Project Gutenberg's A Senhora Viscondessa, by Sebastião de Magalhães Lima This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: A Senhora Viscondessa Author: Sebastião de Magalhães Lima Release Date: February 27, 2008 [EBook #24710] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A SENHORA VISCONDESSA *** Produced by Pedro Saborano[1]
A SENHORA VISCONDESSA
ROMANCE ORIGINAL
POR
S. DE MAGALHÃES LIMA
COIMBRA
Imprensa Commercial e Industrial
1875
A ti, que hoje és ideal, e que um dia serás mãe; a ti, que foste filha e que has de ser esposa; a ti, mulher, a ti,
Consagro este livro.
Magalhães Lima
Temos baile em casa da sr.a viscondessa de B***.
Á porta do palacete param trens sem conta. Descem os convivas, profusamente almiscarados.
No salão crusam-se os pares: elles, fragrantes, como uma rosa de Bengalla; ellas, voluptuosas e tépidas, como uma brisa do Oriente.
A sala é vasta, enorme, quadrangular. A cada canto uma mesa de marmore oleosa e de difficil lavôr. Do tecto dourado e semicircular pende um [8] lustre de sessenta lumes, adornado de flores artificiaes e de vidrilhos verdes. A mobilia, de um estofo azul e assetinado, rivalisa em symetria com os mais encantados jardins de Granada.
As janellas abertas atraiçoam os segredos dos namorados. Como relampagos, reflectem-se na praça as vertigens da walsa.
Por sobre a sombra do arvoredo ondeia a luz phantasticamente. A cada um d'estes banhos despertam as aves nos seus ninhos. E a lua, a doce companheira da tristeza, vae illuminando o espaço, o mar e as solidões.
As flores derramam uns aromas acres e inebriantes. N'um esplendido vaso de porcellana de Sévres, abre uma mimosa camelia as suas longas e avelludadas petalas.
Umas plantas exoticas, orientaes, adornam o espaço ladrilhado das janellas de sacada.
Entra a viscondessa na sala. Os grupos cessam de falar. Em redor d'ella tudo se apinha, tudo se confunde, tudo se baralha.
[9]A valsa recomeça. Nos espelhos de crystal reflectem-se as estranhas imagens, que, n'esta noite, povoam o salão. Sobre as piscinas de marmore debruçam-se as avesinhas artificiaes--pobres avesinhas implumes feitas de pedra e de calcareo.
Estremecem docemente os cortinados da janella. Os peitos arfam de cançados; e na parede o papel, como que exhala uns mysteriosos e prolongados calores.
--Quer v. ex.a conceder-me esta valsa?--diz um cavalheiro, offerecendo o braço a uma gentil dama de vinte annos.
E entrou no turbilhão.
--Mas perdão, senhora viscondessa... bem vê que na minha posição...
--Acompanhe-me, Alfredo.
E os dois seguiram para uma saleta proxima, situada á direita do salão.
Os creados serviram o chá. Na varanda fumavam e conversavam os cavalheiros. Algumas senhoras [10] refaziam a sua toilette, em parte desfeita pelos ardores da dança.
--E acredita a senhora viscondessa, que eu realmente lhe podesse ser affeiçoado nas condições em que me acho?
--E por que não, Alfredo, se eu o amo loucamente.
Um leve ruido interrompeu o dialogo.
A saleta era assaz confortavel. Uns moveis escuros a guarneciam tristemente. Ao longo da parede destacavam uns quadros sombrios, meigos, phantasticos. Em cima do fogão agitava-se o pendulo do relogio, como se effectivamente nos quizesse recordar uma pulsação dolorosa.
A viscondessa, airosamente sentada n'um fofo sophá, volvia os olhos nervosos na direcção da porta do baile.
--Ninguem nos ouvirá--exclamava ella de si para si.
E continuou a fallar para Alfredo, que, a longos [11] passos, percorria a sala de um a outro extremo.
Entretanto a orchestra convidava a uma quadrilha.
Um elegante moço entrou na saleta.
--Venho lembrar a v. ex.a, minha senhora, que esta quadrilha me pertence.
A viscondessa acompanhou-o.
Alfredo só, roia um charuto furiosamente, quando novo ruido o despertou.
Defronte d'elle, e ameaçando-o com um punhal, estava um rapaz, cheio de febre, de odio e de vingança.
--Ouvi tudo--exclamou o intruso. Ou tu me promettes nunca amar a viscondessa, ou eu te assassino aqui, como um miseravel que és.
--Nunca!...--vociferou Alfredo, arrancando-lhe o punhal da mão. Primeiro cahirás tu, desgraçado. Já, já fora d'esta casa.......................
Este incidente, como é natural, perturbou a [12] quadrilha, que então se dançava. Acorreram todos. Os dois contendores haviam desapparecido da saleta.
O baile continuou. [13]
É uma mulher da moda--chlorotica, anemica, febril.
Olhar vivo, e transparente, como um chrystal. Na sua doce pallidez o que quer que seja das visões de Schiller. No andar, porte altivo, donairoso, esbelto. As longas insomnias, apaixonadas, tornaram-n'a triste e contemplativa, como uma virgem de Murillo.
É viscondessa; faz muitas esmolas e possue trens faustuosos. [14]
Acabam de soar duas horas nos relogios da cidade. Um calor intenso abrasa as calçadas. Corria o mez de Maio de 1859. No Largo de Camões, o sol, batendo de chapa, sobre um telhado visinho, reflectira-se estranhamente nos aposentos da viscondessa.
No corredor presentira-se o ranger de um leito. O cortinado de cambraia foi delicadamente afastado por uma mão de marfim, pequena e esculptural.
--Virginia, Virginia--gritou uma voz sonora, de timbre metalico e adocicado.
A porta do quarto, abrindo-se, deixou entre vêr o rosto de uma formosa creança, loura como um cherubim e tentadora como Eva.
--V. ex.a chamou, minha senhora?
--Sim, chamei.--Traze-me o meu roupão branco e vem ajudar-me a vestir.
E a viscondessa, bocejando infantilmente tornou a cahir no travesseiro, doida de somno e ébria de amor.
Adormeceu de novo. [15]
Uma hora volvida veio Virginia encontral-a sentada n'uma poltrona, defronte do espelho.
Fingia que lia. Do regaço pendia-lhe um romance francez. Com a mão direita desviava as tranças fartas, que, por vezes caprichavam em cahir-lhe sobre o peito. O braço esquerdo, abraçando o espaldar da cadeira, servia-lhe de encosto.
De subito ergueu-se como uma estatua. Procurou um pente e largou-o com desfastio. Olhou para o relogio, tocou a campainha, e tornou a sentar-se.
--Estou aqui, minha senhora. Deseja alguma cousa?
--Ah! Estavas aqui. Ora vejam que cabeça a minha que nem sequer havia dado por tal.--Manda-me arranjar o almoço, anda.
--Por mais que me digam a senhora não anda bôa--murmurava a ladina da creada, correndo espevitadamente.
A viscondessa, sempre inquieta, ergueu-se novamente. Percorreu o corredor e entrou na sala [16] de jantar. Dirigiu se a um periquito, que ali tinha, tirou-o da gaiola e começou de afagal-o meigamente.
--Coitadinho do meu bijou--exclamava ella com doçura.
Foi-se depois ao canario, trouxe-o para a mesa, e destribuindo com elle a comida, que mal provava, introduziu-o no seio.
Um cão pequeno, felpudo, ensaboado e luzente, como verniz, fazia pendant com os dois personagens, acima descriptos. Joli lhe chamava a viscondessa. Nunca sahia da sala de jantar. Era o seu theatro d'elle. Ali aprendêra a ser guloso e concupiscente. Quando a senhora chegava, elle, de um pulo, saltando lhe ao regaço, para logo principiava de lamber-lhe as faces e os cabellos. A dona da casa aceitára, sem repugnancia, este tributo quotidiano.
Alêm do cão havia um gato maltez, elastico, como uma serpente e indolente como um chin.
Entre o cão e o gato existia uma mediadora: [17] era a viscondessa. Por fim os dois rivaes fizeram tréguas. Chegaram até a comer no mesmo prato, brincando como dois amigos.
Nos seus dias de melancholia, a viscondessa, orphã de pae e mãe, sem parentes, só no mundo e senhora de ricos haveres, reunindo em redor de si tão variada e interessante familia, sentia-se mais feliz, e porventura mais esquecida do que nunca.
O gato aquecia, o cão lambia, e as aves entretinham, cantando.
Emfim bateram quatro horas. A Viscondessa bocejou mais uma vez.
--Se elle, ao menos, me amasse...--dizia ella, erguendo-se.
E, continuando pelo corredor, entrou no boudoir, onde a esperava a cabelleireira.
Vestiu um chambrão de cachemira azul; e, sentando-se na cadeira que lhe offereceram divagou, ao acaso, durante uma hora.
Quando acordou estava realmente encantadora. [18]
O cabello, frisado a capricho, imprimia-lhe um aspecto senhoril e grave. O rosto desanuviara-se-lhe. Foi ao espelho, e, como flôr que ao sol desabrocha, sorriu-se maliciosamente.
--Achas-me bonita, assim?--perguntou ella a Virginia.
--Deslumbrante--minha rica senhora.
E a viscondessa, toda vaidade e tentação, foi-se até á cosinha, pretextando umas ordens para o jantar.
Voltou depois ao quarto. A um ligeiro impulso cahira-lhe o roupão. Sorrindo-se, envergou umas saias pesadas e cheias de gomma. Remirou-se novamente ao espelho. Com um pincel, mergulhado em carmim, deu côr ao rosto, naturalmente desmaiado. Apertado o espartilho e collocada a tournure enfiou um rico vestido de setim. Chamou Virginia e pediu alfinetes. Pregou o vestido, pregou o cabello, pregou as saias, pregou-se a si e sahiu do boudoir. [19]
--Ora esta! e não me ia agora esquecendo o crême imperatrice--monologava ella, voltando á saleta.
Defronte do espelho, recuando dois passos e fazendo tregeitos para um o outro lado, empoeirou-se gravemente.
Extrahiu do gavetão um lenço de cambraia; destapou um vidrito de jockey-club, perfumou-se e entrou na sala do baile.
O piano estava aberto. A viscondessa sentou-se. Dedilhou, ao acaso, uma escala e aborreceu-se.
Olhou para um espelho, mudou um dos ganchos do cabello e abriu a janella.
Uma brisa tépida soprava apenas. O sol ia declinando no horisonte. Nas ruas mexiam-se as multidões apressadamente. Alguns cavalheiros de chapéu na mão limpavam o suor da testa. As damas, mesmo á janella, agitavam os leques phreneticamente. Os freguezes entravam nos botequins, e pediam sorvetes. [20]
Estava proxima a hora do passeio, a hora de luar, a hora de amor.
Seriam oito horas, quando a viscondessa cerrou a janella. Chegára-lhe finalmente a vontade de jantar.
Caminhou lentamente, deixando após de si um rumor surdo, e mui semelhante ao remexer de folhas, agitadas pelo vento.
Insaciavel, hysterica, nervosa, sentou-se á mesa pela segunda vez n'aquelle dia. Provou de tudo sem comer de nada. Bebeu um gólo de malvasia e fez-lhe uma careta insupportavel. Limpou os labios de coral e mandou arranjar o trem.
Prompta a carruagem e calçadas as luvas dirigiu-se para o theatro de D. Maria.
Representava-se a Vida de um rapaz pobre n'essa noite. A Viscondessa admiravel de bellesa e encanto, provocava de continuo os binoculos das plateias.
No fim do 3.o acto a porta da frisa abriu-se. [21] Era Alfredo que entrava. A Viscondessa sorriu-se.
--Sabe, Alfredo, que o esperei hoje todo o dia?
--E não o ter eu adivinhado, senhora viscondessa?
--Se imaginasse o aborrecimento em que vivo decerto não seria tão cruel para commigo.
--Mas, minha senhora, a minha posição... emfim... eu não sei...V. ex.a...
E a orchestra, tocando uma symphonia, deu o signal de despedida.
--Alfredo, enleiado e timido, sahiu da frisa. A Viscondessa cumprimentou-o, e, como sempre sorriu-se tristemente. O espectaculo continuou.
Á sahida do theatro, quando a Viscondessa, acompanhada por um creado, punha o pé direito no estribo da carruagem um desconhecido, abeirando-se d'ella entregára-lhe um pequeno bilhete, ligeiramente perfumado.
Os cavallos partiram a galope. Apenas chegada [22] a casa, a senhora, toda receio e anciedade, abriu o bilhete.
Desengano, desengano cruel! Não era de Alfredo a letra...
Mas de quem poderia ser? A quem attribuir aquellas palavras ardentes?
«Amo-te--escrevêra o anonymo.--Doidamente te amo. Tu decidirás da minha sorte. Sou pobre, sou operario. Embora! Hei de conquistar-te ainda mesmo atravez do sangue do meu rival.
--Sempre é muito atrevido!...--exclamava a viscondessa, despindo-se já.
Acendeu depois um charuto, um excellente charuto havano.
A pouco e pouco foram-se-lhe os olhos estreitando. Para um lado pendeu a cabeça abrasada, e para outro o braço, cuja mão deixava cahir o charuto, quasi apagado.
Languida, abatida, sensual a senhora adormeceu finalmente. [23]
Virginia chegára pé ante pé e retirára a luz. O palacete, envolto em trévas, acompanhára o somno da sua rainha.
E assim se passava a vida da Viscondessa.
[24]
[25]
Alfredo da Silveira nascêra embalado pelos sorrisos da fortuna.
Teve uma casa que vendeu. E que bonita casa! Situada na orla da praia extendia-se deante d'ella o oceano como um vasto lençol, cujas dobras phantasticas se encolhiam e desencolhiam, consoante as horas e as marés.
N'essa casa viu a luz Alfredo. Ahi, envolto com o maternal carinho, aprendera elle a entoar as primeiras trovas da infancia; ahi tambem suspiroso, [26] como um lago, e candido, como o céu, aprendêra a ser um filho honrado e um cidadão benemerito.
Mas a infancia, esvaecida n'uma manhã de rosas, deixára após de si o lucto de um coração e a orphandade de uma familia.
A solitaria vivenda, circundada de festões e madre-silvas, sentira-se isolada e triste. Na viração da tarde já as flores silvestres não derramavam, como outr'ora, uns aromas tão vivos e tão profundamente salutares e amenos.
Ausentara-se dali a mulher angelica, boa, virtuosa, cujo espirito, evolado nas azas da saudade, fôra perante Deus rogar pela felicidade de seu unico filho.
E Alfredo chorou e chorou deveras...
Estava, porêm, na primavera da vida. Auspiciado pelas brisas da mocidade demandou a capital, cujo ruido o captava em extremo.
Dirigiu-se para Lisbôa e ahi fixou residencia.
Para qualquer que o visse seria o seu rosto [27] gentil e levemente effeminado o mais seguro passa-porte de uma fina e aprimorada educação.
Usava de ordinario fato preto a que dava realçe uma esplendida camelia, artisticamente collocada na boutonniére.
Elegiaco por condição nada havia que o satisfizesse. Um vacúo immenso lhe torturava a existencia. Filho do tédio e vivendo para o tédio o seu espirito, agrilhoado por uma nostalgia sem limites, experimentava de continúo um mal-estar insupportavel, atroz, corrosivo, e porventura uma doença impossivel de definir-se.
A sua compleição delicada, e consumida pelos vinhos, agitava-se alternadamente entre dois mundos infinitos e contradictorios. Amava e não amava, queria e não queria, pensava e não pensava.
Alto, magro, nervoso tudo o impressionava com uma fatalidade irresistivel. O mundo era-lhe um phantasma sombrio, chimerico, cuja sombra elle amaldiaçoava, a todas as horas, no café, na rua, no bordel, na sociedade emfim. [28]
Mulheres havia que sonhavam com o seu bigode louro, a sua cabelleira phantastica, e os seus sorrisos provocadores, ingenuos e ligeiramente ironicos.
Elle, porêm, detestava as mulheres em espirito, aproveitando-lhes o corpo e a carne, como um mero passa-tempo social.
Só uma vez amou, e, como Christo, doidamente, loucamente, profundamente.
Então foi ditoso muito ditoso.
A felicidade mirara-se n'elle, como uma donzella no seu espelho. Não lhe faltaram nem as crenças do berço nem as extravagancias da juventude. Tudo lhe sorrira, desde o leito que primeiro o amamentou até ao vinho, ao terrivel vinho que ultimamente o prostituiu.
Fôra ditoso...
Viajando viu muita coisa!
Viu mulheres novas que se abandonavam aos velhos; creanças loucas que se entregavam ás orgias, cuspindo na face das mães; politicos mercenarios, [29] que, á maneira das mulheres de Babylonia, alugavam ao primeiro, que na estrada passava, a honra e a consciencia; exploradores sem conta, eternas Shylocks da publica miseria; paes que despresavam os filhos, irmãos que matavam os irmãos, mães que vendiam as filhas.
Viu muita coisa...
Passeando, admirou muito!
No Oriente encontrou mulheres formosas, pallidas, sansuaes. Depois passou á Grecia, a sábia, a divina mãe, onde Corina mais tarde teve o seu berço de flores. E ainda percorreu Roma, aquella Roma dos Cesares e da rocha tarpeia e Verona a patria de Julietta, e a Escocia o theatro de Macbeth.
Admirou muito...
Bebeu sempre!
Provou o incomparavel tokai, esplendido falerno dos tempos modernos, encheu-se de absyntho e saboreou o alcool com delicia.
Bebeu sempre... [30]
Fumou com ardôr!
O chibuca, o opio, o havano tudo lhe embriagou os sentidos, fazendo d'elle uma alma pagã e um corpo lascivo, môrno, cheio de tédio e de languidez.
Fumou com ardor...
Amou delirantemente!
Lembro-me tão bem...
A onda brincava travêssa sobre a praia longinqua. Uma brisa tépida, apenas, semelhando um leque de plumas, agitava docemente as vagas do Oceano. Como o arfar de uma mulher aos vinte annos, assim a natureza suspirava languida, nervosa, etherea.
E ao longe, atravez das brumas phantasticas, scintillaram seus vestidos brancos, suas faces pallidas e seu olhar azul.
Sorrira-lhe pela primeira vez o ideal no horisonte da vida.
Aproveitou a serenidade do crepusculo para lhe fallar. Disse-lhe o que sentia. A creança encarou-o [31] duas, tres, quatro, cinco vezes, sorrindo-se amavelmente.
Volvidos dias tornou-se a encontrar com ella n'um immenso, escuro pinhal. Ali confidenciaram largamente. Juraram amar-se.
E elle na sua louca estulta ingenuidade ousou acredital-a.
Desgraçado do moço, que tinha um coração, impossivel de esmagar.
Quando, passados annos, lhe disseram que ella se havia tornado uma grande mulher do mundo, a eterna bas-bleu dos salões, sentiu-se inanimado quasi, imbelle, exangue.
Tentou afastar de si o gélido phantasma que o perseguia sem cessar, e que mesmo em vida lhe seria triste mortalha. Em cata d'ella correu, voou. Precipitou-se, finalmente n'um theatro, onde, pela quarta vez, a contemplou mais scintillante que uma esmeralda e mais loura ainda que um archanjo.
Á sahida do espectaculo experimentou um estranho choque no seu hombro direito. Olhou e [32] viu-a a ella que lhe acenava com uma das mãos. Aproximou-se então. No lagedo da sala existia um pequeno bilhete que elle apanhou cuidadosamente.
«Espero-o amanhã, á uma hora da tarde»--escrevêra ella a lapis.
E, cheio de anciedade, tambem elle esperou pela aprazada hora.
Ao penetrar no seu quarto, d'ella, tremeu involuntariamente. Um singular ruido lhe captou os sentidos. Emilia jogava, e, na febre do jogo, ria descompostamente.
Sentou-se ao lado de um desconhecido.
Terminado o jogo seguira-se o Cognac.
Beberam todos.
Emilia levantou-se depois, e cerrou hermeticamente todas as janellas do quarto. Derramaram-se perfumes em larga escala. No centro foi collocado um braseiro.
D'entro em duas horas estavam todos adormecidos. Só Alfredo, sentindo-se abafado, morto, enraivecido e não podendo conter mais a asphyxia [33] que lentamente o devorava, começou de gritar terrivelmente, terminando por desfechar dois tiros de revolver na direcção da porta de entrada.
Acorreu muita gente. A porta foi arrombada.
Entraram todos.
O feio silencio do tumulo envolvia a casa d'aquella mulher. Para um lado seis cadaveres de homens com os olhos arregalados, a bocca semi-aberta e o corpo ensanguentado; para outro lado uma mulher com os vestidos rotos, o cabello arrancado e as faces horrivelmente maceradas.
«Emilia, Emilia...--exclamava elle repetidas vezes.
E só os echos repeliam:
«Emilia, Emilia...[1]
Desde então para cá Alfredo, endurecido no cynismo e na indifferença, tem arrastado uma vida monotona, semsabor, aborrecida.
[34]Levanta-se ordinariamente á uma hora da tarde doente, triste, sonhando uns males terriveis, imaginarios.
Não almoça nunca. O appetite fugiu-lhe com as extravagancias do estomago. Nem mesmo tem já paladar.
Percorre as ruas authomaticamente olhando as vitrines das lojas, a cujas esquinas estaciona.
Frequenta os bailes, mais por uma necessidade de espirito do que por um enthusiasmo juvenil.
Como Falstaff ceia muito: espantosamente, loucamente. Pela madrugada recolhe-se a um quarto solitario, que alugou e onde vive só, sem creado nem creada.
Lê e escreve no restaurante, sua habitual residencia.
Na noite em que o encontrámos no salão da viscondessa, recolhia-se elle a casa mais melancholico do que o costume.
--Mas quem será o maldito rival?--monologava [35] elle de si para comsigo. Acham pouco ainda? pois bem. Tambem tu cahirás, minha querida viscondessa. Tentou-te o demonio estupido: serás uma das suas victimas.
E entrou no café.
[1] Este facto que para muitos passará por inverosimil, deu-se, todavia, proximo de Lisbôa, em 1854.
O amor é o laço que une duas almas.
Quando as tempestades rugem, e os ventos bramem, e os mares se encapellam, a mãe, candido alento, apertando o filho contra o peito, diz amor; e o amor que é medo, afujenta o medo, e o amor, que é aprehensão, combate a aprehensão, e o amor, que é timidez, destróe a timidez.
Felizes, mil vezes, aquelles, que sabem amar e que tambem são amados!
A vida, sombria em si desabrocha por um [38] beijo de mãe; e n'esse beijo, sêllo de Deus sobre a terra, que immensa effusão de affectos e que nobilissimo trasbordar de enthusiasmo.
Ó minha mãe, ó meu abrigo, tu, com o teu coração, foste o anjo providencial, que em mim encarnaste o sentimento do bem.
No esplendido poema da creação, em que tomam parte as aves com os seus cantos maviosos e os homens com o seu trabalho, quasi se poderia dizer que um suave perfume, ethereo e subtil, põe a terra em communicação com o céu.
Perguntae ao rio, porque geme, e ao oceano, porque brame, e ás arvores, porque crescem, e á terra, porque produz, e á nuvem, porque corre, e á flor, porque perfúma? Perguntae...
Amar, ser amado...--que sublime virtude, minhas senhoras.
Ás horas da tristesa, á tardinha, n'aquelles raros momentos, em que as arvores, estatuas da melancholia, nos deixam ouvir um funebre soluço; á hora em que o gentil pegureiro desfere na frauta [39] umas sentidas notas; n'essa hora em que os crentes, saudando o creador, ajoelham aos pés da cruz:--como não é esplendida a visão do nosso espirito, iriada pelas mil côres da ventura e do amor.
Apparecei, sonhos da mocidade! Surgi de novo, ó santas crenças da minha vida!
Porque é que, com os primeiros raios do amor, desapparecem as alegrias primeiras, os indiscretos descuidos da infancia, os mimosos cantares da meninice?
Porque é que a mulher, amando, deixa de se pertencer a si, perdendo a individualidade e a iniciativa, a fim de se consagrar exclusivamente a um homem, ideal de perfeição e de virtude?
Porque é que o amor nos faz tristes, abatidos e concentrados?
Quem não sentiria, uma vez, ao menos, na sua vida, a dôr, que nos arrebata o coração e as lagrimas que nos inundam os olhos, ao despedir-mo-nos da pessoa que amamos?
Mulheres, que tendes amado o que na austeridade [40] do sacrificio, tendes aprendido a virtude e o desinteresse--fallae por mim.
Homens, que em meio de vossos trabalhos e avergados ao peso das paixões vos sentis, muitas vezes, desfallecer--abri o coração, mostrae a dôr que vos opprime.
É doce o amor--pensa o mundo. Mas para amar, quantas inquietações, quantos supplicios!
É verdade que todos invejam uma mulher amada; é verdade que todos anceiam esse ineffavel momento, de poder dizer a um ser bom, generoso, sincero, sympathico, um ser, que nos delicia pelo seu olhar e que nos apraz pela sua bellesa--amo-te, sou teu; sim, sou teu, porque tu és o bom amigo sonhado em noites de intimos affectos; adoro-te, porque tu és a minha inspiração, a minha alma, a minha vida, o meu eterno pensamento: mas para tudo isto que lucta, que enorme lucta, meu Deus!
Amar é comprehender: comprehender a verdade, elevar-se ao bem pela contemplação do que é [41] perfeito, subir até ao bello, guindar-se até ás luminosas regiões da arte e da consciencia.
O mundo fica-nos para traz; esquecem-nos as ambições; perdem-se os enthusiasmos; fojem-nos as lucidas chimeras da juventude: tudo se desvanece pelo amor.
Amar, ter um filho... que superior ventura se póde comparar a esta?
Um filho é uma parte de nós mesmo, uma continuação do nosso nome, da nossa existencia, do nosso viver.
Um filho?!... Quem se não terá enternecido ao contemplar essas louras creanças, vestidas de branco, e que, durante o dia, brincam nos jardins?
Um filho?!
Como é bella esta palavra e como ella sôa bem aos nossos ouvidos.
Ó santo amor paternal, ó paes, ó mães--vós que tendes chorado com as dores de vossos filhos [42] e rido com as suas alegrias--dizei-nos--haverá, porventura, n'este mundo felicidade que se vos compare?
O amor de mãe é muito, mas não é tudo. Aos quinze annos, todos nós sentimos um vago ideal, que nos illumina o espirito, umas seductoras imagens que nos transportam a um ser longinqúo, mas realmente existente, um ser que é nosso, porque o sonhamos e que nos pertence, porque desde a infancia o anteviramos, claro, limpido, transparente, á semelhança de um horisonte que um dia contemplamos e que não mais nos esquece.
Esse ser é um marido; esse ser é uma esposa: um vinculo os prende--o amor; um ideal os incita--os filhos; uma virtude os reune--a conveniencia.
Á viscondessa tambem lhe chegára a sua vez. Sonhára e fora feliz. Alfredo era o doce amante, que lhe alimentava a phantasia ardente; Alfredo, o louro rapaz, era a formosa visão, que aos quinze [43] annos, ella tivera por companheira inseparavel da sua vida.
Sejamos como a viscondessa. Amemos e seremos
felizes.
[44]
[45]
Um mez volvido, após os acontecimentos, acima descriptos,--em Junho de 59--entrava eu casualmente n'um café do Caes do Sodré, situado por baixo do Grand Hotel Central--quando ouvi a voz de Alfredo, que de longe me chamava.
Ebrio e tumultuoso extendeu-me a mão direita, offerecendo-me um banco de palhinha em um dos extremos da mesa.
Com elle estavam quatro amigos, por egual risonhos e embriagados. [46]
Sobre a pedra de marmore, pegajosa e cheia de cinsa de charuto, viam-se entre outras cousas cinco chavenas de café, quasi esgotadas, duas garrafas de cognac e uma de absyntho.
--Não podias vir em melhor occasião--exclamava Alfredo com o cotovello direito apoiado sobre a mesa e a cabeça inclinada sobre a mão.
--Antes de mais, vae-me bebendo esse cognac e ouve-me depois.
Alfredo tirou em seguida um masso de cartas do bolso interior da sobrecasaca, e desatando uma fita verde que as envolvia, começou de abrir uma por uma.
--Mal sabem vocês que temos por aqui uma paixão fidalga. Nem mais nem menos do que de uma viscondessa.
Esgotou um calix de absyntho, accendeu o charuto e encetou a leitura.
«Meu bom Alfredo.--Sabes que te amo e que te amo devéras. Não se passa uma hora, um minuto, [47] um instante em que a tua doce imagem, pura como Eva...
--Devem notar que este pura como Eva tem sua graça e é original--reflexionava Alfredo.--Ah! Evas! ah, puras! ah, vestaes do lodo e da chocarrice...
«... pura como Eva, não venha irradiar-se sobre mim como luz redemptora e supremo consolo. Nem eu sei dizer-te o que sinto, meu amigo. Tenho ciumes dos que te acompanham. E não ser eu tambem homem para te seguir sempre e por toda a parte!
--Variante á mulher-homem de Girardin... Adeante.
«Que triste condição a da mulher, impellida a viver isolada do mundo e da sociedade...
--Sim, sim, bem te entendo, meu anjo.
«Vem, Alfredo, vem; vem ver-me muitas vezes, se queres que eu viva feliz e alegre.»
«A Viscondessa de B***.» [48]
--Ora aqui teem Vocês o primeiro specimen da feminil intelligencia. Vamos ás outras e sem commentarios.
E n'isto Alfredo esvasiou de novo um calix de absyntho.
«Meu unico amigo.--Uma immensa, uma profunda saudade me agita o espirito. Sinto que me és e serás sempre um alento magnanimo.
«Á meia noite, quando a lua campeia no seu eterno throno de magestade e de bellesa, apraz-me pensar em ti, nos teus caprichosos desejos, e nas tuas phantasticas promessas.
«Eu amo o silencio, porque é vago, ethereo e cheio de sombras. Ha dias, entrando n'um pinheiral, cuja verde ramagem se agitava doce e harmoniosamente, como uma harpa do céu,--lembrei-me de ti.
«Ao acaso procurei um outeiro, onde me sentasse. Ao longe o oceano, como um leão esfaimado, enchia a terra com a sua musica rouquenha e [49] sepulchral. Aproximava-se o crepusculo. Umas nuvens ainda, retintas pelos raios afogueados do sol, percorriam o espaço de norte a sul.
«Sentindo-me isolada e só, tremi involuntariamente. Soltei um grito e vi uma creança que para mim corria de braços abertos. Foi uma apparição de Deus.
«Que linda, que formosissima creança!
«Pensei, então, em ti, meu amigo, mais do que nunca; e, Deus me perdôe, pensei na creança, que, um dia, fructo das minhas entranhas, uniria para sempre as nossas duas existencias, n'um unico beijo, n'um unico abraço, n'uma unica ideia.
«Adeus, meu filho. Crê em mim, crê no futuro.
«A Viscondessa de B***.»
Alfredo, não podendo mais suster o riso, soltou uma furiosa gargalhada, deixando, ao mesmo tempo, cahir a carta que mal sustinha entre os dedos frouxos e nervosos.
--Ah! Ah! Ah!... Parecia-me mesmo um lyrio [50] esta viscondessa, um lyrio a desabrochar. Se não fosse eu, ainda hoje estaria romantica. Ora oiçam esta, que é a ultima.
«Meu Alfredo.--A tua convivencia modificou-me fortemente. Comtigo murcharam as doces illusões que outr'ora me sorriam como estrellas do céu.
«Como a flor tristemente pisada pelo pé do viandante, assim o meu espirito succumbiu, sob a influencia do teu halito febril.
«Sem embargo, eu adoro-te, Alfredo.
«Tu polluiste-me as faces com os teus beijos escaldados, profanaste-me o corpo com as tuas paixões impuras, fizeste de mim uma mulher material, viciosa, corrupta.
«Eu pedia-te um amor puro, nobre, immaculado, e tu só me deste um desejo vil, trivial, insensato.
«Que fizeste da minha honra, Alfredo?
«Porque me não amaste d'outro modo? [51]
«E queres-me ainda assim? pois bem: serei tua, tua para sempre.
«A Viscondessa de B***.
--Absyntho, rapaz--gritou o amante da viscondessa, batendo com a bengala no marmore da mesa.
E o creado, desarrolhando uma garrafa, offereceu-a ao freguez.
No relogio do restaurante soaram, então, 2 horas da madrugada.
Alfredo, bebendo sempre, resmungava imperceptivelmente. Ao lado d'elle os amigos proseguiam na mesma tarefa,
O dono do restaurante, vendo que o caso se demorava, mandou vir um trem.
Sobraçou Alfredo, a este tempo, já quasi debaixo da mesa, e introduziu-o na carruagem, cuja almofada era simultaneamente occupada por um cocheiro e um policia.
Fez o mesmo aos restantes e fechou as portas do estabelecimento. [52]
Eu sahi tambem; mas, ao contrario dos outros, aterrado e confuso, com o que ali havia presenciado e ouvido.
Pensei em Luiz Veuillot e segui para casa. [53]
Alfredo era um rapaz do seu tempo, e, como tal, um filho dedicado dos cafés, um amador do fumo e um apreciador exaggerado du vieux cognac.
No proprio desalinho ostentava elle uma generosidade fidalga, que o tornava sympathico e bem quisto por todos os que com elle mais de perto privavam.
Era exaltado em extremo, inconstante e leviano. Quando lhe fallavam em amor sorria-se meigamente.--Amor?...--respondia [54] elle, como que acordando de um longo somno--Sim! já gostei d'elle. Hoje troquei as boas amigas pelos bons manjares.
E virava costas de aborrecido,
E, no entanto, as mulheres gostavam d'elle--talvez por essa rasão.--Não gostam as flores das borboletas?
A vida exterior, activa, intelligente é que, por via de regra, gera a inconstancia. De modo que aquillo que n'uma mulher constitue um crime de lesa-dignidade, é para o homem uma quasi urgencia, filha, sem duvida, das circumstancias especiaes que o rodeiam.
O homem obedece, em geral, mais ao seu organismo do que á sua vontade. A leviandade provêm, muitas vezes, de um impulso de temperamento. A imaginação nem sempre póde ser domada. Á uniformidade oppõe-se a variedade. A phantasia aprecia melhor esta do que aquella.
Ora semelhantes rasões não se dão já na mulher. A mulher tem uma vida limitada, restricta, [55] puramente interior e domestica. Deve ter na sua existencia um unico amor, um unico interesse, um unico pensamento. E desde o momento que isto se despresar--podeis acreditar-me--em vez de uma mãe, em vez de uma esposa, em vez de uma irmã, apenas tereis deante de vós uma amante, isto é, uma companheira para alguns meses de praser e de sensualidade.
Creio porêm que tal vicio é puramente peninsular. Em Portugal é costume fazer a côrte da rua para as janellas. O namoro, se existe, é simplesmente no olhar. Tudo falla, menos o coração. E só depois de casados, reconhecem, então os noivos, que realmente os não fadára Deus um para o outro. Triste inconsequencia, na verdade, que muitas vezes traz comsigo o divorcio e emquanto a nós o peior de todos os desgostos, o desgosto do lar domestico.
Entre nós é a educação da mulher um fado quasi secundario. Que aprendem ellas nos collegios? que sabem ellas quando se casam? Por ventura [56] saberão talhar os seus vestidos? porventura saberão manter o aceio e a limpesa, tão necessarios á cosinha como ao resto da sociedade conjugal?
Tudo, menos isso. Diz-se mulher do high-life, aquella que melhor valsa n'uma sala, a que mais prende pelos arrebiques do coquettismo, emfim, a que fôr mais imaginosa, a que tiver lido alguns romances francezes e a que mais amada souber fazer-se, n'um salão. Pouco monta que seja dedicada a seus filhos, e amiga do seu marido. A questão é ter côrte. O resto de nada vale, porque está abaixo dos sentidos; e os sentidos, são, n'este assumpto, uns mui respeitados directores.
Não quero eu com isto dizer que a educação do homem seja superior á educação da mulher. Os rapases nascem egoistas. Não amam o desinteresse, porque são naturalmente utilitarios e desconfiados. Desejam uma esposa, mais pelo dinheiro que ella lhes traz do que pela estima que os póde tornar felizes. D'esta maneira o casamento entre [57] nós é um acto de commercio uma garantia de futuros interesses, muito de preferencia a uma garantia de amor.
Alfredo, porêm, desviára-se d'esta norma. De creança aprendêra elle a sondar a sociedade com todas as suas corrupções e inconsequencias. De sobejo sabia que a dança, toda exterior e ficticia, era a perversão do ideal conjugal. Por instincto aborrecêra o salão, soalheiro de intriga e de pequeninas miserias. Conhecedor dos homens, e das cousas cahira, finalmente, n'um indifferentismo, até certo ponto, deploravel, para um rapaz, mas, de certo, necessario e fatal para todo o organismo, digno de outra aspiração que não fosse a do animal, por naturesa inerte e estupido.
Alfredo resumia, portanto, uma energica reacção contra o estabelecido, e um vago aspirar para um futuro, ainda não bem definido.
Saudemos esse futuro.
[58]
[59]
Tudo disposto e preparado.
Somos quarenta convivas á mesa. A viscondessa está bella, verdadeiramente bella, sem os artificios que deslumbram, nem as vaidades que enojam. Completa agora vinte e seis annos, volvidos entre o regaço da mãe que se finou e os beijos do pae cuja existencia, por duvidosa, se ignora. Alfredo está tambem, mas triste, acabrunhado, pesaroso, olhando indifferentemente as pessoas que o rodêam, comendo pouco, bocejando muito e bebendo mais. [60]
Dois creados serviam a sôpa. Pelo lado direito da mesa, parallelo-grammo, offerecia-se a sôpa Julienne alternada pela esquerda com a sôpa allemã.
Um mysterioso silencio envolvia quasi todos os hospedes. Umas leves palavras apenas se trocavam de par para par. Nos calices transparecia o xerez--o louro e ingenuo xerez dos estomagos delicados.
Esgotados os primeiros copos e retirada a primeira coberta de peixe com molho á ingleza, appareceu o Chateau-Lafitte. Alfredo, reclinando-se na cadeira, sorriu-se meigamente. Um cavalheiro importuno, levantando-se, de cópo erguido, disse:
«Minhas senhoras e meus senhores: n'este vinho, eu saúdo a França, mãe desvelada do pensamento moderno.»
E todos beberam.
Entretanto o silencio recomeçara novamente. Os creados, em nervoso phrenesi, retiravam os pratos sujos para logo os substituir por outros lavados. Telintavam os talheres de prata. Quatro bicos [61] de gaz alumiavam a mesa, matisada de flôres, cuja côr deliciava todos os olhos e cujo perfume embriagava todas as pituitarias. Na parede, pintada a azul-dourado, destacavam uns quadros comicos, alegres, folgasões, uns quadros de caçador logrado, perfeitamente pittorescos, perfeitamente escolhidos.
Estava-se n'um vol-au-vent de frangos. O vinho correspondente era, se bem me lembro, Madeira sêcco. Conversava-se já de extremo para extremo. Algumas damas, agitando os leques, abriam os olhos, afogueadas em calor. Por ordem da viscondessa abriram-se as janellas. Uns cégos, que, então, passavam na rua, começaram de tocar uns velhos landúns, perfeitamente detestaveis e anachronicos.
«O fado! o fado!--gritou Alfredo.
E os homens principiaram a tocar o fadinho das salas.
Servida uma mayonnaise de linguados, servida ainda uma galantina de gallinha com aspic, passou-se a um ponche à la romaine. As rolhas do champague saltavam ferventes e impetuosas, como [62] uma catadupa de topasios. Os creados corriam como possessos. As senhoras apoiavam as faces rubras, sobre o hombro direito dos namorados. No espaço campeava a lua, na sua doce pallidez, espreitando meigamente o festim da viscondessa.
Seriam dez horas da noite, quando, depois de concluidos os assados--patos com azeitonas, perús com truffas e espargos--se começou a tirar o doce. Comiam uns podim saboyon au rhum e outros bavaroise de fruta. O licôr escolhido era o Chartreusse. Alfredo, erguendo-se, propôz um brinde.
«Bebo á saude da senhora viscondessa--exclamou elle--á saude da sua felicidade, e á saude de seu futuro filho.»
E, sem mais poder suster-se de pé, cahiu sentado na cadeira. Todos o olharam com um olhar interrogativo. A viscondessa, encarou-o, com uma santa e terna delicadesa. Os outros, por prudencia, calaram-se.
Cá fóra numerosas tropas atravessavam as ruas. [63] Portugal, constitucional, saùdava o seu nunca--esquecido vinte e quatro de Julho.
Terminados os brindes, que foram immensos e ruidosos, continuaram todos para o salão. Só Alfredo, por confiança na casa, ousou ficar á mesa, a cujo extremo adormeceu. E, suspeitando que fumava, dormiu um longo e pesado somno.
Quando realmente deu por si soavam tres horas nos relogios da casa. Meio adormecido e meio acordado, olhou e viu duas sombras, que, a um recanto do aparador, se agitavam docemente. Aproximando-se mais reconheceu então uma das creadas da casa, conversando airosamente com um garboso gentil homem.
--Ora pois!--regougou elle.--Nem mais nem menos. Tudo corre bem e todos teem rasão...
E sahiu, assobiando a carta adorada da Grã-Duquesa.
Na carta que eu tive, Amelia formosa,
Entre um bom jantar e um bom espirito existe, ao que parece, uma profunda analogia. Tous les gens d'esprit sont gastronomes--dizia Balzac. De todos os animaes, o unico, que sabe comer, é o homem--escrevia um outro auctor francez. D'este modo o jantar entre amigos é uma quasi necessidade da nossa existencia e um salutar incentivo a duas ou tres horas de boa e franca jovialidade.
Em Portugal dão-se jantares, mais como ostentação vã, do que verdadeiramente como meio [66] de melhor expandirmos os nossos affectos, as nossas ideias, os nossos desejos, as nossas ambições. A nossa mesa distingue-se das mesas estrangeiras, não só pela má escolha das comidas, senão tambem pela exaggerada seriedade com que costumamos assistir a taes solemnidades. Dir-se-hia que, em taes momentos, estamos presenciando o enterro de nossos paes.
Ora o jantar, o bom jantar, sadio e leve, deve sobretudo correr alegre, isento de malquerenças, semeado de phrases espirituosas e de anecdotas interessantes. O jantar é, por via de regra, um pretexto para solidificar velhas relações de amisade; um pretexto para nos rirmos á vontade, um pretexto para conversarmos intimamente.
Os estrangeiros, comprehendem de ordinario estas festas, tirando os casacos, bebendo bem e comendo melhor. Nós outros, os portuguezes que, não obstante sermos uma caricatura viva de tudo quanto vem de fóra, tanto queremos primar pela gravidade que comprehendemos perfeitamente o [67] contrario. Mal nos rimos, porque nem mesmo rir sabemos. O espirito nem sempre se amolda com todas as modulações de linguagem. Parece que á lingua portugueza foi vedado o dizer ligeiro, amavel, faceto, que tanto distingue a França moderna. Nós somos um povo, naturalmente indolente, um povo de apaixonados, como tão bem nos definiu M.me de Sevigné.
Voltemos, porém, á cosinha.
Tem um grande defeito: falta-lhe como em geral ao nosso viver, a boa elegancia, o sabor, a pimenta, que torna as comidas mais gostosas e mais facilmente digestivas. Não temos originalidade, e por isso imitamos. O unico prato que a meu vêr existe classicamente portuguez, mas soberanamente enjoativo, é o leitão. Na provincia, sobretudo, assa-se um leitão a proposito de qualquer festa. São nossos, exclusivamente nossos, o leitão e os foguetes.
Depois note-se--na nossa mesa não ha aquelle aceio que tanto seria para desejar, e que tão proverbial é entre os ingleses. Uma toalha, perfeitamente [68] branca, aromatica, transparente, é já de si um notavel passo para um bom jantar. As indigestões nascem quasi sempre do mau tempero das comidas: parece que se odeia a agua e lavam-se os mantimentos como em baptismo de mouros.
Entre as classes mais altas da sociedade são despresadas as comidas vegetaes. Só o povo as aprecia; e porisso tambem é elle em geral mais robusto, mais fortemente organisado, e mais naturalmente atreito á espontaneidade e ás alegrias da vida.
O temperamento depende das condições alimenticias em que nos encontramos. O bom e o mau humor tambem d'ellas provêm. No modo, porque nos alimentamos reside, pois, uma grande parte da nossa felicidade.
As comidas, demasiadamente gordas, geram a obesidade tão peculiar aos nossos provincianos; ao passo que o alimento vegetal torna o homem ligeiro, amavel e espirituoso.
Á mesa da viscondessa respirava-se um invejavel [69] aceio e uma limpesa pouco vulgar entre nós. A propria toalha attrahia, não só pela sua extrema brancura, senão tambem por uma deliciosa fresquidão, que de ordinario exhalava.
Grave era a viscondessa, mas espirituosa. Ninguem sabia tratar melhor os seus hospedes, nem com mais liberdade. Como aphorismo passava já em julgado que eram bons, substanciosos e alegres os jantares da viscondessa.
É que, á parte os seus caprichos, a viscondessa comprehendeu a vida moderna, tal qual ella deve ser: commoda, aceiada e elegante.
Nem porisso lhe queiramos mal, mas antes façamos
por imital-a.
[70]
[71]
É singelo o quadro; tocante até.
Uma pobre velha, habitando uma alcova humida e sombria, treme de frio, gemendo por vezes. Serve-lhe de leito uma pouca de palha enxarcada e nauseabunda. Ao lado uma panella velha, tosca e ligeira, cuja grande utilidade é aparar a agua, que a miudo se despenha do telhado.
Por uma fresta, lavrada no alto da parede, côam-se tristemente uns tenues raios de luz. Dir-se-hia que á desgraça até o sol é vedado. [72]
Pelo soalho esburacado e carcomido occultam-se uns bichos infernaes, molles, gellalinosos. O tecto, artisticamente cinzelado pelo longo e imperioso trabalho da aranha, quasi se não distingue d'entre a escuridão que cerca o aposento.
E Maria, a desventurada creatura, jaz immersa em intima dôr, abandonada aos vermes que lhe róem as carnes syphiliticas, negras, cobertas de pustullas e de putrefacção. Querem conhecel-a?
Rica e formosa, fôra esta mulher. Cheia de venturas e mimos deslisára a sua vida, sem mais attritos do que aquelles que ordinariamente nos dá o tempo e a natureza.
Acariciada pelo anjo do amor e embalada nos sonhos gentis da opulencia, Maria sentiu-se a um tempo admirada e requestada pela mais guapa fidalguia do seu paiz.
Seus paes, habituados áquelle unico thesouro, eram inexoraveis no cumprimento das suas profundas e intimas affeições. Nada exigia, que para logo não fosse satisfeito. O mais leve capricho tentavam-no [73] elles realisar com a satisfação de um escravo, que por sua senhora arriscára a vida.
Assim cresceu aquelle arbusto. Descuidado e candido, não houve vento que lhe açoutasse as tenras vergontesa. O sol, saúdava-o todas as manhãs, e a primavera encontrou-o viçoso, coberto de flôr e de esperanças.
Veiu, porém, a tempestade. O sul rugiu temeroso. No espaço precipitaram-se as nuvens, prenhes de electricidade. A arvore, mal segara, tremeu na sua raiz, e desappareceu da terra.
Onde estava Maria? Porventura iria ella em busca de algum anjo bom, seu irmão?
Fragil, como qualquer mulher, Maria não ousára resistir á fatalidade que a dominava. Fugiu. Fugiu romanticamente, por um lençol, atado á janella de sacada, e á meia-noite.
Como quer que fosse o facto, em si escandaloso, excitou naturalmente a indignação publica. A burguesia commentou-o á noite nos clubs e cafés, concluindo por ver n'elle uns laivos de obscenidade, [74] impossivel de admittir-se no seio de uma familia honesta e séria.
Em que pese, porém, aos nossos indigenas sociaes, o caso era mundano, e frequentissimo até em mulheres demasiadamente imaginosas.
Ao cabo de dois annos, Maria resuscitou; não para a vida, mas para a morte.
O rosado do rosto transformára-se-lhe subitamente numa pallidez transparente, sepulchral, doentia. Os olhos, encovados, haviam perdido o seu primitivo brilho. Nada existia já que não fosse triste e profundamente doloroso.
A mulher virtuosa cahira victima indefesa, ás mãos de um maltrapilho infame. O miseravel seductor, retirára comsigo o seu dinheiro e o seu carinho.
Abandonada a si, Maria, refractaria ao trabalho, sem pae, sem mãe, sem irmãos, sem amigos, olhou em redor de si, e viu a sociedade que de longe lhe acenava.
Correu a ella com um filho nos braços. Engolphou-se [75] nos seus prazeres, trocou a honra pelo pão quotidiano, pôz em almoeda a consciencia pelo futuro do innocente, que ao lado d'ella soffria e chorava tambem.
Era nobre, e pagava pela corrupção commum...
A mocidade ganhou-a, como poude. Viveu-a, e tanto bastava.
Depois chegou a velhice e a tristesa; depois a pobresa e a miseria.
Julio, a este tempo já era crescido, e velava pela mãe sollicitamente.
De que poderiam comtudo valer os minguados ceitis com que lhe era remunerado o seu trabalho de todos os dias?
Se elle e ella adoecessem, quem mais os trataria? quem, porventura, se amerciaria d'aquella terrivel indigencia?
--Ninguem!...--respondia-lhe logo a consciencia.
E a consciencia não costuma mentir.
Julio viera, pois, da fabrica e encontrára sua pobre mãe moribunda, sem remedio, sem medico e sem dinheiro.
Parou no limiar da porta. Encarou a velha de frente e viu-lhe os braços estendidos em signal de compaixão. Extactico, cego, allucinado, entrou-se o desventurado moço em profundo scismar.
Ao descerrar as palpebras amortecidas por um somnambulismo infernal--Julio, emxugando os olhos, com uma ponta da blusa, sorriu-se, como se do céu houvera baixado uma inspiração sagrada.
--Desgraçado de mim!--exclamava elle doridamente.--Trabalhar um dia inteiro e não ter á noite que comer... É triste... muito triste... Esgotar o sangue das minhas veias, em alheio proveito, e receber, no fim da semana, um vil salario, que mal me chega ás primeiras necessidades da vida... É infame... muito infame... Alugar as minhas faculdades e o meu pensamento, sem outro fim que não seja o proprio aviltamento e a propria degradação... [77] É vil... muito vil.. Oh! meu Deus!... antes a morte! mil vezes a morte...
E assim cahiu inanimado o honrado moço sobre o desventurado cadaver de sua santa mãe.
A scena era realmente tão obscura, que mal poderia provocar as vistas d'esse mundo, que é louco e grande.--Passou, como tudo o que é modesto, desapercebida e ignorada.
No dia immediato um raio de sol, espreitando muito de soslaio pela fresta do telhado, apenas encontrára a solidão e a ruina, na mesma alcova, onde Julio e sua mãe, por tanto tempo agonisaram.
No cemiterio mexia-se uma porção de terra, afim de occultar aos olhos do mundo o desditoso cadaver d'aquella santa e virtuosa velha.
Julio nem sequer achára uma mortalha, para envolver o corpo de sua mãe.
Rasgou a blusa n'umas poucas de tiras, e, assim auxiliado, por mais alguns farrapos, que ainda lhe restavam d'outr'ora, arranjou a cobrir o corpo [78] infectado e pestilente de sua mãe. Porque o principal effectivamente era occultar o crime d'esta grande peccadora...
Entretanto a sociedade ria-se nos botequins, e as tabernas continuavam sempre atulhadas de povo.
O mesmo Julio teve a coragem de transportar o cadaver para o cemiterio e de ahi lhe prestar as derradeiras homenagens.
Como não havia carniça, não appareceu o abutre!
Consciencia de Cain é jóia que só se mercadeja no alto mercado.
Foi mais uma lei do mundo.
Convêm, comtudo, registral-a para desafogo de todos nós. [79]
Permitta-nos a leitora que um pouco nos demoremos sobre este incidente do nosso romance. Mais tarde volveremos a fallar da viscondessa. Por agora historiemos os factos que mais concorreram para o triumpho da nossa heroina.
Quem era Julio? quem era Maria? e porque motivo foram elles chamados para aqui?
Leitor: conheces a miseria? porventura já te foi dado contemplar esse estranho espectaculo, que a cada passo se nos representa diante dos olhos? [80]
Á beira da estrada, ella, estendendo-te a mão carcomida e triste, pede-te esmola; na escuridão do templo, cheia de vergonha, ella occulta-se ás vistas da gentalha; no recesso das florestas, arrasta-se como um reptil, de tal maneira que nós não sabemos quem ella é, se um animal, se um homem.
E, todavia, ella, a canalha, é filha de Deus como nós.
E, todavia, elle, o Ninguem errante da sociedade, o anonymo sublime do universo, elle, o, trabalhador, tambem, como nós, tem intelligencia sentimento e vontade.
Quantas vezes, ao passar por uma rua escura e humida não tropeçamos nós com um d'esses desherdados, de faces lividas o aspecto sombrio, que, não tendo um travesseiro, onde repousar a cabeça, nem uma bilha d'agua, onde refrigerar a sede, nem um vestido, onde aquecer as carnes, vive ao acaso, alumiado, apenas, pela luz das estrellas [81] da noite, alentado pelo orvalho do céu e ao abrigo vil das lageas das escadas?!
E, no entretanto, este ser existe.
Existe nas officinas do trabalho, e chama-se proletario; existe nos campos, e chama-se jornaleiro; existe nos hospitaes, e chama-se miseravel; existe nas prisões, e chama-se criminoso; existe nas rodas e nos hospicios, e chama-se engeitado; existe nas ruas e nas escadas, e chama-se maltrapilho; existe no universo, por toda a parte espalhado, e chama-se escravo.
Sim! o escravo é o leproso sem familia, a quem só é dado sentir a dôr das suas chagas. Elle, coitado! não tem casa, nem tem jardim, nem flores, nem amigos, nem alegrias; elle, o escravo, tem apenas, como um magro cão vadio, uns ossos que róe durante o dia e umas tristesas que o acompanham durante a noite.
E nada mais tem, o escravo!
O vicio é, em geral, uma triste consequencia da falta de meios. Perguntae ao pobre, porque se [82] embriaga, á mulher porque se prostitue, e ao escravo porque se vende.
Embriago-me--responder-vos-ha o pobre--porque me quero esquecer do sangue que vertem as minhas feridas.
Prostituo-me--dir-vos-ha a mulher--porque tenho fome.
Vendo-me--exclamará o escravo--porque a sociedade me repudia.
E teem razão. Todos tres procuram o vicio, como alivio, como necessidade do seu espirito.
Julio era um d'esses: pertencia á rara pleiade dos independentes, d'aquelles que o Estabelecido odeia e renéga.
Muitas vezes, em creança, o pobre moço, sentado na areia da praia, e olhando o mar além, dissera em conversa intima, em que o homem interroga a consciencia, a razão, e tudo quanto o cerca:
«Como é grande o mundo, meu Deus!»
E n'uma esperança eterna, e n'uma ambição sem limites, Julio ficava-se horas e horas em prodigiosa [83] concentração, que bem lhe denunciava a lucta, a cada passo travada no espirito nervoso e inquieto.
Mas n'este mundo são as ambições como as espumas do mar: um vento as traz e um vento as leva.
Que importavam as illusôes, se com as primeiras folhas do outomno, ellas tinham de cahir uma a uma?
As flores d'alma vão-se com o outomno da vida.
Nem sempre porém as borboletas adejam sobre as flôres; nem sempre o mesmo sol illumina as campinas.
Ante o cadaver de sua mãe, Julio emmudecera. Quando a sério, e a sós comsigo mesmo pensou na vida que no futuro o esperava, quasi instinctivamente teve vontade de se suicidar.
Olhando, porém, para o céu, ajoelhou. Um raio de esperança lhe illuminava a alma, até então em trévas.
Felizes os que, como elle, sabem esperar!
A esperança conduz Colombo, e descobre mundos!
[84]
[85]
Entrava-se por um beco immundo, torcia-se á direita, e estava-se lá, no antro do crime, em que a vida e a fortuna se joga, o bem estar, a tranquilidade, o socego, toda a harmonia da existencia humana.
Exteriormente, apresentava a taberna um aspecto mesquinho e lugubre. Um distico, apenas, no alto da parede indicava aos transeuntes que ali «se vendia vinho verde.» [86]
No largo portal da entrada, coroado por um ramo de louro, viam-se uns traços obscenos, riscados a giz, e, ao parecer, escriptos em maré de embriaguez.
Portas a d'entro, reinava uma alegria feroz, confusa e tristemente desconsoladora.
Uns jogavam, riam outros, e gritavam todos.
--Salto no valete--dizia um.
--Mico no terno--interrompia outro.
E assim, ébrios de vinho e ambiciosos de fortuna, jogavam elles, sem outro alento que não fosse o vicio e o esquecimento.
De subito, uma gargalhada estrugiu pelos ares.
Por uma das mesas, esgravatada e cebenta, rolou veloz um enorme cangirão de vinho, por onde á porfia bebiam os convivas alegres.
A taberneira, mulher roliça e de cabello na venta, servia com respeito os freguezes, na maioria lavradores e campinos.
A um canto, e sobre o junco, que cobria o lagedo [87] da sala, estava um berço, onde uma creança dormia tranquillamente, em companhia de um gato malhado, velho hospede na casa.
Ao lado do berço um cão, apoiado sobre as mãos e com a orelha levantada, olhava filamente na direcção da porta de entrada.
Para além do balcão, duas pipas de vinho e uma pratelleira, cujas divisões continham pão, queijo e figos; tudo, já se vê, velho, amarellecido pelo tempo, e modico no preço.
--Viva o nosso Julio!... viva!...--exclamaram os jogadores, voz em grita.
O saúdado moço, de braços crusados e em mangas de camisa, nem sequer lhes respondeu.
Entrou, passeou a vista pela sala, e quedando-se com pesar, vociferou:
--Nem mãe, nem... dinheiro...
Como por encanto, fez-se um silencio sepulchral na taberna. O jogo parou; e instinctivamente erguidos, correram todos á presença do Julio.
Prestes, porém, se apagou a mudez, a fim de [88] novamente ser interrompida pela mais temerosa de todas as vozerias.
--Não póde ser; não póde ser. Abaixo a tyrannia. Vamos a acabar com elles. Malhados de uma figa... Queremos sangue e mais sangue... que nem um só escape... Querem-nos roubar o nosso trabalho... os infames... Ladrões abaixo... Não queremos ladrões... A elles... todos a elles...
A taberneira exasperada, pedia ordem, levantando os braços. Em cima do balcão latia o rafeiro agudamente. O gato, espreguiçando-se, escoara-se com mysteriosa perfidia, por entre as pipas vasias. Um raio de lua, reflectindo-se phantasticamente sobre a cara da creança, que chorava, produzia um contraste singular, e sobremaneira interessante. Dir-se-hia que pela innocencia velava o céu em toda a sua magestade e grandesa.
N'um momento a porta rangeu nos gonzos.
--Em nome da lei declaro presos os desordeiros--bradou um vulto. [89]
--Em nome de que lei?--retorquiu um dos agitadores.
--Em nome da nossa lei, em nome da lei portugueza--insistiu o primeiro, descobrindo-se.
Á vista do policia, até a taberneira gritou. Vergado ao peso de uma mão de ferro, aspera e cortante, e apanhado a sós, o espião do governo, atravessado por tres fortes navalhadas, rolou immediatamente aos pés de Julio, que para elle olhava desconsoladamente.
Momentos depois a taberna estava só, escura, e triste.
Quem, dois dias depois, entrasse n'esta mesma casa, e attentasse nos personagens, ali reunidos, pouca differença de certo havia de notar.
Lia um dos operarios em voz alta a Revolução de Setembro, quando inopinadamente se lhe deparou a seguinte local:
«Ante-hontem, cerca da meia noite, deu-se um grave tumulto n'uma taberna situada para as bandas [90] de Alfama. A policia anda em cata dos desordeiros, e de crêr é que, em breve, elles soffram o justo castigo das suas loucuras.»
Taes palavras foram, como é natural, ouvidas com terror, da parte dos circumstantes.
Um silencio profundo envolvera a taberna. Mudos e reflexivos, ninguem ousava proferir uma palavra.
De repente apagou-se o gaz. O ruido tornara-se insupportavel, medonho, confuso.
--Traição... traição...--repetiram todos.
E o silencio recomeçou de novo. [91]
N'este nosso paiz ficam muitas vezes impunes os crimes mais graves, castigando-se os mais insignificantes.
A lei penal muitas vezes dá existencia aos crimes, imaginando penas para delictos imaginaveis.
Parece que a justiça social nem sempre cumpre o seu dever. O roubo corre muitas veses authorisado pela lei, n'um inpudor por tal fórma insólito, que de vergonha faria córar uma bachante.
A cada passo, e com a maior facilidade, se [92] sancciona uma injustiça. Quem não tem padrinho, morre mouro--diz o rifão. E o certo é que o pobre, o eterno Job da orphandade,--se não morre mouro, morre, pelo menos, de atrophia, indigente, sem pão, sem agua, e o que é mais, sem espirito.
Ao percorrer as humidas cavernas--morada e abrigo dos proletarios--de dó se nos enlucta o sentimento. Como é que a Providencia tão prodiga e generosa; como é que o sol, alargando seus raios encantadores, tanto pelas cumiadas das montanhas mais longinquas como pela escuridão dos valles mais reconditos--como é que todo este mixto de luz e de céu, póde consentir o infortunio no mundo?
A aspiração é sêde que se não extingue. Mas aspirar sem esperança; anceiar sem uma possibilidade de realisação final, deve ser triste, muito triste, para já não dizer desesperador.
Para voar, concede a naturesa azas á aguia. Assim tambem para sermos livres, rigorosamente livres, para executarmos os vastos planos da nossa [93] vontade, carecemos nós de meios, sem os quaes tudo nos seria baldado e inutil.
E dizem que a lei é egual para todos!
Entre dois cidadãos--um casado, outro solteiro, um pobre outro rico--que soffrem a mesma pena, onde é que está a egualdade?
Divagando, porém, iamos fugindo do nosso caminho. Voltemos ao romance.
A policia não afrouxára nos seus esforços. Indagou, correu, perguntou. Ao cabo de uma semana, estavam seis individuos dados por suspeitos. Entre elles indigitára-se Julio como um dos principaes cumplices no crime acima descripto. Se fôra ou não acertada a escolha, isso só os factos posteriores o poderão affirmar. Por agora basta que o leitor nos acompanhe.
Dolorosa é a recordação do carcere. Sem luz e sem ventilação, são as nossas cadeias uns verdadeiros antros, cuja atmosphera impregnada de particulas venenosas, quasi sempre gera no seu seio [94] os vicios mais execrandos e as doenças mais incuraveis.
Um drama simples e vulgar ao mesmo tempo, poderá, talvez, iniciar-nos nos verdadeiros mysterios d'este inferno.
Ouçamol-o.
Um homem rico decahira um dia da sua fortuna. Habituado ás commodidades da vida, encontrou-se repentinamente privado do necessario. Acostumado aos falsos amigos, viu-se sem amigos. Olhou. Quatro filhos o encaravam. Uma esposa lhe sorria. Fôra bom o seu coração. Nunca até ali se dera um unico facto que lhe manchasse a consciencia. Examinou os bolsos. Dinheiro não havia já. Recorreu ao trabalho. O trabalho fez-se esperar. Mendigou. Ainda era pouco. Os filhos continuavam a chorar. A esposa continuava a morrer. Que fazer, pois? Roubar. E roubou. Roubou um pão porque tinha fome. E dois. E tres. E quatro. A lei, inexoravel como a Parca, encontrou-o uma noite. Levou-o para [95] o Limoeiro. Pediu-se, sollicitou-se, em nome da desgraça. Tudo embalde! Os poderes publicos cumpriam o seu dever. N'uma casita humida, situada ao Salitre, definhavam, ao cabo de cinco dias, quatro creanças e uma mulher. No Limoeiro creava-se mais um monstro, e inutilisava-se um homem. E tudo isto com uma prodigiosa simplicidade.
É a historia de Valjean sem o auxilio do arcebispo!
Ao moço-operario não succedeu, felizmente,
outro tanto. A Providencia encarregou-se de velar
por elle. E o certo é que a evasão de cinco presos
deu-se rigorosamente n'esta época. Julio foi
um dos que, a salvo da prudencia, recuperaram a
liberdade.
[96]
[97]
Seriam 2 horas da madrugada. A lua brilhava em pleno espaço. O Tejo era Sereno. Apenas de longe em longe um rumor surdo, vago, incomprehensivel, acordava a naturesa do seu pacifico somno nocturno.
Por sobre as mansas aguas deslisava um bote suavemente. As estrellas, reflectindo-se na bahia, similhavam, pela vivacidade irrequieta do brilho, um cardume de peixes em debandada. A viração era fresca, e deliciosamente salutar. [98]
Cantavam os remeiros, umas tristes canções, repassadas de melancholia e de patriotismo. Os remos, batendo na agua, produziam o effeito de um chrystal facetado, em desordem, mas atrahente.
Nem uma dissonancia sequer apparecia n'este immenso panorama, a um tempo eloquente e respeitavel.
É que a alma da naturesa, symbolo do infinito sobre a terra, é incomparavelmente superior á alma do homem, expressão do contingente e do relativo.
As montanhas, elevavam-se a distancia, na firme immobilidade de phantasmas. Dormia a cidade socegadamente. No convez de um navio mercante ladrava um cão da Terra-Nova. Nas embarcações de guerra ouvia-se distinctamente e com rarissimos intervallos o passo moroso das sentinellas.
Os catraeiros cantavam sempre:
E ao longe os echos repetiam a ballada do poeta.
O escaler abicou, emfim, á praia. A aurora começava a roxear o horisonte. Uma luz delicada, fina, como a porcellana, transparecia por entre nuvens.
Um vulto de homem, embuçado n'um largo capote, saltou á praia.
Julio, fugitivo, tomára a prompta resolução de por algum tempo se occultar no bairro de Alcantara.
Duas palavras ainda sobre elle:
Julio era um rapaz ambicioso. Amava egualmente a liberdade e o trabalho.
De têmpera rija, era o seu caracter. Odiando o jesuitismo, por instincto, não poucas vezes chegára a commetter excessos e desvarios.
Frequentava a taberna, do mesmo modo que nós frequentamos o café; ali discursava com os companheiros, concluindo sempre em favor da liberdade e contra a reacção. [100]
Na noite em que o prenderam exclamára elle para os camaradas de trabalho:
«Nem sempre a escravidão ha de pesar sobre nós. Quem tiver coragem, acompanhe-me. Uma vez que não querem a paz, acceitaremos a guerra, mas uma guerra sem tréguas, uma guerra eterna e violenta.»
D'este modo Julio era a perfeita personificação do escravo, que, sentindo a grilheta ao pé, deseja emancipar-se e tornar-se homem, como os seus similhantes.
Alfredo, não tendo coragem para realisar os seus planos, embora bom e generoso no fundo, tornara-se devasso, e adormecera inconscientemente nos braços da sensualidade estupida. Julio, não! Julio estava puro; reagia ainda com heroicidade contra a geral corrupção da sociedade.
Entre estes dois homens, ambos moços e sympathicos, existia uma differença apenas: Alfredo pertencia á mocidade dos cafés, incomparavelmente mais inutil que a mocidade da taberna, composta, [101] na generalidade, por operarios honestos, como Julio.
Mais tarde, porém, nos encontraremos novamente
com Alfredo.
[102]
[103]
Penetremos em Alcantara.
É um bairro pobre, habitado por operarios, n'uma grande parte, e por homens do mar.
Na extrema do riacho, para a direita, alveja uma pequena casa, situada na falda de um monte.
Para ahi entrou Julio, a fim de se occultar ás pesquisas da policia.
Durante o dia conservava-se fechada a casa, como querendo demonstrar ao publico, que ella era realmente deshabitada. [104]
Á noite quatro operarios, voltando do trabalho, batiam de mansinho á porta.--Julio percebendo pelo toque ser os companheiros, levantava-se da enxerga em que de ordinario jazia, e dava volta á chave.
No interior da habitação reinava a miseria em toda a sua hediondez.
Uma enxerga apenas, abrigava, durante a noite, cinco esqueletos de homens, sem alegria, sem pão e sem futuro. Os mumias da desgraça!
De manhã, ao levantar, reuniam quatro ou seis trapos velhos, e, por vergonha, occultavam á multidão os proprios ossos do corpo.
Na cosinha existiam, por acaso, duas côdeas de brôa, arrancadas aos dentes das cadellas leprosas, uma bilha com agua e um pequeno ramo de carqueja.
A estes quatro animaes, trabalhadores n'uma fabrica de lanificios, se incorporara Julio.
Pouco tempo, porém, durou similhante situação. Ao cabo de alguns mezes a policia lançára as [105] suas vistas para os lados de Alcantara. Isto soube-se, e chegou aos ouvidos de Julio, a este tempo já viciado por toda a casta de corrupção.
Com nova tão para desesperar, quasi endoideceu o moço-operario. Uma noite mesmo, encontrando um policia civil, e tomando-lhe da mão direita, disse:
--Olé--sabe quem eu sou? Ah! não sabe? pois bem: fique sabendo...
E fugindo, estendeu-o no chão com uma fortissima bofetada.
Assim se passaram alguns dias, de louca anciedade. Por tradicção conhecia Julio um velho aldeão, de quem a mãe repetidas vezes lhe fallára. Uma noite, deixando o casebre de Alcantara, demandou a provincia, onde lhe sorriram os primeiros raios de felicidade.
Mas Julio já não era o mesmo homem. O desanimo ganhara-o por momentos. É condão da miseria transformar o homem physica e moralmente num monstro de paixões. [106]
A barba crescera-lhe. O corpo definhava-se-lhe a olhos vistos. No coração principiavam os espinhos a crescer e a vegetar. Emfim, aos pés do operario um abysmo, um immenso abysmo se abria.
E ai do homem, que um momento escorregar no precipicio; porque para esse não haverá salvação possivel.
A mulher, que uma vez peccou, habilita-se a ser uma eterna peccadora. O homem que um dia se prostituiu, fica para sempre prostituido.
Nem sempre, porém, nos abandonam os anjos do céu.
Á beira do despenhadeiro tivera Julio o seu anjo da guarda.
Abençoada a mão, que n'um raio de amor nos traz a esperança e a consolação! [107]
Um sol ardente batia de chapa sobre um eirado de pedra, em cujo espaço se abrigava cuidadosamente o fructo de uma boa colheita de milho.
Ao lado, e fóra do alpendre, elevavam-se tres medas de palha, unico alimento annual, aos pacientes trabalhadores d'aquelle campo.
Por entre as louras e amontoadas espigas brincavam em candida innocencia duas formosas e galantes creanças.
A tarde declinava docemente. No pinheiral longinquo [108] gemia a rôla uns tristes e magoados queixumes. Os cantos jubilosos dos lavradores iam perder-se nas solidões distantes. O céu era sem nuvens; e as aguas de chrystal, mansas e innocentes, como as lagrimas de uma creança, deslisavam com ligeiros attritos, atravez dos terrenos pedregosos.
Um cão preto, guardador de gados, saltando alegremente, annunciára em repetidas curvas, a proxima chegada de seu dono.
A pouca distancia d'ali assomou logo um velhote de rosto prasenteiro e agradavel. As duas creanças, erguendo-se de um pulo, desappareceram por entre a sombra do arvoredo.
Apenas um moço, altivo, de tez morena e bronseada, permanecêra na mesma posição sem dar por cousa alguma do que em de redor d'elle se havia passado.
O velho chegou, trazendo os dois pequenos pela mão. Olhou com piedade para a estatua da tristesa, que tão profundamente o impressionava, [109] abeirou-se d'ella, e prorompeu nos seguintes e magoados termos:
--Então que é isso, meu Julio? tão triste e pesaroso? já lhe não valem de nada as palavras d'este velhote, que tanto do coração lhe quer? e esta familia que é a sua? Ora vamos, mostre-se alegre para comnosco. Aperte-me esta mão que é rude, mas honrada. Seja-me franco, se alguma cousa o afflige. Nada receie. Olhe que todos nós o estimamos devéras.
--Meu Pae...--exclamava Julio, debulhado em lagrimas,--meu bom Pae...
O lavrador, puxando por um lenço encarnado, que habitualmente trazia no bolso direito da jaqueta, muito de soslaio limpou os olhos humedecidos. As duas creanças, acompanhando-o, como que por instincto lhe beijavam as mãos bemfazejas.
O sol, atufando-se nas aguas do oceano, reverberava por sobre a terra silenciosa os seus derradeiros raios. A brisa era tépida, como a noite. Algumas [110] folhas sêccas, prenuncio do outomno, alastravam o sólo.
Julio entrara-se em doloroso scismar. A sós comsigo mesmo, pensou muitas vezes no suicidio, companheiro e amparo dos que soffrem. Mas não. Uma esperança o alimentava. Um vago ideal o seduzia.
Após profundo meditar alçou a cabeça para o céu. A imaginação cedera o seu logar á intelligencia. Julio estava salvo. A seu lado respirava um archanjo celeste.
Olhou. Cecilia, a pomba immaculada, depositara aos pés do seu amante uma bolsa, cheia de libras, thesouro de trabalho e de economia.
Que esplendida creança! e que nobilissima abnegação!
--Tu aqui, Cecilia?...
--Sim, aqui, ao pé de ti, meu Julio. Tudo adivinhei. Se é preciso que partas, parte: vae procurar a fortuna, por que tanto anceias. No entanto lembra-te sempre de que deixas n'esta casa não [111] só um pae que te estima mas tambem uma mulher que te ama.
--Cecilia, meu doce amor, como eu quizera ser feliz comtigo. Mas tu bem vês, minha filha: sou pobre, nada tenho. Repudiado pela sociedade, que me julga um criminoso, apenas a tua e a minha desgraça poderia fazer n'este momento. Parto ámanhã. Com o nome mudado, entrarei n'uma fabrica. Trabalharei, trabalharei muito. E tu, Cecilia, que és boa e meiga, como as estrellas do céu, não me esqueças nunca nas tuas piedosas orações. Deus ha de ouvir-te, porque Deus tambem é bom. Um dia, quem sabe? voltarei rico a esta casa. Tenho fé em Deus que hei de voltar. E tu tambem tens fé, não é assim, Cecilia?
--Fé, meu amigo, só eu tenho na morte. Alguma cousa me diz que a felicidade não foi feita para nós. Paciencia. Que, ao menos, o céu nos receba!--é este o meu maior desejo.
Um curto, mas doloroso intervallo se seguiu a estas palavras. Cecilia, sufocada pelos soluços [112] rasgava com os proprios dentes as pontas do avental, chorando amargamente.
Julio envidava todos os seus esforços afim de a consolar. Nem um nem outro, porém, sabiam o que faziam.
--Vamos, meu Julio, assim é preciso. Animo, animo e adeus...
Um abraço os reuniu; e um beijo--um prolongado e triste beijo os separou.
Oito dias depois, Cecilia mostrava a seu pae uma carta de Julio, cuja leitura elle terminou chorando.
--Pobre rapaz!--exclamava o bom do velho, limpando os olhos com as costas da mão.
E voltando-se para sua filha, começou de beijal-a ardentemente.
Doce esperança do céu lhe illuminára a fronte, encanecida na virtude e no trabalho! [113]
Eu não sei qual seja melhor: se o ar do campo, se o ar da cidade.
É certo que muitos preferem a provincia á capital. Tambem é certo que os doentes, por via de regra, se não dão bem nos grandes centros: Entretanto a cidade, se bem que despida da ingenuidade nativa da aldeia, tem para mim o supremo encanto da actividade e do trabalho. O silencio prolongado degenera as mais das vezes n'um aborrecimento [114] deploravel, quando não é elle o gerador de graves e dolorosas molestias.
A cidade tem as suas ruas illuminadas. Os restaurantes attrahem-nos docemente. O ruido dos cafés desperta em nós o desejo da mutua confraternidade. Se por acaso atravessamos uma rua bastante concorrida, paramos instinctivamente; olhamos para as vitrines das lojas, admiramos um objecto mais do nosso agrado, e com isso nos deleitamos.
Sobretudo apraz-nos a cidade no inverno, no tempo em que as arvores, despidas das esplendidas toilettes do verão, se nos mostram tristes e sombrias como a velhice. Então é-nos o calor mui doce e suave lenitivo. Á luz pallida do gaz distendem-se-nos os musculos enregelados, e enchem-se-nos de vida os membros confrangidos.
O café é uma invenção puramente da cidade. Rendez-vous de todas as classes sociaes, é elle para a humanidade o mesmo que a familia é para [115] o homem. Á noite, ao cahir da tarde, quando as tristesas--aquellas vagas e mysteriosas tristesas do crepusculo--começam de entrar comnosco, nós, incitados por um desejo ardente de meigas e salutares expansões, procuramos o café naturalmente. Para alli nos dirigimos, como se elle nos fôra um templo sagrado; lá temos a nossa communhão de ideias e interesses--uma profunda e natural communhão, onde os amigos se encontram e os estranhos se abraçam.
E o theatro? e os circos? e os passeios? e a musica?
Imagine-se, pois, o leitor no theatro de D. Maria. A récita é dada em beneficio de um asylo. A plateia está replecta de espectadores, e nos camarotes, como que resplandecem, em glorioso desafio, as mais encantadoras formosuras de Lisboa: Como se disse no segundo capitulo d'este romance, o drama escolhido para esta noite era a Vida de um rapaz pobre. Apparecêra a Viscondessa, n'uma das frisas da frente, ostentando, um delicado decote, [116] um cóllo d'alabrasto, ao qual estava cingido um valioso collar de pérolas. Proxima d'ella, e na frisa immediata, uma condessa rica, enlêvo dos negociantes accreditados, mostrava uns braços gordos, a cujos pulsos, por egual gordos e sadios, se enroscavam umas pulseiras de diamantes, compradas na mais afamada ourivesaria de Paris. Mais além uma menina loura, ha pouco sahida do collegio, tomava poses incontestavelmente estudadas ao espelho, olhando de soslaio para um moço ainda imberbe, soi-disant litterato de botequim e claqueur improvisado.
E assim succediam os factos, as pessoas e as cousas. Nas torrinhas estavam, segundo o costume, alguns rapazes, ao parecer entendedores--uns bons rapazes despretenciosos, á mistura com alguns operarios zelosos e trabalhadores.
No fim do 3.o acto, quando Alfredo entrava na frisa da Viscondessa, um ignorado personagem se levantou nas torrinhas, replecto de amor e de febre. Desceu as escadas com desusada precipitação, [117] e entrou no restaurante. Pediu aguardente de canna e bebeu, bebeu sempre... Pediu uma folha de papel de carta, e com um lapis que trazia no bolso do casaco, escreveu um bilhete.
Embuçado e trémulo, esperou que o espectaculo terminasse. Quando, por entre a multidão que sahia do theatro, lobrigou a Viscondessa, sem atinar com a intenção dos seus actos, allucinado, doido, perdido--acercou-se della, entregou-lhe o bilhete, e fugiu.
Pobre de ti, meu Julio, espirito leviano e generoso, e agora já transformado em José Xavier, em virtude das leis do teu paiz.
O ar da cidade, para ti renovado, foi o abysmo que se te abriu aos pés.
Sem mesmo querer, olvidavas a aldeia, que te fôra consolação momentanea nas agruras da vida; e n'esse esquecimento involuntario ia-se-te a alma partida com a doce imagem da mulher honrada que por ti velava dia e noite.
Pobre de ti, meu poeta! e pobre d'aquelles, [118] que, como tu, soffrem as mesmas e tristes inconstancias, a cujo horrivel imperio não ha nunca resistir n'este mundo de phantasmas e de vadios.
Pobre de ti! [119]
Quando alguma ideia nos preoccupa o espirito fortemente, o nosso primeiro movimento é estar só, isolado, em intimo colloquio com os nossos desejos.
Momentos ha em que aborrecemos a luz, como supremo escarneo aos nossos soffrimentos. N'este caso é a conversa de estranhos muitas vezes levada á conta de uma ironia pungente. Queremos fallar, e não podemos. Desejamos abrir os olhos, e conservamol-os fechados. Esforçamo-nos por chorar, e [120] as lagrimas não correm. Então, sequestrados da sociedade, e a sós com a nossa dor, imploramos de Deus o soccorro da morte e a hora suave do passamento.
Julio estava perdido. Tentou ser homem, mas embalde.
Pela primeira vez na sua vida entrou n'uma casa de jogo. A sorte foi-lhe adversa.
Com os cabellos em desalinho, os olhos chammejantes, e o corpo numa ancia infernal, entrou o apaixonado moço n'um botequim.
Bebeu, e embriagou-se.
A paixão é muitas vezes creança. O amor é caprichoso, quasi sempre doentio, e por via de regra em extremo exigente.
Ora a febre tem um periodo de excitação, o qual, apenas terminado, gera o aborrecimento e um indefinivel mal-estar.
É louco o homem que ama sem raciocinio, doidamente entregue aos excessos da imaginação e da phantasia. Acima do amor está a amisade. [121]
O amor é um relampago em céu de trovoada: passa, e não dura.
A amisade é um sol que, mesmo atravez das tempestades, se conserva: não tem azas como a aguia, mas em compensação tem raizes como a arvore.
A amisade é sempre amorosa; o amor nem sempre é amigo.
Para amar basta que se seja um bom amigo; para ser amigo é que não basta só o amor.
O amor é um capricho, que póde provir de uma apparencia mal entendida.
A amisade não! A amisade nasce da reflexão combinada com o tempo.
Quantas vezes não é o amor filho do ciume?
Quantas vezes nos não deixamos nós arrastar por uma simples exaltação do nosso temperamento?
A nossa esposa deve ser a nossa primeira amiga. Na convivencia ha tempo para estudo. Ai! d'aquelle que se deixar arrastar pelo fogo das paixões, [122] porque para esse devem ser as as desillusões um quasi assassinato moral.
Julio estava cego; caminhando ás apalpadellas mal podia atinar com o caminho.
Depois de ter jogado, depois de ter bebido, sahia para a rua.
Se o jogo é como o vinho uma embriaguez, nem porisso o amor deixa de o ser tambem.
Quasi nunca a paixão apparece só. Um homem apaixonado é um aventureiro, um espadachim, que anda atraz da sorte, desafiando-a. E porisso é que os tres irmãos gemeos--o jogo, o vinho e o amor--caminham sempre unidos e accordes.
Julio, ébrio, ameaçou as estrellas, riu-se da lua, escarneceu do céu, e insultou-se a si.
A embriaguez tem d'estas oscillações inexplicaveis: no principio é vigorosa, athletica, muscular, até que a pouco e pouco enfraquece, tornando-se inerte, covarde, miseravel: similhante a um homem que, cahindo no abysmo, solta a principio [123] uns gritos agudos, lancinantes, e que a final, desesperado e sem força, se deixa escorregar para o fundo, onde adormece no leito do universal esquecimento.
Julio, sem ser cadaver, era no entretanto um
alucinado. E o alucinado só dista do cadaver, em
que aquelle é um morto ambulante, ao passo que
este é apenas um morto inerte, estupido e incapaz
de movimento.
[124]
[125]
Apenas sahido do theatro o primeiro pensamento de Julio fôra suicidar-se.
Alguma cousa, porém, impossivel de explicar-se, o prendia á vida. Demais elle era novo; contava vinte e seis annos, se tanto; possuia aspirações em larga escala; vastos affectos lhe referviam na mente escaldada. É verdade que até ahi a pobresa o não deixára sahir do seu silencio. Que lhe importava, comtudo, a obscuridade do presente, se o futuro lhe podia ser de amor e de rosas? [126]
Uma lucta desesperadora se lhe travou então no espirito irrequieto.
--Sim! a vida--exclamava elle--oh a vida... e chama-se a isto vida... Mas se ella de facto me pertence, porque me não hei de eu desfazer della? se por naturesa, Deus me creou livre; se para mim nada existe na terra, além d'este fardo importuno a que chamam miseria, para que persistir n'elle. Não! É mister sahir d'este salão, d'este vil salão! cuja área denominam universo: procurar um outro, cujo começo é o cemiterio, e o fim, talvez, a eternidade da materia... Os homens... que são os homens? uns tristes egoistas sem consciencia e sem pundonor, uns mercenarios torpes, altivos invejosos e estupidos... perfeitamente como os outros animaes... Mas aquella mulher! e qual? Cecilia? oh, Cecilia é uma andorinha cheia de castidade, muito pura e muito simples. E depois--que lhe devo eu? se me teve amor, tambem eu a amei... se me deu affectos, tambem eu lh'os retribui. Acima d'ella, porém, está a Viscondessa. Comparál-as? oh! [127] não, por Deus, Cecilia é uma pobre rapariga sem arte; falta-lhe a elegancia da Viscondessa, não sabe fallar, não se sabe vestir, não se sabe pentear... para que hesitar, pois? Ah! louco, que eu sou na verdade! mas se esta imagem me persegue por toda a parte, se a não posso apagar da memoria, porque me está aqui parada, aqui, aqui bem dentro, n'este coração maldicto... Sou pobre! Embora! tornar-me-hei rico; irei ao Brazil; amontoarei dinheiro sobre dinheiro; far-me-hei negociante e vendedor de café.
Assim monologava o moço operario, de si para comsigo, sem outro alento que não fosse uma paixão profunda, ardente, vulcanica. Sobre a espaçosa fronte cahira-lhe o cabello n'um singular desalinho. Os braços, crusados ao longo da mesa, bem patenteavam a afflicçao que n'aquelle momento o devorava. No interior do peito referviam-lhe as negras chammas do supplicio--aquellas chammas infernaes, remordentes, que nos são, como que o appêlo de Satan sobre a terra. [128]
Adormeceu. Um languido torpôr se lhe apossou dos membros cançados. N'esses raros momentos de nervosa agitação, uma hora de somno vale mais positivamente, muito mais, do que uma noite bem dormida.
Quando voltou a si era dia claro no horisonte. Abriu a janella, e tomado d'uma ancia incuravel, alongou os olhos pelas montanhas longinquas. Similhante ao peregrino, que, com os olhos ávidos, mede a extensão do deserto, assim elle tambem mediu a extensão da sua dôr. Se era grande ou pequena, só o espirito ao certo lh'o poderia affirmar.
Entretanto a Viscondessa, nem sequer se lembrára mais do bilhete recebido no theatro. No dia seguinte, porém, seriam quatro horas da tarde, quando Virginia lhe annunciou a visita de um operario.
A Viscondessa, na sua proverbial delicadesa, mandou-o entrar para a sala.
Um minuto depois parava ao limiar da porta [129] um sympathico rapaz de bigode preto, macillento e moreno. Trajava modestamente uma bluza azul e uma calça côr de cinza.
--Disseram-me que a senhora Viscondessa precisava de um creado--principiou o desconhecido.
--Como se chama?--interrompeu a senhora.
--José Xavier.
--José! pois bem: agrada-me o nome. Póde ficar. Virginia que lhe diga o que tem a fazer.
E, sem mais, virou-se a viscondessa para o outro lado, retomando a primitiva posição.
Ao jantar alguns incidentes notaveis se deram. Julio servia á mesa. Com os olhos sempre fitos na Viscondessa mal pestanejava, o pobre do rapaz. Por algumas vezes lhe cahiram os pratos da mão; por algumas vezes substituiu um prato lavado por um outro sujo; por algumas vezes se riu Virginia a bom rir. Para tal, porém, nem sequer a ama reparou em meio das suas caprichosas divagações.
Os dias iam correndo em silencio. Julio, ardendo em amor, seguia, como um cão, os mais insignificantes [130] passos da Viscondessa. Quando ella passava pelo corredor, occultava-se atraz das portas; se podia, beijava-lhe a fimbria do vestido; quando ella sahia, entrava-lhe no quarto de vestir e ali se ficava horas esquecidas n'uma d'estas allucinações que só conhecem os espiritos febris e nervosos. N'um momento de cegueira, roubara-lhe o, retracto do album; com elle adormecia todos os dias, e com elle tambem entrava no serviço da casa.
Entretanto o diabo arma-as, quando menos a gente as espera.
Julio penetrára no quarto de sua ama. Involuntariamente se demorou mais do que o costume. A Viscondessa entrou cêdo n'esse dia. O escudeiro mal tivera tempo de se esconder d'entro de um guarda-roupa.
Ia Virginia, segundo o seu habito, a abrir o armario; quando Julio, dando um pulo para fóra, deixou espavoridas ama e creada.
--Ai! credo! Jesus! gritou Virginia--Ladrões em casa; ladrões, minha senhora. [131]
--Que é? que é?--exclamou a Viscondessa.
--Pois não viu? O tratante do José aqui fechado!
--O José--retorquiu a senhora!
--O José, sim, minha senhora, o José...
--É verdade, senhora Viscondessa; fui eu, fui eu que commetti este enorme attentado--obtemperou Julio, trémulo de colera e de raiva. E para prova, aqui me tem a seus pés, sollicitando-lhe perdão.
--Virginia, disse a Viscondessa, paga a este miseravel, o manda-o embora.
--Já, minha senhora.
--Bem me queria a mim parecer--murmurava
a esperta da creada--que aqui andava sua
cousa encoberta.
[132]
[133]
Será verdade que o coração tambem falla?
Uma cousa é amar, outra cousa é desejar. O amor deriva do coração, foco de toda a vida humana; o desejo nasce dos sentidos. Ao primeiro pertence o amor-sentimento, ao segundo o amor-sensação. Até aos trinta annos o amor póde dizer-se sentimento; o que, por via da regra, não succede já d'ahi por deante, em que elle se transforma n'um desejo material.
O amor depende, sobretudo, da educação; e [134] assim póde ser maior ou menor, consoante o estado moral do individuo em que elle se manifesta.
O amor mais verdadeiro é aquelle que se não exprime. A attracção de sympathias deve dar-se naturalmente sem necessidade de expansões, que lhes viciem a puresa inicial.
O selvagem, por exemplo, ama até ao ciume. Quando não póde saciar os seus desejos, apunhala-se a si ou apunhala a amante. É que o selvagem, na sua natureza desordenada, é um diamante por lapidar.
O ciume accusa falta de confiança na mulher a que nos dedicamos, só por um inconcebivel egoismo poderemos ser arrastados a um vicio tão execrando, como abjecto.
Julio amava a Viscondessa com um amor selvagem, forte, violento. Tinha ciumes della; seguia-a por toda a parte; e não raro succedia fechar-se n'um quarto, e ahi, com o retracto deante de si, chorár e chorar copiosamente.
Ora a Viscondessa era de facto uma mulher [135] bem educada, mas soberanamente viciada pela lisonja dos homens.
Tres são de ordinario as causas do orgulho na mulher: a formosura, a riquesa e o nascimento.
A formosura, pela demasiada contemplação das proprias qualidades, gera o coquettismo; a riquesa a vaidade; o nascimento a soberba.
A mulher formosa tem em si mesmo a causa da sua destruição. Lisonjeada pelos homens, torna-se inconstante. Depois, note-se--a inconstancia é um excesso de ternura, uma superabundancia de bondade.
A simulação é propria ás mulheres. Ao amor fingido de uma mulher corresponde de ordinario o amor mentiroso de um homem. As mulheres fingem, porque, desde creanças, as ensinaram a fingir. É um vicio de educação.
A riquesa é a antithese da virtude. Foi a pobresa que gerou a caridade. Mulher rica é mulher, quasi sempre, voluntariosa; muito senhora de si, deseja ser obedecida como rainha. [136]
O nascimento nem sempre é um prejuizo. Ha mulheres aristocraticas em cujas acções se revela a suprema distincção. É mais para temer-se o excesso de republicanismo, do que o excesso de aristocracia.
A Viscondessa era simultaneamente formosa, rica e nobre. Se desattendia as expansões do operario, invisiveis para ella, não era tanto por orgulho, que realmente não tinha, como, e principalmente, por uns ligeiros, mas inapagaveis, vestigios da infancia.
É justo que o coração do homem seja equilibrado pela intelligencia da mulher. Mas Julio amava sem ser amado, o que é decerto uma loucura, baptisada com o nome de martyrio.
Amor não correspondido, é amor que degenera em odio.
Homem allucinado não reconhece meio termo: ou ama com paixão, ou odeia com rancor.
Julio, qual outro viajante, deixara-se seduzir por uma miragem doce e agradavel. Olhou. A vertigem [137] toldára-lhe a vista. Quando descerrou as palpebras á luz do dia, um peso enorme lhe obscurecia o cerebro. Quiz pensar e não pôde.--Mas que terei eu, interrogava a si mesmo. E, em redor d'elle, tudo annunciava um vago e mysterioso silencio.
Estava apaixonado.
O coração batia-lhe d'entro do peito com viva e prolongada violencia. A cabeça era fria, e os sentidos mal davam accordo de si.
Ai! d'aquelles que só a voz do coração escutam,
porque para esses é a paixão um ignorado
martyrio e a vida um tristissimo cemiterio.
[138]
[139]
Era um gosto entrar a gente em casa do sr. Francisco Alves. Tudo respirava ali um aceio, por tal fórma invejavel, que o espirito em verdade se sentia bem, muito bem, ante aquella limpesa, tão rara em Portugal como prodiga em qualquer outro paiz.
No bairro de Alcantara era o sr. Francisco conhecido como um modelo de philantropia e de bons sentimentos. Os jornaes por vezes resavam [140] da sua pessoa, assim como da sua catholica esposa, a sr.a Felisbella de Menezes.
Emfim o sr. Alves era modesto sem ostentação, simples sem atavios, e amavel sem rancor.
O sr. Francisco Alves era o que em boa linguagem se póde dizer--um portuguez de lei.
De um rico tio provinciano herdára elle uns dez contos de reis, em metal sonante, com os quaes comprou uma mercearia bem fornecida e já bem accreditada na capital.
Atirou-se, pois, o sr. Francisco ao negocio, e sempre com fortuna e sempre com bons auspicios.
Um dia virou-se elle para a esposa, e disse:
--Ó Felisbella, se tu quizesses, uma vez que foi esteril o nosso matrimonio, traziamos um rapasito para casa, e adoptavamol-o como nosso filho? Que dizes?
--Olha, menino--tu bem sabes que eu estou por tudo o que tu quizeres. Vae tu mesmo a um [141] asylo se assim te apraz, e escolhe-me lá um pequenote; mas que seja bonito, entendes?
--Pois está dito, mulher! amanhã tratarei d'isso.
E, com taes intenções, deitou-se á noite o sr. Francisco Alves, n'um bello colxão de commoda lã.
Veio o rapaz para casa. A sr.a Felisbella queria-o para doutor, o sr. Francisco, para merceeiro.
O pequerrucho era engraçado, muito engraçado, cheio de bons ditos e de palavras amaveis.
Á sr.a Felisbella tratava elle por mamã, e ao sr. Francisco por papá.
--Sempre tem uma graça, este pequeno!--dizia o Alves, ás vezes para a mulher.
--E os ditos então? se tu lh'os ouvisses... retorquia a bondosa da sr.a Felisbella.
--Pois, menina, parece-me que dá em doutor o diabo do rapazelho.
--Ora! se eu bem t'o dizia.
--E tinhas razão, tinhas, lá isso tinhas. E ha de ser um doutor, assim elle queira. [142]
O rapaz cresceu. Foi para a escola, e deu boa conta de si. Foi para Coimbra, e tomou grau em direito. Depois metteu-se advogado, e é hoje um dos mais distinctos homens de lettras do nosso paiz. Sempre grato á sr.a Felisbella, visita-a todos os dias. Ao sr. Francisco Alves já advogou algumas questões, e, ao parecer, com gloria para ambos.
Não parava, porém, aqui a abnegação do sr. Francisco.
Acontecia frequentemente elle vir para casa mais tarde do que desejava. Se por acaso encontrava algum pobre estendido na rua, ao relento e ao frio, levantava-o, e trazia-o comsigo. Chegado ao lar mandava-lhe arranjar uma boa ceia, vestia-o no dia seguinte, e deixava-o seguir o seu caminho.
E a isto, leitor generoso, chama o mundo ser boçal. [143]
A nossa sociedade é essencialmente burguesa. Actualmente todos gritam contra o burguezismo, e entretanto ninguem está isento d'esse peccado, se peccado se lhe póde chamar. E cousa singular! ao passo que a aristocracia vai descendo até ás regiões do plebeismo, a burguezia, por seu turno, eleva-se, e tenta em breve ser a Excellencia do paiz.
O moderno fidalgo portuguez não existe já. Antigamente um aristocrata, pur sang, tornava-se respeitavel por uma educação sisuda e por uma [144] illustração opulenta. Hoje dá-se perfeitamente o contrario. O bom fidalgo, faia de recente data, abandalha-se na convivencia dos cocheiros, tocando o fado pelas ruas, durante a noite, picando touros, usando jaqueta e facha de seda e vivendo entregue á ociosidade, que é o vicio, e á embriaguez, que é a doença e muitas vezes a morte.
Outr'ora havia um certo pundonor em conservar intactas as tradições de familia, demonstrando-se assim que a honradez do nome é um dever sacrosanto para verdadeiros fidalgos.
Agora não! Uma pateada, dada num theatro a uma actriz, um conflicto levantado em qualquer praça publica, uma desobediencia á authoridade, um adulterio commettido com a mulher do seu amigo intimo: tudo isto são peripecias galantes para a nossa mocidade, que, á falta d'outro, tem o estimulo do egoismo e da arruaça.
Ora eu peço licença a s. ex.as, os srs. viscondes, para lhes notar que não é esse o caminho da nobresa. Deus me defenda de offender melindres, [145] que muito longe estão d'esta regra. Excepções existem, e aliás excepções respeitaveis.
Afigura-se-nos, porém, que a instrucção é presentemente mais peculiar á burguesia do que á aristocracia. D'entre os burgueses raro é aquelle que não tem a sua livraria sufficientemente enriquecida de bons auctores, e rarissimo ainda mais aquelle que não lê tres ou quatro jornaes todos os dias.
Os filhos da burguesia seguem as escolas publicas, occupam os primeiros logares do estado, e possuem actividade e intelligencia em larga escala.
Onde existe maior gráu de moralidade: na aristocracia ou na burguesia? E o trabalho, d'onde sahe elle? E as revoluções, a quem as devemos nós, senão á burguesia?
Não ha classe alguma da sociedade que, passado um certo numero de annos, se não corrompa.
As classes são na sociedade como as instituições: [146] gastam-se e aniquilam-se, decorrida uma certa phase historica.
A burguesia vai cahindo nos mesmos defeitos da antiga nobresa--sabemol-o; sem embargo a burguesia tem ainda vantagens sobre a aristocracia.
Entre a burguesia e a plebe existe, porém, uma outra classe, que ao mesmo tempo participa da segunda pelo seu nascimento e da primeira pela sua actividade: esta classe não tem nome; vive do producto das suas lojas, das suas propriedades e da sua economia. A ella pertencia o sr. Francisco Alves, expressão de bondade christã e de virtude evangelica.
Aos domingos encontram-se estes pequenos negociantes--que outro nome não sei eu que elles tenham--em longo e aturado passeio pelos campos e pelas estradas. Ahi, reunidos em familia, comem o seu pedaço de queijo com pão, e bebem o seu meio quartilho de vinho. E isto apenas aos [147] domingos, que, aos dias de semana, a alvorada vem quasi sempre encontral-os no trabalho.
O sr. Alves enfileirara-se n'este grupo ignorado, e delle herdára os habitos e as tradicções.
E o certo é que se não foi um anjo, na verdadeira
acepção da palavra, foi pelo menos um bom
homem, honrado e caritativo.
[148]
[149]
N'uma noite tempestuosa em que a caridade, silenciosa sempre e occulta quasi sempre se encarrega de velar pela miseria sobre a terra,--voltava o sr. Francisco Alves a Alcantara, onde anciosamente o esperava a carissima metade da sua alma.
Na occasião, porém, em que descia a calçada da Pampulha, notou elle vagamente uma sombra que a um recanto permanecia n'uma mudez quasi sepulchral. Aproximando-se, reconheceu um homem, mais cadaver do que outra cousa. A tristesa tomou-o, [150] então, dos pés á cabeça. Cheio de terror, livido, nervoso, lembrou-se o senhor Alves de chamar a policia. Não era essa, todavia, a tendencia do seu coração generoso e leal. Emfim esperou. Casualmente passava um trem de praça. Chamou o cocheiro, e levantando o homem que elle supposéra ebrio, introduziu-o na carruagem.
A sr.a Felisbella, como de antiga e patriarchal usança era n'aquella casa, resava a sua corôa, correndo o rosario entre os dois dedos da mão direita--o index e o polgar. Auxiliava-a em tão piedoso, quanto catholico mister, uma creada velha, beata pelos modos, quarentona já, mas amiga da sua ama.
A sala, em que ellas estavam, chamada casa de engommar, representava um quadrado perfeito, com vinte pés de comprido sobre vinte de largo, rodeada por doze cadeiras de coiro, antigas, segundo todas as apparencias, herdadas de parentella abonada.
Ao centro, uma mesa de páu preto, caprichosamente torneada, recebia invariavelmente, todas [151] as noites, um velho candieiro de metal amarello, comprado n'um leilão de ferros velhos.
O sr. Francisco Alves, entrando em casa, nem sequer se déra ao trabalho de incommodar sua mulher. Arrastou o moribundo para um quarto, cuja cama principalmente sobresahia pela alvura da roupa, e foi elle mesmo chamar um medico.
N'este comenos concluía a sr.a Felisbella a sua nocturna devoção. Ignorando tudo o que em volta d'ella se passava, pegou no candieiro, pela aza superior; e, arrastando-se com difficuldade--porque a sr.a Felisbella era gorda e rheumatica--dirigiu-se para o quarto, parando no corredor umas tres ou quatro vezes.
A ausencia do marido incommodava-a, porém, sobremaneira. Terá elle sido preso?--monologava ella de si para comsigo.--Mas o meu Francisco nunca foi atreito a barulhos. Nada. E quem me diz a mim que algum namorico...
E n'estas duvidas adormeceu a esposa do sr. Alves, merceeiro. [152]
A noite, como todos os contrastes d'este mundo, corrêra alegre para uns e triste para outros. A sr.a Felisbella dormira umas boas oito horas, ao cabo das quaes acordou, pensando no sr. Francisco.
--Ó Francisco, Francisco!--gritava a pobre da mulher com toda a força dos seus pulmões.
E o sr. Francisco Alves assomou ao limiar da porta.
--Queres-me alguma cousa, Felisbella?--respondeu elle.
A mulhersinha enfiou, apenas viu o marido. Não sabendo com que desculpar-se, calou-se. Porque a sr.a Felisbella--diga-se já de passagem--respeitava devéras o sr. Francisco, a quem na sua mocidade entregára o coração e a vontade.
Como quer que fosse, porém, o sr. Francisco, prudente como os que o sabem ser, entrou por si mesmo em explicações. Contou tudo o que durante a noite lhe havia occorrido; recommendou finalmente o rapaz á vigilancia de sua mulher, e sahiu.
Quando á tarde voltou a casa, communicaram-lhe [153] que o doente já fallava. Alegrou-se. N'esse dia bebeu mais um cópo de vinho ao jantar, e deu um beijo na face direita da sr.a Felisbella.
Decorrêra um mez.
Em casa do sr. Francisco Alves reina uma alegria desusada. É domingo. Preparam-se todos para ir jantar ao campo. A sr.a Felisbella dobra o seu chale de toukin branco e calça a sua luva de retroz preto. O sr. Alves leva um chapéu de palha do Chili. E o nosso doente--agora já restabelecido e companheiro de passeio--traja modestamente um fato preto.
A comitiva, assim composta, seguia para Queluz. Impossivel nos fôra descrever a amizade que n'esse dia reuniu aquelles tres entes queridos.
O sr. Francisco Alves brindou o seu hospede, appellidando-o com o doce nome de filho. A sr.a Felisbella sorriu devotamente; e a creada, a velha creada, exclamou sentenciosamente:
«Deus sabe o que faz!»
[154]
[155]
Na escolha do espectaculo manifesta-se, em geral, o bom gosto do espectador. Não quero eu com isto dizer que, muitas vezes, não seja a curiosidade o motor das nossas acções; mas, emfim, o que cumpre saber-se é que n'um theatro, n'um circo, n'uma exposição está, por via de regra, representada a civilisação de um povo.
O theatro é hoje o rendez vous da moda. Nos espectaculos, e á vista de dramas perfeitamente phantasticos e inuteis, aprendem as nossas elegantes [156] a soletrar os primeiros rudimentos do amor, do coquettismo e as supremas illusões.
Durante a representação, que devia ser eschola e estudo, occupam-se os rapases em averiguar procedencias amorosas, em discutir escandalos, em calumniar mulheres, em fomentar pequenas intrigas de bastidor, emfim, em passar a vida, rindo á custa dos similhantes.
Ora a missão do theatro não póde, por fórma alguma, estar reduzida a um mero passa-tempo, sem realidade e sem vantagem, que se possa dizer immediata. O theatro não é simplesmente um divertimento para os olhos, mas ainda mais uma lição para o espirito. Não se tracta apenas de seguir a moda, o figurino, com receio de que os outros nos taxem de retrogados, de inconvenientes, de provincianos. Por modo algum. Aqui o caso muda um tanto de figura. É preciso que da nossa parte, haja o bom gosto na escolha e o bom-senso da critica. Aliás não passaremos nunca de uns miseraveis authomatos, sem consciencia, sem dignidade e sem brio. [157]
Um dos primeiros empenhos do nosso seculo é agradar. E se é certo que o habito não faz o monge, tambem não é menos certo que o monge se conhece pelo habito.
É á França, aquella França egualmente grande pelo pensamento e pela frivolidade, que nós devemos a introducção dos figurinos na sociedade europêa. E note-se que o figurino em tudo preside actualmente, por infelicidade nossa--na mesa, na litteratura, na industria, no commercio, nas artes, na sciencia, absolutamente em tudo. Nas altas classes sociaes pelo trajo de um homem avalia-se o trajo de todos os outros homens. No campo da poesia pelo realismo de um poeta avalia-se o realismo de todos os outros poetas. E assim seguidamente; porque a uniformidade, embora o não queiram, é uma lei dos nossos costumes e das nossas cousas.
A elegancia é uma prova de bom gosto, indubitavelmente. Mas a elegancia, como tudo o que nos pertence, deve ser individual, variada, como o [158] sentimento humano, e distincta, como o gosto de cada um, isto é deve ser original.
Durante o inverno, por exemplo, vai-se ao theatro lyrico, não tanto porque a musica nos delicie o ouvido e nos eleve o espirito, obrigando-nos á concentração e á melancholia, mas, sim, e principalmente, porque é do bom-tom, é chic ter assignatura em S. Carlos.
E apregoam-se já os beneficios da musica classica, como se a nossa educação e o nosso temperamento nos permittissem ser uns perfeitos entendedores das harmonias eminentemente profundas de Mozart, de Beethowen, de Sthephenheller, de Schubert e d'outros mais.
D'aqui infere-se naturalmente que nós, um povo peninsular em quem deviam brotar as magneticas expansões e os ardentes enthusiasmos, apenas somos uns meros escravos da moda, indolentes por habito, sem o ideal que seduz, e privados do raciocinio que illustra.
Os risos, francamente abertos e sinceramente [159] verdadeiros, sóem ainda encontrar-se nas classes medias, semi-burguesas, para assim o dizer. Só o trabalho póde dar alegria. E porisso os que não trabalham conservam o sorriso quasi permanentemente ao canto da bocca, um sorriso amarello, felino, sorriso desgostoso e desconfiado.
O sr. Francisco Alves sabia rir, porque tambem sabia trabalhar. Não frequentava os theatros, porque, á similhança dos da sua egualha, desconhecia a moda totalmente. Vivia para a familia e com ella se divertia. Tambem tinha amigos. Aos domingos chamava-os, reunia-os a si, e ia para o campo, ficando-se por lá até á noite.
Comendo, bebendo e rindo á vontade, o sr. Alves estava no seu paraiso, longe da serpente que tentou Eva a comer do fructo prohibido, perfeitamente a bem com Deus e comsigo mesmo.
Bem hajam os que, como elle, comprehendem
por este modo a felicidade sobre a terra!
[160]
[161]
Um dia a sr.a Felisbella apparecêra de luto na missa da Ajuda, dando o braço direito a um sympathico moço, alto e moreno.
Francisco Alves já não era d'este mundo. A mercearia passára a outro dono.
«E uma vez que tanto lhe devo, sr.a Felisbella--dizia o desconhecido uma noite--forçoso se me torna narrar-lhe toda a minha vida. Fui pobre, sem recursos. Minha mãe morreu-me nos braços. Coitada! Por amor de mim soffreu e por [162] amor de mim morreu tambem. Eu quiz trabalhar, e não encontrei trabalho. Um dia prenderam-me sem culpa formada. Evadi-me da cadeia. Vagueei incerto até que um honrado camponez me acolheu em sua casa. Amei-lhe a filha, com quem prometti casar. Era uma boa rapariga; chamava-se Cecilia. Envergonhei-me de estar n'aquella casa sem nada fazer. Ella comprehendeu-me. Juntou as suas economias, e atirou-mas ao regaço. Que prodigiosa abnegação, sr.a Felisbella! E eu que até então me chamava Julio vim para a cidade com este nome supposto. Alguns mezes se passaram. Uma noite--que maldita noite aquella, minha senhora!--fui ao theatro de D. Maria. Olhei para um camarote, e fiquei fascinado com o rosto de uma Viscondessa. Depois vieram as allucinações. Tentei esquecer-me d'ella, mas embalde! Fiz-me seu escudeiro. Apanhado n'um armario, fui despedido por ladrão. Depois, oh! depois, cahi doente. O sr. Alves encontrou-me...
(A sr.a Felisbella limpou uma lagrima). [163]
... e encontrar-me elle, o mesmo foi que estar eu com a Providencia. Passou-me a loja--que me deu fortuna, e sobretudo passou-me o seu nobilissimo espirito, que Deus tem em sua santa paz. A sr.a Felisbella sabe como eu o amei. Se nunca lhe pedi que me tratasse por Julio, e não por José Xavier, foi--Deus me perdoe,--por suspeitar que elle se irritasse contra mim.
E Julio, ajoelhando, beijou as mãos convulsas
da sr.a Felisbella de Menezes.
[164]
[165]
Para muito se amar, quer-se silencio e solidão--dizia Balzac.
O amor é por natureza melancholico. Quem ama, soffre. A melancholia não é uma doença physica, é apenas uma enfermidade moral.
Uma cousa é a tristesa, outra cousa é a melancholia: a primeira parte da intelligencia e é, por via de regra, filha de intimas preoccupações; a segunda origina-se no coração, e nasce de um sentimento, que só por meio da pallidez do rosto [166] exteriormente se manifesta. A velhice é quasi sempre melancholica.
Entre a melancholia e a saudade existe uma profunda analogia: ambas se concentram e ambas se alimentam no mesmo ideal, no amor.
A sr.a Felisbella de Menezes, nos seus dias de vagar, sentava-se á janella, e apoiando o queixo sobre as mãos, olhava vagamente as montanhas, os rios e o céu.
Atravez a nuvem que passa e a estrella que scintilla e a lua que enbranquece, existe sempre uma doce esperança infinita, ethérea, incommensuravel, que nos é como que o acordar de um sonho de primavera.
Esperar é desesperar--diz o rifão. E entretanto todos esperam; porque a esperança é o futuro, o glorioso amanhã da humanidade que soffre.
Para a mulher não existe o passado. Que importa o amor, que hontem se finou com a ingratidão de um amante?
Deixae-nos correr um véu sobre as alegrias [167] de hontem. Deixae-nos esquecer, fingindo ignorancia e despreso.
O presente é um logogripho, que ninguem decifra. Se agora somos felizes, quem nos diz, todavia, que essa felicidade se ha de prolongar, tornando-se eterna e duradoura?
Ao passo que a curiosidade nos estimula o espirito em differentes direcções, a esperança, pelo contrario, apenas nos incita na direcção de uma linha recta, cuja extensão é o infinito, vagamente illuminado pelo sol do futuro.
Oh! o futuro é a dourada cadeia, que põe directamente a terra em communicação com o céu; o futuro, o que ha de vir, é sempre um orvalho, que dulcifica os amargores da desventura.
Perguntae ao desgraçado que força occulta e mysteriosa o prende ainda a este mundo de miserias.
Perguntae ao sabio porque estuda, e ao operario porque trabalha, e á mãe porque ama, e ao filho porque obedece. [168]
A esperança, para espiritos bem-formados, não é simplesmente uma suave illusão, mas ainda mais uma verdadeira necessidade da nossa existencia.
Esperar é trabalhar com ardôr, viver com fé, existir com crença e amizade.
De todas as virtudes sociaes a primeira inquestionavelmente é a esperança.
O homem, de ordinario, procura a felicidade; a mulher espera-a. Por isso a condição da mulher, embora mais triste e desconsolada que a do homem, não deixa ainda assim de ser suavemente acariciada pelo balsamo do céu.
Ser feliz é saber esperar,
Julio adquirira em pouco tempo esta sciencia da vida, graças aos bons conselhos da sr.a Felisbella de Menezes.
Crêr, esperar e amar--taes são as tres joias preciosas, sem as quaes a educação se tornaria esteril e inutil.
Sem crença não póde existir a sublime dedicação [169] de esposa nem a adoravel abnegação da mãe.
Sem amor, impossivel seria a vida da mulher, cuja missão é christãmente consoladora e amiga.
Mulheres, que viveis na desgraça, se quereis ser felizes--acreditae no santo amor de um filho, esperae de Deus a crença na maternidade, e vivei na intima e doce consolação de vossos maridos.
A familia é amparo da misaria e arrimo dos que soffrem.
Felizes os que sabem cumprir sobre a terra a
primeira e a mais indiscutivel lei da natureza!
[170]
[171]
São decorridos quatro annos.
A Viscondessa, docemente reclinada numa chaise longue, lê os annuncios do Diario de Noticias, sorvendo, de quando em quando, uns gólos de café, com a evangelica paciencia de uma mulher aborrecida.
Ao longo da parede do quarto destacam alguns quadros, representando, entre outras, as magestosas imagens de Ninon de Lenclos, de Marion Delorme, [172] de Madame Pompadour, da Dama das Camelias, etc.
São nove horas da noite. Alfredo chega; põe o chapéu em cima d'uma ètagere, onde, por acaso, se encontram algumas musicas em desalinho, e, accendendo resignadamente um charuto havano, vem sentar-se n'uma cadeira, defronte da Viscondessa.
Virginia, entrando pouco depois, trouxe uma bandeja de prata, coberta de pequenas garrafas de licôr.
Alfredo sorri-se, o, com os dedos da mão esquerda, dá um geito gracioso ás guias do bigode.
A Viscondessa, erguendo-se, dirige-se, a passo lento e medido, na direção da porta de entrada.
--Então já Mabilia? (Era este o nome da Viscondessa.) Porque eu entrei, assim te retiras immediatamente. Comprehendo tudo. Declaraste-me um amor profundo, ethéreo, como só o sabe ter uma virgem, e hoje nem sequer alimentas por [173] mim uma indifferença vulgar, uma d'estas indifferenças que um estranho facilmente dispensaria a outro estranho. Pobre de ti, desgraçada, que jámais serás feliz n'esta vida... Quizeste ser rainha, não é verdade? ao meu amor unico preferiste uma coterie numerosa, aduladora, que te lisongiasse o paladar já extincto? Pois bem: tu te arrependerás um dia. Até lá, porém, lembra-te que será eterna e implacavel a minha vingança, eterna como a Providencia e implacavel como a tyrannia.
--E és tu quem me falla em vingança; tu, Alfredo, a quem eu, ainda pura, loucamente entreguei o meu coração e o que é mais ainda a minha honra... tu! o miseravel, que jurando amar-me te rias de mim nos botequins e nos restaurantes; tu, emfim, o cynico seductor da minha ingenuidade e da minha singelesa... oh! não... por Deus, não...
Alfredo, levantando-se, aproximou-se da Viscondessa, e, tomando-lhe a mão direita, que elle [174] apaixonadamente comprimiu contra o peito, prorompeu nos seguintes termos:
--Mas ouve, Mabilia--tu bem vês que eu te amo; pois não reparas como enlouqueço, se me negas a tua affeição? oh! não! tu não has de ser tão cruel, que me despreses assim de um momento para o outro, não é verdade! Ora escuta: não vês como bate este nobre coração? e tu has de deixal-o assim... não... tu és boa, eu bem sei, e serias incapaz de commetter um crime...
--Alfredo!... Alfredo!...
--Falla, Mabilia... dize, dize que ainda me amas só uma vez... e eu serei teu, teu para sempre...
--Que te amo!... oh! se te amo!...
E a Viscondessa, pallida, cahiu desmaiada nos braços do seu amante.
No horisonte uma nuvem, passando, toldara momentaneamente o reflexo do luar. Um doce silencio envolvia o aposento da Viscondessa, cuja [175] face livida se reflectira de um modo estranho á superficie de um longo espelho de Venesa. Junto d'ella, ajoelhado quasi, estava Alfredo, singularmente excitado e nervoso.
Um ignorado personagem, de longa barba até ao peito, baixo e gordo, assomou ao limiar da porta.
--É a segunda vez, senhor Alfredo, que tenho a honra de o convidar a sahir d'esta casa, disse o intruso.
--Com que direito?--retorquiu Alfredo, virando-se.
--Com o direito que me dá a minha honradez sobre a sua miseravel corrupção.
--Senhor!..
--Duas palavras ainda; por Deus! não vale zangar: esta senhora que ahi está prostrada e quasi morta, foi uma victima do seu cynismo, entende? É mister que tudo isso seja pago e quanto antes. Aqui tem.
E passando-lhe uma pistola para a mão, o desconhecido, [176] medindo dez passos na sala, tomou a defensiva.
--Espero que a sua covardia se não estenderá ao ponto--continuou elle--de fazer com que, em vez de um duello, se dê um assassinato n'esta casa.
A Viscondessa, languida e sensual, descerrou as palpebras com infinda morbidez.
No relogio da sala soavam onze horas da noite.
No céu a lua era sem mancha.
Um leve ruido apenas se deixava ouvir, produzido pelos passos na calçada.
Subito uma detonação feriu os ares.
Alfredo, allucinado, desfechára a pistola sobre o desconhecido.
Uma nuvem de fumo envolveu, conjunctamente, a Viscondessa, a este tempo já restabelecida, e o seu mysterioso protector, inanimado, ferido e quasi cadaver.
Virginia correu veloz.
A Viscondessa, soluçando tristemente, chamava [177] ainda Alfredo, sem de modo algum haver notado a sua rapida fuga.
--Como eu sou infeliz, meu Deus!--exclamou ella.
E ao longe só os echos lhe repetiram os queixumes
magoados.
[178]
[179]
A mulher nasceu para realisar a sua felicidade por meio do matrimonio.
Sem familia, pedra angular do grande edificio, chamado humanidade, o progresso seria uma vã mentira e a civilisação um triste retrocesso.
O matrimonio é um complemento da vida humana. Se é verdade que para o desenvolvimento do corpo carecemos de alimento e de hygiène, tambem não é menos verdade que para o desenvolvimento [180] do espirito carecemos de amisade e de consolações.
Não ter familia o mesmo é que sentir o vacuo do espirito, isto é, o isolamento da propria existencia e o horror da propria vida.
A prostituição da mulher não é simplesmente um vicio, por todos os titulos condemnavel: é mais ainda--é a ausencia da familia.
Quantas mulheres se não terão perdido á mingoa do carinho maternal!
Entrae nos bordeis. Percorrei serenamente esses antros sombrios, onde a sordidez se enlaça com o crime. Analysae o riso bestial da mulher perdida. Não! Ella não se ri, porque ella, filha bastarda de uma sociedade, que a repudia--ella, apenas, sabe contrahir-se, agitar-se, fingir, e á maneira de uma féra, aproximar-se dos que lhe trazem comida.
A mulher, que uma noite se vê sem pão, sem officio, sem familia, prostitue-se ao amanhecer.
E o mundo--que ingrato mundo!--cospe-lhe [181] na face o negro anathema do desdem o do desamor.
Mulheres, que habitaes a lobrega mansão da desgraça, sabei que se a opinião vos condemna--o coração absolve-vos!
E depois, de que vos vale a opinião? Que vos trouxe ella na hora da desdita? Sabe condemnar-vos? Pois bem, em vez da maldição pedi-lhe virtude e amor.
Oh! a opinião! sua excellencia a deusa opinião, essa é que é de facto a grande prostituta.
A necessidade conduz a mulher pelo caminho da perdição. É um fado de todos os dias. Tambem é a necessidade quem conduz o homem pelos atalhos do crime. Sabiamol-o. Ganhar para comer é uma lei da naturesa. Se os meios são máos os fins é que são rigorosamente os mesmos. Deixemos as lamentações para os Jeremias do seculo.
A opinião que se aproxime. Mas quem é ella?--o dinheiro que suborna? a politica que corrompe? os parasitas que avassalam? o impudor que exulta? [182] o vicio que contamina? o luxo que esterilisa? a infamia que cresce?
E sabes tu, minha cocotte, porque te chamam mulher perdida, sem honra e sem pundonor? Pois bem, fica aprendendo--é porque tu és simplesmente uma filha da desgraça.
Queres, porém, ser honesta, virtuosa e candida?
Procura uma familia; trabalha na doce companhia de teu marido; mostra ao mundo os teus filhos--os filhos das tuas entranhas e do teu amor: que te importa depois a voz da opinião--a opinião está como a realesa, está gasta e pôdre.
A Viscondessa não estava, de certo, n'este caso. Uma boa mãe, um bom marido, um filho terno, tel-a-iam salvado do abysmo que a esperava.
E quantas vezes não é o instincto da maternidade a causa do vicio e do crime? [183]
No meio de todas as suas loucuras era a Viscondessa uma nobre e esplendida mulher.
Uma trança preta, côr de azeviche, lhe cobria o cóllo de cysne. A bôcca esculpturalmente pequena, quasi se desfazia n'um beijo, ethéreo, imperceptivel, como o ar. Uns olhos verdes e profundos, como os abysmos do mar, a tornavam simultaneamente imperiosa e meiga. A pequena mão aristocratica, eclipsava-se-lhe por vezes sob as rendas e os puffs do vestido. E o pé, ai, o pé era um [184] primor, um verdadeiro primor. Calçava de ordinario um sapato de setim azul, perfeitamente ajustado a uma meia de seda, cuja transparencia nos faria logo perguntar com Alphonse Karr, onde ella collocava a liga--se abaixo se acima do joelho. O seio arfava-lhe debaixo do espartilho n'uma suave e doce ondulação, symptoma evidente de uns vedados e amorosos paraisos.
Ás vezes a Viscondessa sahia a cavallo, trajando de amazona. Um véu azul lhe encobria as feições gentis--similhantemente ao sol, que de subito se vê surprehendido por uma nuvem. Os admiradores seguiam-lhe o trote do cavallo, até que ella se perdia na sombra das estradas.
Na praia, a Viscondessa, com os cabellos desgrenhados aos ventos, poder-se-hia dizer uma actriz sublime, que, no ardor da tragedia, embriaga os espectadores. E era de vêl-a depois, sahir do banho, com as fórmas do corpo, exteriormente desenhadas n'um vestido de baetilha... um encanto...
Depois dos successos precedentemente narrados, [185] a Viscondessa entrára-se n'uma mysteriosa e doce melancholia. Ninguem, absolutamente ninguem, lhe poderá adivinhar os intimos pensamentos. Em que pensaria ella? que fatal preoccupação a distrahia constantemente?
Imagine-se o leitor no mesmo quarto, onde se deu o triste incidente de alguns dias. O desconhecido duellista, mais que restabelecido, devora um charuto com solemne lentidão.
--E agora que estou melhor--dizia elle--deixe-me vossa excellencia declarar-lhe tudo o que penso, tudo o que sinto e tudo o que quero. Eu--senhora Viscondessa--era um negociante de poucos recursos.--Um dia tive a fatalidade de a vêr. Segui-a, frustradamente. V. ex.a, em meio dos seus esplendores, nem sequer me notáva. Soube que havia um baile em casa da senhora Viscondessa. Consegui ser-lhe apresentado. Entrei. Creio que V. ex.a nem attentou na minha pessoa. Desgraçado de mim! Estava irremediavelmente perdido. E perdão, senhora Viscondessa! Occultei-me indiscretamente [186] atraz de um reposteiro. Depois... ai de mim... um punhal se me cravára no coração. Louco, estupidamente louco, arremetti contra Alfredo. Elle intimou-me a sahida. Fugi. Por todos os modos tentei fazer-me observado por V. ex.a. Vendo a impossibilidade dos meus esforços, recorri a este ultimo expediente. Fui eu a victima. V. ex.a na sua generosidade, tratou-me e prestou-me todo o auxilio que humanamente podia offertar-me. Pois bem. O meu nome é Henrique, e sou eu que hoje lh'o declaro, e a sós, sem testemunhas--Amo-a, minha senhora, e amo-a muito.
Perdão, senhor Henrique,--retorquiu gravemente a Viscondessa. O sr. é meu hospede, e abusa tristemente da minha confiança. Depois da provocação feita pelo sr. Henrique a Alfredo, o unico privilegiado do meu coração, ser-me-ia de todo impossivel ter por V. ex.a a minima sympathia...
Henrique, exasperado e colérico, aproximando-se da Viscondessa, segredou-lhe ao ouvido as seguintes palavras: [187]
--Assim como soube amal-a, saberei tambem odial-a.
N'este comenos entrava Alfredo.
--Muito folgo--minha senhora e meu senhor--em os encontrar aqui juntos--dialogou elle.--Á senhora Viscondessa, a quem sou devedor dos maiores beneficios, venho pedir perdão do lamentavel facto aqui succedido. A este senhor nada direi. Em breve conto partir para a America; e n'este sentido me despeço de V. ex.a minha senhora, jurando-lhe a minha gratidão que será eterna.
--Então parte?--exclamou anciosamente a Viscondessa.
--Sim, minha senhora; negocios impreteriveis me chamam ao Rio de Janeiro.
--E é, pois, irrevogavel a sua partida?
--Sem duvida; irrevogabilissima, senhora Viscondessa.
E Alfredo, despedindo-se da amante, sahiu.--Henrique [188] acompanhou-o. Cá fóra. porém, cada um tomou pela sua rua.
Mabilia ainda veiu á janella. Máu grado seu, Alfredo havia desapparecido.
Julgando-se para todo sempre perdida, chorou então a Viscondessa, e chorou como poucas mulheres talvez tenham chorado n'este mundo. [189]
O orvalho vem do céu á terra; as lagrimas sóbem da terra ao céu.
Mulher que chora, é mulher que sabe amar.
Porque muito chorou, perdoou Christo á Magdalena do Evangelho.
As lagrimas são como o balsamo: retemperam e dulcificam.
Felizes os que sabem chorar!
A creança é como a aurora: ambas choram e ambas alegram. [190]
Em pranto de mulher não se póde crêr--diz o rifão.
Será verdade que ás lagrimas dos olhos nem sempre correspondem as lagrimas do coração?
Chorar sempre é chorar--affirma um poeta e com razão.
Nada mais facil do que calumniar uma mulher. A nossa sociedade está colmada de espadachins. Todos os nossos rapazes se apresentam com ares de Juans Tenorios in nomine. Todos têm aventuras a contar. Poucos ha que se não julguem com direito a insultar as mulheres, coitadas! que, em verdade, pouco mais têm do que muita paciencia para os aturar.
As lagrimas, em espiritos delicados, são uma necessidade dos seus corações privilegiados. Não ha odio que ás lagrimas não cêda.
A Viscondessa via fugir-lhe a felicidade. Chorava.
A esposa tambem chora, ao ver desapparecer o navio, que, ao longe, lhe conduz o esposo querido. [191]
Santas e doces lagrimas, que tantas vezes tendes suavisado sobre a terra os intimos e dolorosos soffrimentos, como é grandioso o vosso poder!
E vós mesmos, ó scepticos mascarados, que tão estupida e egoistamente sabeis illudir as pobres victimas da vossa stulticia--dizei-nos--em quantos escriptos, arrancados a corações honestos e indefesos, não tendes vós encontrado o vestigio de uma lagrima?
Não ha sympathia que pela lagrima não brote e se enraize.
A lagrima é como um lago, na serenidade do seu correr e no reflectir das suas imagens.
Para esse sangue d'alma--na suave expressão de um poeta--apenas ha um remedio--a consolação.
A Viscondessa chorava e continuava indecisa.
Semelhante a um arbusto, que, açoutado pelo vento, deixa cahir sobre a terra o orvalho; assim [192] a Viscondessa, ao dar accôrdo de si, deixou cahir no seu candido seio as perolas consoladoras do seu espirito.
Bemaventuradas perolas! e oxalá que todos assim as tivessem!... [193]
Entretanto o nosso operario, agora já transformado em negociante, vai seguindo o seu caminho, a despeito da intriga e da inveja, com que a sociedade, em geral, costuma premiar o trabalho e a honradez.
Julio, retemperado no cadinho dos grandes soffrimentos, fizera-se homem repentinamente. Julgando apagada a imagem da Viscondessa no seu espirito, dedicou-se ao trabalho com fervôr. Levantava-se [194] habitualmente ás seis horas da manhã, ia receber as ordens da sr.a Felisbella, e partia. Só regressava a casa ás oito ou nove da noite, hora em que elle tomava chá. E este programma, assim praticado, com a regularidade de um pendulo de relogio, poucas vezes era transgredido, a não ser n'um ou outro domingo.
A mercearia prosperara a olhos vistos. Diziam os freguezes, e com razão, que a bôa alma de Francisco Alves em nada ficára a dever ao sr. José Xavier.
Além da loja tinha, porém, Julio um escriptorio de commissões maritimas, de cuja responsabilidade auferia annualmente sólidos e lucrativos interesses.
Em poucos annos adquirira Julio o senso pratico, tão prudente, como indispensavel nas cousas da vida. O nome de José Xavier acreditara-se solidamente na praça do commercio. Muitos invejavam já a fortuna do mercieiro; muitos o calumniavam [195] tambem. Entretanto Julio, com aquelle orgulho que só a consciencia sabe dar, era invariavel, senão implacavel, na missão que voluntariamente se imposera.
Um dia apparecera-lhe na loja um conhecido, parasita do Chiado.
--Desejo fallar ao sr. José Xavier, começou o Maryalva.
--Um seu creado, respondeu Julio.
O recem-vindo descobriu-se solemnemente.
--Um negocio importante me traz aqui, continuou. Acabo de saber por um amigo intimo que é V. Ex.a não só um dos mais generosos cavalheiros d'esta cidade, senão tambem que são brilhantes as qualidades que adornam o elevado espirito de V. Ex.a...
--Bem! e depois..., interrompeu o mercieiro.
--E depois, precisando eu de dinheiro, estou certo que V. Ex.a m'o não negará...
--A outra porta, amigo, rematou Julio. [196]
--Sempre é bem malcreado..., rosnou o pretendente.
E sahiu.
Com estes factos, porém, contrastavam outros, dignos do maior elogio.
Amanhecera-lhe um mendigo á porta do escriptorio.
--Que quer aqui?, perguntou Julio.
--Eu senhor, sou pobre, não tenho cama, nem pão...--respondeu o desgraçado.
E Julio, tirando uma libra do bolso, disse:
--Póde procurar-me todos os mezes para receber egual quantia.
E seguiu para o trabalho.
Julio transformára-se, pois, n'um homem severo, sem as paixões que arrebatam, nem os egoismos que offendem. Á parte a propria felicidade e a da sr.a Felisbella, a quem elle tratava por mãe, pouco mais lhe interessava n'este mundo.
Com a convivencia dos homens tornara-se concentrado, [197] desconfiando de tudo e de todos. Advogando de preferencia os proprios interesses, era, todavia, generoso, para quem o devia ser.
Os pobres conheciam-no de longe. E Deus
abençoava-lhe as acções, tornando-o um homem
rico, forte e corajoso.
[198]
[199]
Uns sóbem e outros descem: é a roda do mundo. Á dos alcatruzes se similha, segundo Sá de Miranda: uns para baixo, outros para cima, uns cheios, outros vazios.
A vontade conduz á felicidade. Homem que sabe querer é homem de talento ordinariamente.
O talento, por si, deixará de ser uma superioridade; quando a egualdade, sob o mesmo grau, nivelar a educação e a instrucção.
O talento, comtudo, é variavel e complexo: para uns, ter talento é saber grangear fortuna; para outros, é saber escrever e orar e discutir; [200] para outros ainda, o talento cifra-se na gravidade da apparencia, e no modo austero da vida.
A mulher resume por via de regra o seu talento n'um olhar profundo, num sorriso angelico e n'um espirito facilmente maleavel e insinuante.
A educação faz com que só o homem se ostente em meio do viver social.
A mulher tem uma esphera limitada: o seu mundo é a familia; a sua convivencia o marido, os filhos, os parentes e os creados. Porisso se crê, embora erradamente, que só ao homem aprouve Deus conceder o talento.
A curiosidade é a fonte, não só da sciencia, em geral, como tambem de toda a humana descoberta. Ora a mulher é sobretudo curiosa. D'aqui a sua aptidão para todo e qualquer ramo da actividade social.
Somos pela emancipação da mulher. Desejára-mos vel-a ao lado de um doente, consolando-o e distrahindo-o; desejáramos que as creanças recebessem d'ella os primeiros rudimentos da linguagem; [201] desejáramos, é verdade, que por ella fossem exercidos muitos dos mesteres da vida: mas, a par de tudo isto, somos abertamente contra a sua emancipação politica.
O talento não tem sexo. Ante a critica, ante a illustração, ante o bom-senso, todos somos eguaes.
Joanna d'Arc, o typo da virilidade e do patriotismo, é por ventura tamanha como Victor-Hugo, o grande, Victor-Hugo, o humanitario; George Sand cathedra á altura de Byron, o primeiro poeta do universo.
Para que hesitar, pois? Onde o direito de menospresar aquillo que, ao contrario, e em consciencia, devêramos santificar?
O que perde o homem é o orgulho, quando não é a inveja. A par de tantas ambições vale-nos a preguiça, que as domina e refreia.
Porque subira Julio? que força occulta o tornava sympathico e favorecido da fortuna?
Perguntae á felicidade quem a creou, quem lhe deu origem, quem a tornou forte e independente! [202]
O acaso é, muitas vezes, e sem o sabermos, a causa da nossa ventura e das nossas acções.
Mas o acaso não é cego. Depende de uma certa presciencia do futuro.
Julio era modesto, primeiro titulo de recommendação. A modestia torna sympathicos o talento e a virtude.
Depois, havia n'elle o bom-senso de esperar com resignação tudo o que, durante a vida, lhe podesse sobrevir. Nada o surprehendia. Estava sempre prompto para qualquer eventualidade, fosse ella de que natureza fosse.
Tinha, portanto, a rara sciencia de conciliar com a prudencia o bom-senso.
Porisso tambem subiu, e porisso tambem subirão todos aquelles que assim procederem.
O mundo depende de geito, apenas. Tão despresiveis são os demasiadamente Catões como os demasiadamente relaxados.
No meio-termo está a lei de toda a sociedade humana. [203]
Similhante a um velho castello roqueiro, coberto de hera e parietarias, assim Alfredo vivia, doente, sem dinheiro, arruinado, mas generoso no fundo.
O seu fato preto, invariavel em todas as estações do anno, principiara de tornar-se velho e esverdeado pela acção corrosiva das chuvas doentias e dos sóes abrasadores. A camelia desapparecera-lhe para sempre do seu logar habitual. Emfim Alfredo, esgotados os derradeiros recursos patrimoniaes, [204] era mais um authomato da indigencia, do que verdadeiramente um homem de espirito, critico e mordaz, qual n'outros tempos o havia sido.
A sua extrema liberalidade, com os donos dos restaurantes e cafés, fez com que, ainda durante algum tempo, elle podesse frequentar gratuitamente estas casas. Passados mezes, porém, os donos dos botequins, attentando-lhe nas botas rotas e nas calças fragmentadas, quasi o despediram de vez, mostrando-lhe uma má e feia catadura.
Em tão afflictivo lance recorreu aos camaradas d'outr'ora. Nenhum delles apparecia já. Todos--e cada um por sua vez,--o tentavam afastar.
Finalmente Alfredo, envergonhado de si e enfastiado do mundo, só de noite apparecia. Evitando os credores, e cosendo-se com a sombra das paredes, elle, o filho da luz e do magnetismo da vida, sollictou dos amigos o pão ázimo da desventura. Á sahida dos theatros--pois que em casa difficilmente os encontrava--esperava resignadamente a [205] turba jubilosa dos espectadores conhecidos; por vezes conseguira d'ella uns magros vintens; por vezes tambem lhe sahira mallograda a tentativa.
Lembrou-se da Viscondessa, a quem, por um louco capricho, mentindo, affirmára que partiria para o Brazil. Tudo em vão. O orgulho--desgraçado orgulho!--abafára-lhe no peito esse passo miseravel.
Começou, então, o desalento, como um vidro moido, de consumir-lhe a, já de si, inutil existencia.
N'um momento lucido em que o espectro da fome, esqualido e magro como Satan, se lhe desenhava deante dos olhos com as cem boccas hediondas, Alfredo, a par de um suor glacialmente cortante, experimentou o que jámais e em sua vida experimentára--uma ancia de trabalho, para o qual, em verdade, nunca se sentira predisposto.
Embalde, porém, lhe foram essas visões. Passageiro [206] e ephemero se lhe antolhou o iris da redempção sobre a terra.
Sonharia acaso? Trabalhar... e em que? A intelligencia havia-se-lhe apagado, ao contacto de uma embriaguez quasi habitual. Sentir, era-lhe impossivel, uma vez que do coração nada mais restava, além de uma sensação perfeitamente estupida e material: e vontade, se a tinha, quasi nem já se revelava.
Do rapaz d'outros tempos, galanteador e elegante, apenas restava uma sombra. A barba medrára a esmo. O cabello, cobrindo-lhe a góla do casaco, imprimia-lhe um aspecto singularmente triste e repugnante. Encaral-o de frente o mesmo era que tomal-o por um salteador disfarçado.
Um dia, foi Julio casualmente surprehendido, no seu escriptorio, por esta desgraçada victima de uma exaggerada e dolorosa ociosidade.
--Que me quer? interrogou o negociante.
--Eu, senhor, fui rico, e sou hoje pobre, Em [207] nome da mulher, que ambos amámos, venho pedir-lhe um emprestimo de duzentos mil réis...
--Em nome da mulher que só eu amei e que o senhor perdeu--convido-o a retirar-se d'esta casa.
--Muito bem! uma vez que assim o querem, far-me-hei ladrão--exclamou Alfredo.
E fez-se fabricante de notas falsas.
[208]
[209]
Diz-se geralmente que a humanidade esta enfêrma.
A mocidade padece uma horrivel molestia--o tédio.
A corrupção physica caminha a par da corrupção moral. As aguas são detestaveis; o ar pouco sadio, contaminado de miasmas e de putrefacção. De modo que as nossas cidades modernas são uns verdadeiros sorvedouros de existencias humanas, [210] onde os obitos crescem sobre os nascimentos na razão de um por mil.
Com o movimento das calçadas o pó levantado, introduzindo-se pelos olhos, pela bocca, pelo nariz, é tambem uma causa de lenta, mas real, consumpção.
As phthisicas abundam. As molestias de garganta são quasi geraes. Os homens sentem-se tristes, abatidos, sem espirito e sem vitalidade. As mulheres, na maioria franzinas e chloroticas, arrastam uma vida authomatica, sem consciencia nem utilidade.
Faltam os grandes prazeres do campo, os robustos passeios da caça, as salutares digressões pelos pinheiraes, onde os pulmões se purificam ao contacto do ar resinoso e sadio.
As praias frequentam-se por moda. Toma-se o banho, e vai-se a um salão, eschola de dança e de galanteria. Ninguem pensa em passeiar á beira-mar; e mesmo quando casualmente se passeia pela praia [211] é mais por comprazer do que por uma natural necessidade do organismo.
Ora tanto o mar como o campo são bons pelo resultado, que d'elles se tiram. Não só o corpo, mas tambem o espirito devem tomar parte nos vastos panoramas, nos horisontes limpidos e no vago da natureza.
É verdade que a demasiada concentração póde conduzir a uma nostalgia perigosa; entretanto, entre dois males, é muito preferivel a tristesa, embora sombria e consumidora, á alegria extravagante, brutal e insensata.
Não, meus bons rapases, não é assim que se vive. Vocês são doentes, porque não têm um ideal, um trabalho util, uma missão civilisadora.
De que vos servem os cafés, com os seus jogos de dominó?--Antigamente conversava-se, contavam-se anecdotas interessantes, e ria-se a gente com a familia, mas com aquelle bom riso infantil, que é a demonstração de festa e de regosijo. Hoje não. Hoje, como nos bons tempos romanescos, ha a cima [212] de tudo isto o aborrecimento de tudo e por tudo.
Ora, minhas senhoras, se a vida em si é triste, façamos por tornal-a agradavel e util--util sobretudo.
Alfredo era a perfeita imagem do que deixamos dito. A syphilis contaminara-lhe o organismo. Á pobresa de sangue reunira-se a pobresa de espirito.
É o que succede com a maioria dos rapazes: quando chegam a completar um curso estão velhos na intelligencia e gastos no corpo.
Para tamanha molestia um unico remedio ousamos aconselhar:
--limpeza--
isto é:
--campo e mar--
Que s. s.as, os senhores facultativos, se não irritem comnosco por tão interessante descoberta. [213]
A primavera, a doce filha da harmonia e da luz, desentranhava-se em flôres e fructos. Rejubilavam as aves no arvoredo frondente. O céu era azul, limpido. Nem uma nuvem lhe maculava a superficie chrystallina e pura.
Nada mais delicioso do que esta rapida transição de uma estação, agreste e fria, para uma outra agradavel e sympathica. Dir-se-hia que um velho, sulcado do rugas, se metamorphoseára subitamente, [214] como o Fausto, n'um elegante moço, cheio de vida e de aspirações.
As arvores, toucadas de flôr, recebiam das auras vaporosas o amoroso abraço de todos os annos. O sol, dourando com as suas palhetas luminosas os arbustos vividos e scintillantes--reflectia-se suavemente sobre as aguas do ribeiro, que, em amoravel ondulação, serpeavam atravez os terrenos pedregosos, parando, ora atraz de um rochedo, com o qual confidenciavam ternamente, ora atraz de uma planta, com a qual se enroscavam de passagem.
Ao longe os pinheiraes acordavam as solidões com as vibrações da sua harpa plangente. O rouxinol, casto como a andorinha, desferia a medo o seu eloquente hymno de amor. É que elle o artista, filho do céu e do canto, pressentira, primeiro que nenhum outro ser da creação, o aproximar alegre do sol e da vida.
Meiga como uma mãe dedicada, a pomba, symbolo [215] de virgindade, arrulhava de manso, muito de manso, como amante que não deseja ser escutada. E a aguia, a altiva rainha do espaço, guindara-se, por entre nuvens, até ás ignotas regiões do infinito.
Entretanto--e como que para contrastar--o peixe, o maldicto das trevas, mal elevara a gélida escama ao lume d'agua, para logo a mergulhar de novo, no lodo, sua morada habitual. O insecto, o desprotegido do dia, esperava a noite, sua irmã, para assim deixar em paz o lobrego buraco, para onde um raio de sol prestes o afugentara.
Os campos eram verdes e promettedores. Percorria-os o boi, quasi sem cessar, na extrema paciencia dos animaes possantes.
A montanha, despindo o lençol, que durante mezes a envolvera--deixara de alvejar, afim de se tornar um throno de contemplação e de magestade.
E de facto subia o lavrador á cumiada do seu monte, e de lá, passeando os olhos avidos em [216] volta do campo, com o qual, em verdes annos, se matrimoniára--entoava cantos jubilosos e amigaveis.
E a aldeã, resplandecendo de feliz contentamento, apurava a sua saia de chita que para os dias santos havia sido feita e arranjada.
Cecilia, porém, está de lucto. Os olhos verdes, fartos de chorar, brilham profundamente como o abysmo dos mares. Ella é triste, coitada! e sem esperança. Morrera-lhe o pai.
--Olha, Cecilia--dizia-lhe o velho na sua derradeira hora--parece-me que o teu noivado só no céu poderá ter logar. Perdôa tu ao ingrato assim como eu lhe perdôo...
E expirou.
Quatro mezes volvidos sobre este caso estava a pobre rapariga profundamente mergulhada nos seus mais intimos pensamentos, quando uma leve pancada, vibrada sobre o vidro da janella, a fez estremecer e agitar.
Mal se levantara ella e já uma sombra, abrindo [217] a vidraça, saltava de um pulo para o centro da casa.
--O senhor prior por aqui?--exclamou a ingenua catholica.
--É verdade, minha filha. É justamente o teu prior que Deus manda a esta casa... Sabia que estavas triste. Haviam-m'o dicto as estrellas do céu. Consolar os tristes é um dever do bom parocho.
--E minha mãe, senhor padre João, consentirá ella...
--A cima de tua mãe está a voz do céu que aqui me traz. Conta-me a tua vida, Cecilia. Não tenhas receio de mim. Eu saberei aconselhar-te.
A Egreja para tudo tem remedio. Só Deus sabe premiar os bons e castigar os máus.
E o padre, procurando um escabello, foi sentar-se ao pé de Cecilia.
A rapariga, córando de pejo, conservára os olhos cravados no chão.
Assim durou, por alguns minutos, esta scena. [218]
--Como tu és boa, minha filha--rompeu alfim o padre.
E, sem mais, imprimiu-lhe um beijo na face.
Assim, como a pomba ferida por caçador experiente, assim tambem Cecilia tentara esquivar-se ás grosseiras amabilidades do seu respeitavel parocho.
--Embalde--gritava o padre. É Deus que assim m'o ordena!...
E, ao longe, um guitarrista que passava cantava tristemente a seguinte quadra de Gonçalves Dias:
Nós não somos d'aquelles que exageradamente comdemnam o clero.
Nada mais santo, nada mais suavemente consolador do que o bom padre, especie de medianeiro entre Deus e os homens.
Para quem não tem um pai natural; para aquelles que a Providencia exilou do seu lado, e que a miseria acolheu no seu seio; para aquelles que, longe do ruido e das alegrias do mundo, a sós comsigo mesmo sentem o gottejar das proprias [220] chagas; para os desgraçados, para os infelizes, para os tristes, o padre, pela sua apparencia christãmente cariciadora, é mais do que um companheiro, porque é um pai, enviado pelos anjos do céu aos anjos da terra.
Não foram um simples vicio, uma vã ostentação, e um estulto prurido que nos levaram a condemnar aquillo que, por sua natureza, deve ser exemplar, vivo e sacro-santo.
Não! Se condemnámos o máu padre, como planta nociva á humanidade, foi por um dever.
Quem tem irmãos, e filhas e esposa, não póde existir ao acaso, sem a necessaria superintendencia em todos os actos da sua vida, d'ellas.
A mulher, que do collegio não tirou a educação conveniente, que um dia experimentou a immoralidade do confessionario e os espinhos do mundo, póde ser tudo, menos uma esposa, menos uma irmã, menos uma mãe.
O padre toma parte nas scenas mais luctuosas da familia: se adoecemos, é elle que nos traz o [221] balsamo ao espirito em trévas; se desesperamos, é elle que nos faz ver o iris da bonança; se hesitamos, é elle que nos encaminha e nos dirige.
Então, e porisso mesmo, é que o padre deve ser um bom homem.
O esboço que no precedente capitulo deixámos delineado, posto que excepção, foi por nós fielmente observado.
Que se não illudam os espiritos timoratos e frageis. Quando máu, ninguem mais severamente merece ser condemnado do que o padre.
Nas aldeias os exemplos multiplicam-se. A ociosidade, por um lado, e o celibato, por outro, muito têm concorrido para essa cadeia de lorpesas, a cada passo relatadas na imprensa e nas differentes casas de reuniões publicas.
O fanatismo nunca foi religião. Seguir os preceitos do Evangelho, não é perfilhar as doutrinas do sr. Sousa Monteiro nem as diatribes da Palavra. [222]
Amae-vos uns aos outros como eu vos amei--disse Christo.
Amemo-nos, sim, mas sem corrupção, sem egoismo, sem impuresa.
Que a esposa seja uma conselheira de seu marido e uma perceptora de seus filhos--tal deve ser o desejo do bom padre.--Porque um padre é acima de tudo um educador, e como tal carece de muita illustração, de muito bom senso e de muita heroicidade.
Se os rapases não podem satisfazer a esta nobre missão, escolham-se os velhos. Se com o clero periga a honestidade das mulheres, acautellem-se os homens, e aprendam por uma vez a distinguir o bom do mau, aquillo que lhes convém d'aquillo que lhes não convém.
D'outro modo continuaremos eternamente divididos, odiando-nos como inimigos, e pelejando uns contra aos outros, cegamente, loucamente, sem ideal, sem raciocinio e sem vontade. [223]
Nem sempre a felicidade nos sorri. Quando menos o acreditamos, embacia-se o prisma que sonhavamos perpetuo e immorredoiro, e as illusões começam de cahir uma por uma.
É assim a vida; é assim o mundo: rodeado de formosas apparencias e colmado de negra podridão.
Áquelles que possuem o raro condão de saber disfarçar as mais intimas tristesas da vida; áquelles a quem Deus não dotou com o precioso instincto [224] da arte; áquelles, emfim, para quem a paciencia é a norma, e que se não apaixonam, que se não arrebatam, que se não enthusiasmam, gelados, mudos, frios como o sepulchro.--a esses, pouco pódem importar as tristesas do poeta e as suas profundas melancholias, que são como que o lento e sombrio finar da existencia.
Ó noites de agonia, noites de isolamento--como vós sois tristes e duras de passar! O mundo, que vos detesta, ó doces e amargosas horas da experiencia, foje de vós! Ao vosso lado só tendes os poetas e os artistas e os sábios e todos aquelles que no horror da noite procuram o ideal da humana perigrinação.
Bemdictas sejaes vós, companheiras do tumulo, porque me ensinastes o soffrer!
*
* *
A Viscondessa era um d'esses raros typos angelicos, que despresando a opinião das maiorias, porventura o mais estupido de todos os preconceitos. [225] se entregam febril e vertiginosamente nas azas do seu capricho, sem outro intento que não seja o louco voar atravez as idealidades que de continuo se lhe desenham na mente esbraseada.
Eu gósto d'estas mulheres, d'estas candidas andorinhas, que, superiormente ás outras mulheres, suas irmãs, se alimentam no tepido halito da primavera, embriagadas e seduzidas pela doce irradiação do céu.
Se péccam não é d'ellas a culpa. Quem poderá dizer á ave, á meiga filha da luz: tu voarás para aqui? e ao rouxinol, o adoravel amigo dos poetas: tu cantarás a taes horas? e ao oceano, o titanico athleta da creação: tu não correrás? Quem?
A Viscondessa era uma creança com sêde de amor, boa e ingenua como todas as creanças. Infeliz ou não--o certo é que um dia ella se encontrou sem amante e sem dinheiro. Alfredo roubara-lhe o coração, e o que é mais ainda--a crença no amor; Henrique, ingrato explorador, subtrahira-lhe os titulos da sua fortuna. N'estes termos, que fazer? A quem recorrer se o amor, assim e [226] tão de subito--se lhe transformára em inimisade e a fortuna em pobreza?
A Viscondessa, perplexa, hesitante, nervosa, chamou pela sua creada.
--Sabes Virginia--dizia ella á sua amiga--que estamos roubadas?
--Roubadas... minha senhora?!
--Sim, roubadas... e roubadas por Henrique, a quem nós n'esta casa tratamos com um carinho de irmãs...
--Oh! meu Deus!... meu Deus!... e que havemos de fazer, minha senhora?
E Virginia beijou pela primeira vez na sua vida a angelica fronte da Viscondessa.
A desgraça tem este condão mysterioso: torna-nos irmãos involuntariamente.
--Não é verdade, Virginia, que tu nunca me has de abandonar?
--E quem pensará em tal, senhora Viscondessa?
--Pois bem: espera um bocadinho, que me has de levar uma carta á rua da Emenda. [227]
--O que V. Ex.a quizer, minha senhora.
A Viscondessa sentou-se á mesa; tomou uma folha de papel e principiou a escrever nos seguintes termos:
«Excellentissimo senhor Barão:
«Pela primeira vez ouso incommodal-o. Se Vossa Excellencia, porém, adivinhasse a triste situação em que actualmente me encontro, por certo me desculparia estas instantes linhas. Entretanto, impellida pelas circumstancias, quero acreditar que Vossa Excellencia se não furtará a vir procurar-me hoje mesmo.
«E n'esta esperança fecho esta carta, tendo a honra de ser
De vossa excellencia
serva respeitosa
S. C.
Lisbôa
Largo de Camões
A Viscondessa de B***
..............................
Virginia, tomando das mãos da Viscondessa
este bilhete, competentemente sellado com o carimbo
da casa, sahiu na direcção acima indicada.
[228]
[229]
E Cecilia? que será feito d'ella?
Pela callada das trévas, á meia noite, ha sombras que vagueiam pelas ruas como visões informes, famintas, esqueleticas. Á sahida dos theatros abeiram-se de nós vultos esfarrapados, cheios de dôr e de vergonha, que nos estendem a mão carcomida e triste. Cada um d'esses vultos representa, no grande drama social, uma consciencia offendida ou uma crença ludibriada. Não se descobrem nunca esses desgraçados, porque não desejam ser reconhecidos. [230] Se é mãe e tem filhos, pede em nome dos filhos; se é pae e tem familia, pede em nome da familia; se é só e miseravel, pede em nome da miseria.
Cecilia não estava precisamente n'este caso. Cedendo, ainda que violentada, ás seducções do parocho, que por toda a parte a seguia com a voracidade de um lobo,--a joven aldeã, para quem o ideal se não havia de todo extinguido, veiu para a capital. Pobre mulher inexperiente, coitada! que media o mundo pela craveira da sua innocencia...
Emfim, depois de muito indagar, de muito ouvir e muito procurar, soube ella que o Sr. José Xavier era negociante e residia em Alcantara.
Sem delongas deu-se pressa a rapariga em chegar ao almejado paraiso. Quando subia a escada, açodada e veloz, como uma gazella, um creado a reteve.
--Que quer vm.cê--perguntou-lhe o guarda portão.
--Desejo fallar ao Sr. Julio--retorquiu Cecilia. [231]
--Não é aqui que elle mora; póde procurar n'outra parte.
--Ai! não, enganei-me; é ao Sr. José Xavier que eu pretendo...
E n'isto Julio descia a escada. Cecilia nem sequer o reconhecêra. De passagem, perguntou Julio ao creado quem era aquella mulher.
--Uma desgraçada que pretende esmola--respondeu o interrogado.
--Pois bem: mande-lhe dar dez tostões.
E o amo sahiu, sem, ao menos, virar a cabeça.
O primeiro pensamento de Cecilia foi correr atraz de Julio. Mas não! Ella estava vexada, profundamente vexada de si mesmo. Até quasi chegou a duvidar que fosse aquelle o seu antigo amante.
--Não, decerto não é elle... reflexionava ella comsigo.
--Aqui tem--exclamava o creado, offerecendo-lhe dez tostões--aqui tem, póde retirar-se. [232]
Cecilia acceitou a esmola authomaticamente. Muda, sem proferir uma palavra, olhou para o homem como uma alucinada. Só depois, cá fóra, trémula e nervosa, reconheceu a degradação por que havia passado. Uma dolorosa agitação lhe percorria os membros febris. Não podendo mais conter-se, transbordando de raiva e de agonia, desmaiou sobre as pedras da calçada.
Ó sociedade, ó mysterio dos mysterios, quanta victima tua, não terá perecido assim, á fome, ao relento e ao frio?
Ó humanidade, ó triste e ignorado Ashawerus, como é espinhosa a tua sorte e tremendo o teu fadario! [233]
--Póde vossa excellencia acreditar, senhora Viscondessa, que emquanto eu viver nada faltará n'esta casa.
--Oh! Deus o abençoe, senhor barão...
--Agora--e antes de me retirar, permitta-me vossa excellencia, que sem abusar da sua generosidade eu lhe narre em breves traços uma pequena e eloquente historia ha pouco succedida entre nós: «Ha de haver já bastantes annos que um homem ignorado (nada importa o nome) veiu [234] procurar trabalho em Lisboa. Fugido á lei que o perseguia e afastado da mulher que amava--entrou n'um theatro. Entre as damas que pela sua belleza mais realçavam destacava-se uma a quem esse desgraçado entregou o coração e a vida. Mas, ai d'elle! A sorte perseguia-o horrivelmente. Elle, coitado, era apenas um operario, um modesto operario, e ella uma aristocrata, uma distinctissima aristocrata. Correram os dias. O miseravel, vendo-se fortemente abalado na sua dolorosa existencia, abandonou a fabrica, e fez-se escudeiro d'essa senhora. Nem um gesto sequer elle perdera, emquanto lhe fôra dado viver n'aquella casa. Tudo aproveitou o desventurado, curtindo a sós comsigo a immensa paixão que tristemente o devorava. Um dia, porém, em que elle, porventura mais agitado do que nunca, pretendêra subtrahir-se aos fidalgos olhares da sua ama, uma fatal circumstancia o obrigou a deixar aquella casa.
--Então foi o sr. barão...
--Mais duas palavras, minha senhora, e eu [235] termino: «Infamado e corrido de vergonha entregou-se o desventurado moço ao trabalho com ardor. Próspera lhe correra a fortuna. Amparado por dois velhos, hoje mortos, que durante os primeiros annos lhe serviram de paes progrediu José Xavier tornando-se honrado e bem quisto dos seus semelhantes. Depois... oh! depois... Vossa excellencia sabe o resto...
--Sim! depois José Xavier foi feito barão, encontrando na Viscondessa de B*** a sua mais pura e desinteressada amiga.
E Julio, curvando-se, beijou solemnemente a
mão da Viscondessa.
[236]
[237]
Alfredo, sem recursos, recorreu ao ultimo expediente de um vadio bem educado: tornou-se falsificador de notas.
Os proprios amigos d'outros tempos, ao saberem d'este facto, denunciaram-n'o á policia.
Dahi em deante principiaram as indagações e as pesquisas. A lei não afrouxára em seus esforços. E o certo é que uma manhã Alfredo acordou n'um calabouço, quasi sem luz e abandonado aos vermes. [238]
O processo correu perante o ministerio publico. Abundaram as provas. Alfredo era realmente um criminoso. O jury, dando o seu veredictum, houve por bem coudemnal-o a degredo perpetuo, para as costas de Africa.
Embalde lhe foi a appellação interposta pelo advogado para o Supremo tribunal de justiça. Confirmada a pena o réu teve de partir.
No dia aprasado para a partida, Alfredo, inquieto, nervoso, tremulo, agitado, pediu papel e tinta. Por uma graça especial fôra-lhe deferido o requerimento.
Tomando a penna o degredado traçou no papel as seguintes linhas:
«Excellentissima senhora Viscondessa, e minha dedicada amiga.--Seria vil, e muito vil, que eu, ao deixar esta cidade, me não lembrasse de Vossa Excellencia. Cheio do contricção e de arrependimento permitta-me pois, Vossa excellencia, que, por um pouco, ajoelhe ante a sua imagem generosa.
«É um criminoso que lhe falla, minha Senhora. [239] É um triste e miseravel peccador que vem pedir-lhe perdão. Conceder-lh'o-ha Vossa excellencia?
Sim! Alfredo não existe já. Condemnou-o a sociedade em nome da lei. Condemnaram-n'o os seus crimes.
«Dentro em pouco, vestida a estamenha do degredo, o meu nome não terá razão alguma de ser. Vegetarei como um cadaver, que, privado do espirito, se vai decompondo fibra a fibra.
«Os homens não me perdoaram. Foi-me negada a honra: tudo me foi negado. E entretanto eu tinha de viver...
«Vossa excellencia de certo comprehende este terrivel problema do mundo. Entre duas infamias preferi esta, justamente por ser a maior.
«E assim como os homens foram ingratos para commigo, assim tambem eu fui ingrato para com Vossa excellencia.
«Perdão, perdão para mim, minha santa amiga, perdão para mim que não pensava! [240]
«Eu era apenas um triste alucinado, que á maneira de uma sombra, errava vagamente pelo mundo, com o doloroso pesadello de uma longa enfermidade.
«E porque não morri eu, então, céus?
«Para que mais prolongar este acerbo calix de amargura?
«Não creio nos homens como não creio em Deus.
Deus!... Mas porque infinita maldição me sahe esta palavra dos labios?
«Ah! sim, está ali... bem o vejo... o infernal carcereiro...
«Mas como? Deus com aquella barba? Deus tão velho? Será possivel?
«Ai! senhora Viscondessa, que a febre escalda-me os labios resequidos. Se ao menos, Deus me trouxesse agua...
«Adeus, minha boa e dedicada amiga; adeus para sempre. [241]
«Nas suas noites de prazer não s'esqueça de libar por mim--por mim, pelo miseravel condemnado da sociedade, sua irmã.
Alfredo.»
--Um pobre rapaz, coitado!--exclamou a
Viscondessa, ao terminar a leitura d'esta carta.
[242]
[243]
Do calabouço passaremos ao hospital. Tudo é enfermidade: com uma differença apenas--e é que, n'uns adoece o espirito, ao passo que n'outros adoece o corpo.
Ao percorrermos aquelles longos salões, onde só a doença tem o seu throno e a morte o seu prestigio; ao pararmos junto d'aquelles leitos empobrecidos, onde os gemidos da miseria se cazam tristemente com a dolorosa suavidade da esperança; ao palparmos as chagas, as desventuras e as mil angustias porque passa a humanidade n'este [244] mundo; ao vermos tudo isto, o espirito vacilla realmente, e o coração sente-se fatal e impetuosamente abalado em tudo o que ha de mais santo, de mais nobre e de mais digno á superficie da terra.
Adoecer na flor da edade, sem protecção, sem carinho, sem a meiguice de uma irmã, de uma esposa, de uma filha--isso, só a pobreza o poderá verdadeiramente avaliar.
Ha dores que se não exprimem, que se não definem, e que estão muito acima das mundanas velleidades.
Como quer que seja, porém, Cecilia encontrou-se uma manhã no hospital de S. José, doente, triste e perdida a esperança de melhores dias.
Uma phthisica fatal lhe devorava as entranhas, profundamente abaladas. A tosse augmentava de minuto para minuto. As convulsões recrudesciam. Os medicos desesperavam da cura. E os enfermeiros, os vis mercenarios do corpo humano, abanavam as orelhas da cançados e aborrecidos. [245]
Emfim soou a hora fatal. Após uma longa hemoptise, Cecilia abrio muito os olhos, tornou-se verde--de um verde-negro e sombrio--fez um esforço sobre si, regougou algumas palavras imperceptiveis, e cahiu para o lado.
Tinha expirado finalmente.
A aurora era então sem mancha; a cotovia annunciava um dia formoso. Tudo vivia; a luz era o prologo do amor.
Arrastada para uma sala especial, unicamente destinada aos mortos, ficou o seu cadaver em deposito, até que um esquife o levasse para o cemiterio.
Sobre o corpo putrefacto d'aquella victima desventurada não houve sequer quem derramasse uma lagrima.
É que o mundo, no seu estupido cynismo,
pensa de ordinario mais em rir do que em chorar!
[246]
[247]
--Acredita-me, Mabilia: esta felicidade para nós é inalteravel. Deixa que o mundo murmure no seu louco e estupido egoismo. Nada importa! A openião das maiorias é, em quanto a mim, uma vil e dolorosa mentira. Tendo-te a ti, que mais poderei eu ambicionar? Desafio os rios e os mares para que venham arrebatar-me do coração a tua terna e doce imagem. Que venham! E eu, impavido, arrostarei com elles, braço a braço, se tanto fôr preciso. [248]
--Oh! Julio, meu bom amigo, por Deus, não sejas mentiroso; não digas aquillo que não sentes; se devéras me não amas, para que fallar em tal? Olha que a experiencia, meu amigo, tem-me sido uma triste e dolorosa desillusão n'esta vida...
--E és tu quem assim falla? Mas não vês, desgraçada, que essas palavras me fazem escaldar o coração? Oh! por piedade, não me mates, Mabilia:
N'este comenos Virginia entrou na saleta. Interrompido o dialogo, o nosso barão tomou, ao acaso, um jornal, que ligeiramente passou pela vista.
Antes, porém, de o pousar, estacou em uma das locaes, e leu o seguinte:
«Falleceu hontem no hospital de S. José, victima de uma phthisica pulmonar, uma pobre rapariga, por nome Cecilia da Silva. Parece que uns amores mal correspondidos foram a causa de similhante infortunio. Por se ignorar o nome do pae, que se suppõe viver na aldeia, foi o seu cadaver sepultado no cemiterio dos Prazeres, com uma simples [249] inscripção, gravada n'uma pequena cruz de madeira.»
--Se me não engano já vi algures esta mulher!--regougou
o barão, repoltreando-se na cadeira, e
lançando do seu excellente charuto havano uma
longa e deliciosa bafurada de fumo.
[250]
[251]
Agora o quadro.
Atravez os quatro personagens, distingue-se um mundo de miserias.
O barão dá o braço á Viscondessa; o dinheiro acaricia a formosura.
Eis a luz.
A doença caminha a par do degredado: o corpo corre parallelo com o espirito.
Eis a sombra!
O espectador que ajuize.
[252]
[253]
Hontem o amor; hoje a pobreza; amanhã o
esquecimento.
[254]
[255]
Este romance não mira aos applausos da galeria. Tão pouco prima, nem pelo complicado do enredo nem pelo difficil das situações. São capitulos singelos, estes, que acabam de lêr-se, só pela arte inspirados e por amor d'ella concluidos.
E a arte é a verdade.
Por muitos hão de estas paginas ser aborrecidas. Por muitos hão de ellas ser odiadas. Nada importa. A consciencia acima de tudo.
Entendeu o auctor que era sobre tudo descriptivo [256] o romance moderno, profundamente descriptivo, cheio de analyse, critica, de bom-senso e da naturalidade; de pouco dialogo e de muita observação; havendo todo o escrupulo em pôr de parte o devaneio, na dissecação dos homens e das cousas.
Ao ideal d'este livro presidiram, pois, as realidades presentes e passadas. O typo da Viscondessa, atraz esboçado, poderá não agradar a todos, é verdade; mas é, no entanto, um typo real, perfeitamente real. Uma mulher ingenua, simples, caprichosa, sacrifica o seu coração, a sua tranquillidade, o seu amor a um elegante rapaz, filho dos restaurantes, e, como os restaurantes, viciado e corrupto. D'aqui a perdição da heroina e o triumpho do galã.
Outro tanto succede com a figura angelica da aldeã. Victima do confessionario, cahiu, andorinha ferida, a quem roubam o ninho e os filhos; sedenta de prazer, resvalou no abysmo.
Alfredo, se bem que generoso e sympathico, é, todavia, um moço perdido, alucinado pelos vinhos e pelas grandes ceias, incapaz de conceber outros [257] pensamentos que não sejam o da sua indolencia e o do seu bem-estar. Acaba porisso como, naturalmente, devia acabar--nas costas d'Africa.
O contrario quasi se dá com Julio. Trabalhando, vence os escolhos da adversidade; convivendo com o mundo, torna-se como o mundo, calvo na corrupção e no cynismo.
E muito de proposito, pois que não fallo aqui na mãe e na esposa, dediquei este livro ás boas mães e ás boas esposas: ás boas mães, para que sejam esmeradas na educação das filhas, e ás boas esposas, afim de que saibam estimar a virtude, como a primeira e a mais indestructivel de todas as riquezas.
A maternidade é uma fonte de boas acções. Quem sabe se foi este o defeito da Viscondessa e de Cecilia? O santo amor de mãe despertaria incontestavelmente n'estas duas mulheres outros mundos muito diversos que não os da imaginação e os do capricho.
A logica não foi, pois, sacrificada. Antes pelo [258] contrario temos fé em que será ella a gloriosa redemptora d'este enormissimo peccado.
Coimbra,
4 de Fevereiro
da 1874
O Auctor.
Pag. | |||
Dedicatoria | 5 | ||
Cap. | I | Um baile | 7 |
« | II | A senhora Viscondessa | 13 |
« | III | Alfredo | 25 |
« | IV | Contrastes | 37 |
« | V | No restaurante | 45 |
« | VI | Sem sahir do mundo | 53 |
« | VII | Entre amigos | 59 |
« | VIII | De passagem | 65 |
« | IX | Pobreza e miseria | 71 |
« | X | Cousas dos homens | 79 |
« | XI | Na taberna | 85 |
« | XII | Perigos e consequencias | 91 |
« | XIII | Continuação | 97 |
« | XIV | Novos mundos | 103 |
« | XV | Primeiros amores | 107 |
« | XVI | Transformações | 113 |
« | XVII | Allucinações | 119 |
« | XVIII | O escudeiro da senhora Viscondessa | 125 |
« | XIX | Falla o coração | 133 |
« | XX | Casa burgueza | 139 |
« | XXI | Considerações | 143 |
« | XXII | Um hospede | 149 |
« | XXIII | Transição | 155 |
« | XXIV | Confidencia | 161 |
« | XXV | Mais confidencias | 165 |
« | XXVI | A Viscondessa | 171 |
« | XXVII | Digressão | 170 |
« | XXVIII | Ainda a Viscondessa | 183 |
« | XXIX | Indecisões | 189 |
« | XXX | Glorias do operario | 193 |
« | XXXI | O que faz o talento | 190 |
« | XXXII | Vestigios e ruinas | 203 |
« | XXXIII | Causas e motivos | 209 |
« | XXXIV | Latet anguis | 213 |
« | XXXV | Critica | 219 |
« | XXXVI | Toldam-se os horisontes | 223 |
« | XXXVII | Uma victima | 229 |
« | XXXVIII | Julio feito barão | 233 |
« | XXXIX | Denuncias e suspeitas | 237 |
« | XL | No hospital | 243 |
« | XLI | Sorrisos e lagrimas | 247 |
« | XLII | Tableau | 251 |
Epilogo | 253 | ||
Post-scriptum | 255 |
End of the Project Gutenberg EBook of A Senhora Viscondessa, by Sebastião de Magalhães Lima *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A SENHORA VISCONDESSA *** ***** This file should be named 24710-h.htm or 24710-h.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/4/7/1/24710/ Produced by Pedro Saborano Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. They may be modified and printed and given away--you may do practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at http://gutenberg.org/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is in the public domain in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country outside the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org 1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived from the public domain (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg-tm License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided that - You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." - You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm works. - You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. - You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg-tm works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread public domain works in creating the Project Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email [email protected]. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director [email protected] Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit http://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: http://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.