The Project Gutenberg EBook of O General Carlos Ribeiro, by Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: O General Carlos Ribeiro Recordações da Mocidade Author: Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco Release Date: June 19, 2008 [EBook #25846] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O GENERAL CARLOS RIBEIRO *** Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search)
O GENERAL
CARLOS RIBEIRO
(RECORDAÇÕES DA MOCIDADE)
POR
CAMILLO CASTELLO BRANCO
PORTO
LIVRARIA CIVILISAÇÃO
DE
EDUARDO DA COSTA
SANTOS—EDITOR
MDCCCLXXXIV
A propriedade da primeira edição d'este livro pertence, no imperio do Brasil, aos srs. Faro & Lino, proprietarios da Livraria Contemporanea, moradores na rua do Ouvidor n.º 74—Rio de Janeiro.
O GENERAL
CARLOS RIBEIRO
(RECORDAÇÕES DA MOCIDADE)
POR
CAMILLO CASTELLO BRANCO
PORTO
LIVRARIA CIVILISAÇÃO
DE
EDUARDO DA COSTA
SANTOS—EDITOR
MDCCCLXXXIV
[7]Meu querido Ricardo Guimarães.
Recebe a dedicatoria d'este folheto como um cartão de despedida. Vou-me embora.
Naturalmente, escreverás dez linhas sinceras da minha necrologia. Dize que fui teu amigo trinta e seis annos; e que, á medida que eu ia lendo as tuas prosas progressivas e remoçadas, nunca pude imaginar que tivesses envelhecido.
Folgo de te não vêr ha muito tempo. Imagino que te deixo rapaz engrinaldando os festoens das tuas primaveras de ha trinta e seis annos para os offereceres aos nossos 50:000 leitores—um rico auditorio! Continua tu a ministrar-lhes os teus cabazes de flores, visto que, por impedimentos especiaes de regimen e outros estorvos complicados de engrenagens financeiras, não podes deitar-lhes perolas.
Adeus, Ricardo. A Chimica subterranea espera a minha alma. Vou mineralisar-me. Levo apenas, como saudade, uma flecha de luz reflexa do nosso passado, que me não deixa ir contente ao meu destino de azote, amoniaco e outros gazes. [8]É a nostalgia dos teus e dos meus folhetins de 1854. A proscripta ignominia do carroção do Torto—aquelle toiro de Phalaris, puxado a vaccas—que então esbatemos para a treva medieval, em outro paiz dar-nos-ia a celebridade immorredoura de Guesto Ansur, o salvador authentico das cem donzellas lusitanas tributadas ás prezas obscenas do khalifa. Tambem nós, visconde, salvamos centenas de donzellas portuenses das orgias do execravel defuncto «Manoel José d'Oliveira»—aquelle Mauregato coiraçado, com espaduas alcatroadas, musculatura de um lenho rijo e inflexo como os braços da forca, e articulaçoens de cobre azinhavado, onde eram contundidas as carnes virginaes. Se não fomos nós, quem foi que remiu das contusões e d'aquelle fôro ignobil as meninas portuenses, actualmente allodiaes e intactas, salvo seja, nos seus quadris e nas suas espaduas? Pois tens acaso noticia de que o Oliveira Martins, no seu livro sociologico das «Raças humanas e civilização primitiva», nos encadeasse [9]nos elos do transformismo evolutivo do carroção em carro Ripert? Sabes que elle consagrasse um capitulo áquelle dolmen de castanho—a ara celta do sanguinario Irminsulf dos nossos ferocissimos avós? Nem uma palavra! «Isto faz vontade de morrer!» como disse Alexandre Herculano, muito menos offendido dos ingratos.
Emfim, Ricardo, esta carta, sobre ser uma confirmação, quasi posthuma, de fidelidade no affecto a um dos meus mais velhos amigos, deve ser-te não menos agradavel como exemplo consolador de que as vidas mortificadas tem uma compensação—é acabarem com um sorriso. N'este paiz, os bastardos da Fortuna prostituta, se fizeram exame de instrucção primaria, devem morrer com a serenidade de sabios. D'antes, havia a immortalidade da alma e as recompensas eternas como esteio a infelizes sub-lunares. Hoje em dia, aquelles dogmas, especie de caput mortuum, não amparam muita gente; mas ha coisa melhor: é a eschola primaria que levanta o discipulo [10]ao nivel da felicidade do professor a tres tostões por dia com dez mezes de atraso. Depois, morre-se de uma anazarca de philosophia com uma ligeira complicação de fome. Assim se explica o grande furor da instrucção nacional que tu, com uma seriedade estranha aos nossos habitos, inspeccionas observantissimamente.
Vai, fiscalisa, evangelisa. Dilata, quanto em ti couber, as celullas conscientes dos hemispherios cerebraes do Alemtejo e Algarve. Dá-lhes um elasterio grande, expansivo, na razão inversa das retracçoens da mucosa do estomago, á qual não chega a tua alçada tonica. Lembra eruditamente aos pedagogos que ninguem se exalça ás glorias do Thabor sem ser arrastado pela Rua da Amargura. Dize-lhes, afinal, que a posteridade, mediante as suas confrarias e os seus dobres a finados, lhes dará brindes de missas geraes em dia de Fieis Defunctos—muito distinctos dos defunctos infieis. E, pelo que me diz respeito, recommenda-me tambem aos suffragios [11]pios da Patria—esta querida mãe interessante, incapaz de tirar de difficuldades um filho vivo: mas, depois, tira-lhe a alma do purgatorio, sendo preciso.
T. C.—S. Miguel de Seide. 6 de dezembro de 1883.
C. Castello Branco.
[13]Gabriel de Mortillet, professor de Anthropologia, publicou, n'este corrente anno (1883), o seu livro Le préhistorique antiquité de l'homme. Em mais de uma pagina o sabio professor menciona respeitosamente Carlos Ribeiro, o geologo portuguez, que tão brilhantemente fez as honras da casa lusitana aos congressistas estrangeiros que estiveram aqui a discutir assumptos de anthropologia e archeologia prehistorica.
[14]O general Carlos Ribeiro falleceu em 13 de novembro de 1882. A satisfação de se vêr tão culminantemente inaltecido no livro europeu de Mortillet não a gosou; e pena foi, porque seria essa a mais idealmente querida das suas recompensas. Bem sabem que os premios, os galardões substanciaes que n'este reinosinho de 90 leguas, como lhe chamava Garrett, auferem os sabios do quilate de Carlos Ribeiro são por tal modo notorios e fallados que a gente, pelo commum, apenas tem noticia dos taes sabios quando lhes vê o retrato posthumo no Occidente.
Estes homens trabalham em segredo como os alchimistas. Na Academia Real das Sciencias conversa-se, uma vez por outra, a respeito d'elles, com uma grande admiração do tamanho dos bocejos. Para os socios velhos a anthropologia apenas tem a caracteristica academica de ser palavra grega, e como tal a reverenceiam; mas ha d'elles que professam, muito pela rama, o quantum satis d'umas [15]sciencias abstruzas que assentam os seus laboratorios para além das fronteiras da historia. É inexacto, porém, que o insigne academico discursasse monologos paleontologicos diante dos seus confrades pouco porosos e assás impermeaveis ás infiltrações da sciencia nova. Não. Elle tinha socios no martyrio—o Ferreira Lapa, o Thomaz de Carvalho, o Bocage, o Latino Coelho, o Corvo, o Aguiar, os quaes, se não encontraram, como Carlos Ribeiro, vestigios de um ser intelligente nas camadas terciarias, seriam muito capazes de o achar, se o procurassem, o Anthropopithecus.
Não se cuide que eu, com o selvagismo de um minhoto sem litteratura, pretendo molestar os hereditarios joanêtes da Academia. Nego. Os meus joanêtes de socio correspondente acham-se tambem compromettidos. Considero a Academia Real uma arca da sapiencia humanal, de reserva para a catastrophe de um diluvio de ignorancias [16]eminentes. Respeito-a como um banco das nossas riquezas espirituaes, banco sem transacções, com accionistas todos de prenda, dando-se ares de estar sempre em liquidação; mas não liquida. Se não vive muito ao sol ardente que refunde o velho mundo, tem a vitalidade sombria do obituario. Quando um socio vae continuar na vida eterna o somno das suas sessoens, os confrades vivos gemem-lhe o elogio funebre, uma Nenia em periodos redondos, ore rotundo, na prosa da fundação do estabelecimento; em seguida, recolhem-se a brunir velhos adjectivos e a escovar algumas metaphoras de fivellas e rabicho, para a necrologia de um futuro confrade morto. De resto, muito mais modestos que justos juizes dos seus productos, os academicos, quanto ao estipendio das suas lucubraçoens, são mais abstemios que os anachoretas da Thebaida, e fazem livros mais em conta do que Santo Antão e S. Pacomio faziam balaios. Elles desdenham briosamente [17]a cubiça gananciosa dos quarenta immortaes assalariados da Academia franceza; mas prelibam com delicias a justiça posthuma, o galardão do elogio funebre—esta rica moeda portugueza incorruptivel em que não entra a liga do oiro vil.
Tornando ao Anthropopithecus. Toda a gente sabe o que é, na Prehistorica, o Anthropopithecus; mas eu não me dispenso de fallar d'este sujeito que nos precedeu ha 240:000 annos, pouco mais ou menos. Supponho que não serei desagradavel ás Senhoras menos lidas em anthropologia, para as quaes os vocabulos pliocene e miocene, o mammifero primata, o prognatismo são as jaças do limpido diamante da sua erudição.
Mortillet, com bastante logica e com lucidissima observação mais convincente que a logica, affirma que o homem quartenario primitivo era algum tanto differente do homem actual. O craneo do nosso antepassado das cavernas differe consideravelmente do craneo [18]do leitor. O illustre professor de anthropologia é, portanto, obrigado a concluir que os animaes intelligentes que petiscavam lume e lascavam pedras na época terciaria não eram homens na accepção geologica e paleontologica da palavra; mas sim animaes de outro genero, precursores do homem, na escala dos seres. A este precursor, intermedio ao anthropoide conhecido e ao homem actual, chamou Mortillet um Anthropopithecus. Claro é que a especie humana conhece o avô, o anthropoide; mas não conhece o pai. Orfan e posthuma, a desgraçada!
Carlos Ribeiro havia descoberto nas margens do Tejo o silex lascado em terrenos terciarios e quartenarios, accusando um trabalho intencional e intelligente no animal precursor do homem. No Congresso Internacional de Bruxelles (1872), duvidaram, mórmente o douto Bourgeois, que nos exemplares expostos por Carlos Ribeiro houvesse trabalhos intencionaes que provassem a existencia [19]de um individuo capaz de petiscar lume e lascar pedras na época terciaria. A favor do sabio portuguez apenas se insurgiu a opinião auctorisada de mr. Franks.
Na exposição internacional de Paris (1878) o nosso geologo apresentou os exemplares, entre os quaes Mortillet apartou 22 com vestigios irrefutaveis de trabalho intelligente. Cartailhac abundou no parecer do seu collega e de outros especialistas.
Afinal, Carlos Ribeiro triumphou desassombradamente quando os congressistas na obra de Monte-Redondo, em Ota, confirmaram em novos exemplares a sua opinião refutada em Bruxelles. Desde então, nos annaes da anthropologia e prehistoria foi assignalada como irrefutavel a existencia do Anthropopithecus em Portugal. Era o terceiro. Bourgeois tinha explorado um em Thenay. Em honra do inventor, esse vestigio do animal intelligente anterior ao homem chamou-se Anthropopithecus Bourgeoisii. Mr. Rames [20]achára o segundo em Cantal, o qual foi chamado Anthropopithecus Ramesii. O de Portugal, descoberto por Carlos Ribeiro, recebeu o glorioso nome Anthropopithecus Ribeiroii.1
Uma observação caturra ao sabio Mortillet: Este genitivo alatinado e ligeiramente macarronico, Ribeiroii, parece pertencer tambem á época terciaria, á prehistorica da lingua de Plinio, o moço. Ribeiroii em genitivo indica o nominativo Ribeiroius. O extremado anthropologista devera ter escripto Anthropopithecus Riberii, ou, mais euphonico, Ribeirensis. Espero e ouso pedir aos futuros congressistas que adoptem esta errata, afim de que o nome glorioso do nosso concidadão não vá latinamente deturpado pelas edades fóra.
Posto isto, a leitora naturalmente deseja saber que figura tinha o Anthropopithecus. Os [21]sabios não satisfazem cabalmente a curiosidade de sua excellencia. Calculam apenas que elle era muito mais pequeno que o homem, attendendo á pequenez das pedras que lascava para seu uso; mas, a respeito do animal portuguez, a julgar pelo tamanho dos silex, presume-se que elle anatomicamente fosse mais encorpado que os outros. Isto é concludentissimo e consolativo, minhas senhoras. Mr. Abel Hovelacque, outro sabio, presume que aquelle nosso pai pequeno seria do tamanho dos actuaes macacos maiores.2 Na verdade, os srs. bispo de Coimbra, conselheiro Nazareth e varios tambores-mores accentuam e affirmam a procedencia d'aquelle patriarcha mais avantajado no tamanho.
Bastará de sciencia? Mas o que não posso, minha senhora, é esquival-a ao desaire de proceder de macaco. Não lhe assevero que seja de chimpanzé, de gorilha, de orango. [22]A minha esvelta leitora é o typo aperfeiçoado de todas estas familias. Segundo o genealogico Hoeckel, vossa excellencia promana de um pitheco, derivado de um lemur, producto de um kanguru. É a primeira vertebrada, e não direi primeira «mammifera» para evitar equivocos. Em todo caso, exquisita arvore de geração, na verdade; mas, se a minha delicadeza se dóe, sciencia obriga; porque, emfim, este folheto é uma obra de vulgarisação, à la portée des gens du monde. Pertendo ser mais util que agradavel ás senhoras modernamente orientadas, as quaes, entre os flagicios acusticos dos seus pianos e o moinho estupidamente burguez das suas maquinas de costura, abrem um parenthesis á discreta biologia.
E tenham muita fé, minhas senhoras; porque as sciencias de observação, diz Letourneau na Biologia mais avançada, exigem primeiramente de quem as quer cultivar um acto de fé. Acto de fé! Tambem a sciencia positiva reclama a sua virtude theologal. Pelos modos, [23]é precisa tanta fé para acreditar no Jehovah de Moisés e no Messias de S. João Evangelista, como no «Pantheismo» de Espinosa, na «Vontade» de Schopenhauer, e no «Inconsciente» de Von Hartmann. Por tanto, façam suas excellencias um acto de fé como biologas, e outro acto de caridade como catholicas, prestando-me a sua benevola attenção.
*
Carlos Ribeiro não andou toda a vida, como Boucher de Perthes, a esgaravatar nas camadas do globo a certidão de idade do homem. Tambem elle borboleteou á flôr da terra, com as azas polvilhadas dos matizes da alegria juvenil, os seus devaneios.
Entre os 15 e 16 annos, fingia eu que estudava chimica na Polytechnica do Porto. Carlos Ribeiro, n'aquelle anno, 1844, já tenente, com 30 annos de idade, completava [24]mathematicas com sinceridade e aproveitamento. Era de estatura mediana, refeito, de espaduas fortes, rosto redondo, purpurino, com um pequeno bigode cortado na commissura dos labios muito nacarinos. Grave nas fallas, muito delicado em conselhos e attençoens com os cabulas; e sympathisava com a minha modesta ignorancia que elle, confessando a actividade funccional do meu cerebro, ingenuamente attribuia a eu não possuir compendio de chimica,—uma coisa bastante necessaria a quem se matricula. Era o Lassaigne—parece-me ser este o nome do sabio naturalista, que alguns condiscipulos generosos me emprestavam á porta da Academia, quando se avistava o lente, um ex-frade, Santa Clara, contemporaneo de Orfila, Berzelius e Liebig. Por que mãos sagradas andava então a chimica portugueza!
Aproveito a occasião para agradecer aos que ainda vivem, se algum vive, a gentileza do seu emprestimo, para que eu, em honra [25]do frade, sahisse crystallinamente e triumphantemente do meu acto de chimica sem a macula de um R.
Já divulguei em um livro este caso á Europa culta.
*
Agora, vou contar outro caso mais trovadorêsco—um episodio da vida amorosa do defuncto anthropologista, o general Carlos Ribeiro.
Por aquelle tempo, uma senhora esmeradamente educada no gosto da época, e com uma grande distincção de formosura, abandonára em Lisboa o esposo, e refugiára-se no Porto com um seductor de condição baixa e bens de fortuna parallelos. Este casal anticanonico habitava uma casinhola barata na [26]rua da Sovella, paredes-meias do quarto escolastico de Carlos Ribeiro. O tenente, quando regressava da aula, via na janella de peitoril, uma vez por outra, a sua mysteriosa e lepida visinha encaral-o com uma fixidez perturbadora como um envoltorio de fluidos galvanicos.
Certa estanqueira estabelecida na loja da casa onde se aninharam aquelles amores clandestinos, informou-o da má vida intima dos adventicios. Havia desavenças todas as noites, gritaria, choradeira, e ás vezes repelloens reciprocos, a ponto d'ella cahir no sobrado. D'estas altercaçoens nocturnas, a informadora podéra liquidar que o homem se chamava Bramão, ella Gloria, e que tinha marido na capital. Entre os epithetos que elle lhe desfechava, o mais accentuado e repetido era bebeda, grandissima bebeda; e a estanqueira justificava a qualificação, contando que a menina Gloria, assim que o Bramão sahia, mandava ao armazem da Companhia [27]fronteiro duas garrafas vasias que se trocavam por garrafas lacradas de 800 reis.—Acho que se emborracham ambos de dois!—conjecturava a mulher dos tabacos, offerecendo a sua opinião indecisa ao reflexivo freguez dos cigarros.
Uma noite, foi tamanha a gritaria, que a patrulha bateu á porta da estanqueira perguntando que gritos eram aquelles no primeiro andar. A mulher, na sua impaciencia de estrenoitada, respondeu azedamente que era uma creatura com a sua pinga; que fossem os soldados á sua vida, porque não havia remedio a dar-lhe á carraspana senão cozel-a; e que cada qual em sua casa podia embebedar-se como quizesse e quando quizesse. Se percebiam? perguntava colerica. E a patrulha: que sim, que a cozesse ella e mais a visinha. E a estanqueira:—Malandros!
Eram então triviaes no Porto estas scenas do Baixo-Imperio, dialogadas entre o pequeno [28]commercio e os pretorianos municipaes—os janizaros do Costa Cabral. N'aquelle tempo, tudo que era tropa chamava-se pretorianos e janizaros—uns pobres diabos a 30 reis por dia e rancho de couve gallega com feijão fradinho. Depois é que expluiu o caceteiro, pago pelos edis, a 480 reis diarios, e mais, consoante a pressão exercida nos ossos parietaes do patulea.
O tenente estava á janella a escutar o alarido, sentia uma compaixão infinita por aquella formosa senhora; e scismava se a embriaguez seria refugio de grandes tribulaçoens n'aquella alma que se atirava a um charco de vinho para apagar a luz do intendimento e da memoria—perturbar a vida afflictiva da consciencia escorreita.
Na manhan seguinte a esta noite tempestuosa, Bramão sahiu e não voltou mais.
A estanqueira soube d'ahi a dias da criada de Gloria que a sua ama tinha vendido a unica pulseira, porque o pelintra do patrão [29]lhe não deixára vintém; e ajuntou que ella pouco mais tinha que vender, a não ser os vestidinhos, porque já tinha derretido as joias para sustentar o vicio do amante, que era jogador e perdia sempre.
A criada, aquecida pelo atríto das revelaçoens, confessou que sua ama tomava a piella todas as tardes, quando a não apanhava tambem todas as manhans, bemdito seja o Senhor! Que o patrão vinha de fóra levado de todos os diabos, e entrava ás testilhas com ella, palavra puxa palavra, e iam ás do cabo, pancada de criar bicho, e batiam de meias. A senhora, coitadinha, antes de se emborrachar, chorava lagrimas como punhos, a contar-lhe a sua vida. Que era filha de gente grande, e casára, contra vontade sua, com um almofariz da casa real. A estanqueira não comprehendia o casamento com o almofariz. Carlos Ribeiro emendou para almoxarife, explicando o officio com a sua costumada bondade illustradora.
[30]Como quer que fosse, a infeliz senhora embriagava-se depois que chorava lucidamente. Era isso mesmo o que o tenente havia conjecturado com a sua romantica intuição de 1844.
Da piedade não é trivial a passagem para o amor; mas, se á commoção do amor precede a do compadecimento, o caso de Carlos Ribeiro é vulgar. Escreveu o meu amigo a D. Gloria offerecendo-lhe os seus serviços desinteresseiros n'uma terra em que sua excellencia era hospeda, e não tinha talvez relaçoens. A visinha respondeu-lhe com uma caligraphia ingleza, e uma grammatica impenetravel á unha da critica mais meticulosa. Em meio da sua prosa florida, alinhava-se o alexandrino de Victor Hugo:
Oh! n'insultez jamais une femme qui tombe...
O mathematico ficou mais deslumbrado com a contextura da carta do que ficaria [31]trinta annos depois quando achou em Ota a garantia da sua immortalidade como homem de sciencia—o Anthropopithecus.
A correspondencia travou-se em phrases recheadas de versos de Hugo e Lamartine, até que o tenente entrou sósinho, sem os poetas auxiliares, e sómente com a sua prosa commovida, na alcova da visinha. Era uma alcova sem pretençoens bysantinas, nem cosmeticos caros; apenas algum Patchouli nacional, e agua de Colonia, em parodia, fabricada por um pseudo Farina, e muito almiscar, perfumaria dos gyneceus infestos á Moral, perdição dos caixeiros de risca ao meio, e grandes absorventes de licor de Rosa e de Van Switen. Era, em summa, a alcova atrapalhada de uma touriste que vai vagamundeando a sua vida escoteiramente, sem reparar se ha estofos, estatuetas, bronzes e Sevres e pavilhão de ondulaçoens setinosas, com lampejos [32]crús de metaes esmaltados, no leito das reles estalagens onde pernoita.
Elle sentiu na ante-camara o fartum acidulado da baga alcoolisada dos vinhos crassos da Companhia: era o perfume de uma adega do Roncão. Foi uma nuvem de máos presagios no azul da sua felicidade aquelle cheiro.
Entravam a dialogar na temperatura madrigalesca do ultimo romance de Arlincourt, quando ella mandou servir vinho do Porto de oito tostoens com pasteis de Santa Clara e queques da Palaia. O hospede sacrificou-se cortezmente a algumas libaçoens, pequenos goles intercalados de perguntas e respostas, deixando o calice opalino em meio. Ella, entretanto, n'uma exaltação theatral, defendia a these do adulterio, com reminiscencias peoradas da Lelia de George Sand; e, como inconsciamente, na abstracção enthusiasta dos largos gestos, ia engatando uns calices nos outros, em rapida viagem para a região do [33]Falstaff e da Maria Parda de Gil Vicente. Parecia mesmo uma actriz franceza des Variétés, com uma forte diáthese de bambochata, que viesse de cear no Café Tortoni com champagne frappé, na roda reinadia de Roger de Bauvoir e Roqueplan. Carlos, quando a viu em afinação mais que suspeita, sentiu borbulhar-lhe o pranto da ingenuidade; porque ella, carminada pela ebulição do sangue, esbandalhada, e escandecida pelo que havia sincero e logico na sua declamação, relampejava uns claroens electricos que pegariam fogo em carne menos combustivel que a do artilheiro; porém, a elle, faziam-no chorar as lagrimas entranhadas que os olhos téem pejo de mostrar, e, reprezadas na alma, chegam a cegal-a como um collyrio de acido sulphurico concentrado. Figura-se-me que estou a escrever isto em 1844! Que imagens! que botica!
E a dama, n'uma absorpção de visitada pelo ecce Deus, com o iris acceso e a pupilla retrahida pela atropina da Companhia, não [34]despegava do fio das ideias, torrencialmente. Tregeitos exquisitos e sacudidos da escóla melo-dramatica de Emile Doux. Fazia vibraçoens gloticas, cavas, gutturaes de quem recita threnos. Arredondava phrases repolhudas, pomposas, de dramalhão, respigadas nos Dous Renegados e no Captivo de Fez. Por baixo do vinho já estava o absintho do odio ao pai que a violentára a cazar-se; mas a losna não lhe calcinava os nervos sem a combustão inflammatoria dos extra-finos, muito sêccos, do Alto-Douro.
Acidulada sob a influencia das suas virginaes reminiscencias de menina e môça, etherisava-se. Ora, é regra corrente que o alcool, submettido aos acidos, transforma-se em ether. Insignes pharmaceuticos o asseveram. Todas as commoçoens internas são chimica. Isto, que d'antes se chamava alma, é uma retorta de cristal da Bohemia em uns sujeitos, e de barro de Estremoz em outros sujeitos. O grito das paixoens que desfibram [35]e matam é o estampido da retorta que rebenta. Agora, a differença: se a retorta é de crystal, os estilhaços, embora embaciados de lagrimas, tem ainda rutilaçoens que encantam a Arte. E, se a retorta é de barro, os cacos abeberados nas lagrimas repellem a vista porque parecem lôdo. Edgard Pöe, Alfred de Musset e Baudelaire, envenenados pelo alcool, são hostias immoladas a um meio social responsavel—são retortas de crystal feitas pedaços pela paixão. O Sena cospe ás margens, cada mez, dezenas de suicidas que apenas tem vinte e quatro horas de nojosa exposição na Morgue. São os cacos da retorta de barro dissolvidos em lama.
Quanto a Gloria, para ser uma consummada tragica na voz e no gesto, bastara-lhe uma regra que não se acha bastante inculcada nas prelecçoens do Conservatorio Real das Artes scenicas, isto é: carregar-lhe no copo.
[36]*
Ácerca d'este elixir vitalisador das citadas Artes scenicas—necessidade physiologica (o copo, intenda-se, e não as Artes) do sangue luzitano de origem celtibera—não sei quaes sejam as cogitaçoens actuaes do meu Luiz Augusto Palmeirim, egregio director do Conservatorio Real. Cumpre-lhe, todavia, estar precavido contra as anemias e opilaçoens (opilaçoens, no sentido casto de chloroses) d'aquelle aviario de roussinoes e outros passaros que regorgeiam em perpetuo abril, estofando os seus ninhos com o pollen das flores.—Pollen das flores, notem a figura que é rara n'estes tempos hostis á rhetorica. Ora pois. Que aquelle seminario das Artes scenicas borborinhe sonoroso de interjeiçoens tremicullosas como calefrios, arranques tragicos, morbidezas de bemóes e sustenidos; e que, [37]depois de um purgatorio de rabecas e pianos,—supplicio indispensavel—rutilem, ao diante, pelas trapeiras das aguas-furtadas do Bairro-alto as constellaçoens sidereas das Sarah, das Nilson, das Patti, dos Rubeinstein, n'este paiz de Manoel Mendes Enchundia, da Canna-verde, do Passarinho trigueiro e do Fado choradinho. Notem que o dr. Letourneau escreve que uma ponta de vinolencia é a poesia da digestão3; e tambem affirma que onde quer que se usa a bebedeira, existe uma litteratura bachante (pag. 45). A regra em Portugal falha praticamente. Temos a bebedeira sem a litteratura, talvez por falta de editores pouco serios.
*
D. Gloria, não obstante, seria ridicula hoje em dia que a sciencia glacial esfriou a admiração [38]pelas mulheres de talento menos methodico, desvairado por exorbitancias Vadias.
N'aquelle tempo as senhoras que recendiam essencias de macassar, e tinham sido iniciadas nas assembleias pelos parlapatoens da Restauração, eram assim. Reinavam os parvenus, uns devassos broncos, algum tanto desbastados pelo esmeril da emigração, ou sahidos das cadeias com uma grande fome de mundo, de diabo e de carne, os trez amigos figadaes do corpo, como explica methaphysicamente a Cartilha da doutrina para uso dos collegios de meninas. Elles tinham as fossas nazaes virgens do nitro das granadas do Porto; mas eram destemidos fundibularios de patacos regeitados á sege do sacrificado duque de Bragança que lhes dera patria sem os inconvenientes da forca, e dilacerára o coração nos sobresaltos das batalhas. Eram os bagageiros do espolio opimo com todos os caracteres ethnicos da siganagem portugueza. Compravam conventos com titulos [39]azues e rebatiam a 17 p. c. os arriscados e sacratissimos emprestimos aos Regeneradores de 20 e aos pallikares empennachados da Belfastada.
Os parvenus inculcavam como norma da perfeição feminil a Corinna de madama de Stäel, a mesma madama em pessoa a fazer aos psycologos philosophias, e coisas mais praticas a Benjamin Constant, como a Récamier ao velho lubrico que fazia, da sua parte, o Genio do Christianismo. Todas e todos muito devassos e eloquentes, boas e bons para começarem os seus romancinhos ao fogão e concluil-os nas alcôvas. Foi este o ideal da mulher que os emigrados trouxeram dos boulevards e dos hoteis garnis a 2 fr. e 50 cent., com uma de-mão do verniz de Mabille.
Lia-se então copiosamente a obra emocional de Paul de Kock; e os hierophantas do reino restaurado folheavam com mão diurna e nocturna a Republica de Platão, onde o grande legislador, em pleno luxo de policiamento [40]hellenico, preceituava que as mulheres passassem de mão em mão. (Livro V.) Esfervilhavam por isso as Xantipas com que os Socrates altruistas obsequiavam os Alcibiades, e floreciam as Marcias que os virtuosos maridos Catoens emprestavam aos Hortensios. Assim como nas lojas maçonicas muitos dos triumphadores de 34—um grupo sahido da barbaria da idade-media—se chamavam Catoens e Socrates, por igual theor, no sanctuario da familia, usavam os mesmos habitos greco-romanos. Foi por isso que, em 37, o apocalyptico autor da Voz do Propheta denominou Lisboa uma caverna de vicios e desenfreamentos.
Uma franceza, amante varia de varios francezes, mad. Pauline de Flaugergues, dava o tom em Lisboa, por esse tempo, em versos e frescor de cutis polvilhada de bysmutho. Rodeavam-na os areopagitas do plectro e da sintaxe, a mestrança da versejadura—Castilho, Garrett e os outros da constellação. [41]Esta bohemia trovista foi dada como typo de mulher emancipada pelo talento. Teve ovaçoens das lyras primaciaes. Damas da côrte, creadas em novenas e lausperennes, atiraram as camaldulas ás ortigas e pegaram de fazer muitos gallicismos grammaticaes e pessoaes. Viveu-se uma rasgada bacchanal á franceza, em que tomaram o seu quinhão pro rata as mulheres dos marquezes, as filhas dos algibebes e as esposas dos ex-almoxarifes. É como foi. A D. Gloria era um fructo bichoso, sorvado, de arvore que não sevou a raiz em terreno alheio mal adubado. Era cedo ainda. Ás portuguezas faltava-lhes o savoir-vivre, para se aguentarem corrompidas e elegantes. Jam novus rerum nascitur ordo. Isto hoje está melhor—está como deve ser. A mulher cae; mas sabe cahir n'este palco; e não podia ser assim ha quarenta annos. Go ahead!
[42]O certo é que aquella dama foi a primeira paixão de Carlos—a primeira que é tão forte e pouco menos tola que a setima e a vigesima nona.
*
Trez mezes volvidos, Ribeiro tinha perdido a alegria, o affecto ao trabalho, a convicção da sua immaculada probidade, e já luctava com as duras hostilidades da pobreza. Quanto a Gloria, cada dia mais formosa, mais fascinadora e mais crapulosa. Elle chegou a pedir-lhe em joelhos e de mãos erguidas que se abstivesse de beber tão destemperadamente; e ella, no lucido uso das suas faculdades dirigentes, respondeu que não podia,—que o embriagar-se era o seu suave e doce suicidio, porque queria morrer.
Carlos obtivera informações de Lisboa. O pai de Gloria ainda vivia. Era um bom [43]proprietario rural na comarca de Torres Vedras, tinha sido criado particular do snr. D. João VI, cazára com uma retreta da snr.ª D. Carlota Joaquina, e tinha o habito de Christo. O marido era mentecapto e velho. Perdera a rasão com a queda do snr. D. Miguel e do seu almoxarifado no Alfeite. Quanto a Bramão, um industrioso, vivia de apostas ao bilhar no Marrare das 7 portas e era casado com uma peccadora acirrante, uma trigueira de bigode que se desforrava usurariamente das perfidias do marido, sendo perfida para todos os amantes.
Meditava Carlos em commiserar o velho cavalleiro de Christo, na esperança de regenerar a dignidade de Gloria com a convivencia do pai venerando e das irmans honestas. O velho respondera a quem lhe pediu compaixão para a filha que a julgava morta, e morta devia estar para elle; mas que não a repulsaria do seu talher, porque a desgraçada [44]tinha a seu favor como desculpa o haver casado constrangida.
Quando o tenente, triste pela deixar e alegre por salval-a, lhe communicou a resposta do pai, ella improperou-lhe a covardia de a não desenganar, se estava farto de atural-a, e reprovou a missão caritativa de a reconciliar com a familia, não tendo procuração para isso. Depois, trocaram-se palavras desabridas.
*
No dia seguinte, D. Gloria deixou a casinha da rua da Sovella e foi para o Bom Jesus do Monte com um dos leões d'aquelle tempo em que a cidade da Virgem parecia ser da Venus Callipygia—uma leoneira da Hircania, onde as epidermes roliças das donzellas de Cedofeita e as ostras da Aguia d'Ouro eram o pastío nocturno d'aquelles [45]dragoens, producto da concubinagem do romantico burro de Buridan com a classica burra de Balaão. D'esta progenie, que herdára da mãe o dom da palavra, e do pai um amor menos indeciso ás duas maquias, evolucionou-se o crevé, o estoiradinho, um phenomeno embryologico, que encaracola bellezas na testa exigua de microcephalo, incalamistra o bigode, e tem do D. Juan de Maraña simplesmente a guitarra com que perverte familias espanholas vigiadas pela policia medica. De resto e au fond, os estoiradinhos são grupos de moleculas, agregaçoens granulosas, saturadas de marisco, de cerveja barata da Baviera e nicotina, justificando a formula excentrica e um tanto paradoxal de Bacon: o vacuo de mistura com o solido. Protegidos pela lei geral do atomismo, agitam-se no turbilhão universal da materia inconsciente: são «acasos da concorrencia vital», como diria Darwin; mas não confundir concorrencia com selecção natural; que a natureza é mais logica [46]e demorada nos seus transformismos. Pela rapidez com que do leão pujante de 1840 se engendrou o catita escrophuloso de 1880, é claro que a selecção foi artificial, estabalhoadamente, grande celeridade. A este respeito, os curiosos orientem-se em Topinard, L'Antropologie, passim. Cumpre notar que, no arranjo organico do estoiradinho, collaboram 65 elementos conhecidos, diz a Sciencia. 65! que prodigalidade! A não ser a Sciencia, quem diria que a Natureza para construir um cretino gastou quasi cinco duzias e meia de elementos—os mesmos que despendeu para fazer o mar, o espaço, o mundo sideral, os cyprestaes balsamicos do Libano e os fedores humanos da Baixa; o Caneiro de Alcantara onde os microbios fazem as suas regatas recreativamente, e o Amazonas, a banheira do sol, espraiando-se em escamas refulgentes; o Garrett que faiscava, como um cerebro de diamantes facetados, as Viagens na minha terra, e o cerebro [47]do outro Garrett que supurava, como um tumor apostemado, as Viagens a Leixões! Com as ultimas palavras da biologia é que a Sciencia regeita o dogma da alma, e nos convence de que o estoiradinho, pelo que respeita á porção cinzenta do cerebro, deixa de ser o rei da creação para retroceder, por atavismo e sem hyperbole, á familia dos vibrioens, um quasi infusorio, e pouco mais que proto-organismo, irresponsavel pelos seus flagrantes delictos de brutalidade.
Em obsequio a estes irresponsaveis é que o bispo sr. D. Antonio Ayres de Gouvêa tanto e valorosamente impugnou a pena de morte. Todavia, o seu victorioso repto á forca, mallogrado em Beccaria, em Lamartine e V. Hugo, seria socialmente mais completo, se s. ex.ª tambem conseguisse que, em vez do menu pouco peitoral da strychnina municipalense, se servissem côtelettes de veau sauté aux truffes aos magros cães vadios, inoffensivos na sua fome e na sua sêde. Struggle [48]for life. Sei essa trivialidade erudita; mas a lucta pela existencia não authorisa que os vereadores sejam carrascos dos cães, em quanto o equilibrio dos negocios publicos e o pagamento em dia dos 6 por cento das inscripções lhes permittir comerem o boi. Ora—digamol-o de passagem—o boi era um Deus entre os egypcios, o divino Apis, e entre nós é o manso e pingue holocausto de uma bestialidade carnivora; porque nós, os europeus, comemos os Deuses alheios em bifes, e os proprios em hostias. Sacrilega pouca-vergonha!
*
Voltando ao drama e ás palpitações do leitor por um pouco suspensas, a estanqueira contou depois que, emquanto o tenente estava na mathematica fazendo garatujas na lousa, um esbelto rapaz, todo de preto, com um cacetete, pantalonas á hussard, fazia tilintar [49]o tinido das suas esporas amarellas no pavimento de D. Gloria. Trabalhosa e fragil senhora!
*
Eu morava na rua Escura, no bairro mais pobre e lamacento do Porto, um bêcco fetido de coirama surrada, em uma esquina que olha para a viella dos Pellámes. Eramos dois os estudantes que occupavamos o terceiro andar com uma retorcida varanda de páo, esmadrigada, n'um escalabro de incendio, debruçada em ameaças sobre os transeuntes como a varanda de Damocles, muito mais perigosa que a lendaria espada, cujo gume deve estar muito rombo e puido da esgrima dos eruditos em Damocles. No primeiro andar morava a proprietaria, uma adéla que nos cosinhava certas iguarias dignas de ser expostas ao sêvo das aves de rapina no peitoril d'aquella varanda. Quanto a ratos, [50]era uma succursal de Montfaucon. O segundo andar tinha escriptos desde muito, e não havia homem desesperado, cançado da vida, que ousasse tentar o suicidio n'aquellas ruinas minacissimas. Quem procurava casa, olhava com terror, e seguia o seu caminho, como se ali morassem os leprosos de Xavier de Maistre.
Disse-me a patrôa, uma noite, alegremente, que tinha alugado o segundo andar por deseseis tostoens mensaes a uma creatura, que lhe parecia mulher de pouco mais ou menos; e acrescentou com uma sensata indulgencia: «Seja ella o diabo que for, o que eu quero é que me pague adiantado; senão, minha amiguinha, viella, viella!» e apontava para a rua com um gesto de braço e dedo perfurante como uma estocada.
Com effeito, a devoluta varanda do segundo andar, tão destroçada como a minha, aguardava uma Julieta adequada competentemente aos Romeus do terceiro.
[51]A inquilina entrou e pagou.
Quando eu recolhia da chimica e subia ao meu terceiro andar fazendo gemer os degráos, olhei curiosamente para a saleta do segundo, e conheci a Gloria da rua da Sovella. Estava muito acabada, olheiras fundas, os angulos faciaes descarnados, os beiços roixos, calcinados pela combustão dos licores. Na epiderme transparente já não lhe revia o rubor setineo do sangue colorante. Sobre as saliencias malares, manchas rubras que poderiam ser de vermelhão ordinario ou da febre ethica; os tegumentos pareciam emplastados por uma camada de velha cêra amarellada. As cordoveias do pescoço, muito esbagachado, com umas saliencias nodosas como cordão de S. Francisco.
Havia um anno que ella tinha deixado Carlos Ribeiro immerso em uma grande commiseração, disia elle; mas eu sabia que era maior a saudade que o dó.
[52]Procurei o meu amigo que havia concluido o curso e entrára na fileira. Estava fóra do Porto em serviço. Melhor foi assim, porque a noticia que eu lhe levava poderia magoal-o ou fazêl-o descer até ao vilipendio de a visitar.
Ao fim de quinze dias, disse-me a patroa que a Aurora—nome de guerra que se dera D. Gloria—uma noite por outra, recolhia comsigo um engajado. Fallava sempre com figuras decentinhas a minha patrôa. «Engajado» era decente. Diziam então as senhoras nos bailes da Assemblea: «Já estou engajada para a terceira polka».
Quanto á natureza dos engajados, disse-me que eram velhos. Conhecêra o Rapozeira, um d'oculos, que tinha loja de batinas e galoens para esquifes, na rua Chan: outro, era amanuense da camara do bispo—ambos muito borrachoens. E promettia pôl-a no olho da rua, se ella continuasse a fazer-lhe troça, por noite velha, em cima da cabeça, dansando o Sarambeque.
[53]O Sarambeque era da natureza bordelenga do Hulalá, um bailado dissoluto, priapêsco das Ilhas Hawai. Eu nunca pude ver a assemblea da visinha, nem o cavalheiro bestial ajoujado por tal dama ás suas soirées dansantes. Quem quer que fosse, dava, no repicado sapateio da sua furia endiabrada de selvagem de Ceylão, oscillaçoens de terramoto ao predio. Muitas vezes, reciei que, verbi gratia, desabada aquella casa filial das orgias de Sardanapalo, eu fosse o candido bode expiatorio sacrificado no entulho da derrocada ás iras dos deuses e da senhoria. Depois, noite alta, havia comedorias—um aziumado de azeite rancido e alhos, estrugidos emeticos, emanaçoens sulphydricas d'aquellas almas latrinarias. Lamento, já agora, não ter então colhido notas para hoje me inculcar um Petronio testemunhal e authentico d'essas ceias de Trimalcião com iscas de figado e o rascante de Cabeceiras de Basto.
[54]*
Um dia, de madrugada, acordou-me um grande berreiro nas escadas. O meu companheiro, o bom Machado de Carção, um medico que morreu ha muitos annos, foi examinar de perto a desordem, e contou-me que um velhote apopletico, com ares de jarrêta provinciano, estava gritando que Aurora lhe roubara vinte e cinco pintos da algibeira do collête, depois de o ter embebedado com genebra.
O roubado sahira em berros para a rua, e os calcêtas, que trabalhavam no lagêdo arrastando os grilhoens, assobiaram-no. Aurora dava gritos de innocente contra a calumnia, e a proprietaria intimava-lhe ordem de despejo immediato. D'ahi a pouco, a ladra era preza pelo cabo de policia, conduzida á regedoria e de lá para o Aljube.
[55]Fui para a chimica do eggresso e encontrei o tenente Ribeiro. Contei-lhe o caso que elle me ouviu com os olhos marejados. Depois, pediu-me que commettesse o delicto infando da vigesima quarta falta na aula, e o ajudasse a salvar, se possivel fosse, aquella enorme desgraçada, visto que elle não queria figurar pessoalmente. Mandou-me ao regedor; que soubesse onde estava o roubado, e lhe restituisse os 12$000 reis para elle não ser parte á preza. Que lhe referisse eu a sinistra vida de Gloria para que elle, compadecido, a não mandasse ao tribunal. E que, depois, fosse eu ao Aljube, e lhe dissesse que, se ella embarcasse no primeiro vapor para Lisboa a procurar o amparo de seu pai, havia quem lhe pagasse as despezas.
Fui ao Aljube ás 3 da tarde. Lá dentro era noite. Gloria estava innovelada a dormir sobre uma enxerga a um canto. Ella tinha sahido, quinze dias antes, de uma enfermaria do hospital de Santo Antonio, quando a [56]sua visinha, mais feliz, era levada, ainda morna, em uma padiola para o theatro anatomico. A devassidão emparceirada com a morte mandaram aquelle esqualido presente ao escalpello da sciencia. Ah! quantas curvas de musculatura roidas pelo hydrargiro eu retalhei para hoje poder, como testemunha de vista, jurar que o coração é um musculo ôco!
No soalho em que dormia Gloria, parecia que tinha choviscado lama. A enxerga era de uma preza, cujo cão de agua, gordo e muito sujo, dormia aconchegado dos quadris da outra. A dona do cão tinha uma cara cheia de enygmas, acidentada de periosteos cariados, exfoliados, com barbas. Seria uma riqueza craneologica para um Haeckel ou Topinard; mas para mim era simplesmente uma asneira paradoxal em anatomia comparada. Nunca me esqueceu. Lembro-me sempre da figura indelevel d'aquella mulher, quando nego a blasphema hypothese do Deus de [57]Moisés e do sr. padre Grainha, um Deus que fez á sua imagem e semelhança e—o que mais é—á sua custa, um typo humano com o perfil divino d'aquelle feitio. Contou-me que estava ali por ter dado uns tabefes n'uma regatona de castanhas cosidas que lhe deitava o raio do olho ao marido, o João do Corgo, um calceta que andava a cumprir sentença de toda a vida, innocente, por ter ajudado a matar um padre. Innocente! Como ella qualificava a iniquidade da justiça social com seu marido que matára em collaboração um levita! Queria talvez que o premiassem como quem mata um lobo.
Com referencia á sua companheira, tambem a julgava innocentissima. Contou-me que se enchera de aguardente até cahir; e logo á entrada protestára que se havia de enforcar nas grades. Acrescentou, n'uma irritação de quem tem soffrido injustiças exulcerantes, que a pobre da creatura não roubára nada; que todo o dinheiro que tinha [58]eram seis vintens em prata que comprára d'aguardente.
Entretanto, Gloria ressonava.
Era um bonito exemplar de um cancro roído pelos microbios de fóra, de parçaria com os microzimas de dentro—herança do Paraizo. Isso que ali tresandava era um dos abcessos estercoraes que genealogicamente nos vieram do ventre primordial de Eva, nossa matriarca. De lá nos deriva—divina Iniquidade!—esta syphilisação das almas, transmissivel e incuravel a despeito dos vários Robs depurantes, brevet d'invention, das pharmacias do Vaticano.
Em quanto ella dormia, fui a minha caza que pegava com o Aljube pelas trazeiras, e rebusquei no estafado colchão de Gloria os vinte e cinco pintos, visto que ella os não tinha em si. Lá estavam em uma bolsa de camurça. Fui com o dinheiro á regedoria, onde compuz o meu primeiro e inedito romance oral, nada auspicioso, contando á authoridade [59]inflexa que a preza estava innocente, porque o queixoso, antes de se embriagar, escondêra o dinheiro no colchão, e não sabia depois onde o mettêra. O meu romance foi pateado, pelo sorriso do regedor, como inverosimil—desastre que depois me tem succedido com outros muitos romances, inspirados por intuitos menos louvaveis e mais verosimeis. Eu quizera salvar Gloria da imputação de ladra. Em todo caso, o funccionario, lavrado um auto que assignei como apresentante do roubo, embolsou o velho devasso, um negociante de fructa da Penajoia, que me queria dar um pinto de alviçaras, o qual eu regeitei com um pudor anachronico, arcadiano.
Eu que descera das penedias transmontanas, perfumadas das essencias das matas altas, vestidas do roziclér das auroras, da purpura vespertina dos crepusculos, de moitas de rosmaninhos, e resvalára á sargêta da rua Escura, fui como um archaico Thesouro [60]de Meninos, cahido no enxurdeiro e focinhado por aquelle cerdo da Penajoia; ou, melhor comparado, era o nenuphar solitario, a impolluta nymphea do pantano portuguez de 1845.
Quando voltei ao Aljube estava ella muito atordoada, n'uma bestificação, a queixar-se de fome, porque não comia desde a vespera, e o alcool causticava-lhe as mucosas. Fui á estalagem da rua de S. Sebastião, ali ao pé, e mandei-lhe o jantar. Comeu pouco e não quiz vinho. Pediu genebra que lhe não dei. Ao anoitecer, chegou um quadrilheiro com a ordem da soltura. Acompanhei-a ao seu segundo andar. Ella olhava muito pasmada para o colchão que ainda tinha parte dos intestinos de retraço de palha moída por fora da abertura; mas não fez alguma reflexão em voz alta. Propuz-lhe a sahida para Lisboa no dia seguinte, com os meios que o meu amigo lhe liberalisava. Fallei-lhe no perdão do pai, na sua regeneração—fui tocante; e ella, com [61]uma indolencia idiota, e um escancarar de bocca:
—Tanto se me dá como se me deu.
A mulher que, um anno antes, citava Lamartine, Victor Hugo e Sand estava assim estylista: Tanto se me dá como se me deu!
*
Como aquella senhora se despenhou vertiginosamente até cahir no fôjo immundo de uma devassidão bestialmente suja é phenomeno que só espanta quem não sabe logica, nem conheceu um exemplo. E quem não conhece trez exemplos que o dispensem de encadear os elos da logica?
Eis-me na rhetorica!
Eu não ignoro que esta especie de autopse em cadaver estampilhado com a infamia que não discutem pessoas que se prezam, é um [62]archaismo, uma subjectividade obsoleta. A escola naturalista estabelece que a comprehensão publica está por tanta maneira salitrada d'estas podridoens que não carece da catechese psycologica para perceber o desabamento.
Pois se intendem como foi que aquelle corpo tábido de D. Gloria chegou assim no enxurro ao ergastulo das ladras, queiram desculpar esse pedaço de estylo quartenario, que ahi fica para admiração dos archeologos, como se fosse um craneo dos Paraderos da Patagonia.
Consintam, porém, que eu me imagine, em 1845, na rua Escura, a interrogar o segredo da miseria humana, Deus, o Motor Immovel, assim chamado por Aristoteles. Como cahiu na esterqueira do aljube das ladras aquella pasta de estrume, o farrapo roixo das escareas de uma ulcera cancerada que, uma só vez, Jesus, com os seus olhos abrasadores de fogo divino, poderá cauterisar no peito [63]da meretriz de Magdala? Para resgatar uma judia formosa e dissoluta das presas aveludadas da lascivia oriental, foi preciso um ente ultra-humano; e, para esse bom exito, fez-se mister que o Deus—mais conhecido entre as familias pelo Padre Eterno—baixasse da sua metaphysica immaterial ao anthropoide, encorporando-se n'um gentil nazareno; aliás, talvez não fizesse nada—palpita-me. Um Deus extreme, categoria ideal incomprehensivel, sem mescla de homem, com uma organisação desconhecida aos biologos, não vingaria, com todo o seu mise en scène de trovoens e relampagos, infiltrar contrição no peito d'aquella mundana, calafetado pelos beijos dos tetrarcas, dos pretores e dos opulentos chatins da Assyria. É bem notorio que os feios cornudos diabos do vicio, dispersos no ambiente, muito familiares com os costumes de planetas, cometas, meteoros, etc., e blasés em trovoadas, não largam as suas victimas, ainda que a faisca eléctrica de um [64]corisco lhes queime aquella parte do cavallo morto a que o anexim portuguez deita a cevada. O diabo tem a enorme força que Deus lhe deu sobre a nossa fragilidade. Nós somos a pluminha volatil da pomba redemoinhando vertiginosamente nas convulsoens de uma tromba terrestre. Fez-se, por tanto, mister a humanidade gentilissima de Jesus, adoravel na sua vida casta e na sua indulgente misericordia com as peccadoras, para reduzir aquella á honestidade. Elle tinha escripto com o dedo na poeira da praça a sentença absolutoria d'uma adultera. Alem d'isso, o valoroso galileu atagantara com umas disciplinas de esparto as costas da quasi sempre respeitavel classe commercial, que armara vitrines de modas e confecçoens no templo. Seria ali que provavelmente a espaventosa Magdalena, com grandes uzuras, e talvez a gis, ou á custa de meiguices fraudulentas, comprára as suas pompas—a escarlata persica dos seus mantos roçagantes, as meadas [65]de pérolas de que ennastrava as suas tranças loiras, e as essencias aromaticas com que ungira, a despeito de Judas, os pés do mavioso acariciador das creanças innocentes, e juiz compadecido das filhas de Jerusalem iscadas da corrupção romana.
Creio na conversão de Maria Magdalena; porém a de sancta Maria Egypsiaca e das trez sanctas Margaridas, uma de Cortona, outra do Fausto, e a terceira de appellido Gauthier, essas são fallacias de agiologos e dramaturgos.
*
A filha do Cavalleiro de Christo, esposa do ex-almoxarife, foi para Lisboa, decentemente trajada, em beliche de 1.ª classe. Carlos Ribeiro hypothecára talvez o seu soldo de seis mezes. Se me dessem a escolher, eu preferiria ter praticado este acto a ter feito a descoberta do Anthropopithecus Ribeiroii. [66]
*
Em 1845, ao deixar o Porto e a chimica para ir jurar bandeiras na bohemia de Coimbra, despedi-me de Carlos Ribeiro e nunca mais o vi. Trinta e sete annos de separação absoluta como exordio da eternidade!
Pois que as nossas pesquisas paleontologicas eram em mundos diversos, nunca mais nos encontramos. Olhavamos as cumiadas de montanhas em horisontes oppostos: elle—para o acume da Sciencia, a desvendar os segredos do genesis; eu—para a Arte, a subjectividade esteril. O archeologo, pelo pregão dos mestres europeus, assumiu a eminencia; depois, morreu; mas está na posse da immortalidade. Bem boa coisa. Em quanto eu, graças á magnanima concessão dos meus patricios lettrados, estive toda a vida, ao sopé [67] da montanha alcantilada, a descrever coisas feitas pessoas por essas terras quentes dos Brasis, onde ha fermentaçoens, e avatar e os transformismos darwinistas como em nenhuma outra fauna.
A este rude caboucar de um terço de seculo, devo eu—ó celestiaes bebedeiras de gloria!—a exultação atordoante de me ver, aqui ha dias, conceituado em certa gazeta da capital como romancista conhecido. Li-o em lettra redonda e resisti á apoplexia do jubilo. «Romancista» tout court era já uma apotheose hyperbolica; porém, de mais a mais «conhecido», isso transcende os extasis de uma idolatria catholica, que me colloca na jerarchia litterata de S. Cypriano, de Sancto Athanazio e d'outros Sanctos Padres romancistas mystagogos maiores da marca. Mas, visto que assim o querem, este culto pagão muito me penhora. Pois bem! Quando um plumitivo arrojado, sovando aos pés os conspiradores do silencio, trepa até não ser de [68]todo desconhecido no Chiado—5.ª essencia de Babylonia com perfumes de Marrocos—esse petulante genio não transporá as fronteiras da modestia, se almejar as doidas delicias de ouvir, um bello dia, nomear a sua pessoa conhecida no não menos conhecido Poço do Borratem.
Pois é verdade: eu, como novellista, descobri mais anthropoides do que elle como geologo. Mas faz pena que eu não procurasse ensejo de pedir aos setenta annos do general as recordaçoens do tenente.
Quanto a Gloria que, por uma inconsciente zombaria de si mesma, ao atufar-se na noite caliginosa da miseria e da infamia anonyma, se chamára Aurora, se isto fosse um romance, pode ser que eu, n'esta idade provecta, ainda tivesse explosoens de fantasia rara para fazêl-a morrer de alcoolismo, no catre do hospital, para onde a levaram esfragalhada, mordida pelos cães vadios, apupada pelos gaiatos, sovada pelos pontapés da guarda-municipal, [69]espumando gromos de sangue nos ultimos vómitos da aguardente.
Mas eu não sei como, nem quando ella morreu; nem sei se é viva e se está na quinta dos seus avoengos restaurando com capilés e agua de Lourdes o estomago e os erros da sua mocidade.
*
Este episodio da mocidade do douto general, se eu o contasse ha trinta annos, teria os recortes, os matizes e filigranas idealistas da poesia que ainda n'essa epoca de transição enfeitava as suas dissecçoens nauzeabundas das paixoens animaes. Todo analysta da vida e da morte vestia umas luvas brancas quando expunha sobre a sua banca de trabalho uma peça anatomica, um coração para descoser, e sahia com as luvas sem nodoa. Era isso um grande mal. O romantismo [70]poetico inflorava as putrefaçoens com côres e subtilezas taes de pétalas e aromas que, em vez da repulsão pelo podre, punha nas cabeças azoadas as vertigens dos abysmos. Essa perversa missão da Poesia soffreu o exterminio de todos os flagellos que estão ao alcance desinfectante e hygienico da Sciencia. Pouquissimos e esporadicos são já os poetas no termo genuino de «deturpadores da realidade». Os que ainda rimam deteriorando a verdade experimental com embustes methaphysicos são uns atavismos que fazem lembrar, na sociedade actual, as aberraçoens genesicas que remontam o homem á torpeza selvagem da Australia e á civilisação refinada da Roma de Juvenal, e da Grecia de Anacreonte. Essa chaga insanavel da besta humana esvurmará sempre a sua peçonha já em brochuras, já nas partes da policia por ultrages á veneranda Moral—uma velhinha tão trôpega que, assim que lhe embarram, cáe no asphalto, e entra a gritar pelo habil [71]Antunes e por outros habeis que não ganhariam a sua vida officialmente gloriosa, se a Moral fosse mais acatada e menos atacada. O leitor, se é uma especie de habil Antunes da vernaculidade, seja indulgente com este jogo de vocabulos que tambem é um ataque desmoralisado á lingua.
Quanto ao poeta scientifico, genial, racionalista, concluida que seja a sua obra de sapa e a ultima batalha dada aos deuses, esse tem de desapparecer como inutil, e ridiculo como um archaismo. Ainda hontem, na França, Eugène Véron, no seu livro de ESTHETICA, escreveu que tout le monde, sauf les idiots, est poète. A condicional sauf, poderia excluir muitos poetas nossos conhecidos; mas Véron inverteu paralogicamente a excepção em regra. Elle, se fosse um digno interprete da Sciencia implacavel, deveria ter escripto: Ninguem é poeta, excepto os idiotas.
FIM.
1 Bibliothéque des sciences contemporaines. Le préhistorique antiquité de l'homme, par Gabriel de Mortillet. Paris, 1883, pag. 105.
2 Obra citada, pag. 106.
3 La Sociologie, pag. 44. Paris, 1880.
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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email [email protected]. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at https://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director [email protected] Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. 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Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: https://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.