de poder tornar a vêr sua prima, cuja imagem tinha constantemente na idéa, e o sustentava e animava n'esta nova estrada de trabalho e ordem, de que não pensava mais em se desviar.
Eis aqui em resumo o que continha a carta que Roberto dirigiu a sua prima.
Valentina muito commovida, mas gostosa e alegre por ter de dar tão grata noticia a seu querido pai, esperava anciosa a sua volta.
Mal lhe deu tempo de sentar-se, ia logo a contar-lhe o succedido, mas, Emilio da Cunha a deteve, apenas tinha pronunciado a primeira palavra. Valentina insistiu, mas o velho levantou-se com a maldição nos labios; ella lançou-se-lhe de joelhos aos pés, chorou, supplicou, mas elle a tudo ficou impassivel e inflexivel.
Valentina consternada respondeu á carta de seu primo descrevendo-lhe o succedido, e a inutilidade de seus esforços; mas para o não desanimar promettia-lhe de os renovar, e que os repetiria até que chegasse a mover seu pai á commiseração e piedade, de que não desesperava. A carta continha tambem a descripção de todos os successos, que se tinham dado desde que Roberto tinha desapparecido; a decadencia de Emilio da Cunha, a pobresa em que tinham vivido em quanto que o seu trabalho mal retribuido lhe dava parcos meios de subsistencia, e o melhoramento de sua posição, finalmente continha tambem algumas palavras d'exhortação e amisade.
A situação de Emilio da Cunha e sua filha soffreu, passado algum tempo, uma modificação muito mais inesperada, do que a que se havia seguido ao aniquilamento da sua fortuna.
Emilio da Cunha foi chamado a casa d'um capitalista, aonde lhe entregaram 20 contos de reis de que um anonymo [214] lhe mandava dar posse a titulo de restituição. D'onde tinha vindo este dinheiro?
Emilio da Cunha pensou muito naturalmente, que o procurador que o tinha roubado, mortificado pelo remorso, e querendo socegar um pouco a sua consciencia, lhe tinha mandado entregar aquella quantia, como uma parte da restituição, que lhe tinha a fazer. Valentina estava muito longe de concordar com a opinião de seu pai, mas nem por isso teve a franqueza de lh'o declarar, nem lhe dar a entender qual era a sua.
Qual das duas opiniões era a verdadeira, é o que nos não importa saber, o que se sabe é que a abastança ou decencia tinha reentrado em casa d'Emilio da Cunha, e as idéas do digno e honrado velho, foram-se tornando mais brandas sob a influencia do bem-estar.
Foi elle proprio que em um dia fallou primeiro a Valentina em seu primo Roberto, e ella não perdendo esta occasião tão propicia, que se lhe offerecia, advogou por muito tempo, com calor e eloquencia, a causa de seu primo. Emilio da Cunha deixou-a fallar como e todo o tempo que ella quiz, sem lhe dar a mais pequena resposta, nem lhe replicar a cousa alguma.
Estaria ou não convencido?
A pergunta não tinha muito facil resposta, mas pelo menos tinha ouvido sem colera e com socego as allegações a favor de seu sobrinho, o que já era um bom indicio da mudança que n'elle se havia operado.
Valentina, contente e satisfeita com o resultado do seu primeiro commettimento, escreveu immediatamente a seu primo informando-o do que havia, e a esta carta seguiram-se outras muitas, noticiando-lhe sempre algum novo passo dado na estrada da reconciliação.
Aconteceu um dia que Emilio da Cunha, no meio d'uma conversa, que tinha seguido n'um objecto mui diverso, parasse precipitadamente para dizer a sua filha:
[215]—Tu acreditas sinceramente no arrependimento de teu primo?
—Oh! sim, meu pai—se apressou em responder Valentina.
—Queira Deus que te não enganes.
Um outro dia acordou d'uma pequena sesta, que se tinha seguido ao jantar, gritando, como se continuasse uma conversa começada:
—Ah! se Roberto estivesse arrependido realmente, como tu o suppões, com que prazer e alegria........
Não terminou a phrase, mas a expressão benevola da physionomia de Emilio da Cunha indicou a Valentina o complemento da idéa.
Isto foi objecto para uma ultima carta a Roberto, a que elle respondeu, e fechou-se a correspondencia.
Uma manhã Emilio da Cunha achava-se com Valentina em uma pequena, mas elegante sala, que deitava sobre o jardim—por que elles tinham deixado a sua pobre morada, trocando-a por outra mais decente—Emilio da Cunha sentado junto d'uma mesa, sobre a qual se achava uma magnifica jarra de flôres, olhava sorrindo para Valentina, que, de pé, junto d'um açafate em que estavam dous pombinhos, reprehendia, acariciando-o, um d'elles:
—Eis-te aqui, meu bello fugitivo—lhe dizia ella—pensavas que era só voltar para te ser concedido o perdão, depois de me teres feito soffrer com a tua ausencia e ingratidão? Muito bem; visto que o teu regresso prova um arrependimento sincero, perdôo com prazer; não é assim, paisinho—acrescentou ella com voz meiga e levantando os lindos olhos com uma expressão de candura para Emilio da Cunha—que se devem receber os filhos prodigos, que regressam arrependidos e contrictos?
Emilio da Cunha não deu uma palavra, mas rolou-lhe uma lagrima sobre a face.
[216]N'este momento surprehendeu elle um olhar d'intelligencia, que Valentina dirigia a alguem, que estava pelo lado detraz da cadeira em que estava sentado. Voltou-se rapidamente, e soltando um grito, ouviu-se o nome de Roberto.
Era Roberto realmente. A scena que se seguiu o meu caro visinho melhor a poderá imaginar, do que eu pintar-lh'a, ou descrever-lh'a.
Roberto voltava honrado e rico. Julgo que já comprehendeu que, para soccorrer seu tio, elle concebeu e executou o plano da restituição.
D. Mafalda calou-se. Parecia esperar, que eu, convencido pela sua historia, sanccionasse com o meu voto a doutrina, que ella tinha expendido antes de começar.
—Ah!—lhe disse eu com admiração sincera—v. exc.ª podia facilmente escrever um romance.
—Isso quer dizer que me faz a honra de julgar esta minha historia como producção da minha imaginação e phantasia?
Limitei-me a inclinar-me respeitosamenie, e aqui terminou a nossa discussão.
No dia seguinte D. Mafalda offereceu-se para me apresentar a um seu sobrinho, proprietario d'um estabelecimento industrial importante nos suburbios do Porto. Aceitei gostosa e promptamente. Fui recebido com extrema bondade e franqueza. O sobrinho de D. Mafalda gosava uma felicidade digna de ser invejada; era casado com uma mulher, que era um anjo de belleza e bondade, e tinha um filho o mais lindo e traquinas que se póde imaginar; o seu estabelecimento florescia e prosperava; o seu nome figurava entre os principaes e os mais honrados do mundo commercial e industrial, n'uma palavra nada faltava á sua gloria, fortuna, e felicidade domestica.
—Que pensa de meu sobrinho?—me perguntou D. Mafalda, quando nos retiramos.
[217]—Ah! minha senhora, nada mais ambiciono do que poder imital-o.
—Pois aquelle que viu é o Roberto da minha historia.
Recolhi-me a casa fazendo para mim as seguintes reflexões: Que a regeneração do homem pelo arrependimento não é utopia, e que a sociedade e a sua organisação é que são as causas principaes, que occasionam que muitos de seus membros não se regenerem, por lhe embargarem ou matarem logo algumas centelhas de virtude, que ainda tinham no coração.
Pensem, e verão o corollario que tiram.
FIM.
Estavamos nos ultimos dias de Dezembro de 1846. Uma camada mui espessa de neve cobria o sólo. O ar, sombrio e carregado, indicava que mais neve não tardava a cahir. Os ramos nús das arvores dos montes tremiam soprados pelo vento norte gelado. Estava tudo n'um perfeito socego, e tristeza; nem o mais leve murmurio se ouvia.
Uma velha, e uma criancinha, apesar do rigor do frio, seguiam com difficuldade o caminho, que da serra de Vallongo conduz a S. Cosme. A criança, d'espaço a espaço, soprava ás mãosinhas inteiriçadas pelo frio, e não se podendo sustentar sobre os pés, que tinha inchados pelas frieiras, caminhava vacillante; mas vencendo todos os obstaculos, com uma energia superior á sua idade, [222] tomava galhardamente o seu lugar ao lado da velha. Esta parecia ter sessenta annos. Estava corcovada mais pela miseria, do que pela idade, e tinha no rosto profundas rugas. Pelo modo como andava, e tateava o caminho com a mulêta, via-se que era cega.
—Aonde vamos nós, Rosa?—perguntou a velha á rapariguinha.
—Em meio caminho, minha avó.
—Jesus Senhor, valei-me,—disse a cega,—pois que as minhas pobres pernas já estão cançadas, e parece-me que não chego ao fim da jornada.
—Encoste-se ao meu hombro, avósinha, que eu não estou cançada.
—Não, não. Tudo está acabado. Eu morro aqui, Rosinha. Tenho muita fome, e muito frio para vencer o caminho até S. Cosme. Ai meu Pai do céo, que me sinto desfallecer...
Fez um gesto de desespero, e a cega cahiu sobre o caminho.
—Avósinha, avósinha,—gritava Rosa assustada,—volte a si, que lh'o peço eu; mais um pequeno esforço e chegaremos a S. Cosme.
A cega não deu accordo de si.
—Avósinha,—continuou Rosa chorando, e cobrindo-a de beijos,—se me abandona, que hei-de fazer? Quer que eu morra de paixão?
—Morrer, tu, minha Rosinha,—disse a cega levantando-se.—Oh! meu Deus, não permittaes tal.
—Então levante-se que lh'o peço eu; se fica aqui mais tempo o frio matal-a-ia. Em S. Cosme nos aqueceremos.
—Ai de mim,—disse a cega, levantando-se ajudada de Rosa,—e a snr.ª D. Thereza receber-nos-ha?
—Ha-de receber sim, minha avósinha, eu lh'o afianço. Não creio que a boa snr.ª D. Thereza nos despeça. Quando eu lhe ia vender flôres silvestres, que apanhava [223] no monte, abraçava-me, e dizia-me muitas vezes, que desejava que eu fosse sua filha.
—Não duvido que ella te receba, porque és muito linda e agradavel; agora o que eu não creio é que me receba a mim, que sou uma velha e cega, que para nada sirvo.
—Se assim acontecer, voltaremos á nossa aldêa, e os bons lavradores, que conheceram meus paes, terão piedade de nós, soccorrer-nos-hão, e eu trabalharei para lhes pagar, o que elles vos derem.
A avó, muito commovida, apertou ao coração a pequena, e murmurou palavras de ternura e gratidão; e reanimada por esta felicidade, que Rosa lhe tinha feito experimentar, retomou com passo mais firme o caminho de S. Cosme.
O vento soprava já com mais força; o ar tinha escurecido mais, e pequenos flocos de neve se viam voltejar no ar. Rosa, tiritando com frio, fazia esforços sobrehumanos para poder andar, e cada passo, que a pobre cega dava, era acompanhado d'um suspiro surdo. O vento augmentou, e os flocos de neve, que ao principio eram raros, cahiam em maior abundancia.
—Rosinha,—disse a cega,—bem queria andar, mas não posso; deixa-me ficar.
—Avósinha, eu já avisto a torre da igreja de S. Cosme.
—Estás bem certa d'isso?
—Eu não queria mentir...
—Vamos andando. Permitta Deus que eu possa vencer o caminho.
—Não tenha receio de me cançar, minha avó; sou forte, e não estou fatigada. Encoste-se ao meu hombro.
—Meu querido anjinho, que Deus te pague tudo o que me fazes.
Chegaram finalmente a S. Cosme, á quinta de D. [224] Thereza de Sousa, depois de mil esforços, que cançaram completamente avó e neta.
Era tempo; mais um instante e teriam cahido ambas no chão. Entrando na cozinha da casa, o calor produziu-lhes uma reacção tão violenta, que desfalleceram.
[225]D. Thereza de Sousa, e mais algumas visinhas, que se tinham reunido para serandar, acercaram-se das duas infelizes. Depois de lhe ter ministrado todos os cuidados necessarios para as reanimar, como o seu principal mal era a fome, mandou-lhe dar um bom caldo, e acommodal-as a um dos cantos do lar, em que ardia uma grande fogueira.
—Agora, Rosinha,—disse D. Thereza, ameigando-a,—conta-nos, como a esta hora, e com este tempo vieste até aqui com esta boa mulher.
—Desculpai, minha boa senhora,—disse a cega,—Rosinha é minha neta.
—Sim, snr.ª D. Thereza, é minha avó, de quem tantas vezes tenho fallado a v. exc.ª e...
[226]—Então porque não continuas?—lhe replicou D. Thereza.
A pequena levantou para D. Thereza os seus lindos olhos azues, com uma tal expressão de supplica, que a commoveu.
—Falla, falla, minha menina. Não tenhas receio. Queres pedir-me alguma cousa, não é assim?
—Vêde, minha boa senhora,—disse Rosa, contendo as lagrimas a custo,—eu e minha avó, somos muito desgraçadas. Meu pai, que era rachador de lenha, feriu-se pelo S. João em uma perna com o machado. Minha mãi mandou-me chamar a toda a pressa o snr. Pereira, que é um homem muito entendido. Fui, o mais depressa que pude, e quando cheguei a casa do snr. Pereira estava elle para sahir, e não queria vir commigo para não torcer o seu caminho; mas eu tanto lhe pedi, que sempre me acompanhou. Quando viu a perna a meu pai, logo disse, que estava muito mal, e que não promettia cural-o. Duas semanas depois veio á ferida uma molestia, de que me não lembra agora o nome, e meu pai morreu.
Rosa calou-se chorando, e a cega tambem soluçava. D. Thereza abraçou a rapariguinha, apertou a mão á pobre velha, e disse:
—Para hoje já é de mais, ámanhã...
—Perdôe-me, snr.ª D. Thereza,—replicou Rosa,—mas é melhor que eu termine hoje,—e continuou:
—Havia um mez que meu pai tinha morrido, quando minha mãi cahiu de cama; a febre não a deixava. Eu ia aos campos apanhar as hervas, que minha avó me ensinava, para lhe fazer remedios, mas nada sarava minha mãi. Um dia abraçou-me e disse-me:
«Minha pobre Rosinha, eu vou unir-me com teu pai, mas que será de ti?
Trabalharei, lhe respondi.
És muito nova para isso; mas entretanto rogarei muito a Deus para que te receba sob a sua santa guarda, [227] e te não abandone. Nunca desampares tua avó, sê-lhe obediente e carinhosa..., ainda queria fallar, mas não pôde, abraçou-me e á avósinha, e expirou.»
Desde então alguns rachadores, amigos de meu pai, nos recolheram e soccorreram; mas como não são ricos, e precisam de mudar de terra por não terem aqui que fazer, lembrei-me de vir pedir agasalho á senhora, pois que, sendo tão boa, não deixaria de nos recolher, que somos tão desgraçadas. Sou fraquinha, mas posso trabalhar. Sei fiar, e começo a lavar. Guardarei os bois, e os carneiros e tratarei do gallinheiro. Minha avó tambem fia muito bem e estou muito certa, que a ha-de satisfazer com o seu trabalho. Oh! senhora—disse Rosa ajoelhando-se aos pés de D. Thereza—não nos abandoneis; satisfazemos-nos com pouco, e faremos todo o possivel para vos agradar, e rogaremos continuamente a Deus pela vossa vida e felicidade.
D. Thereza commoveu-se tanto, com a singeleza e candura d'esta supplica, que duas lagrimas lhe brilharam nos olhos.
—Levanta-te, Rosinha, ámanhã fallaremos n'isso. Tu e tua avó ide-vos deitar. Sempre te direi, que és muito linda e corajosa, para que se não tenha piedade de ti.
Rosa beijou com reconhecimento as mãos de D. Thereza, e a cega encheu-a de bençãos. D. Thereza mandou-as conduzir a um pequeno quarto, limpo e quente, em que um somno reparador lhe reanimou as forças.
[228]Ainda mal a aurora tinha raiado, já Rosa estava a pé. Fatigada, como estava, da jornada do dia antecedente, custou-lhe muito a levantar-se cedo, mas fez um esforço para mostrar os seus desejos a D. Thereza.
Arranjou-se, o melhor que pôde, com os seus velhos vestidos, e, depois de ter dirigido mentalmente a Deus uma oração fervente, desceu ao andar terreo.
—Já a pé,—lhe disse alegremente D. Thereza.
—Estava tão cançada do caminho d'hontem, que receei, já fosse tarde; mas graças aos vossos beneficios, minha senhora, já estou prompta, para o que me determinardes.
—E tua avó?
—Ainda dorme. É tão velhinha e tão doente, que vos peço tenhaes piedade d'ella.
[229]Rosa ergueu as mãos, e esperou tremula a resposta da dona da quinta.
D. Thereza de Sousa era, o que vulgarmente se chama, uma mulher de casa. Tendo viuvado ha doze annos, geria com tanto acerto e economia as suas propriedades, que a sua fortuna tinha augmentado consideravelmente.
Os visinhos do lugar diziam que, pela avareza e mesquinharia, é que tinha alcançado a fortuna, que possuia, pois que em qualquer cousa sempre tinha que diminuir, e acrescentavam ironicamente, que, dando tantas esmolas, o dinheiro nunca lhe havia de faltar.
Fosse como fosse, o que sei é, que D. Thereza sensibilisou-se tanto com a historia de Rosinha, que, quando ella ergueu as mãos, e a viu com os olhos arrasados de lagrimas, esperando a resposta, disse para si; que a uma supplica tão humilde e cheia de tanto amor filial, era impossivel resistir.
N'este momento quem accusasse de avarenta D. Thereza de Sousa, seria injusto com ella, por que, recolhendo a avó e neta, tomava um encargo bastante pesado. Rosa era ainda muito pequena, e de mais a mais muito fraquinha, para poder ter utilidade real! A pobre criança estava a fazer dez annos, mas era muito franzina e delicada. O seu rosto, cercado de compridos caracóes louros, e animado com uns grandes olhos azues escuros, inspirava sympathia. Tinha as maneiras delicadas, e a linguagem menos rude, que a dos camponezes dos arredores. Esta distincção n'uma criança, ainda tão tenra como Rosa, nascia da sua intelligencia mui desenvolvida.
A mãi, logo que ella teve tino para se não perder nos caminhos, mandava-a apanhar flôres silvestres, que ia vender ás familias mais abastadas das aldéas visinhas. Como Rosa era muito linda as senhoras das casas acolhiam-na muito bem, divertiam-se com ella, ouvindo-a [230] tagarelar, e demoravam-na muitas vezes a brincar com as suas filhas.
Sendo muito viva tomou facilmente as maneiras, e modo de fallar, das pessoas com quem tratava, de modo que os rachadores denominavam-na a fidalguinha.
Se tinha adquirido maneiras delicadas, não havia perdido as boas qualidades, de que era dotada; humilde e carinhosa para todos, quem a conhecia adorava-a.
O que a mim, minhas caras leitoras, me levou tanto tempo a dizer, passou n'um instante pela idéa a D. Thereza de Sousa, e fixou-lhe a resolução de recolher a avó e a neta.
—Vou-te mandar vestir uma roupinha melhor, Rosinha,—lhe disse D. Thereza, animando-a com uma brandura, que lhe não era habitual,—porque espero has-de ser uma boa criada, serviçal e trabalhadeira.
—Então fico em casa de v. exc.ª?—disse Rosa, não podendo crer em tanta ventura.
—Ficas, sim, e parece-me que nunca me darás motivo para me arrepender do que hoje faço.
—Oh! minha senhora, estai certa que me esforçarei o mais possivel, para vos agradar e satisfazer os vossos desejos.
—Assim o espero. Anda vestir-te.
—Desculpe-me, senhora. Mas minha avó...—e Rosa parou corando.
D. Thereza, querendo experimentar a sua protegida, disse:
—Que queres a tua avó?
—Ella tambem fica?
—Não. Tua avó é cega e velha, para nada serve, e eu não sou rica bastante, para me encarregar da sustentação de duas pessoas.
—Então, senhora, agradeço os vossos beneficios, e todo o bem que me querieis fazer, mas não posso abandonar a minha avósinha, que morreria de paixão.
[231]Vou ajudal-a a levantar-se, e regressaremos à nossa aldêa.
—E que has-de fazer na tua aldêa?
—Irei humildemente pedir a um mestre tamanqueiro um pequeno cantinho da sua casa, que estou certa me não negará. Não sou robusta, mas tenho coragem, por isso trabalharei nos socos durante o inverno. Quando vier o verão irei vender flôres e fructos, como os demais annos, e como eu, e a pobre cega, de pouco precisamos para viver, parece-me que ganharei para ambas. Logo que chegue a primavera não seremos pesadas a ninguem...
D. Thereza apertou Rosa nos braços, e chegou-a ao coração.
—Basta, Rosinha, tu és um anjo do céo, que Deus enviou a minha casa para me trazer a felicidade. Vai-te vestir, e depois irás participar a tua avó, que ambas ficaes para sempre em minha casa.
Descrever a alegria da avó, quando soube a decisão de D. Thereza, é-me impossivel fazel-o, minhas caras leitoras; vós, que deveis ser dotadas de bom e piedoso coração, melhor a podereis imaginar. Abraçava Rosa, agradecia a D. Thereza com um reconhecimento mui sincero, promettendo fazer todo possivel para ser menos pesada á sua bemfeitora. Rosa nada dizia, mas a eloquencia de seu olhar provava a D. Thereza a sua gratidão.
[232]Rosa, ainda que novinha e de fraca organisação, tornou-se util em casa. Incansavel no trabalho, de manhã cedo tratava da capoeira e do pombal; depois ia guardar os bois e os carneiros, e, em quanto que os vigiava, fiava na sua roca.
Ao jantar, quando recolhia a casa, tinha sempre que fazer. Era um gosto vêr esta criança tão tenrinha arrumar, limpar e lustrar os moveis, como o faria a melhor mulher de casa.
D. Thereza cada vez mais estimava a sua protegida, e felicitava-se pela ter recolhido. A avó tambem não era inutil. A cegueira não a impossibilitava de fiar desde pela manhã até á noite, e o seu trabalho era perfeito. Tudo corria bem, e todos andavam contentes e satisfeitos.
[233]Chegou a primavera. Começaram a desabrochar com o tepido sôpro d'esta estação, e mostraram as suas galas, a bella pervinca azul, o narciso de corôa d'ouro, o lyrio de campanas odoriferas, e a bella violeta de calices perfumados.
Rosa, quando ia á serra, era para ella um dia d'alegria. Procurava os caminhos tapetados de musgo, os regatos, que tantas vezes tinha passado, as fontes escondidas pelas çarças, e as arvores, sob as quaes tinha encontrado as mais lindas flôres. Rosa sentia-se mais livre e mais feliz na serra, do que nos campos da quinta; a todo o momento parava extasiada diante das bellezas da natureza, e cada sitio novo, que achava, era como se fosse um amigo. Quando o socego voltava, depois d'esta alegria e animação, esta poetica criança fazia cestinhos de vimes e juncos, que guarnecia com musgo e flôres silvestres, mas com um gosto e belleza exquisito, os quaes D. Thereza mandava vender, dando sempre bom preço.
Ganharam renome os cestos de Rosa.
Em todas as quintas e casas ricas dos arredores não queriam outros, e até muitas familias da cidade, que iam passar o verão áquelles sitios, compravam e procuravam com avidez os cestos d'esta gentil ramalheteira.
D. Thereza, como mulher que comprehendia os seus interesses, entendeu que lhe era de mais proveito o empregar Rosa, durante a primavera, a fazer cestos e ramos, do que na quinta, por isso assim o determinou. Quando Rosa o soube, saltou d'alegria, por que se dava melhor á sombra dos pinheiros e carvalhos, do que em casa.
Passou-se assim o verão, e D. Thereza não teve que se arrepender da sua resolução. Um certo numero de meias corôas de prata provou o bom resultado do negocio de cestos e flôres.
O inverno pareceu triste e monotono a Rosa. Tinha-se [234] habituado de tal maneira a ir todas as manhãs para a serra, que chegava muitas vezes a esquecer-se do trabalho, e ir insensivelmente até á baixa d'ella. Voltava então muito apressada á quinta e redobrava d'actividade, para fazer esquecer as suas faltas involuntarias.
Occupou-se a fiar quasi todo o inverno, e o producto do seu trabalho foi augmentar o pequeno thesouro principiado com a venda dos cestos e flôres.
D. Thereza considerava Rosa como sua filha, não podendo estar sem ella um unico instante, e nos dias de feiras e romarias tinha gosto em que Rosa apparecesse entre as mais lindas e mais ornadas lavradeiras do lugar.
A amisade, que tinha a Rosa, reflectia-se na avó; tratava-a com tal respeito e affabilidade, que a poderiam tomar por mãi de D. Thereza, tanto ella a cercava de cuidados e desvelos.
A felicidade da pobre cega, e bem assim o futuro de Rosa poder-se-iam julgar seguros; mas como nada n'este mundo é immutavel, o momento, em que a adversidade ia estender o seu braço de ferro sobre as duas infelizes, não estava longe.
[235]Voltou a primavera e com ella as encantadoras occupações de Rosa. Foi com enthusiasmo, que a candida e poetica criança encontrou as flôres, suas amigas, com que preparou os primeiros ramos, que appareceram no mercado.
Os cestinhos e ramos de Rosa obtiveram uma grande extracção, como no anno anterior. Ia entregal-os pessoalmente nas casas ricas, e muitas vezes as senhoras morgadas, se julgavam felizes por ter em sua companhia esta linda criança por algum tempo.
Rosa, vestida á lavradeira, era muito galante e modesta; o seu metal de voz era agradavel, e as maneiras tão delicadas, que quasi sempre as freguezas, ao preço do ramo, juntavam um presentinho para a vendedeira; [236] mas quando perguntavam a Rosa o que era que mais estimava, respondia sempre, que o seu maior desejo era possuir um livro para se instruir.
Rosinha tinha uma paixão ardente pelo estudo; quasi sem mestre tinha aprendido a lêr correntemente, e a sua maior alegria consistia em obter um livro para se entregar á leitura.
D. Thereza pela sua parte tambem não obstava aos desejos de Rosa, tanto que se lhe não dava que ella faltasse ás suas obrigações; mas devemos fazer-lhe justiça dizendo que sabia alliar a satisfação dos seus desejos, com o cumprimento dos seus deveres, por isso só depois de ter terminado os seus affazeres é que se dava ao estudo.
Estava Rosinha uma occasião sentada á borda d'um ribeiro, entretida a colher juncos para fazer um cesto, quando, sem ella o presentir, se lhe aproximou uma senhora ainda joven.
—Para que estaes escolhendo esses juncos, minha menina?—lhe disse a joven senhora com modo affavel.
Rosa levantou a cabeça, e vendo a desconhecida, saudou-a e respondeu:
—Faço cestinhos com flôres para vender.
—Quero então já avaliar a vossa habilidade. Amo muito as flôres, por isso queria que me fizesses um cestinho já, e se eu ficar contente has-de-me fazer um todos os dias. Aceitaes?
—Aceito, sim, minha senhora, e ainda que tenho muitas encommendas a satisfazer, vou já preparar o vosso.
—Assento-me aqui ao pé de ti e vamos conversando. Como te chamas?
—Rosa de Jesus, uma sua criada, minha senhora.
—Assim, Rosa, o teu trabalho é fazer cestos de flôres para depois os ires vender?
—Sim, minha senhora.
—E teus paes em que se occupam?
[237]—Já não tenho paes; só me resta minha avó, que é cega.
—És orphã, e onde moras?
—Estou em casa da snr.ª D. Thereza de Sousa, proprietaria em S. Cosme, tão boa, como rica.
Ha um anno, que eu e minha avó não sabiamos aonde nos haviamos de recolher; estavamos em Dezembro, e havia dous dias que não tinhamos comido, quando de repente me lembrei da snr.ª D. Thereza. Eu e minha avó, que então moravamos na serra de Vallongo, pozemos-nos a caminho para S. Cosme. O caminho é muito mau, por isso mais d'uma occasião julguei que minha avó ficava na estrada, porque já não podia andar; mas o Senhor teve misericordia de nós, e felizmente terminamos a jornada. A snr.ª D. Thereza tratou-nos com muita bondade, e recolheu-nos em sua casa, apesar de sermos um encargo muito pesado.
—Amas então muito a snr.ª D. Thereza?
—Se a amo. Não queria mais nada, senão poder reconhecer todo o bem, que nos faz. Não desejo senão crescer e robustecer para lhe poder servir d'utilidade.
—Estou muito contente, minha pequena, por te ouvir fallar assim. Quando te vi senti-me attrahida para ti, e ficaria muito desgostosa se te não encontrasse com sentimentos dignos da estima que te consagro.
Parece-me que o meu cesto está acabado?
—Ainda lhe falta uma cercadura de não me deixes. Permitti, senhora, que eu vá ao proximo ribeiro colher estas flôres, porque alli as ha mais frescas, e em mais abundancia.
—Ide, que aqui te espero.
Rosa partiu correndo.
D. Julia d'Andrade, que tanto interesse mostrava pela protegida de D. Thereza, tinha vinte annos.
O cabello preto muito comprido, e naturalmente encaracolado, fazia-lhe sobresahir ainda mais a pallidez [238] do rosto. Os olhos castanhos tinham um brilho de febre. A physionomia demonstrava um padecimento interno, n'uma palavra, estava affectada d'uma tisica pulmonar.
Sua mãi, a viscondessa do Candal, receiando pela vida de D. Julia, tinha consultado os mais acreditados medicos de Lisboa e Porto, e todos tinham aconselhado os ares do campo, e o não constrangimento, como os meios mais proficuos para debellar a molestia. A viscondessa tinha portanto deixado o Porto e ido habitar com suas filhas D. Julia e D. Bertha uma quinta proximo da serra de Vallongo.
D. Julia parecia que revivia no meio da luxuosa natureza, que a cercava. Todos os dias dava grandes passeios, e distrahia-se ou sentando-se á sombra dos carvalhos e sobreiros, ou embrenhando-se entre as çarças. Ao principio a viscondessa receiou que estes passeios tão longos prejudicassem a saude de sua filha, mas vendo-a mais alegre e mais vigorosa, e que se a pallidez não tinha desapparecido, a expressão soffredôra do rosto era menos pronunciada, ficou mais socegada e esperou obter o triumpho sobre a molestia.
D. Julia era tão boa, e ao mesmo tempo tão prudente, que sua mãi não temia deixal-a em plena liberdade, e gosar da vida segundo as suas phantasias.
A viscondessa queria que D. Bertha acompanhasse sua irmã nos seus passeios; mas D. Bertha, que era uma joven de 16 annos d'idade, orgulhosa do seu nascimento e belleza, recusou obstinadamente acompanhar sua irmã, dando como razão, que lhe repugnava o juntar-se como ella com esses estupidos e rudes aldeãos, que habitam os campos, e a quem ella acariciava, e que além d'isso estragava os seus vestidos seguindo D. Julia pelos caminhos estreitos e escabrosos dos campos e da serra. As mil vozes da natureza eram mudas para D. Bertha; no seu coração só imperava o egoismo.
[239]Num d'estes passeios é que D. Julia encontrou Rosinha, e que ficou encantada com a sua innocencia.
Havia muito que D. Julia esperava Rosa, e já receava que ella não voltasse, quando a viu vir correndo.
—Perdoai-me, senhora, o ter-vos feito esperar tanto tempo, mas eu fui muito longe colher as violetas e os não me deixes, porque queria que o meu cestinho vos agradasse.—Assim fallando Rosa apresentou a D. Julia um cestinho, que era um primor d'arte no gosto, e esperou toda confusa, a sua apreciação.
Uma alegre exclamação de D. Julia lhe fez vir o sorriso aos labios.
—Quero abraçar-te, minha querida menina; ha muito tempo que não vi nada tão lindo, e como me causaste um grande prazer, quero recompensar-te; mas deixa-me ainda admirar o teu bello trabalho.
Este cestinho podia vêr-se. No centro tinha raminhos de violetas com as folhas verdes, ainda humidas; uma corôa de lirios cercava as violetas, e em volta uma grinalda de musgo, semeada de raminhos de rosas amarellas e geranios. Dous ramos de madre-silva serpenteavam por entre os juncos formando as azas.
—Não quero—disse D. Julia, depois d'alguns instantes de silencio—que uma obra tão bella tenha um viver ephemero; vou já bordar um quadro, cópia d'este cestinho, que ha-de ficar muito rico. Mas, Rosinha, quanto queres por este trabalho?
—Dar-me-ha o que quizer, minha senhora, como costumam fazer as outras minhas freguezas.
—Mas quanto é que custam ordinariamente?
—Tres ou quatro vintens.
—Quatro vintens!—disse D. Julia admirada.
—Acha caro, minha senhora?—disse Rosa com acanhamento.
—Caro, não, minha pequena. Quando estava no Porto pagava, por muito maior preço, ramos que tinham [240] muito menos valor, que o teu cestinho. Toma, Rosinha, não tenho aqui senão esta meia corôa, mas amanha a esta hora apparece aqui, e fallaremos...
—Não posso aceitar o que me dáes, minha senhora, porque é muito.
—Queres fazer-me zangar?
—Não, senhora. É a primeira vez que a vejo, mas já a estimo muito. Eu não preciso de nada; a snr.ª D. Thereza é muito minha amiga e...
—Não é uma esmola que te dou—replicou D. Julia, mettendo a moeda de prata na mão de Rosinha—não te esqueças da recommendação, que te fiz, de estares ámanhã aqui a esta mesma hora.
E antes que Rosa tivesse tempo de recusar, já D. Julia tinha desapparecido, levando na mão o cestinho.
Rosa ficou um instante sem saber o que havia de fazer, mas recomeçou ligeiramente o trabalho. Quando ao jantar voltou a casa, contou a D. Thereza o seu encontro de pela manhã, o que lhe tinha acontecido e perguntou-lhe se devia ou não guardar os cinco tostões.
—Não te authoriso a pedir, Rosa, mas isso não é uma esmola, é um presente, que te fazem, podes portanto arrecadar esse dinheiro. Ris-te. Já sei. Esse dinheiro vem a proposito para augmentares o teu mealheiro, com o qual te hei-de comprar um rico jaqué para o S. Miguel.
—Não, senhora—replicou Rosa com a alegria nos olhos—não é esse o meu pensamento, e que me causa tanta alegria.
—Que é então?
—Rogo-vos que me não façaes perguntas; depois o sabereis.
—Guarda o teu segredo, porque sei que não és desgovernada, e que o não has-de gastar mal gasto.
Rosa abraçou ternamente D. Thereza, e foi entregar as suas encommendas de flôres e cestos.
[241]D. Julia recolheu-se para casa muito tempo depois da hora, que tinha determinado.
A viscondessa, impaciente e sobresaltada com a demora, sahiu, no caminho, ao encontro de sua filha.
—Estiveste incommodada, minha filha?—lhe disse ella.
—Não, minha senhora. Este cestinho, que aqui trago, é que foi a causa da minha demora.
E D. Julia mostrava a sua mãi o cestinho, que Rosa tinha feito.
—Como é lindo—respondeu a viscondessa—Não sabia Julia, que tinhas a prenda de fazer cestos de juncos entrançados.
—Não fui eu que fiz este cestinho, minha mãi.
[242]—Então quem foi?
—Foi uma lavradeirinha, que encontrei no meu passeio.
—Uma lavradeira?!
—Sim, minha senhora. E acreditareis, minha mãi, que por todo este trabalho me pediu a grande quantia de quatro vintens?
—Não te pergunto quanto lhe déste, por que conheço a bondade do teu coração, e tenho a firme convicção de que não abusaste da sua simplicidade.
—Dei-lhe só meia corôa, por que não tinha mais na minha bolsinha. Não queria recebel-a, ajuizando que lh'a dava como uma esmola; mas tanto fiz que a aceitou, e convencionei com Rosa, (pois a minha ramalheteira assim se chama) para nos encontrarmos ámanhã, no mesmo sitio, á mesma hora; e se ella, como penso, fôr digna da sympathia, que me inspirou, e do interesse que já me causa, consentir-me-heis, minha boa mãi, que a tome sob a minha protecção?
—Consinto em tudo, minha filha, que te dê prazer, e distracção. Se a tua protegida fôr digna dos nossos beneficios, unir-me-hei comtigo, e accordaremos no que devemos fazer para seu bem.
D. Julia abraçou com ternura a viscondessa, e agradeceu-lhe a sua bondade.
N'este comenos, a viscondessa e sua filha, chegaram a casa.
D. Julia collocou com muito cuidado sobre uma mesa da sala o cestinho, e correu com presteza ao seu quarto a preparar um cavallete, pinceis e tintas para dar principio ao quadro projectado, e, tendo tudo disposto, desceu á sala a buscal-o.
D. Bertha estava examinando o cestinho com attençào e minuciosidade.
—Não estão tão bem dispostas e combinadas essas flôres, Bertha?—disse D. Julia.
[243]—Assim, assim. Não gosto d'estas violetas, que formam o centro do ramo. Podias ter tido melhor gosto e fazer cousa melhor.
—Não concordo com a tua opinião. Estou convencida de que Rosa não podia ter melhor gosto.
—Rosa?
—Sim, Rosa. Ah! é verdade; ainda te não contei o encontro, que tive esta manhã. Ora ouve.
D. Julia contou a sua irmã minuciosamente toda a conversa, que tivera com Rosa.
Quando ella acabou, D. Bertha fez um gesto de desdem.
—E, sem duvida, Julia, já te affeiçoas-te a essa pequena; não é assim?—disse D. Bertha.
—Rosa,—respondeu unicamente D. Julia—tem merecimento bastante, que a torna digna da protecção, que se lhe dispensar.
—O que mais me admira e me espanta, Julia, é a rapidez com que sympathisas com qualquer, e como instantaneamente conheces e decides, que essa pessoa é digna da tua affeição e amisade... Não quero tomar-te o tempo; julgo que vinhas buscar o teu lindo cestinho, não é assim?
—Vinha, sim, para o ir copiar em um quadro, pintando-o.
—Pintal-o?!—disse D. Bertha, dando uma grande gargalhada.—Que liguemos alguma attenção ás flôres dos nossos parques e jardins, concedo; mas que empreguemos o tempo e o talento com as silvestres, que só tem os perfumes para si, parece-me uma singularidade esquisita.
—A minha opinião, Bertha, é exactamente o contrario. Mas isso não admira, por que nós raras vezes estamos accordes sobre qualquer materia. Ponhamos isso de parte; queres tu vir ámanhã, commigo e com a nossa boa mãi, vêr Rosa?
[244]—Não posso. Combinei com a Francisquinha e Ritinha Meirelles virem amanhã aqui passar o dia. Além d'isso, fallar-te-hei francamente, não ha nada para mim mais antipathico do que todas essas lavradeiras; e andar uma legua para me ir achar face a face com um monstrosinho, parece-me um tanto aborrecivel.
—Rosa é muito linda e interessante.
—Para ti, Julia, todas as lavradeiras são lindas e interessantes. Para mim todas são feias, e broncas. O calor principia a incommodar-me—disse D. Bertha, sentando-se indolentemente sobre um sophá.—Vai, Julia, vai pintar o teu lindo cestinho, que eu vou sonhar com o meu Porto, para onde espero ir muito breve.
Estas ultimas palavras já mal se perceberam, porque foram acompanhadas com um bocejo, e D. Bertha cerrou os olhos.
D. Julia lançou sobre sua irmã um olhar de compaixão e sahiu.
Alguns instantes depois deu principio ao quadro.
[245]No dia seguinte Rosa sahiu para a serra, muito cêdo, para adiantar o seu trabalho, e poder assim dedicar mais tempo á joven senhora, que tão amavel e generosa tinha sido com ella.
Trabalhou com tal desembaraço, que, muito antes da hora marcada por D. Julia, tinha terminado o seu serviço.
Aproveitou portanto o tempo entregando-se á leitura d'algumas paginas d'um livro, de que lhe tinham feito presente no dia anterior. Lia com attenção, e, quando encontrava algum trecho rico e bello, parava, para exprimir a sua alegria e enthusiasmo.
Estava Rosa de tal sorte entregue á leitura, que não presentiu a chegada da viscondessa e de sua filha D. Julia.
[246]—Que livro estás lendo, com tanta attenção, minha menina—lhe disse a viscondessa.
Rosa saudou-a, apresentou-lhe o livro e respondeu:
—São as Meditações religiosas de Rodrigues de Bastos.
—E encontras grande prazer na sua leitura?
—Se encontro, minha senhora. Quando estou sentada á borda d'um regato, ou debaixo d'um carvalho annoso, lendo n'este livro, parece que a minha alma se despe de todos os seus envolucros terrenos e mundanos, e se põe em contacto com Deus, author de todas estas maravilhas da natureza, que nos cercam, e a quem no fundo do meu coração adoro e venero.
A viscondessa e sua filha, admiradas do que ouviam a uma pequena do campo, trocaram entre si um olhar d'intelligencia.
—E que mais costumas lêr?—perguntou D. Julia.
—Não tenho muitos livros. Além d'este possuo um cathecismo, uma vida de santos, de que leio uma pagina cada domingo, e mais uns livrinhos d'historias bonitas. Esquecia-me dizer-vos, que tambem tenho um livro de geographia, que me deu o mestre escóla da minha freguezia, mas que não leio, por que tem muitas palavras, que não entendo.
—Pelo que me dizes conheço que tens desejos de te instruires. Se te proporcionassem os meios de o fazeres, serias feliz?
—Seria, sim, minha senhora; mas infelizmente isso é impossivel, porque, para ir todos os dias á mestra, é preciso ser muito rica.
—Mas se te mandassem á mestra?—insistiu D. Julia.
—Seria muito feliz, mas nem quero pensar n'isso.
—Pelo contrario; eu e minha mãi, viemos procurar-te para que nos conduzisses a casa da snr.ª D. Thereza, e, se a tua protectora estiver satisfeita comtigo, pedir-lhe-hemos [247] para te deixar ir todos os dias á mestra. Então não respondes?
—Perdoai-me, senhora. Estou muito contente e alegre, e queria agradecer-vos, mas não posso. Que fiz eu para merecer tantos beneficios?
—Mostraste-te reconhecida aos beneficios da snr.ª D. Thereza, e isso indica um bom coração; és trabalhadeira e tens desejos de te instruires; mereces portanto que nos interessemos por ti—lhe disse a viscondessa.—Vamos, ensina-nos o caminho para a quinta da snr.ª D. Thereza.
Rosa, commovida, dirigiu-se para a quinta com a viscondessa e sua filha. Pelo caminho respondeu modestamente, e com graça, a todas as perguntas, que lhe fizeram, e cada uma das respostas confirmou mais, as duas senhoras, no bom conceito, que tinham formado de Rosa.
Quando chegaram á quinta, D. Thereza não estava em casa, mas não devia tardar muito, por isso esperaram. Rosa apresentou ás duas senhoras cadeiras para se sentarem e offereceu-lhes um copinho de leite fresco e morno.
D. Julia, a quem o caminho tinha fatigado, aceitou o offerecimento.
Rosa trouxe então uma toalha de linho, alvo como neve, que estendeu sobre uma mesa, na qual collocou o melhor pão, que havia em casa, manteiga e um copo de leite.
D. Julia, com uma alegria infantil, aceitou este lunch frugal, e, reanimadas com elle as suas forças, pediu para visitar a quinta.
A avó de Rosa estava sentada no jardim, debaixo d'um caramanchel de clematites, fiando, e cantando com voz tremula o estribilho d'um romance antigo. N'esta boa velha, bem vestida e de boa presença, ninguem seria capaz de reconhecer a pobre cega, que dezoito mezes antes, quasi morrendo de fome e frio, e podendo apenas [248] suster-se em pé, encontramos seguindo o caminho da serra de Vallongo para S. Cosme.
A viscondessa do Candal e sua filha saudaram a pobre cega, e esta, prevenida pela netinha, correspondeu-lhe respeitosamente.
—Não vos incommodeis, boa mulher—-lhe disse a viscondessa—permitti-nos sómente que conversemos por um instante convosco.
—É muita honra para mim, minha querida senhora;—respondeu a cega—estou portanto ás vossas ordens.
—Visto isso não vos recusareis a dizer-me se estaes satisfeita com a vossa neta?
—Se estou contente com a minha Rosinha?!—exclamou a cega—-com ella, que é a minha benção sobre a terra. Quando o meu genro morreu, por causa d'uma ferida, que fez em uma perna com o seu machado, porque elle era rachador de lenha na serra, e a quem minha filha, mãi de Rosa, seguiu passado pouco tempo, quasi que enlouqueci, porque não sabia o que havia de fazer. Rosa, disse-me com a sua voz meiga e humilde: avósinha, eu conheço uma senhora muito caritativa; vamos a sua casa, que estou certa nos ha-de recolher. E foi verdade.
A snr.ª D. Thereza, essa boa e caritativa senhora, para quem peço a Deus todos os beneficios e bençãos, teve a caridade de recolher em sua casa uma velha enferma e inutil como eu. Mas isto devo-o a Rosinha, porque ella sabe dizer as cousas de tal maneira, que, penetrando até o coração, commovem e decidem á compaixão. Vai em dezoito mezes que aqui nos achamos. Fio um pouco para não estar em descanço; mas Rosinha, senhora, Rosinha, cantando sempre, trabalha desde pela manhã até á noite. Em quanto que dura o verão, occupa-se a colher flôres na serra e no campo, e a fazer cestinhos com ellas; mas isto não obsta a que, quando se recolhe, lave a roupa, limpe os moveis, e ajude a [249] cozinhar, e se quizesse dizer-vos tudo o que ella faz, ou sabe fazer, levar-me-ia muito tempo.
Assim, amo muito a minha querida Rosinha. Mas onde estás tu, que te não chegas a mim para te dar um abraço?
Rosa, com o pretexto de ir colher um ramo para D. Julia, tinha-se retirado, quando a avó começára a elogial-a.
A viscondessa e sua filha ouviram com prazer o panegyrico de Rosa, feito pela avó, e iam fazer novas perguntas, quando D. Thereza chegou.
Depois de terminados os comprimentos preliminares, a viscondessa expoz a D. Thereza como sua filha sympathisára com Rosa, e estava resolvida a tomal-a sob a sua protecção, se D. Thereza a isso se não oppozesse.
—Primeiro que tudo—respondeu D. Thereza—desejo a felicidade e venturas de Rosinha, ainda que me ha-de custar muito a separar-me d'ella: porém, se fôr sua vontade, não me opponho, por que julgo lhe procuraes a sua felicidade; mas ponho por condição, que lhe não prohibireis vir algumas vezes visitar-me.
—Isso, senhora, é um dever sagrado, que Rosa tem a cumprir. Vamos porém interrogal-a, por que ella nada sabe do que acabamos de fallar.
D. Thereza chamou a pequena, que veio correndo, e disse-lhe:
—Rosinha, queres ir viver com esta senhora e sua filha?
—Pois vós, senhora—respondeu Rosa tremula e timida—quereis mandar-me embora?
—Não. Pergunto sómente se me queres deixar, para te tornares uma menina da cidade, instruida e de maneiras polidas?
—Não, minha senhora. Nunca—disse Rosa chorando, lançando-se nos braços da sua bemfeitora—nunca vos deixarei. Tenho muitos e muitos desejos de me instruir [250] e de aprender, mas, se para isso é necessario o deixar-vos, antes quero ficar ignorante toda a minha vida. Recolheste-nos, senhora, quando eu e a minha querida avósinha, estavamos quasi a morrer de fome, e havia de ser tão ingrata, que, quando principio a servir d'alguma utilidade, vos abandonasse? Não, senhora, nunca, nunca vos deixarei.
—Ouvistel-a, minhas senhoras—disse D. Thereza enxugando os olhos, razos de lagrimas.
—Pelo que vejo, Rosa, estás bem decidida a não vir comnosco?—lhe disse a viscondessa.
—Seria feliz e muito feliz, minha senhora, se podesse ir viver na sua companhia, e de sua estimavel filha; mas antes de vós, está a snr.ª D. Thereza, que salvou a minha pobre avósinha d'estender a mão á caridade publica e que sempre tão minha amiga tem sido. Perdoai-me, senhora, se assim fallo...
—Dá-me um abraço, minha menina—lhe disse a viscondessa interrompendo-a—dá-me um abraço, porque te mostraste tal, como eu desejava, boa, humilde e reconhecida aos beneficios, que te fazem.
Não tenhas receio, que te separemos da snr.ª D. Thereza. Pediremos sómente á tua bemfeitora, que nos deixe entrar com metade nos beneficios, que te prodigalisa.
—E eu, Rosa—acrescentou D. Julia—quero ser a tua preceptora. Quando o tempo estiver bom, dar-te-hei as lições na serra, á sombra d'um sobreiro, ou d'um pinheiro, ou á borda d'um regato; e quando estiver mau, dar-tas-hei em minha casa, porque ouso esperar, que a snr.ª D. Thereza me não negará este favor, e prazer.
—Oh não, minha senhora, esteja certa d'isso. Logo que termine o seu serviço dos cestinhos fica livre para vos ir procurar.
—É objecto convencionado—disse a viscondessa—por isso a snr.ª D. Thereza ha-de-me permittir licença [251] de offerecer a Rosa, para si e sua avó, o que contém esta pequena bolsa. É para comprar em nosso nome um vestido novo.
E como D. Thereza, Rosa e a avó lhe fizessem muitos agradecimentos, a viscondessa impoz-lhes com brandura silencio, e retirou-se, promettendo voltar muito breve á quinta.
D. Julia abraçou a sua pequena discipula, e retirou-se dizendo-lhe «até ámanhã».
Nas proximidades de casa a viscondessa e sua filha encontraram D. Bertha, que estava esperando pelas meninas Meirelles.
—Meu Deus, como estou aborrecida—lhes disse ella.
—Pois eu, minha irmã—respondeu D. Julia—venho muito alegre; o espectaculo, que acabo de gosar, dar-me-ha felicidade não só para hoje, mas tambem para muito tempo, porque será contado no numero das minhas mais gratas e queridas recordações.
[252]D. Julia, na fórma convencionada, principiou no seguinte dia o curso, que queria fazer seguir a Rosa. Tomou com ardor a obrigação, que se tinha imposto desempenhar, mas o seu zelo não excedia, o que mostrava a sua alumna. Intelligente, e anciosa por aprender, Rosa era incansavel, e muitas vezes foi preciso que D. Julia moderasse a sua applicação; as lições tinham lugar umas vezes na serra, outras vezes em casa da viscondessa.
Decorreram assim tres mezes. No fim d'este tempo, os progressos, que Rosa tinha feito, eram espantosos, e como tanto a professora, como a discipula não afrouxavam no seu zelo, era d'esperar que, no fim dos dous mezes que D. Julia ainda tinha a passar no campo, Rosa estivesse bastante desenvolvida para continuar, sem nada esquecer, a estudar sósinha, durante o inverno.
[253]Mas, quando menos se esperava, a terrivel molestia, que parecia ter deixado D. Julia, reappareceu com uma intensidade violenta.
A pobre menina não teve forças para resistir a este ataque, e não podia sahir do quarto.
Rosa, que no auge da sua desesperação, com risco da propria vida, quereria dar algumas forças á amiga do seu coração, podia a custo conter as lagrimas, contemplando-a, pallida e cadaverica, recostada n'uma cadeira de braços, forcejando por se levantar sem auxilio, para não aterrar a sua querida mãi e a sua discipula predilecta.
N'este momento Rosa tinha um unico pensamento; o de sacrificar-se por aquella, que tanto a amava e lhe queria. Os mais pequenos desejos, e os mais vagos caprichos eram adivinhados de Rosa, e executados antes mesmo que D. Julia os tivesse enunciado. Se queria descer ao jardim, o braço de Rosa é que a amparava; se queria ouvir alguma passagem dos seus livros favoritos, Rosa lia-lh'a immediatamente.
D. Julia, muito sensibilisada por tanta dedicação, affligia-se com a lembrança, de que o progresso da sua discipula estava parado. D. Bertha podia substituil-a, mas essa nunca consentiria em ser a preceptôra d'uma lavradeira. A viscondessa resolveu-se a dar as lições a Rosa, para socegar a inquietação de D. Julia.
Havia já tres semanas que D. Julia estava doente, e cada dia ia a peor; sua mãi já não tinha esperanças algumas. Tres medicos, que do Porto haviam sido chamados, não deram esperanças da doente melhorar.
A viscondessa, porém, não podendo convencer-se de que sua filha estava irremediavelmente perdida, cria que os medicos se tinham enganado, e resolveu recolher ao Porto, para lhe fazer uma nova junta.
D. Bertha, contristada ao principio com a molestia de sua irmã, consolava-se com a idéa de voltar ao seio da sociedade, que ella tanto amava.
[254]Só á força de muitas instancias e esforços é que D. Julia consentiu em deixar o campo; mas, ainda assim, com a expressa condição de para lá voltar se peorasse.
Quando Rosa soube que a viscondessa se ia retirar do campo, não pôde conter a sua desesperação. Queria acompanhar D. Julia, e não a desamparar um só instante. D. Julia procurava socegal-a, mas tudo era baldado, por que Rosa estava inconsolavel.
Na vespera da partida Rosa veio despedir-se de D. Julia; lançou-se-lhe aos pés, chorando, e pediu-lhe que lhe escrevesse muitas e muitas vezes. A doente assim lh'o prometteu, e, tirando debaixo do travesseiro uma bolsinha de sêda, apresentou-a a Rosa.
—Aceita, minha menina—lhe disse ella—esta bolsa; contem cem mil reis, que são as minhas economias do verão; põe a juros este dinheiro, para que se augmente este capitalsinho.
É um presente muito pequeno; mas se nos não tornarmos a vêr, minha boa mãi, dar-te-ha, em meu nome, mais alguma cousa.
Rosa beijou as mãos de D. Julia, e queria recusar a bolsa.
—Não recuses, Rosa—tornou D. Julia—senão fôr para ti, é para tua avó. Sabes lá o que tem para vos acontecer, e se esta pequena somma ainda vos será util? Adeus, Rosinha; ama-me sempre muito, e reza muito ao Senhor, para que me dê saude.
Rosa quiz responder, mas as lagrimas e soluços embargaram-lhe a voz. A viscondessa, testemunha d'esta scena tão tocante, temendo as funestas consequencias, que sua filha soffreria com tão grande commoção, levantou Rosa, e pediu-lhe com instancia e por favor que se retirasse. A pobre menina cedeu a custo, mas antes de se retirar ainda pôde vêr D. Julia, que, com um olhar maternal, a abençoava.
[255]Já tinha decorrido mais d'um mez, desde que D. Julia recolhera ao Porto, e Rosa ainda não tinha recebido carta da sua amiga. A pobre criança affligia-se, julgando, que este silencio, para com ella, não tinha outra causa, senão o estado cada vez mais perigoso de D. Julia. D. Thereza, que partilhava do pesar de sua filha adoptiva, procurava por todos os meios consolal-a, e fazer-lhe conceber esperanças. Uma carta de D. Julia veio confirmar as prevenções de D. Thereza.
D. Julia, com mão tremula, escreveu á sua querida discipula. Participava-lhe que a sua doença parecia estar um pouco mais debellada, e que os medicos davam algumas esperanças de a poder subjugar, e embargar-lhe o seu progresso.
[256]Terminava a carta aconselhando Rosa a que não descurasse os seus estudos, e pedindo-lhe que lhe escrevesse.
Rosa cobriu de mil beijos esta carta, e no mesmo dia respondeu a D. Julia, assegurando-lhe que não despresaria os seus conselhos, e que tinha esperanças, de, para a primavera, renovar as suas lições sob as arvores da serra; que nas suas orações rogava todos os dias a Deus, com fervor, que lhe restituisse a saude, e que esperava as suas supplicas fossem attendidas.
Rosa, cumprido este dever sagrado, lançou mão do seu trabalho com mais vigor.
Estava proximo o dia natalicio de D. Thereza. Rosa preparava em segredo um lindo presente para offerecer n'aquelle dia á sua bemfeitora, e para isso tinha reunido todo o dinheiro, que lhe tinham dado de mimo, e julgava-se bastante rica para poder apresentar a D. Thereza um brinde, de que ella admirasse o valor e o gosto.
Faltavam só quatro dias para que, esse dia tão anciosamente esperado, chegasse, e Rosa ainda queria poder supprimir o tempo, tão longo lhe parecia.
Na vespera de manhã D. Thereza queixou-se d'uma dôr de cabeça, mas julgou que um passeio lh'a dissiparia. Sahiu pois; mas passado uma hora voltou ainda mais indisposta, do que tinha sahido.
Despresando o seu estado, ainda presidiu, na fórma costumada, ao jantar dos criados da quinta; mas, no meio d'elle, cahiu sem sentidos.
Os criados, assustados, cercaram D. Thereza. Recolheram-na á cama, e partiu immediatamente um criado a chamar, a toda a pressa, um cirurgião.
Chegou este, e, mal viu a doente, não deu esperanças de a salvar.
—Foi uma apoplexia fulminante—disse elle—é já tarde para se lhe dar remedio.
O desespero e a consternação espalharam-se na quinta.
[257]Os criados em geral estimavam muito D. Thereza, por que, apesar de ser muito vigilante, era boa e justa.
Os menores movimentos do cirurgião eram seguidos com anciedade por todos os criados, mas entre elles tornava-se saliente Rosa pelo zelo e actividade, que desenvolvia em executar as prescripções do cirurgião, ainda bem não estavam dadas.
Rosa não podia crêr que Deus lhe quizesse roubar a sua bemfeitora, e esperava ainda que uma crise feliz a restituiria á vida.
A avó de Rosa estava consternadissima, e o seu maior pesar consistia em não poder fazer cousa alguma.
De joelhos; junto do leito de D. Thereza, rezava com fervor e devoção.
Entre as alternativas da esperança e desconforto se passou o dia. Á noite o cirurgião declarou que já lhe não restava esperança alguma; que D. Thereza ainda podia viver mais um dia ou dous, mas que não proferiria mais uma palavra, nem faria um unico movimento.
Descrever a afflicção de Rosa e de sua avó é-me impossivel; bastará dizer que a dôr as tinha quasi enlouquecido.
D. Thereza não tinha filhos, por isso foram avisar do succedido a D. Euzebia, sua irmã, rica proprietaria em Rio Tinto.
D. Euzebia, por causa do seu genio forte, e caracter duro, não estava em intimas relações com D. Thereza. Assim que teve noticia da doença de sua irmã poz-se logo a caminho, não por amisade que tivesse á moribunda, mas sim para vigiar que lhe não roubassem a mais pequena parte da sua herança.
Logo que D. Euzebia chegou a S. Cosme, tomou o governo da casa, e deu ordens como se já estivesse senhora da herança. Rosa e sua avó inspiraram-lhe antipathia, e não podia comprehender como sua irmã voluntariamente [258] tinha tomado ao seu cuidado aquellas duas pessoas.
D. Thereza ainda viveu dous dias, conforme o cirurgião dissera, mas sem falla, e sem movimento, porque a apoplexia tinha-lhe paralysado todas as faculdades. Só os olhos é que conservavam ainda alguns signaes de vida e intelligencia, os quaes fixava sobre Rosa, fazendo esforços para fallar, naturalmente para fazer o seu testamento; mas este ultimo consolo dos moribundos não lhe foi permittido.
O abbade da freguezia, que veio administrar os ultimos sacramentos á moribunda, tentou mitigar a dôr de Rosa, mas a joven menina estava muito consternada para poder ser consolada. Recusou obstinadamente retirar-se de junto do leito, em que jazia D. Thereza, conservando-lhe a mão gelada apertada nas suas.
—O meu lugar é este,—dizia ella entre soluços,—só deixarei minha segunda mãe no tumulo.
Finalmente chegou o terrivel momento da morte. Uma convulsão, alguns murmurios sufocados........ e D. Thereza tinha deixado d'existir entre os vivos, e sua alma, desprendendo-se das ligações terrenas, voára ao céo a receber da mão de Deus o premio das suas virtudes.
Ao principio não se ouviam mais que os chóros de todos os criados da quinta, mas em seguida uma voz forte e imperiosa se fez escutar. Era a de D. Euzebia. Collocou uma pessoa junto do cadaver de sua irmã, deu as ordens para os funeraes, e passou a inspeccionar as caixas e commodas, que fechava com cuidado, guardando as chaves.
[259]Apenas D. Euzebia fechou as commodas e caixas, compareceu o juiz eleito da freguezia para sellar e tomar conta de tudo o que pertencia a D. Thereza.
—Aqui estão as chaves, senhor juiz eleito—disse D. Euzebia,—mas é inutil esse trabalho, por que eu sou a unica herdeira de minha irmã, e ella não podia desherdar-me.
—É verdade, minha senhora,—respondeu o juiz—mas cumpro o meu dever, por que a lei protege os direitos de todos.
—Só eu é que tenho direito á fortuna de minha irmã, pois ella não tem filhos.
—Sim, minha senhora, mas esta orphãsinha, a quem ella deu asylo?
[260]—Minha irmã—replicou com colera D. Euzebia—seria por ventura capaz de me desherdar, testando os seus bens a favor d'estas duas mendigas, que ella teve a phantasia de recolher em sua casa?
—Não o affirmo, minha senhora—respondeu com brandura o juiz;—mas sua irmã póde ter feito testamento, no qual deixe a Rosa alguma prova da sua estima e amisade.
—Não julgaria sufficiente o sustental-a e mais á avó,—disse D. Euzebia com voz forte—ainda lhe havia de deixar algum legado? Ah! minhas velhacas, virieis vós roubar o que de direito me pertence? Snr. juiz eleito, queira tambem sellar a porta do quarto d'ella, pois quem sabe lá, o que ella tem roubado. Minha irmã era tão pouco cautellosa...
—Oh! senhora—respondeu Rosa com muita tristeza a esta supposição offensiva—acreditaes que pagasse com o roubo os beneficios, que eu e minha avó recebemos da snr.ª D. Thereza?
O juiz eleito ordenou com brandura a Rosa que se calasse, para que D. Euzebia não continuasse, diante d'um leito de morte, com uma discussão tão vergonhosa, e feia.
Logo que o juiz se retirou, Rosa viu-se de novo a braços com as suspeitas da ambiciosa herdeira. Chegaram a tal ponto as cousas, que Rosa não pôde refrear a sua indignação.
—Não me injurieis, senhora,—disse Rosa com energia e dignidade—não me injurieis diante do corpo de vossa irmã, de quem só a vista bastaria para me proteger. Dizei-me, senhora, sahi eu por ventura um só instante de junto da cama da minha bemfeitora, desde que ella foi atacada pela apoplexia? Não, senhora. Então como podia eu subtrahir cousa alguma? Examinai, e examinai bem, senhora, que achareis tudo intacto, porque eu e minha avó preferiamos antes morrer [261] de fome, do que tocar na cousa mais insignificante, que nos não pertencesse. Louvado seja o Senhor, sou forte; posso e quero trabalhar, por isso não serei pesada a ninguem. Deixai-nos, senhora, chorar em paz a perda da nossa bemfeitora, que, logo que o seu corpo saia d'esta casa, não vos pediremos asylo.
Esta linguagem, firme e digna, impoz silencio a D. Euzebia, que ficou corrida de vergonha.
Rosa esperou com socego o dia seguinte, em que se devia fazer o enterro a D. Thereza.
A pobre criança, com a avó pelo braço, seguiu chorando o prestito. Depois de terminado o officio, Rosa e sua avó, ajoelharam-se junto da campa, em que D. Thereza foi sepultada: era já noite cerrada, e ainda as duas desgraçadas não cuidavam em se retirar.
O frio, que fez dar um gemido á avó, advertiu Rosa de que se devia recolher; só então é que pensou para onde havia de ir.
—Vamos, minha avósinha—disse Rosa—a casa da snr.ª Maria da Gandra, que estou certa, sendo tão nossa amiga, nos não ha-de deixar na estrada.
A snr.ª Maria da Gandra era uma boa e caridosa mulher, que, como todos os moradores de S. Cosme, e seus arredores, estimava muito a protegida de D. Thereza, e censurára o procedimento de D. Euzebia.
—Oh! Rosinha, foi Deus que te dirigiu para minha casa—lhe disse ella logo que a avistou.—Que prazer me não causa teres procurado a minha casa para te recolheres. Tinham-me dito, que ias para casa da Joanna da Quintella, por isso é que te não offereci para vires para aqui com tua avó.
—Agradeço-vos, senhora—disse Rosa—a vossa bondade, e a caridade com que vos offereceis para nos recolherdes; mas não venho pedir-vos casa e sustento de graça, porque tenho duas inscripções de cem mil reis cada uma; o que vos rogo é que me aboneis tudo o [262] que eu precisar e minha avó, que vos satisfarei logo que termine a liquidação da herança da snr.ª D. Thereza, e receba as minhas inscripções.
—Sim, sim, minha menina,—lhe respondeu a snr.ª Maria da Gandra—Não preciso do teu dinheiro para te sustentar e a tua avó. Mas diz-me, como obtiveste essas inscripções?
—A snr.ª D. Julia, antes de partir para o Porto, deu-me cem mil reis, com os quaes a snr.ª D. Thereza, em cumprimento do seu desejo, comprou duas inscripções em meu nome.
—Foste feliz, Rosinha, em que fossem compradas em teu nome, porque d'outra maneira D. Euzebia tomaria posse d'ellas. Tem resignação, assim como vós, minha boa velhinha; vinde cear, que eu depois vou-vos conduzir ao vosso quarto.
Rosa e sua avó ficaram portanto habitando na Gandra.
A pequena não estava ociosa, antes pelo contrario era tão zelosa e trabalhadeira, que a snr.ª Maria, muito satisfeita, propoz-lhe que ella e a avó, ficassem para sempre em sua casa. Rosa aceitou promptamente, e com reconhecimento, pois n'aquella occasião era a maior felicidade, que lhe podia apparecer.
No dia em que se deviam tirar os sellos em casa da defunta D. Thereza, Rosa alli compareceu por convite do juiz eleito.
Quando Rosa atravessou, como estranha, a soleira da porta da casa, que tinha sido para ella tão hospitaleira, o coração comprimiu-se-lhe e não pôde reter as lagrimas.
Tudo se passou sem novidade; só de quando em quando D. Euzebia mostrava por gestos e exclamações o seu desapontamento por encontrar menos dinheiro, do que imaginava.
Quando se abriu a caixa, que pertencia a Rosa, não [263] foi uma exclamação de surpreza, que D. Euzebia soltou, mas sim de raiva, na qual se divisava um accento de triumpho.
—Bem certa estava eu,—disse ella—que esta velhaca havia de ter empalmado alguma cousa. Ah! se eu não viesse logo... o que teria acontecido. Examinai, senhor escrivão, o que é que ahi existe.
O escrivão tirou da caixa um magnifico vestido, que, a julgar pelo tamanho, não pertencia de certo a Rosa.
—Dize velhaca,—tornou D. Euzebia—como é que este vestido veio aqui parar?—Não preciso perguntal-o, porque a culpada está-se denunciando pelo rubôr, que lhe cobre as faces.
—Senhora D. Euzebia—disse o juiz—o seu proceder para com esta criança é digno de censura. Ainda, até agora, não encontramos cousa alguma, que fizesse, nem ao menos, suspeitar de sua probidade. Deixai-a portanto dar-me as explicações, que tiver a fazer.
Responde Rosinha,—disse o juiz com modo affavel—como é que este vestido se acha na tua caixa?
Rosa fez-se muito corada e respondeu:
—Este vestido, senhor, foi comprado com as minhas economias.
—Que é; que é?—interrompeu D. Euzebia.
—Senhora—disse severamente o juiz—ordeno que vos caleis.
—É bem publico e sabido, que eu, durante o verão, fazia cestinhos de flôres, que ia vender ás casas abastadas dos arredores.
Quasi sempre me davam, como presente, mais do que o custo dos cestos: entregava-me a snr.ª D. Thereza, para guardar no meu mealheiro, estas pequenas quantias, que reservei com muito cuidado para poder brindar a snr.ª D. Thereza no seu dia natalicio.
Estava muito indecisa, por não saber o que lhe devia offerecer, e foi a minha avó, que me suggeriu a [264] idéa de lhe comprar um vestido. Para levar a effeito este meu desejo combinei em segredo, com a costureira da snr.ª D. Thereza, para o fazer, e estou muito certa de que a minha bemfeitora não despresaria a minha offerta, se tivesse a felicidade de lh'a apresentar.
Esta explicação, simples e clara, que demonstrava um coração sincero e grato, fez borbulhar as lagrimas nos olhos de todos os circumstantes. Devemos comtudo excluir d'este numero D. Euzebia, que presistia em negar a verdade.
Quando se encontraram as duas inscripções, D. Euzebia chegou ao auge do desespero e da colera, e de boa vontade as inutilisaria, se lhe fosse possivel obtel-as á mão; mas, felizmente para Rosinha, não pôde conseguil-o.
Finalmente, pelos cuidados e protecção do juiz eleito, Rosa e sua avó, apesar de todos os obstaculos e vontade de D. Euzebia, receberam tudo o que lhes pertencia, e deixaram sem maior desgosto a casa, de que a mais cruel e mais requintada avareza as expulsava.
[265]Estamos no anno seguinte.
Rosa escreveu á viscondessa do Candal e a sua filha uma carta tão affectuosa e consoladora, que fez despertar em D. Julia um vehemente desejo de tornar a vêr a sua querida discipula e protegida.
Os dias, que faltavam para Rosa poder abraçar a sua amiga, pareciam-lhe seculos. Esperava com uma impaciencia impossivel de descrever, a chegada da primavera, porque então é que devia, e podia estreitar ao coração a sua querida amiga e preceptora.
Raiou finalmente o dia tão anciosamente almejado. A primeira pessoa que D. Julia avistou foi Rosa, que, louca d'alegria, viera esperar a sua amiga querida, para lhe apresentar um cestinho, igual ao que tinha estabelecido [266] e sido causa das relações e intima união, que existia entre ellas.
D. Julia ao vêl-a deu um grito, e quiz immediatamente descer do coupé; mas não pôde fazel-o, por que estava tão magra, fraca e desfigurada que, quem a via, só a um milagre podia attribuir a sua existencia. Era na verdade um milagre, devido ao amor maternal, e continuos cuidados e desvelos, de que a cercava a viscondessa.
Rosa passou todo o dia na companhia da sua querida amiga e protectora. D. Julia tinha muito que lhe perguntar, por que queria saber minuciosamente tudo o que tinha acontecido, desde que ella se tinha retirado para o Porto.
Apenas teve conhecimento da morte de D. Thereza, D. Julia pediu immediatamente a sua mãi, que recebesse em sua casa Rosa e sua avó.
A viscondessa, que desejava e queria satisfazer o mais pequeno desejo, ou pedido de sua filha predilecta, accedeu sem demora.
Rosa e sua avó vieram portanto morar para casa da viscondessa do Candal, que foi pessoalmente dar parte d'esta sua resolução á snr.ª Maria da Gandra.
—Estou satisfeitissima, minha senhora—disse a snr.ª Maria da Gandra—pela felicidade de Rosa; mas ao mesmo tempo sinto um grande pesar, e é com difficuldade que me separo d'ella. Nunca mais encontrarei uma pequena, que seja tão humilde e trabalhadeira.
A viscondessa em seguida quiz satisfazer á snr.ª Maria da Gandra toda a despeza, que Rosa e sua avó tinham feito em sua casa; mas a honrada e digna aldeã não quiz aceitar a mais pequena e insignificante recompensa, e respondeu—Que Rosa havia ganho o que ella e sua avó tinham despendido.
A despedida de Rosa e da snr.ª Maria da Gandra foi pathetica, e só a muito custo se desprenderam, chorando, [267] dos braços uma da outra, promettendo Rosa vir visital-a a miudo, por que o carinho, com que a snr.ª Maria a tinha tratado havia sido tal, que seria uma ingrata se lhe não tributasse um profundo reconhecimento.
A alegria, que se apoderou da pobre cega, quando lhe disseram que ia viver em casa da viscondessa do Candal, foi tal, que só acreditou depois de muito lh'o asseverarem, por que lhe parecia impossivel que semelhante ventura lhe succedesse.
—Que a minha Rosinha—disse ella—algum dia se havia de tornar senhora da cidade, sempre eu o julguei, por que era muito gentil e linda para ser camponeza; mas que eu partilhasse tal ventura, nunca o imaginei.
Rosa e sua avó foram alojadas, em casa da viscondessa, em dous quartos, muito perto d'aquelle em que habitava D. Julia; que assim o tinha exigido para ter a sua protegida junto d'ella, o que se executou com muita censura e reparo de D. Bertha.
—Era só o que faltava—dizia um dia, a orgulhosa D. Bertha, a D. Francisca de Meirelles, sua amiga—trazer para nossa casa estas duas mendigas. Podes tu, minha querida, explicar-me como é que Julia pôde affeiçoar-se tanto a estas duas creaturas?
—Tua irmã, Bertha, tem o coração muito sensivel; basta que lhe façam uma choradeira, ou que lhe contem uma historia triste para acreditar em tudo, e logo se affeiçoar a qualquer, e lhe dedicar carinho é protecção.
—Mas na verdade, esta sociedade não é tão agradavel e attrahente?—disse D. Bertha com um sorriso ironico.—Se a cega e a neta contam commigo para lhes fazer companhia, affirmo-te que lhes hei-de deixar muito tempo para se aborrecerem.
Conforme com estas bellas resoluções D. Bertha evitava [268] o mais possivel dirigir a palavra a Rosa e sua avó, e, quando por necessidade o fazia, era com um modo tão sobranceiro, imperial e chocarreiro, que as duas infelizes ficavam confusas e envergonhadas.
D. Julia tentou por diversas vezes fazer nascer no coração de D. Bertha sentimentos mais nobres e mais christãos, mas infructuosamente, por que, procurar commover e sensibilisar o coração empedernido e orgulhoso de D. Bertha, era um trabalho improbo e esteril.
D. Julia, feliz por ter em sua companhia a querida de seu coração, a sua discipula, recuperou algum vigor, e ainda pôde recomeçar as lições. A fadiga, que d'este trabalho lhe podia provir, era attenuada pela attenção e estudo, que Rosa prestava ás prelecções.
D. Julia ainda quiz ensinar desenho a Rosa.
—Queres dar a Rosa—disse uma occasião a viscondessa a sua filha—uma educação e instrucção superiores á sua posição na sociedade, e não receias que isso para o futuro lhe cause embaraços e dissabores?
—Como resposta a essa pergunta tenha, minha querida mãi, a bondade de ouvir o que a minha protegida me dizia outro dia:
«O meu maior desejo, minha boa amiga e mestra, é alcançar bastante instrucção e saber, para um dia ser professora. Como me julgaria feliz podendo dizer ás minhas discipulas: era uma aldeã muito ignorante e rustica; uma boa menina, a snr.ª D. Julia, filha da snr.ª viscondessa do Candal, teve a bondade de me tomar sob a sua protecção e de me ensinar. É a ella, meninas, a quem devo o que sei e o que vos ensino. Se me amaes, deveis igualmente amar a snr.ª D. Julia, minha bemfeitora; e então ellas vos renderão graças, assim como eu vol-as rendo agora.»
—Não te torno a dizer mais nada—disse a viscondessa—Continua, minha filha, pois Rosa é digna dos [269] teus cuidados e desvelos, e para que elles se tornem mais proficuos ajudar-te-hei a leccional-a.
A viscondessa cumpriu a sua promessa e, alternadamente com D. Julia, dava as lições a Rosa.
Estes estudos não fizeram pôr de parte a preparação de Rosa para receber dignamente a primeira communhão. Foi com uma piedade exemplar que ella cumpriu este solemne acto, e o futuro provou não ter sido esteril para o seu coração.
D. Julia passou o verão entre as alternativas de melhoras e recahidas nos seus padecimentos, que tinham uma successão quasi regular e periodica. Umas vezes nem levantar-se da cama, ou d'uma cadeira de braços, para onde a levavam, lhe era possivel; outras vezes chegava a poder dar uns pequenos passeios pelos campos das visinhanças. Aos proprios medicos custava a comprehender como ella vivia.
D. Julia, porém, não se illudia sobre o seu estado de saude. Quando sua mãi a entretinha fazendo projectos, ou, como ordinariamente se diz, castellos no ar, para o futuro, ella sorria-se e respondia: que ainda faltava muito tempo para a sua realisação, e que não chegava a vêl-os confirmar.
A sós com Rosa D. Julia fallava livremente sobre a proxima terminação da sua existencia, e então ella supplicava-lhe com instancia, que repellisse da sua imaginação tão sinistras idéas.
—Não posso crêr,—dizia ella—que Deus nosso Senhor me queira tirar d'este mundo todos os meus protectores: não sei que crime tenha commettido, que mereça semelhante castigo.
—Resta-te ainda minha mãi, minha Rosinha—respondia D. Julia—que estou certa nunca te ha-de desamparar.
Rosa terminava esta penosa conversação abraçando [270] D. Julia e procurando distrahil-a por todos os meios possiveis.
O que a dedicação mais sincera e real póde suggerir de mais bello, tudo Rosa executava, recebendo, por galardão, ou recompensa a mais grata, um terno sorriso de D. Julia, ou um agradecimento da viscondessa, e para os merecer faria o impossivel se necessario fosse.
[271]D. Julia apparentava exteriormente um socego d'espirito, que interiormente não sentia, por que receiava muito a chegada do outono, época, que os medicos tinham marcado, a mais longa a que poderia chegar. A anciedade, pois, que todos soffriam pela aproximação d'esse termo fatal, era geral.
Chegou o outono. Por um d'estes phenomenos, que a tisica muitas vezes apresenta, a molestia não offereceu n'esta estação alteração alguma.
A esperança, de que D. Julia ainda poderia vencer a fatal doença, começou a penetrar em todos os corações, e até no da propria enferma. Rosa chegou a dizer á viscondessa, que tinha uma convicção firme de que D. Julia não morreria, por que Deus Nosso Senhor era bom e não a havia de privar da sua protectora.
[272]A viscondessa, que até ahi estava convencidissima, de que sua filha não passaria além do termo marcado pelos medicos, vendo-o passar sem que a sua fatal predicção se realisasse, começou a crêr que se tinham enganado, e que D. Julia ainda lograria saude.
Houve portanto grande alegria em casa da viscondessa. Todos os criados, que não amavam só, mas que veneravam D. Julia, por que era sempre boa e affectuosa para elles, crendo que a sua joven ama, não tendo morrido na época marcada, estava salva, pediram unanimemente para a felicitarem; tal foi a alegria e contentamento, de que se apoderaram com esta esperança e crença.
Estas demonstrações respeitosas de sympathia e amisade, que os criados lhe deram, penhoraram e commoveram muito D. Julia. A todos agradeceu com reconhecimento esta nova prova d'affecto.
Porém, de todas as felicitações, a da sua discipula e de sua avó, foi a que mais a impressionou.
Quando Rosa, conduzindo sua cega avó, se ajoelhou com ella junto da cama de D. Julia, e lhe exprimiu, com candura e ingenuidade, a alegria e prazer, que sentiam pelas suas melhoras, e os votos, que faziam a Deus, para que o seu restabelecimento fosse real e breve, não pôde soffrear a sua commoção, e as lagrimas correram-lhe em fio pelas faces, agradecendo a Deus o prazer que tinha gosado com a felicitação que acabava de lhe ser dirigida.
Passou-se o inverno, sem que o estado de saude de D. Julia soffresse alteração sensivel.
Com a chegada da primavera D. Julia recomeçou os seus passeios pelos campos e pinheiraes visinhos, na companhia da sua inseparavel Rosa, a que algumas vezes se aggregava tambem a viscondessa.
Na quaresma seguinte Rosa recebeu pela segunda vez o sacramento da communhão, e pouco tempo depois, D. Julia, querendo que a sua protegida progredisse [273] nos seus estudos, pediu a sua mãi que lhe escolhesse uma professora.
A viscondessa annuiu immediatamente ao pedido de sua filha.
Pouco tempo depois entrou para casa da viscondessa, sob recommendação e abono do abbade de S. Cosme, uma joven senhora, a quem ha pouco acabava de ser concedido o titulo de capacidade.
Rosa esforçava-se por todos os meios possiveis para corresponder dignamente aos beneficios, que, D. Julia e sua mãi, lhe estavam constantemente prodigalisando; procurando sempre não dar o mais leve desgosto ás suas protectoras; comtudo, é preciso dizer que Rosa não era perfeita. A sua vivacidade natural levava-a muitas vezes a impacientar-se, e o seu ainda pouco peso ou juizo a commetter algumas faltas nos seus deveres; mas reconhecia com tanta facilidade os seus erros, e mostrava-se tão arrependida e desejosa de os emendar, com tanto afinco e perseverança, que era impossivel tratal-a com rigor por muito tempo.
Rosa dava as suas lições, umas vezes no quarto de D. Julia, quando o seu estado de saude o permittia; outras vezes no da viscondessa, que sentia um verdadeiro e sincero prazer em observar os progressos da predilecta e querida de sua filha.
D. Maria d'Almeida, assim se chamava a professora, correspondeu dignamente á confiança, que a viscondessa n'ella tinha depositado, confiando-lhe a instrucção da sua pupilla.
O progresso e desenvolvimento, que Rosa sob a sua direcção experimentou, foi grande, dando já signaes de que em breve a discipula se tornaria uma excellente professora.
Rosa, assim que as suas obrigações e deveres estavam terminados, dedicava-se exclusivamente a D. Julia, e sua avó. Esta, desde que viera viver para casa da [274] viscondessa do Candal, andava alegre e folgazã, e ainda julgava estar sonhando, tal era a placidez e amenidade do seu viver.
Tinha já decorrido parte do anno; o outono estava quasi findo, e o estado de saude de D. Julia não denunciava signal algum de peoramento; a molestia, porém, que até então estivera encubada, reappareceu com grande violencia, e em oito dias as crises succederam-se tão proximas umas das outras, que pozeram a enferma em estado de se não conceber esperança alguma de a salvar.
A illusão, que até ahi existira em todos, desappareceu completamente: já não esperavam senão o golpe final... Rosa, nem um só momento desamparava a sua querida protectora, e juntamente com a viscondessa, cuidava e tratava de D. Julia; não consentiam que mais ninguem lhe prestasse o mais insignificante serviço, chegando até a ter zelos uma da outra.
Tanta dedicação e amisade teriam feito com que Deus revogasse a fatal sentença dada a D. Julia, se o Creador, na sua alta sabedoria, não tivesse resolvido chamar á sua presença, a receber o premio das suas virtudes, aquelle anjo de bondade e resignação.
D. Julia, já moribunda e quasi expirante, pediu a sua mãi, como ultima graça que lhe fazia, que não abandonasse Rosinha, a sua querida discipula e amiga; que se não affligisse, nem desanimasse, porque em Rosa lhe deixava, estava certa d'isso, uma filha obediente e dedicada, que havia de substituir no seu coração o lugar que ella deixava vasio, e a Rosa recommendou-lhe que amasse sempre muito sua mãi, por que n'ella encontraria um sincero apoio, e uma terna e carinhosa amiga.
Apenas D. Julia proferiu estas palavras, a hora fatal tinha soado; abraçou sua mãi, e Rosinha e, pronunciando os nomes de Rosa... e minha mãi... expirou, [275] voando a sua candida alma á presença de Deus a receber a glorificação de suas virtudes.
Assim terminou D. Julia a sua existencia, que, se tinha sido breve para o mundo, fôra longa pelas boas obras, que sempre praticára, e pela pureza em que sempre vivera.
[276]Já decorreram seis annos depois das scenas descriptas no capitulo antecedente.
Não deixaremos, porém, a nossa muito conhecida casa, perto de S. Cosme, pertencente á viscondessa do Candal, por que é no caminho, que a ella conduz, que tem lugar o que passamos a contar.
Uma senhora ainda joven, e outra já de mais idade caminham em silencio, e commovidas.
A mais idosa é a nossa muito conhecida viscondessa do Candal.
O pesar da morte da sua querida filha Julia desfigurou-a muito. O rosto tem-no emmagrecido, e sulcado de profundas rugas, e os cabellos embranquecidos antes do tempo.
[277]A sua companheira é uma joven que figura ter dezesete para dezoito annos, d'apparencia ingenua e modesta; é a nossa Rosa, a pequena dos ramos e cestinhos.
A viscondessa caminha apoiada no braço da sua companheira. Depois d'alguma hesitação Rosa decidiu-se a dirigir-lhe a palavra.
—Receio, minha querida senhora—disse Rosa respeitosamente—que esta visita vos cause uma grande commoção e vos prejudique a saude. Por que a não deixaes para quando estiverdes mais restabelecida?
—Não, Rosa, não. Ha oito dias, que não vim visitar a campa onde jaz a minha Julia, e oito dias já é um espaço muito longo. Sinto-me hoje melhor, não despresarei portanto esta occasião que se me offerece, por que, quem sabe se recahirei?
—Não penseis em tal, senhora viscondessa. Creio que ainda haveis de ter muitos annos de vida; tenho fé, que Deus vos não roubará á minha ternura e reconhecimento.
—Se as orações d'um anjo, Rosa, podessem deter a morte, conheço que as tuas me preservariam d'ella. Mas, ai de mim, a morte da minha sempre lembrada Julia despedaçou-me o coração. Não estou eu só n'este mundo? Bertha não me abandonou logo que casou? Que faço então aqui n'este ermo, a que chamam mundo?
—Ah! senhora, esqueceis então a pobre Rosa, que vos estima e ama, e que vos é tão dedicada como se fôra vossa filha?
Estas palavras, pronunciadas com um accento de submissão, penetraram até o imo do coração da viscondessa: sensibilisaram-na tanto, que abrindo os braços recebeu n'elles Rosa banhada em lagrimas.
—Sou uma ingrata, Rosa, bem o reconheço,—disse a viscondessa cingindo Rosa ao coração. Recebo com indifferentismo os teus cuidados e carinhos, e a tua inexcedivel dedicação. Perdôa-me, minha filha, minha [278] querida filha. Conheceste Julia, e melhor que outra qualquer sabes quanto era merecedora da minha ternura e amisade, e quanto é digna de ser pranteada. Mas Julia, antes de morrer, deixou-te na minha companhia, para me servires de consolação e allivio na minha dôr. Abraça-me Rosa, minha filha querida.
Rosa, por unica resposta, abraçou com ternura a sua bemfeitora.
As lagrimas, que lhe cobriam as faces, diziam bem alto e eloquentemente, o que a commoção lhe embargava nos labios.
Ainda caminharam por mais algum tempo e chegaram ao cemiterio.
A viscondessa do Candal, como tributo á memoria de sua filha, mandára-lhe levantar um lindo e rico mausoléo de marmore branco, no qual ella tambem queria ser encerrada á sua morte. Em volta das grades viam-se alegretes em que haviam violetas, geranios e rosas amarellas, que Rosa cultivava e cuidava com muito esmero, como recordação das flôres com que enfeitára o cestinho, que fôra causa da intima união, que se estabelecera entre ella e D. Julia.
A viscondessa e sua filha adoptiva oraram por muito tempo sobre a campa d'aquella, que tanto tinham estremecido em vida, e que tanto choravam na morte.
Rosa, depois de ter examinado e regado todos os alegretes e pés de flôres, um por um, para que os insectos, ou a seccura os não estiolassem, dirigiu-se á viscondessa.
—Deixo-vos, senhora—lhe disse ella—por um instante. Vou rezar junto da campa de minha avó.
—Tambem quero acompanhar-te—replicou a viscondessa.
Não muito distante do mausoléo de D. Julia se elevava uma cruz simples. Era ahi que jazia, havia dous annos, a pobre cega. Terminára os seus dias socegadamente, [279] bemdizendo a ternura de sua neta, e a caridade affectuosa da sua bemfeitora.
Devido ainda ao zelo de Rosa a campa da pobre cega, adornada com diversas flôres, semelhava um jardimsinho.
Rosa ajoelhou-se, e depois de ter rezado com fervor e devoção por algum tempo, levantou-se, e dando o braço á viscondessa retiraram-se, fazendo ainda uma ultima visita ao tumulo de D. Julia.
Quando se recolheram, Rosa encontrou uma carta da sua antiga professora D. Maria d'Almeida, na qual lhe participava, que d'ahi por dous mezes se havia de proceder aos exames d'habilitação para os titulos de capacidade, por isso, se ainda estava decidida a propôr-se a exame, que enviasse os documentos necessarios ao commissario dos estudos.
Rosa apresentou esta carta á viscondessa.
—Sempre estás decidida a propôr-te a exame?—lhe disse ella.
—Sim, minha senhora. É o meu mais fervente e afanoso desejo. Quero, senhora, que a instrucção e saber, que vos devo, e a vossa querida e chorada filha, aproveite ás crianças, que a pobresa retem na ignorancia e na rudeza. Se eu poder ser util, ainda que seja a uma só d'entre ellas, como, senhora, me reputarei feliz e bem paga do meu trabalho!
—Tinha a esperança de te conservar sempre na minha companhia—-replicou a viscondessa.—Occuparias para sempre o lugar do anjo, que Deus me levou, da minha Julia. Não queres, Rosa, ser minha filha?
—Ah! senhora, quero sim, ser vossa filha; isso ainda vai além da minha ambição. Mas recordo-me que era uma pobre rustica, e que só aos vossos beneficios devo a minha instrucção, e a cultura da minha intelligencia. Quero, senhora, dar de barato, e ter a vangloria de dizer que os vossos cuidados não foram perdidos, [280] mas com isso não me devo tornar vaidosa, por que faltaria assim aos meus deveres. Serei sempre para vós uma filha adoptiva, carinhosa, humilde e terna, e que achareis sempre ao vosso lado, esforçando-se por pagar a sua divida de gratidão e reconhecimento: Recebendo e aceitando a vossa affeição e amisade, para mim preciosa e apreciavel, não me devo esquecer da classe onde nasci. O meu lugar é mais humilde; mas como elle parece bello e grandioso ao meu coração, quando me recordo do bem, que posso fazer a essas infelizes crianças, que vivem na bruteza, ensinando-lhe o que sei e que é obra vossa! Ha muito que concebi este meu projecto, e que o declarei a vossa filha: «Ás pobres rapariguinhas das aldéas—lhe disse eu—farei o mesmo que a snr.ª D. Julia me fez. Ensinar-lhes-hei a serem felizes com a sorte, que Deus lhes destinou n'este mundo; cultivarei o seu coração e o seu espirito, e por unica recompensa não quererei mais do que ouvil-as bem dizer os nomes da exc.ma viscondessa do Candal e de sua filha.»
—Rosa, minha querida Rosa—disse a viscondessa abraçando-a, e com os olhos rasos de lagrimas,—que Deus te pague a felicidade, e prazer, que me fazes nascer no coração com as tuas palavras.
Dous mezes depois, a nossa, hoje, D. Rosa de Jesus e Sousa comparecia perante o jury nomeado para proceder ao exame das concorrentes ao professorado. O titulo de capacidade, em grau superior, foi-lhe concedido por unanimidade e com distincção.
[281]Dous annos se passaram já, depois que foi conferido a D. Rosa de Jesus e Sousa o seu titulo de capacidade.
Estamos em fins d'Outubro, n'uma casa caiada de branco, que se encontra ao entrar na freguezia de S. Cosme, do lado de S. Pedro da Cova. Na frente ha um pateo largo e espaçoso. Sobre o muro pendem os ramos verdejantes de dous chorões. Nas trazeiras da casa ha um pequeno jardim, muito bem tratado, com as ruas areadas com saibro, e que termina por um caramanchãosinho, que, pelo bem cerrado que está, indica que no verão deve alli haver uma frescura agradavel, auxiliada pela corrente d'uma levada, que corre proximo. Na sala que fica ao nivel do jardim ouve-se um murmurio confuso. Entremos, para examinar a que elle é devido. [282] Que vemos? Grupos de lavradeirinhas, ao todo umas trinta, pouco mais ou menos, vestidas de branco, e tendo todas na mão um raminho de flôres do campo, com um laço de fita. Ao fundo da sala vê-se uma rica imagem de Nossa Senhora da Conceição, collocada sobre um altar, bem adornado com castiçaes de prata, velas de cera e jarras com flôres.
N'um dos lados da sala ha quatro cadeiras de braços; n'uma d'ellas está sentada a viscondessa do Candal, a quem D. Rosa, de pé, junto d'ella, está dizendo os nomes das suas discipulas.
A viscondessa passeia a vista por todas ellas, e conhece-se-lhe na expressão do rosto, que aquelle espectaculo a regosija e encanta.
O modo, porque todas dirigem as vistas para a porta e pelas janellas, indica que se espera alguem.
O abbade da freguezia e o administrador do concelho entram n'este momento pelo portão.
Um sorriso alegre se vê deslisar em todos os rostos. Eram as pessoas por quem se esperava.
A viscondessa e a sua pupilla vieram recebel-os á porta, e conduziram-nos ás cadeiras que lhe estavam destinadas.
As crianças tomaram os seus lugares, e restabelecido o silencio, o abbade da freguezia tomou a palavra, e fez o seguinte discurso:
«Sinto, minhas meninas, um prazer immenso por vos vêr aqui reunidas para a celebração do primeiro anniversario da installação d'esta escóla, devida á muita philantropia e caridade christã da exc.ma viscondessa do Candal, e á dedicação exemplar da vossa digna professora a snr.ª D. Rosa de Jesus e Sousa. Julgo desnecessario o rememorar-vos, que um tal sacrificio merece um eterno reconhecimento, por que entendo que entre vós, minhas filhas, não ha ingratas. Vós respeitaes e veneraes a exc.ma viscondessa, e amaes com um verdadeiro [283] amor a vossa professora, não é assim? É, assim o creio. Mas ha ainda uma pessoa, para quem deveis ter uma saudosa recordação, e que tambem deveis encommendar a Deus nas vossas orações. Prestai-me attenção, que vos vou dizer quem é essa pessoa, cuja recordação vos deve ser grata. Ha pouco mais ou menos doze annos, que uma pobre lavradeirinha ganhava a sua vida fazendo cestinhos de juncos, e ramos de flôres silvestres. Uma joven e nobre senhora, que reconheceu n'ella amabilidade, modestia e humildade, sympathisou com ella, e encarregou-se de a educar e instruir. Como a sua bemfeitora a achou sempre digna dos seus beneficios, encarregou-se tambem da sua posição futura. Essa joven senhora, de que vos fallo, é a exc.ma snr.ª D. Julia, filha da exc.ma viscondessa do Candal, e essa lavradeirinha, a quem ella dispensou os seus carinhos e a sua affeição, é a vossa douta professora. Ha já alguns annos, que a alma da exc.ma snr.ª D. Julia voou á presença do Deus eterno a receber o premio das suas virtudes e das boas obras, que praticára n'este mundo; uma das quaes ainda existe, que foi o deixar-vos a vossa professora e amiga.
«Mostrai-vos, meninas, sempre merecedoras dos beneficios, que vos fazem, porque isso é o unico desejo das vossas bemfeitoras e a unica recompensa, que recebem da sua dedicação, que estou muito convencido sempre fareis por merecer.
«Não quero, porém, retardar por mais tempo o momento de receberem o premio e galardão, que merecem pela sua applicação ao estudo e amor ao trabalho, áquellas que d'isso se tornaram dignas; e ás que d'esta vez não são galardoadas resta-lhes a esperança e o meio de, pela imitação das suas condiscipulas, se tornarem dignas de o merecerem para o anno futuro.
«Vamos por tanto proceder á distribuição dos premios.»
[284]Um sussurro d'alegria acolheu as ultimas palavras do digno sacerdote.
A conferencia dos premios foi esplendida.
Os premios consistiam em livros religiosos e d'instrucção, que tinham sido cuidadosamente escolhidos pela viscondessa, e sua filha adoptiva, todos ricamente encadernados. Era interessante e bello vêr a alegria, que se deslisava no rosto das que tinham sido contempladas na distribuição.
Terminada a conferencia dos premios teve lugar debaixo do caramanchão um bem servido lunch.
—Como é magnifico o espectaculo, que apresentam estas crianças, alegres e satisfeitas—disse a viscondessa—Recordar-me-hei sempre d'este dia, como o mais grato e feliz da minha vida. Tu, minha querida Rosa, attrahes as bençãos do céo sobre nós, e sobre a memoria da minha querida, e chorada Julia.
—Ah! senhora,—disse Rosa com os olhos rasos de lagrimas—que a vossa prophecia se realise, e a minha mais cara aspiração ficará satisfeita.
O desejo de Rosa realisou-se. A escóla está cada vez mais florescente, e a freguezia ufana-se pela possuir. Todos os moradores do lugar ainda hoje bemdizem os nomes da viscondessa do Candal, de sua filha e de D. Rosa, modêlo raro d'um coração verdadeiramente grato e reconhecido aos beneficios que recebera.
FIM.
End of the Project Gutenberg EBook of Annos de Prosa; A Gratido; O Arrependimento, by Camilo Castelo Branco *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ANNOS DE PROSA *** ***** This file should be named 26103-h.htm or 26103-h.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/6/1/0/26103/ Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. 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Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.