Nota de editor:
Devido à
quantidade de erros tipográficos existentes neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Fev. 2008)
GOMES DE BRITO
NOTICIA
de
Livreiros e Impressores
em Lisbôa
na
2.ª METADE DO SECULO XVI
composta
em face de um codice
da camara municipal desta cidade
1911
Imprensa Libanio da Silva
Travessa do Fala-Só, 24
lisboa
Livreiros e Impressores em Lisbôa
na 2.ª metade do Seculo XVI
GOMES DE BRITO
NOTICIA
de
Livreiros e Impressores
em Lisbôa
na
2.ª METADE DO SECULO XVI
composta
em face de um codice
da camara municipal desta cidade
1911
Imprensa Libanio da Silva
Travessa do Fala-Só, 24
lisboa
Do Boletim da
Sociedade de Bibliophilos
Barbosa Machado
Tiragem: 50 exemplares
N.º 44
NOTICIA
de
Livreiros e Impressores em Lisbôa
na
2.ª METADE DO SECULO XVI
Até o tempo em que o Cardeal D. Henrique, depois
rei, procedeu á nova circumscripção
das parochias de Lisbôa,
erijindo mais cinco freguezias a ajuntar ás vinte e
cinco já existentes (1564 a 1569), demarcando-lhes o
territorio
nos recortes feitos a quatro destas, a secular compartilha
que resultava deste regimen, estabelecido no intuito
de accomodar o serviço religioso ás necessidades
dos fieis, e sua mais immediata satisfação,
soffrera tres
remodelações. Ordenara a ultima, durante a
regencia do
principe D. João, ausente em França seu pai, o
rei D.
Affonso V, o celebre cardeal de Alpedrinha.
Por effeito daquelle regimen, grande numero de vias
públicas lisbonenses eram, como ainda hoje o são,
compartilhadas
por diversas freguezias confinantes. O
Summario
de Christovão Rodrigues de Oliveira, apezar de
imperfeito neste ponto, nos mostra, pela
repetição das
denominações,
que não dos
disticos,
porque tal providencia
estava ainda por nascer, quaes e quantas eram as
[6]
vias públicas compartilhadas, por effeito da
remodelação
parochial então vigente.
Comprehendia-se entre as deste numero a muito falada
«Rua Nova», dividida em dois troços, um
mais antigo
que o outro; um, o primeiro, fazendo parte do territorio da
freguezia da Magdalena, o outro pertencendo á freguezia
de «S. Gião» (S. Julião).
Do mesmo modo, esta notavel rua da Lisbôa medieva,
que principiando no Pelourinho, ía entroncar na Calcetaria,
era conhecida por duas denominações,
correspondentes
á sua compartilha. Á parte oriental, territorio
da parochia
da Magdalena, que terminava no Arco dos Barretes,
chama Christovão «Rua Nova dos Ferros»;
a que
desde o predito Arco ía embeber-se na Calcetaria, um
pouco adiante do Chafariz dos Cavallos, é designada na
relação do
Summario, referida á
freguezia de S. Gião,
pela denominação de «Rua Nova dos
Mercadores».
I
É em toda a extensão da Rua Nova, de um e outro
lado della, que, mercê de um valioso codice pertencente
á Camara Municipal de Lisbôa
[1], nós
vamos encontrar, de
porta aberta, nos annos intermedios dos já preditos (1565
a 1567), não só alguns dos livreiros e editores
já conhecidos
dos que conversam o passado literario de Portugal,
mas outros tambem, ainda até agora não
mencionados.
Começando a juzante da formosa linha de agua com a
[7]
qual a Rua Nova andava, se pode dizer, parallela, o primeiro
que se nos depara é Bartholomeu Lopes, que não
deixou de si, que saibamos, memoria averiguada, mas que
poderá ser, porventura, membro de uma notavel
geração
de livreiros deste appelido;―os Lopes.
[2]
Em 1563, isto é, dois annos, apenas, antes do primeiro
dos dois a que o codice de onde extractamos estes apontamentos
se refere, havia um Christovão Lopes estabelecido
«á Porta da Sé», segundo se
vê do titulo seguinte,
que abreviamos, mas se pode ler completo em Innocencio,
Diccion. Bibliog. II, 166:
«
Exposiçam da Regra do glorioso
Padre Sancto Augustinho...
por frey Diogo de Sam Miguel, &―Vendense (sic)
á porta da See, em
casa de Christouam Lopes
Liureyro a dous tostões em papel.―Foy impresso
em Lixboa em casa de Joannes Blavio de Agrippina
Colonia―Anno de 1563».
Vista a propinquidade dos annos, poderá acaso Bartholomeu
Lopes ter sido irmão, ou filho (?) de Christovão
Lopes,
e seu successor, passando o estabelecimento da Porta da
Sé para a Rua Nova, ou estabelecendo-se elle ahi de novo.
É possivel tambem que este mesmo livreiro seja pae do
livreiro-impressor Simão Lopes, que deu em Lisbôa,
em
1593, a primeira edição do
Itinerario, de Fr.
Pantaleão
d'Aveiro, as
Cartas do
Japão, etc., e em 1596 reimprimiu
a
Chronica de D. João II,
de Garcia de Rezende.
A seguir a Bartholomeu Lopes, seu visinho, estabelecido,
até, nas mesmas casas, tendo ambos por senhorio
um tal Jeronymo Corrêa, tinha a sua lojinha Sagramor
[8]
Fernandes. Era livreiro de modestas posses, a julgar pela
avaliação que os
«lançadores», para tal effeito
deputados,
deram á sua fazenda, na proporção de
cuja totalidade deveria,
como todos, pagar o respectivo escote. O nome baptismal
do homem era novellesco, mas as
cavallarias, ao
que parece, não eram grandes.
A influencia das novellas de cavallaria faz-se ainda sentir
em toda a sua pujança no codice que nos facilita esta
noticia, imprimindo-lhe um matiz pictoresco e variado.
O nome novellesco do obscuro livreiro não é unico
entre
os seus congeneres de ambos os sexos, inscriptos neste
curioso recenseamento. A par dos Sagramor ha os Lançarote;
de envolta com as Ginevras passam as Briolanjas.
A procedencia francesa e a italiana, dando-se as mãos.
Lançarote é o «Lancelot»
francez; Lancelot du Lac, o heroe
cavalheiresco de Gauthier Mapp, o amigo de Henrique
II de Inglaterra. Sagramor é o
«Sagromoro» milanez,
que Jorge Ferreira aportuguesou, fazendo-o heroe do seu
Memorial; Sagramor Constantino,
designado por el-rei
Arthur para seu successor, se a sorte das armas lhe fôsse
adversa.
Por aproposito, lembraremos a dúvida que Barbosa Machado
fez nascer, ácerca da existencia dos
Triumfos de
Sagramor, novella que, segundo elle, teria sido
impressa
em Coimbra, em 1554, por João Alvarez, mas de que parece
que nem o douto Abbade de Sever, nem, de certeza,
o seu successor, o diligente Innocencio, viram jámais
exemplar
algum. Será esta hypotética novella o proprio
Memorial,
assim duplicado pelo auctor da
Bibliotheca
Lusitana?
Eis um curioso thema, digno, nos parece, de attrahir
a attenção da nossa Sociedade, e a que o artigo
de
Innocencio (IV, n.º 2095, pag. 170) prestaria a base.
[9]
Em compensação, porém, algumas lojas
mais adiante do
modesto Sagramor achava-se estabelecido o opulento João
de Borgonha. Livreiro-editor de nomeada, fornecedor de
artigos do seu ramo para a fazenda de S. A., proprietario
nas visinhanças do seu estabelecimento, e em mais de um
sitio,
[3] os
seus teres, como negociante, foram avaliados
em «um conto de réis».
Na epoca em que o encontrámos, tinha elle por seu
«obreiro», talvez o que hoje chamariamos seu
«director-technico»,
seu administrador ou seu apoderado, a um certo
Miguel de Arenas, um castelhano, porventura, como da
Borgonha seria, com effeito, o patrão; estranjeiros quasi
todos, estes negociantes das letras portuguezas do seculo
XVI, que, vindo concorrer com os nacionaes, faziam,
ao que parece, mais fortuna que elles.
[4]
Certo é que Miguel de Arenas estabeleceu-se posteriormente,
com o mesmo ramo de commercio, de sociedade
[10]
com João de Molina; tambem, e mais vulgarmente conhecido
por «João de Hespanha», outro abastado
mercador
de livros, mas não tanto como o seu confrade borgonhez.
O negocio de João de Hespanha foi avaliado em
«duzentos
mil réis». Como «obreiro» de
João de Borgonha, Miguel
de Arenas devia fazer bons interesses. Dos seus ordenados―e
foi por esta circumstancia que o suppuzemos
empregado superior da casa de seu
patrão―foram-lhe
arbitrados «cinquo mill rs», para na
razão delles pagar o
respectivo escote.
[5]
A João de Borgonha segue-se, nas tendas de Alvaro de
Moraes, o livreiro Manoel Carvalho, provavelmente o pae
de Sebastião Carvalho, que em 1598 publicou, em 3.ª
edição, a
Recopilaçam
das cousas que conuem guardarse
no modo de preseruar a Cidade de Lisboa,
instrucções
redigidas em 1569 pelos medicos Thomaz Alvarez
e Garcia de Salzedo Coronel, e repetidas na primeira
das datas a que acima nos referimos, «por mandado da
cidade de Lisbôa», &.
[6]
Sebastião Carvalho conservaria
assim na mesma Rua Nova o estabelecimento paterno.
[11]
Apresentam-se, logo em seguida a Manoel Carvalho,
Diogo Machado, João Lopes e «Graviel» de
Araujo, dos
quaes não viramos ainda noticia, antes que o codice que
lhes revelou a existencia no'los désse a conhecer. Ao ultimo
destes segue Diogo Moniz, que por ter apresentado
carta de familiar do Santo Officio, foi escuso do escote.
Porfim, e quasi no extremo da parte da rua pertencente á
freguezia da Magdalena, o «Grafeo», isto
é, o livreiro-editor
Francisco Grapheo, em cujo estabelecimento se
vendia a novella
Menina e
Moça, de
Bernardim
Ribeiro,
impressa em Colonia, em 1559,
[7]
e uma das muitas
edições
da
Diana, do nosso Jorge de
Montemor, ao qual
ainda não chegara a hora de ser incluído nos
Indices expurgatorios
das duas Inquisições peninsulares.
[12]
II
Continuando na mesma Rua Nova, agora já no territorio
da freguezia de «S. Giam»; isto é, para
a direita do
Arco dos Pregos, ainda ahi encontramos um Francisco
Mendes, que estará no caso de Sagramor Fernandes, visto
o diminuto do escote, bem como o «framengo» Giraldo
de
Frisa, que pertence tambem, ou nos enganaremos, ao numero
dos da sua classe, de que não chegára noticia
até
nossos dias.
Emfim, na mesma Rua Nova, e territorio da sobredita
freguezia de «S. Giam» (S. Julião), mas
da banda das
Varandas, encontramos, fronteira ao Arco dos Pregos, a
«viuva de Salvador Martel», Leonor Nunes, a qual,
estabelecida,
com seu filho, nas casas de Fernão d'Alvarez
de Almeida, teve pelos lançadores a
avaliação de duzentos
mil réis.
Salvador Martel foi livreiro conhecido. Deverá ter fallecido
no decurso das operações do
Lançamento, de
cujo livro tiramos estas singelas notas, visto como Tito
de Noronha ainda o refere ao anno de 1566.
[8]
Algum tanto mais atrás, e tornando ao territorio da
freguezia
da Magdalena, voltando da rua de D. Gil Eanes,
pelo «Pelourinho», para a rua da Ourivesaria da
Prata,
[13]
em cuja entrada tinham suas lojas os «calciteiros»,
encontramos
o livreiro Jeronymo de Aguiar, que tambem não
conheciamos, e, ali perto, no Poço da Fotéa, o
já mencionado
João de Molina, appelidado no codice que vamos
percorrendo «Johão de Espanha»,
livreiro-editor que rivalisava,
sem comtudo o hombrear, como já notámos, com
o seu opulento confrade João de Borgonha.
Não era, porém, só na famosa Rua Nova,
e suas immediações,
que se encontravam os mercadores de livros. Na
rua direita da Porta do Ferro,
[9]
numas casas que ahi possuia
a camareira-mór, estava estabelecido «Jorge
Dagiar»
(Aguiar ou Aguilar?) talvez antecessor de Antonio de Aguilar,
que nesse sitio teve a sua loja em 1576.
Pelas vizinhanças, na «travessa da porta travessa
da
Madalena», que se ligava á «rua do fim
do pé da Costa»,
tinham tambem suas lojas Francisco Fernandes e «Bautista
da Fonsequa».
[10]
Lá para a Porta do Mar, entre a
Mizericordia e a «Fonte da Pregiça»,
[11]
nas tendas da Cidade
que jaziam nas costas do Terreiro do Trigo, vendia
livros um tal Manoel Francisco, lojista de medianos teres,
cuja fazenda foi avaliada em 10$000 réis.
[14]
Por pouco mais abastado sería tido um Antonio Dias,
com estabelecimento na rua da Gibetaria,―15$000 réis
de fazenda.―E nos mesmos casos Pero Castanho, lá para
perto de Valverde, numa travessa que vinha de Paio de
Novaes para aquelle sitio, isto é, por perto do Rocio.
III
Estes são os livreiros que encontrámos arrolados
em
1565-1567 no
Livro do
Lançamento que nos tem guiado.
São
vinte, isto
é, mais do dobro dos que Tito de Noronha
contou em sua já lembrada Memoria, referidos aos
mesmos annos.
Não poderemos, todavia, affirmar que o João Lopes
(1588), da lista daquelle auctor, seja o mesmo que figura
nestas singelas notas. A identidade não se nos afigura
improvavel.
Do Christovão Lopes (1563), daquella lista, já
dissemos
o que temos por presumivel. Quanto ao livreiro Antonio
Curvete (1565), mencionado tambem por Tito, não se nos
deparou no longo exame feito ao curioso codice, sob este
particular ponto de vista. Isto não quere dizer que elle se
não ache entre os 15:000 nomes contidos no volumoso
recenso. Bem poderá, porém, ter escapado, por
isso que
nem sempre as profissões dos fintados lhes acompanham
[15]
os nomes, ou achar-se-ha substituido por outro dos arrolados.
Como quer que seja, um e outro do numero total dos
livreiros, apontado por Tito de Noronha e por nós, como
estabelecidos em Lisbôa entre 1565 e 1567, está
muito
longe do que mencionou Christovão, onze annos
antes
[12]―«54».
Este numero, na verdade, inconcebivel por si só,
e sem mais explicações, é justificado
pelo ignorado auctor
da chamada
Estatistica de Lisboa, de
1552, que se
guarda na Bibliotheca Nacional, de modo assás plausivel,
e que, demais, acerta muito satisfatoriamente a nossa
conta.
Diz, com effeito, o auctor da
Estatistica:
«Tem XX tendas de livreiros, e [na] maior parte delas
i i j, i i i j criados e sserã as p
as
que nellas
trabalham
huas per outras lx...... 60 p
as».
Se em vez de Antonio Curvete, que nos falta, pode
estar algum dos diversos desconhecidos, de que damos os
nomes, hypothese que não parece improvavel, haveria
nesta capital, de 1565 a 1567, o mesmo numero de livreiros
que foi contado pelo auctor da
Estatistica, em 1552.
Adoptada, com effeito, a conta dos «criados» ou
«obreyros
de livreiros» que os lojistas teriam a seu
serviço, calculada
pelo mesmo auctor, ahi teremos o numero de Christovão
assaz justificado.
Será a seguinte Noticia dedicada aos
Impressores.
[16]
IV
Ao
testemunho do curioso codice
do
Archivo Municipal,
que temos seguido, na famosa Lisbôa da segunda metade
do XVI.º seculo
seis individuos
exerciam a «arte impressoria»,
como a denominou Valentim de Moravia, em sua
traducção do livro de Nicolau Veneto.
O primeiro dos seis «imprimidores», segundo se lhes
então chamava, e elles a si proprios se designavam,
encontrados
no alludido codice, é o velho João Blavio de
Agripina Colonia
[13],
cujas impressões, conforme a tabella
organisada por Tito de Noronha, em sua tão curiosa
quanto instructiva monographia;―
A Imprensa Portugueza
durante o seculo XVI, remontam a 1554.
[17]
É, porém, de notar que nesta tabella, ou lista
chronologica
dos impressores deste seculo, assigna-se á actividade
de João Blavio os onze annos, apenas, que começam
em
1554, e terminam em 1564.
Ora, o ról do
Livro do
Lançamento, onde apparece este
impressor, foi recebido pelos
sacadores (os encarregados
da cobrança da extraordinaria
imposição) em 11 de
março de 1566, e por elles entregue, com o producto da
cobrança, em 17 de agosto, do mesmo anno.
Vê-se pois que a actividade de João Blavio se
prolongou
algum tanto mais do que o indica a citada lista. O
que fica para saber, é que genero de trabalhos produziria
este typographo durante o lapso de tempo em que se
averigúa agora ter elle ainda conservado a sua typographia,
e a data precisa da sua desapparição.
[14]
[18]
Era pouco importante nesta epoca, segundo parece, a
actividade officinal de João Blavio. A moderada
avaliação
de 3$000 réis, que teve, o está
inculcando.
Achava-se o velho impressor estabelecido no «Beco de
Gaspar das Naus», freguezia de «Sam
Giam», nas casas de
um tal Bento Gonçalves. Aquella minguada arteria de
Lisbôa tinha sua entrada na Calcetaria, entre a rua dos
Fornos, a L. e o beco da Ferraria, a O. Rematando-se,
ao N., por uma especie de cotovello, sem sahida, bifurcava-se
na ligação com a rua dos Fornos, a que se chamava
«beco do Loureiro». O plano Pombalino, assentando
sobre
esta um tanto emmaranhada topographia, mostra-nos,
como pode ver-se na
Est. I da obra
valedora do sr. Vieira
da Silva,
As Muralhas da Ribeira de
Lisboa, o Beco
de Gaspar das Naus atravessado transversalmente, de
cima para baixo, na entrada da rua do Crucifixo, tendo
a sua abertura no quarteirão que fica entre a esquina P.
da rua do Crucifixo e a do N. da rua Nova do Almada,
fronteira, por conseguinte, á parede lateral esquerda da
actual igreja da Conceição Nova.
O personagem que deu o nome a este beco, e provavelmente
residiu nelle, fôra, a julgar pelo que allega o
«
Negro»,
[19]
na
Pratica de oito figuras, do poeta
Chiado, sujeito que
empunhara no mercado a vara da justiça... policial.
Diz com effeito,
«
Gama»:
«Não vou por esse
caminho!
Fallae ao que vos pergunto,
Dizei, negrinho sandeu:
saibamos que mal vos fiz,
porque não me daes perdiz,
pois que m'a compraes do meu?
Responde o
«
Negro»:
«Nunca elle mim acha...
Muito caro, nunca bem...
Mim dá-le treze vintem
pr'o dôzo; não querê dá.
A regatêra muito máo!
Mim dize quére vendê?
Elle logo saconde...
medo
Gasapar da náo
proqu'elle logo prende.»
[15]
Gaspar das Naus não é o unico a quem tenha sido
applicado o cognome. Houve por esta epoca um outro individuo,
chamado Manoel Lopes, tambem cognominado
«das Naus». Ainda não sabemos em que se
occupasse.
V
Segue-se, na ordem da leitura, Marcos Borges, que nos
apparece arrolado como «imprimidor obreyro»,
residindo em
uma de tres vias públicas, enfeixadas pelos
lançadores
da sobredita imposição num só
titulo:―«
Rua de quebra
[20]
q... com travessa de calca
(calça)
frades e Rua de
pino vay»
[16].
O rol onde figura Marcos Borges foi entregue aos
sacadores
em 2 de maio de 1566, sendo por elles restituido
ao thesoureiro da imposição em 1 de agosto
seguinte.
Ora, «ao primeyro de janeiro de 1566» appareceu a
público,
impresso por este typographo, o
«
Paradoxo», de
João Cointha, lendo-se no frontispicio da obra,
além da
sobredita data, mais a seguinte
indicação:―«
Vede se
na
empressam detraz de nossa senhora da
Palma».
[17]
Se, pois, Marcos Borges já no 1.º de janeiro de
1566
estava estabelecido por sua conta, e nos dá testemunho
irrecusavel do facto na obra que lhe foi, porventura, estreia,
como é que elle nos apparece classificado como
«imprimidor
obreyro», em maio, deste mesmo anno? Não deviam os
individuos que o classificaram conhecer bem a sua
posição?
Por outro lado, a indicação um tanto vaga:
«detrás de
nossa senhora da Palma» poderia até agora fazer
suppôr
que Marcos Borges estava, com effeito, estabelecido nalgumas
[21]
casas situadas na parte posterior da capella-mór
da ermida daquella invocação, onde, de certeza,
havia já
neste tempo casas para alugar, como as continuava havendo
em 1755, e a ellas se referiram os engenheiros encarregados
das medições dos Bairros, ordenadas no
começo
do anno seguinte pelo ministro do rei D. José.
[18]
Desde, porém, que Marcos Borges nos apparece residindo
num sitio differente do indicado na obra, de que terá
sido o proprio editor, como tal indicação nos
auctorisa
a crêr, ainda que ambos os locaes fôssem
convizinhos, o
que parece curial é entender-se que o impressor do
«
Paradoxo»,
tendo, com effeito, a sua officina no sitio que
a obra indica, residiria no «
Pino
Vay», viela ingreme,
quasi fronteira á parte posterior da ermida, e que laborava
a escarpa, no alto da qual passava a «rua detraz de Santa
Justa», correspondendo, salvo o actual aspecto, á
rua da Magdalena,
na parte que vae da Betesga ao largo dos Caldas.
Vamos ver adiante que Antonio Gonçalves, confrade,
já
agora celebre, de Marcos Borges, morava numas casas de
certa rua, e tinha nella, e perto, em outras, a sua officina.
Mas, encosta acima, enlaçava-se no
«
Pino vay» a
«
travessa
de quebra q...», que rasgando-se entre a
«
rua dos
torneiros» e a
«
Correaria», um
tanto mais abaixo da
abertura inferior do «
Pino
vay», ía formar com esta viella,
a meio da encosta, o enlace que fica apontado.
[22]
São poucos os contribuintes arrolados no grupo das
tres vias públicas em questão, e tanto se pode
suppôr que
Marcos Borges, sempre na hypothese de ter a sua officina
«
atras de nossa senhora da
Palma», morasse no
«
Pino
vay» como na travessa predita, ou na
rua de calça frades.
A circumstancia, porém, de não mencionarem os
lançadores
pessoa alguma a fintar na parte posterior da ermida
da Palma, justamente no anno em que este impressor
se declarara, na obra que citámos, estabelecido nesse
sitio desde o 1.º de janeiro, tenta-nos a ver em tal
indicação
um
alibi, por elle empregado, para
remediar um inconveniente
a que o decoro devia attender. O que se nos afigura
por mais certo, é que os
sacadores encontraram,
com effeito, Marcos Borges residindo na mesma casa onde
teria a sua officina, o que era regra, a bem dizer, geral,
não «atrás da ermida de nossa senhora
da Palma», mas
na
travessa de quebra costas, uma
das tres do grupo
onde o seu nome apparece, entre
outros, e da qual se pode
admitir, sem grande violencia, que
ficasse
fronteira, mas
do lado opposto da
Correaria,
á parte posterior daquella
ermida.
Quanto á menos exacta qualificação que
ao impressor
foi attribuida pelos
sacadores, pode
entender-se egualmente,
ou que houve equivoco da parte destes, ou que elles
quizeram favorecer o recem-estabelecido
«imprimidor»,
conservando-lhe a qualificação de
«obreyro», com o fim
de lhe minorar a importancia do escote. Marcos Borges,
typographo proprietario de officina, poderia, é verdade,
ser avaliado em 3$000 réis, como o fôra o seu
confrade
João Blavio, e pagaria 21 rs. de escote, mas passando,
por favor dos
sacadores, por
méro «imprimidor obreyro»,
alcançava o beneficio da «menor contia»,
que eram 2$500
[23]
rs., correspondendo-lhe a contribuição de 17 rs.
Era uma
differença apreciavel. Valia a pena acceitar o favor. Marcos
Borges,
encolhendo-se, ganhava 4
réis, isto é, defraudava
S. Alteza em obra de 30 réis, de hoje.
Este impressor, ainda em 1567; isto é, no anno seguinte
áquelle em que se estabeleceu por sua conta, continuava
a dar como séde da sua typographia o mesmo sitio:
«
detrás de nossa senhora da
Palma». Assim se lê,
com effeito, no fim da «
Chronica do valoroso
principe e
invencivel capitão Jorge
Castrioto», de Francisco de Andrade.
Era então já «impressor delrey nosso
senhor».
Não continuou, porém, ahi. Do facto ficou
testemunho
no depoimento de Pero Alberto, flamengo, seu obreiro,
que a 5 de novembro de 1571 declarava seu mestre estabelecido
no «Arco dos Carangueijos», se não
é Arco do
Caranguejo, simplesmente.
[19]
A indicação é preciosa, porque nos
mostra quem foi o
successor da viuva de Germão Galharde, da qual adiante
nos occuparemos com tal qual individuação.
VI
Ao «imprimidor» Marcos Borges seguem-se, no codice
que estamos examinando, os seus dois confrades Manoel
João e Francisco Corrêa, encontrados, este na
freguezia
de Santa Justa, aquelle, na de S. Christovão.
É Manoel João o primeiro, e delle e da sua
actividade
industrial vamos dar os breves respigos por nós colhidos
nas duas interessantes e eruditas monographias de Tito
[24]
de Noronha―
A Imprensa Portugueza, e
Ordenações do
Reino, ambas referidas ao seculo XVI.
[20]
Manoel João exerceu a sua arte entre os annos de
1565 e 1578. Destes quatorze annos, porém, os dois primeiros
occupou-os o impressor em Lisbôa, transferindo-se
após a Vizeu, onde trabalhou durante os seguintes
déz.
Em 1576, provavelmente, Manoel João terá voltado
a esta
capital, publicando nella, datados deste mesmo anno, os
Diesisiete coloquios, de Baltazar
Collazos. De 1578
em diante, desapparece.
Deverá ter sido limitada, e pouco sortida, a actividade
industrial deste impressor, accrescendo que as obras sahidas
do seu prélo não se distinguem por perfeitas.
Para o
facto concorria tambem o cançado tipo de que
dispôs, e
o papel em que imprimiu. A decadencia da Arte começava
a accentuar-se.
Dos dois primeiros annos do estabelecimento de Manoel
João em Lisbôa conhece-se, impressa no anno de
1565, a
4.ª ed. das
Ordenações do
Reino, dada a lume, como as
anteriores, por mandado régio
[21].
Esta
edição foi feita á
custa do livreiro Francisco Fernandes, e será o mesmo
que referimos no Cap. II ter encontrado estabelecido na
[25]
«
Travessa da porta travessa da
Madalena»; isto é, por
perto da actual calçada do Correio Velho.
No anno seguinte dava o nosso impressor a lume a
segunda edição da
Primeira Parte
da Chronica dos
Menores, como lembrámos em uma das notas
do Cap. IV.
A esta obra seguiu-se a
Oração
na trasladação dos
ossos de Affonso de Albuquerque, e depois os
Artigos
das Cizas, edição geralmente
desconhecida de nossos
bibliographos, e de que Tito de Noronha menciona tres
exemplares; o da livraria de Lord Stuart, e os de dois
amadores do Porto
[22].
Em Vizeu, onde Tito conjectura se estabelecera Manoel
João, a convite do bispo D. Jorge de Atayde, deu este
impressor, em 1569, o
Compendio de
Confessores, e no
anno seguinte as
Regulae
Cancellariae, de Pio V.
Tal é a noticia abreviada da actividade officinal de
Manoel João. Cumpriria agora ver como se exprimiu
Bastião
de Lucena, o escrivão da
voluntaria
imposição, graças
á qual nos foi possivel ajuntar as poucas noticias que
constituem o assumpto de nossas singelas notas, ao lançar
no volumoso codice que estamos compulsando, o nome
deste impressor entre os fintados da freguezia de S.
Christovão. Antes, porém, importa que o benevolo
leitor
nos consinta um breve relance á topographia lisbonense,
[26]
da epoca a que pertence o interessante
Livro do
Lançamento
que temos examinado. Ver-se-ha não ser sem motivo
a digressão.
VII
Quem percorrer as tão bem ordenadas listas da
viação
pública parochial lisbonense, impressas no
Summario de
Christovão Rodrigues de Oliveira, com as suas tres
categorias
de becos, ruas e travessas perfeitamente distinctas,
e os seus sessenta e dois «Postos que nam sam
ruas»,
onde o auctor, ou os que taes listas organisaram, accommodam
os «sitios», os adros das parochias, os arcos, as
varandas, os terreiros, ficará de todo illudido, se cuidar
que tudo na vida administrativa de Lisbôa se passava com
regularidade tão exemplar, em pleno seculo XVI, que
todos os habitantes da famosa cidade lhe conheciam as
vias públicas, destrinçando-as umas das outras,
como hoje
o fazemos, por suas exactas denominações e
categorias,
sem ser preciso designa-las por signaes, ou auxiliar-se de
referencias mais ou menos complicadas, para lhes descreverem
a marcha itineraria.
A prova de que tal regularidade não passou dos
«roles»
que os parochos de Lisbôa ministraram ao guarda-roupa
do Arcebispo, por ordem deste, e Christovão fez imprimir
após as noticias que ía dando das differentes
freguezias,
está neste codice que temos manuseado, e de que
vamos dando noticia a nossos benignos leitores. No breve
espaço dos quinze annos que medeiam entre a data que
é
costume attribuir á curiosa obra do solícito
famulo do
prelado lisbonense, é o
Livro do
Lançamento, do Archivo
Municipal (1551-1565), um grande numero de vias públicas
de todas as tres categorias se haviam aggregado ás
quinhentas
[27]
e vinte e uma, de que o
Summario pretende dar
a conta, não em somma total, mas em sommas parciaes,
referidas a cada qual das tres categorias
[23].
Estava no seu auge o facto que a
Miscellanea de Garcia
de Resende commemora;
«Lisboa vimos crescer
Em povos e em grandeza.
E muito se nobrecer
Em edificios, riqueza».
Lisbôa desenvolvera-se a olhos vistos, e uma nova
remodelação do territorio parochial,
divisão unica, de tal
qual regularidade por então em vigor, e essa mesma mais
para o ecclesiastico, do que para o civil, estava imminente.
[28]
Ora, desde o 1.º de janeiro de 1560 que a freguezia de
«Santa Catharina do Monte Sinay» encetava, pelo
funccionamento
da sua parochia, a série de providencias, que
o Cardeal Infante resolvera promover, para instituir mais
cinco freguezias na cidade, recortando-as no territorio
das vinte e quatro já existentes, segundo
lembrámos no
começo destas singelas Notas.
Pois bem: cinco annos depois de ter começado a funccionar
esta parochia, ainda a grande maioria das vias
públicas que lhe sulcavam o territorio carecía de
denominações,
ou os
lançadores,
freguezes nella, e que haviam
formado os roes da
voluntaria
derrama, lh'os não conheciam.
A calçada
do Congro[24]
ahi figura já, na verdade, substituindo
se á
denominação bem mais pictoresca de que
dispusera, de calçada da
Boa
Vista, no tempo em que,
seguindo os roes de Christovão, a vemos mencionada na
freguezia de Nossa Senhora do Loreto, cujo territorio,
[29]
já no começo da segunda metade do seculo XVI,
alcançava
até o «Valle das Chagas». Nascera
igualmente a
«Rua do Conde», que em nossos dias mandaram
appelidar
«Travessa do Caldeira»
[25],
a «Bica do
Bello», de 1551,
apparece já em 1565 com a denominação
com que ficou,
de «Rua da Bica de Duarte Bello», Fernão
Rodrigues de
Almada dá o seu appelido á rua que ainda agora
conserva
tal nome, proximo á antiga «Cruz de
Pao», desde 1885,
«Rua do Marechal Saldanha».
Em compensação, porém, os roes dos
sacadores falam-nos
de 4 ruas que «vão das Chagas para Santa
Catharina»,
assim como de 2 outras que «vão por
detrás de
Santa Catharina, uma para a Costa, outra para o Valle»,
e destas seis não é em nenhuma maneira facil
fixar a
situação. Por outro lado, se conjecturamos que a
«rua
dereita [~q] vai p'la calçada do congro abaixo»
seja a actual
rua do Sol, a «rua da Cruz para Santa Catharina» a
actual
rua do Marechal Saldanha, a «rua que vai da cruz da
esperança para as casas de Christovão de
mello» a actual
rua dos Mastros, e assim como estas, outras ruas ou travessas,
apenas indicadas por informações, nem sempre
estas, se se pretendesse fazer um estudo comparativo
local, seriam faceis de precisar.
Ora, consoante a taes exemplos, tirados, aliás, do
territorio
[30]
parochial de uma freguezia incipiente, muitos
outros se offerecem neste codice, dispersos por diversas
freguezias, e até por algumas das mais antigas.
Mas não é só isto. Palpita-nos que
certas vias públicas
das listas de Christovão passaram a ser indicadas por
differentes designações, o que se explicaria pela
decadencia
da respectiva determinante. Exemplos deste facto
ha-os, até bem mais recentes. A calçada de
Damião de
Aguiar, do seculo XVII,
passou a
ser denominada «calçada
do Lavra» (aliás Lavre), quando os Lopes de Lavre,
do
Concelho Ultramarino, vieram, pela infallivel lei das
renovações,
e consequentes substituições, a entrar na posse
do palacio e ermida que haviam pertencido áquelle
desembargador;
construcção que fórma a esquina
esquerda da
referida calçada, sobre a rua de S. José. Outra
calçada,
a de Salvador Corrêa de Sá, trocou o nome pelo de
S.
João Nepomuceno, quando os religiosos protegidos pela
rainha D. Maria Anna de Austria fundaram o seu hospicio,
daquella invocação, nas abas occidentaes do monte
de
Santa Catharina.
De outras vias públicas do codice em exame se pode
inferir que se haja obliterado a significação do
nome que
as distinguia, visto como é evidente que Bastião
de Lucena,
o escrivão desta derrama, lhes desfigurou as
denominações,
com a mesma inconsciencia com que deformou
o nome do velho João Blavio de Agripina Colonia. Uma
viela, para exemplo; uma viela que recordava o appelido
de certo parente do arcebispo de Genova, Agostinho
Salvago, e que viera estabelecer-se em Lisbôa, apparece-nos
transformada por Lucena em "Beco da Salvaje», e
assim outras mais. Do mesmo modo que ha, em summa, no
Livro do Lançamento
muitas vias públicas não mencionadas
[31]
no
Summario do guarda-roupa,
ha neste livro noticia
de grande numero de outras, de que aquelle codice
não conservou memoria.
Torna-se, pois, a conciliação entre os roes do
Summario,
e a nomenclatura da viação daquelle repositorio
difficil,
e não se consegue que sáia perfeita. A
impossibilidade
de identificação é manifesta.
VIII
Somos assim chegados ao ponto que nos levou á precedente
digressão. Onde, em que rua, travessa ou beco,
apparece fintado, na freguezia de S. Christovão, o
«imprimidor»
Manoel João?
O titulo desta freguezia lê-se no alto da fol. 406,
v.
o do
volumoso codice, redigido nos seguintes textuaes termos:
«
T.o da freguezia De san
Xpuão―Começa o primeiro
rol No chan Dalcamin pera a costa»
[26].
[32]
Vae seguindo o recenseamento, e a fls. 407 lê-se:
«
Duas ruas [~q]
começão De san Xpuão pera san
Lourenço».
No v.
o desta folha, e no alto della, assentou
Bastião de
Lucena o 8.º lançamento deste titulo. Diz:
«It Manoel Johão Inprimidor em casas Do doutor
João
de bairos av.
do [~e] seis mill rs. paguara rij
rs»
[27]
Portanto, tudo quanto se colhe de similhante
informação,
sem nada adiantar ao nosso proposito, é que este
sitio soffreu, em epoca não facil de determinar, ainda que
não estejâmos longe de fixa-la de 1756 para
diante, consideravel
alteração. Hoje, rua que comece de S.
Christovão
para S. Lourenço, apenas conhecemos todos
uma;
a rua das Farinhas, á qual o auctor do
Summario, ou
[33]
quem para elle escreveu esta parte do livro, chama «Rua
das Farinheiras». Poderia, porém, ter-se em
consideração
que no terreno que fica entre a parochial de S. Christovão
e a garganta por onde se penetra na rua das Farinhas,
e é denominado «rua de S.
Christovão», haveria modo de
existir nas eras remotas que nos occupam, qualquer viela
que, embebendo-se em outra similhante, déssem ambas
as «duas ruas que começam de S.
Christovão para S.
Lourenço», segundo o abreviado modo de exprimir-se
dos
lançadores da imposição. É,
pelo menos, o que resulta
das medições do Tombo do
Bairro
do Rocio, (1756), a
fls. 121, onde se lê: «Largo da Igreja de S.
Christovão―Corre
o seu comprimento N. S. Tem de comprimento desde
a rua do Regedor até
á travessa
que vai para a rua das
Farinhas, 214 p.; de largura pelo N. 35 p., e pelo S.
45».
Ora, a lista das vias públicas, do
Summario, que laboravam
o territorio parochial de S. Christovão comporta 9
ruas, 3 travessas, 1 adro, 2 terreiros, 1 beco e 1 arco.
De toda esta estatistica de viação, apenas uma
rua, a
«do Crucifixo», uma travessa, e os dois terreiros
se não
podem identificar com a actual topographia da parochia
[28].
[34]
E como naquelle tratado, a disposição das
«Ruas», tal qual
quem ordenou a lista das vias públicas della as foi
escrevendo,
nos mostra que se começou do N. para o S. da
freguezia, isto é da «Rua das
Fontainhas», compartilhada
pelas parochias de S. Lourenço e de Santa Justa, para a
extrema opposta; para a «Rua do chão
dalcamim», segue-se
que a «Rua do Crucifixo», por maior que seja o
nosso
desejo de precisar qual das «duas ruas que vão de
S.
Christovão para S. Lourenço» era a que
habitava, com
a sua officina, o tipographo Manoel João, não
parece que
possa ser a designada, visto como se apresenta na lista
parochial após a «Rua do Regedor», isto
é, do lado diametralmente
opposto á provavel situação daquellas
duas ruas.
Assim pois, se a tal «travessa que vai para a rua das
Farinhas», do Tombo Pombalino, não era, como, de
facto, não parece ter sido, a «rua do
Crucifixo», do
Summario de Christovão,
ainda existente, e conhecida
por esta denominação em 1712, como se mostra na
Corografia
de Carvalho da Costa, e se não era, portanto,
nella que Manoel João estava arrolado, tudo que se
póde
concluir, é que o nosso impressor teve a sua officina no
territorio da freguezia de S. Christovão, e numa via
pública
muito proxima á séde da parochia, mas para o N.
do territorio desta.
Em algum dos proximos capitulos veremos que a fórma
imperfeita como os
lançadores organisaram os
roes da
derrama dá motivo a iguaes hesitações
e perplexidades
que nos não deixam satisfeito, quanto ao sitio em que
[35]
teve a sua operosa officina tipographica o celebre Germão
Galharde, e onde vamos ainda encontrar a sua viuva.
IX
Como o seu confrade Manoel João, tambem Francisco
Corrêa, seguindo as noticias que deste impressor nos
dá
Deslandes, em sua
Historia da Typographia
Portugueza,
exerceu a sua arte fóra de Lisbôa.
Provavel «obreiro de imprimidor» de
Germão Galharde,
acaso foi convidado para ir dirigir em Coimbra a officina
do Estudo Real, estabelecida na rua da Sophia, como seu
presumivel mestre o fôra igualmente, para ir organisar a
imprensa dos Cruzios, daquella cidade.
Em tal situação ali se demorou, com effeito,
Francisco
Corrêa desde o anno de 1549, em que principia a apparecer,
até 1555. Passando por este tempo ao Porto, ali
deu á estampa o compendio de arithmetica, de Bento
Fernandes
[29].
Transferindo-se em seguida a Lisbôa, onde
[36]
assentou prélos até 1585, anno que parece ter
sido o do
seu fallecimento, ainda em 1580 imprimiu em Almeirim,
de parceria com seu confrade Antonio Ribeiro, segundo
informações de Tito de Noronha,
in A Imprensa Portugueza,
as
Allegações de
direito por parte da Infanta D.
Catharina, sobrinha do Cardeal Infante.
Além destas noticias, publíca tambem Deslandes
em
sua predita obra o Alv. de 12 de novembro de 1566, concedendo
a Francisco Corrêa isenção de direitos,
até certa
quantia, do papel que despachasse em cada anno, a começar
no de 1565. Pelo restante teor deste diploma se
prova, outrosim, que Francisco Corrêa foi arrendatario
das officinas que, por morte de João Blavio, ficaram em
Lisboa e na India, em Gôa, muito mais que provavelmente,
sendo-lhe concedidos os 40$000 réis que os herdeiros
daquelle impressor haviam alcançado se descontassem
nos direitos do papel que despachassem para o expediente
das preditas duas officinas.
[37]
Taes são em breve resumo, e salvo a
supposição de
que Francisco Corrêa fôsse compositor na officina
de
Germão Galharde, que é nossa, as noticias
colhidas nas
obras de Deslandes e de Tito de Noronha, acima apontadas,
ácerca deste notavel tipographo, cujos trabalhos,
além de numerosos, se avantajam, a testemunho do segundo
daquelles dois auctores, em sua tão curiosa monographia
das
Ordenações do
Reino, em nitidez e satisfactorio
aspecto, aos do seu confrade Manoel João.
Ao percorrermos no
Livro do
Lançamento o «3.º rol
da freguezia de Santa Justa», ahi se nos deparou a
«Rua
de Valverde», e nella, como 16.º contribuinte:
«Francisco corea [~e]presor [~e] casas de margaida de matos
avaliado [~e] seis mill rs paguara Rij rs.»
O rol a que nos referimos teve começo na rua que
ía do
mosteiro de S. Domingos para a Porta de Santo
Antão.
Comprehendia a rua do Chafariz do Rocio para a Mancebia,
a que ía da estrebaria del-rei ao longo do muro para
a Porta de Santo Antão, a «rua do beco»
do chafariz do
Rocio, e finalmente, a rua de Valverde, que laborou, provavelmente,
parte da actual Praça dos Restauradores,
da banda do S., e vindo imbeber-se, talvez, na rua de
Mestre Gonçalo, isto é, no terreno da rua do
Principe, e
por perto da actual calçada do Duque.
Para o seguinte estudo, a viuva de Germão Galharde,
a que acima alludimos, e o glorioso impressor da primeira
edição dos
Lusiadas, Antonio
Gonçalves.
[38]
X
Vamos folheando o volumoso recenseamento, onde colhemos
as informações que temos transmitido a nossos
benignos leitores, e achamo-nos agora em face do 7.º e
ultimo rol da freguezia da Magdalena
[30].
Começam os sucintos apontamentos itinerarios dados
neste rol aos
sacadores encarregados
da cobrança das
voluntarias fintas, pela:
«
Rua Dos torneyros [~q] travessa para as
pedras negras
pela rua de Ilusuarte Peris[31]
ate a rua drt.a da
Costa».
[39]
Não ocorreu ao escrivão desta derrama, escrevendo
para comparochianos, conhecedores como aos seus dedos
de todas as enredadas arterias da sua freguezia, que alguns
seculos depois, compatricios seus viriam que tivessem
interesse em perceber, mais do que as suas garatujas
pictorescas, as suas abreviadas, e até menos exactas
indicações
do territorio parochial a que se referiam!
Se tal, com effeito, se houvera dado, não só
Bastião
de Lucena não estabeleceria, contra a exacta nomenclatura
local, que a
rua dos Torneiros
atravessava para as
Pedras Negras, vertendo assim uma confusão de desnortear
na compartilha parochial, mas não sacrificaria á
extrema
concisão que adoptou a precisa clareza, para sabermos
agora a que via pública, entre as comprehendidas na
sua abreviada indicação, viria a pertencer o
35.º lançamento,
[40]
dos 38 lançados sob o correspondente enunciado,
e que é o seguinte:
«
It A molher de germão galharde
[~e]primidor em casas
suas avaliada [~e] settenta mill rs paguará i i i j c l v
rs»
[32].
Com effeito, uma vez que se nos deparára aqui a viuva
do celebre impressor francês, que tanto realce deu
á typographia
lisbonense do XVI.º seculo, e tão util
foi
ás letras
portuguesas destas afastadas eras, bem natural fôra
que desejassemos precisar o sitio, a rua, a travessa ou
beco onde a digna matrona residisse. O mesmo seria que
ficarmos sabendo precisamente onde seu defuncto marido
terá tido a sua operosa officina.
A difficuldade, porém, mostra-se insuperavel, ainda
quando reponhamos, até, em seu logar a desfigurada
topographia
local, e se, posteriormente, nenhum outro indicio
nos não fizer suspeitar onde possa ter estado estabelecida
esta tão interessante imprensa, teremos o desgosto
de nos contentarmos, á semelhança do que nos
aconteceu,
tratando de Manoel João, com as vagas
indicações que
ficam expressas.
Procurando formar idéa da ordem que presidiu á
elaboração
dos roes desta freguezia, concluímos que os
lançadores
adoptaram a orientação topographico-descriptiva
do
sul para o norte, isto é, das muralhas marginaes da cidade
para cima; «Rua Nova dos Ferros», «Porta
d'Erva» e
«Porta da Ribeira»,
«Carnaçarias Velhas»,
«Pelourinho»,
«Misericordia», «Rua do
Principe», «Rua da Ferraria Velha,
por detrás da Conceição»,
«Cristaleiras», «Rua dos
[41]
Fanqueiros», «Rua dos Corrieiros de obra grossa e
delgada»,
&, &. Todos estes sitios, todas estas vias
públicas
entram nos seis anteriores roes, com outras que, por
abreviar, se não mencionam. Este 7.º rol
comprehende,
portanto, a zona alta da freguezia, e dentro delle observa-se
disposição igual á que se adoptou para
os anteriores.
Se bem entendemos, pois, o breve apontamento de
Bastião de Lucena, havia na freguezia da Magdalena uma
via pública, uma viella, como tantas outras deste tempo,
que, partindo de qualquer ponto, por agora indeterminado,
atravessava, mas não directamente, para as Pedras Negras.
A travessia fazia-se com o auxilio da rua de Ilusuarte
Peris. Portanto, o que se queria indicar aos
sacadores,
é que, principiando
as suas
visitas pela tal via
pública, erradamente classificada e denominada
«Rua dos
Torneiros», e continuando-as pela rua de Ilusuarte Peris,
que se lhe seguia, fôssem indo até
alcançar a rua direita
da Costa, nesse tempo, como agora e sob a
denominação
de calçada do Correio Velho, limite léste da
predita freguezia.
Uma vez chegados áquella rua, os
sacadores,
conforme se deprehende da continuação da leitura
deste
7.º rol, descê-la-íam, entrariam na rua
do Arco
de Dona Tareja;
isto é, retrocederiam para Oeste, e desta rua continuariam o
seu itinerario por onde já nos não importa
segui-los.
Está tudo muito bem, menos uma circumstancia importante.
Não houve em Lisbôa, em tempo algum, nenhuma
«rua dos Torneiros», nem na freguezia da Magdalena,
nem em nenhuma outra freguezia da cidade. Existiu, sim,
a «rua da Tornoaria», mas essa pertencia
á freguezia de
S. Nicolau. Passava pela parte posterior do edificio parochial
deste orago, e era, por conseguinte, o mais septemtrional
dos successivos tramos em que se fraccionava a
[42]
longa, e em parte alcantilada via pública que ligava uma
á
outra as duas sédes parochiaes.
Para se ir da Magdalena a S. Nicolau, haveria de percorrer-se
a Correaria, a Fancaria, a Tornoaria, e ainda
quando se quizesse admittir que os
lançadores, e
Bastião
de Lucena com elles, haviam chamado «rua dos
Torneiros»
á rua da Tornoaria, daqui se vê que tal rua
não podia ser
compartilhavel entre a freguezia de S. Nicolau e a da
Magdalena, como o não eram as suas duas parceiras, a
Correaria e a Fancaria.
Temos, pois, de recorrer ao
Summario, de
Christovão
Rodrigues de Oliveira, para destramar a meada.
Em boa hora o fazemos, porque a via pública que o solicito
guarda-roupa do arcebispo D. Fernando nos aponta
como situada na freguezia da Magdalena, em 1551, é a
«
travessa dos
Torneiros». Ora, é evidentemente
tal «
travessa»
aquella a que se referem os lançadores, porque
partindo, cá em baixo, da Tornoaria, em sentido transversal
para L., galgava a barreira que separava o valle da Baixa
das cumiadas que iam terminar na Alcaçova, e surdindo
muito proximamente no local fronteiro á actual Travessa
das Pedras Negras, ía soldar-se á Rua de
Ilusuarte Peris.
Cumpre, no emtanto, advertir que o sitio que no seculo XVI.º
deu
origem á
denominação «Pedras Negras»
não era
precisamente onde se rasgam, pela planta Pombalina, a
rua e a travessa d'esta denominação, e que a rua
de Ilusuarte
Peris, ou desapparecera nos provaveis aspectos
diversos que o sitio apresentou entre os seculos XVI.º e
XVIII.º, ou
se conservava ainda,
acaso, ás vesperas do
terremoto de 1755, mas com differente
denominação; o
que não seria de extranhar, como já
observámos. As «Pedras
Negras», como era o sitio a que deram o nome, anteriormente
[43]
ainda ao seculo XVI.º, póde
vêr-se a
configuração
provavel que tiveram em mais escuras eras, na planta
que acompanha a obra valedora do sr. Vieira da
Silva:―
As
Muralhas da Ribeira de Lisboa.
A «rua de Ilusuarte Peris» é que na
mencionada planta
não apparece, e mal se suppõe onde possa ter
sido
[33]. A
travessa dos Torneiros é o «Beco de Nossa Senhora
da
Conceição», da sobredita planta, muito
mais que provavelmente.
XI
Fixados como é, já agora, possivel
fazê-lo, a muito
perto de trezentos e cincoenta annos de distancia, e com
tão escassos elementos topographicos, estes indispensaveis
[44]
pormenores, digamos agora o que se sabe do activo
industrial de quem fôra «molher» a pessoa
a quem se referiu
o lançamento que é assumpto ao nosso
despretencioso
estudo.
Germão Galharde, francês de
nação, o que elle não
deixou de recordar-nos em algumas de suas assignaturas
[34],
foi, como anda sabido, o mais operoso impressor que teve
o XVI.º seculo português. Estabelecido em
Lisbôa
pelos
primeiros annos delle, conhecem-se, executadas no espaço
de mais de quarenta annos, e até 1560, data da sua
morte, «70 edições» sahidas
da sua officina, sem contar
as leis avulsas, impressas, em geral, numa folha apenas
[35].
[45]
Quem poderá dizer quantas mais obras Germão
Galharde
terá executado, de que o seculo ultimo e o acual
não
lograram já ter
conhecimento?―Interrogação é esta que
terá de ficar sem resposta. Sabe-se apenas que da sua
officina começaram a apparecer edições
datadas de 1519,
e que um lapso de revisão, importante, levou alguns
bibliophilos
a retro-fixar o começo da operosa actividade do
celebre impressor no ultimo anno da primeira década do
seculo que o viu trabalhar; no de 1509.
Foi o caso que o
Missal da igreja de
Evora, de que se
guarda um bom exemplar na Bibliotheca Nacional, apresenta
como data de impressão este predito anno. Notou-se
o facto, e houve quem, não lhe occorrendo de quantos
lapsos anda tecida a historia da typographia, em geral,
tirasse delle irreflectido motivo para declarar Galharde estabelecido
desde aquelle supposto anno. O academico Silva
Tullio, que tanto no caso estava de desilludir os menos
avisados, constituiu-se exactamente o paladino d'elles,
sustentando contra Tito de Noronha a hypothetica possibilidade
de ter o
Missal sahido das officinas
de Galharde
no anno impugnado.
Rebateu Tito, a nosso ver humilde com raciocinios de
pêso, as razões que Tullio bem escusára
de ter produzido,
visto como, se a verdade historica bem pouco poderia
ganhar com semelhante improvavel accrescimo á actividade
officinal do impressor francês, assás mal parados
ficaram,
em troca, os créditos do prestante conservador, insistindo
em sustentar a méra presumpção que
tudo se conjurava
para invalidar
[36].
Tito, tendo feito notar o isolamento em que a data de
[46]
1509, attribuida áquelle livro, ficava das obras por
Galharde
impressas em 1520, e quão pouco provavel era que
entre um e outro anno obra alguma, naquella
typographia
impressa, viesse quebrar o largo periodo de onze annos
de inactividade officinal, lembrou que o
Missal
Eborense
poderá ter sido impresso em
1529, tendo faltado na
subscripção latina o vocabulo
«
vigesimo»
[37].
Esta probabilidade
nada tem, com effeito, contra si que a invalide, e
um facto, porque assim o digâmos hodierno, a vem demonstrar
plausivel:
Convidou o editor Fernandes Lopes a Innocencio Francisco
da Silva para dirigir a reimpressão do
Elucidario,
de Santa Rosa de Viterbo. Em 1865 sahiu, com effeito, a
lume esta obra dividida em dois tomos, como a 1.ª
edição,
imprimindo-se no 1.º uma «Advertencia
preliminar»
do illustre
bibliographo, a qual elle datou do «1.º de junho de
1865». Pois bem;... na capa e no frontispicio de cada
um dos dois tomos assignou-se a esta reimpressão, por
[47]
data, o anno de MCCCLXV! Este lapso, sendo tão patente,
salta para logo aos olhos de quem manuzear a obra
[38].
Continuemos agora a examinar quanto se nos offereça,
do pouco aproveitavel que nos tem sido possivel ajuntar,
que se relacione com a vida deste grande trabalhador typographo,
que tanto illustrou a sua arte, e tantos testemunhos
nos deixou, apesar das muito mais que certas lacunas
da lista das suas impressões, da
perfeição com que
sustentou os créditos da sua officina.
XII
Dos antecedentes do operoso impressor nada se conhece.
Que terra de França lhe fôsse a terra natal;
quando
tenha vindo para Lisbôa, e se para esta cidade veiu, acaso,
contratado como «
obreiro de
imprimidor» de algum
de seus tres antecessores, Valentim de Moravia, João Pedro
de Cremona ou Hermann de Kempis, que entre nós
ficou «Armão de Campos», hypotheses que
nos não parecem
descabidas, outras tantas interrogações
são que teem
de ficar sem resposta.
Por igual, destinadas estão ao mesmo resultado as que
se referem ao modo como o activo «imprimidor»
constituiu
familia. Germão Galharde casou aqui, e tarde, ou veiu
já casado para Lisbôa, o que não
parece? Sua mulher era
estrangeira, ou nascera em Portugal? Que o velho typographo
[48]
deixou um filho, por ventura continuador da sua
prole, eis o de que não resta dúvida. E que
falleceu deixando-o
ainda menor, tambem não é menos certo. O livro
que estamos examinando no-lo confirmará.
Suppondo que nascera em 1490, por exemplo, Germão
Galharde poderia contar vinte e tres annos, quando, ao
que Tito de Noronha conjectura, veiu a fallecer Valentim
Fernandes
[39].
E se tal data estivesse certa pouco teriam
sobrevivido ao Patriarcha da Imprensa em Portugal os
seus consocios João Pedro de Cremona e
«Armão de
Campos, bombardeiro de el-rei», successivamente
desapparecidos,
em 1514, o primeiro, em 1518 o segundo.
Valentim Fernandes, porém, segundo adiante vai ver-se,
ainda n'este último anno trabalhava, e se este, afinal,
tem de ser considerado o último da sua vida, bem
poderá
ter-se dado que Germão Galharde, obreiro―quem sabe?―de
qualquer d'estes seus tres antecessores, se habilitasse
com o material do celebre impressor da viuva de D.
João II, para começar a sua
laboração de conta propria,
logo no anno seguinte ao do desapparecimento d'este.
Em 1519, com effeito, parece ter-se Germão Galharde
estreiado
com a primeira edição da
Arismetyca, de Gaspar
Nicolas,
[40]
levando desde então a vida cheia de laboriosa
[49]
occupação até os provaveis setenta
annos, se exceptuarmos
os dois que passou em Coimbra, em Lisboa, e, porventura,
na mesma casa.
Aonde era ella situada?
Vêr-se-ha n'este estudo se é possivel responder,
por
presumpções, a tal pergunta.
XIII
Chamou-se Anna Picaya a mulher do operoso impressor,
e se não foi portuguesa, que a não deixa parecer
compatriota nossa o appelido, arriscado será
attribuir-se-lhe
esta ou aquella nacionalidade. Confessemos, emtanto,
que se um desengano d'esta ordem pudesse admittir-se
por palpite, inclinados temos sempre
estado a que Anna
Picaya haja sido biscainha.
Casou Germão Galharde moço ainda? Esperou, pelo
contrario, a idade da experiencia, para dar-se ao matrimonio?
Não temos, como já ficou observado, modo de
responder desenganadamente a taes perguntas. Tudo que
pudémos conjecturar, é que o filho que deixou
menor
terá vindo ao mundo, adiantado já seu pae em
annos, se
muito não erra a conta que lhe démos, ao vir
busca-lo a
Morte.
[50]
Esta circumstancia, comtudo, não se oppõe a que
já
houvesse outros filhos, e até poderia parecer que os houve,
com effeito, se fôsse possivel interpretar um tanto
latitudinariamente
certas expressões de um documento que
não tarda a vir transcripto a este estudo.
No emtanto, e posto que a typographia da
Viuva de
Germão Galharde se sustentasse ainda
durante alguns annos,
depois do fallecimento do seu celebre fundador, o
seu material veiu a passar a novo proprietario, e nada
nos indica terem-se filhos maiores, se os havia, ou ter-se
o menor que ficou ao tempo do obito paterno, occupado,
homem feito, na arte, que o progenitor tanto illustrou.
Este appelido, a partir d'então, mergulha no esquecimento,
pelo menos aqui, em Lisbôa; e apenas a meio do
seculo XVII o nosso illustre polygrapho D. Francisco Manoel
se lembrára, escrevendo ao seu amigo Azevedo, da
lenda dos
Galhardos da Serra da
Estrella, que aliás nenhuma
relação tem com os de que aqui tratamos, para
comparação da brevidade com que fizera um seu
livrinho.
Esta carta, porém, inédita ficára, com
a collecção a que
pertence, até que um distincto cultor da memoria de
tão
infeliz quão abalisado epistolographo a trouxe a lume em
nossos dias
[41].
[51]
Assim continúa o esquecimento, sem
interrupção, por
esses tempos fóra. A meiados porém do
XVII.º
seculo apparece-nos,
de repente, um typographo «Galhardo». Diplomava-se
com o titulo de «
Impressor do sr. Cardeal
Patriarcha»; chamou-se Antonio Rodrigues
Galhardo, e
teve a sua casa, com capella, horta e mais officinas, no
Pateo a que a sua familia dava o nome;―o
Pateo dos
Galhardos, a Santa Izabel
[42].
Muito depois, (1837)
filhos
seus, ligados sob a firma «
Galhardo
& Irmãos», imprimem
na rua da Procissão, n.º 45, entre outros livros, a
«
Chronica de El-Rei D. Sebastião,
por Fr. Bernardo
da Cruz, publicada por A. Herculano e o Dr. A. C.
Payva.»
Antonio Rodrigues Galhardo é descendente do
«imprimidor»
francês Germão Galharde? Quem, já
agora, poderá
affirma-lo, ou quem estará habilitado para nega-lo?
Emtanto, a coincidencia é para notar, e para notar fica
sendo, tambem, que esta familia Galhardo veiu a apparentar-se
com Alexandre Herculano, pelo casamento de um
[52]
amigo de juventude do Grande Escriptor, e depois seu
camarada na emigração, o fallecido general da
arma de
artilharia, que foi, quando coronel, director da Escola do
Exercito, Joaquim Antonio Rodrigues Galhardo, com a
irmã do Auctor da
Historia
de
Portugal.
XIV
Quando Germão Galharde falleceu, andava-se imprimindo
na sua officina a
quarta
edição do «
Reportorio
dos
Tempos em linguajem portugues».
Este Repertorio, composto pelo saragoçano André
de
Ly, fôra vertido em linguagem, com
addições, por Valentim
Fernandes, que dedicou a traducção a Antonio
Carneiro,
secretario do rei D. Manoel.
Ora acontece―e n'este passo se patenteia quão arriscadas
são affirmativas peremptorias em especies tão
dubitativas―;
acontece, íamos dizendo, que em
Documentos
para a Historia da Typographia Portugueza, impressos
em 1888, affirmou o tão sabedor Deslandes
«não ser conhecido
exemplar algum da impressão d'este
Repertorio
feita por Valentim Fernandes, comquanto se deva ter por
certo que a houvesse dado á estampa em sua vida.»
―Que veiu a dar-se então?―Veiu a dar-se facto igual
ao succedido com o exemplar do
Testamento da Infanta
D. Maria, impresso em 1610, e que o catalogo da
Livraria
Fernando Palha, ao descrever o exemplar que aquelle
bibliophilo possuía declara «
seul
exemplaire connu d'une
pièce non citée par les
bibliographes».
Succede, porém, que em 1907, percorrendo nós um
Inventario
de Codices adquiridos pela Bibliotheca Nacional,
publicado no
Boletim das Bibliothecas e
Archivos, N.º 1―3.º
[53]
anno, 1904, depara-se-nos a
menção de
certo Codice
da Coll. Vimieiro, em cujo miôlo viémos a
encontrar um
exemplar do predito
Testamento, da
mesma edição de 1610!
Tal achado annulou, por conseguinte, o privilegio de
«
seul exemplaire
connu...», attribuido pelo catalogo
sobredito
ao exemplar que descreveu!
Ao diligente bio-bibliophilo Deslandes outro tanto acontecera.
Não lhe fôra dado conhecer a bibliotheca do
curioso
architecto José Maria Nepomuceno, e eis que, fallecido
este, divulga-se em 1897 o catalogo da famosa livraria de
que era possuidor intelligente. Ora, sob o N.º 683, ahi
appareceu minuciosamente descripto um exemplar do
Reportorio
dos tempos, que «posto não traga
indicado o logar
da impressão, nem o anno, se póde quasi affirmar
ter
sido composto em Lisbôa, e no anno de 1518, por isso
que as taboas (astronomicas) indicam começarem «no
presente
anno»,―o predito.
E já agora, observaremos que, sendo este
Reportorio,
como no rosto indica, «trelladado e empremido por Val[~e]tym
fernãdes alemam», está n'estes termos
implicito o
testemunho formal de que o celebre impressor, contra o
que julga Tito de Noronha,
in
Ordenações
do
Reino, ainda
cinco annos após o de 1513 era vivo, e exercia a arte.
Por voltar a Germão Galharde, sabe-se que por A. de
17 de março de 1539, lhe foi outorgado privilegio de
déz
annos, para imprimir de novo o
Reportorio de que se trata.
Deslandes, porém, affirma, e d'esta vez ainda não
se
apresentou facto que o contradiga, não conhecer, nem lhe
constar que outrem conhecesse, exemplar algum da impressão
d'este livro, tirada durante os déz annos do mencionado
privilegio.
[54]
Declara, comtudo, em contraposição,
ter visto exemplares
sahidos da officina de Galharde em 1521 e 1528;
edições estas que não andam notadas
por nossos bibliographos.
Por fórma que, havendo já
tres edições
conhecidas do
Reportorio dos tempos, bem parece
que sêja, por ora,
capitulada
quarta, como o
fizémos, a de que se está tratando.
Isto, em obsequio ás que se dizem datadas de 1519,
bem como á de 1557, citada por Barbosa, das quaes,
até
agora, não se achou porque se confirme a existencia.
XV
Foi Anna Picaya que terminou a impressão do
Reportorio,
objecto do anterior capitulo.
Na Nota
[43]
infra
trasladâmos a competente subscripção.
A seguir a este livro, vem em 1561, editado pelo opulento
João de Borgonha, o tão fallado elogio da
Sigéa, de
Mestre André de Resende; em 1563, nova
edição do precioso
Reportorio, especie de
Diario Ecclesiastico, dos
Oratorianos, sem o qual nossos avós do XVIII.º
seculo
não podiam passar. Finalmente, em 1564, dá ainda
a Viuva
[55]
de Germão Galharde o
Exemplo pera bien
bivir, de Fernão
Peres de Gusmão, obra acabada a 21 de março do
predito anno
[44].
D'esta data em diante, até 5 de setembro de 1898, nada
mais se soube que se relacionasse com a officina typographica
da viuva Galharde. Naquelle dia, porém, publica o
dr. Sousa Viterbo, como notámos no fêcho do Cap.
V. e
correspondente nota, destes
Estudos,
resumido e commentado,
o depoimento, por denúncia feita na
Inquisição em 5
de novembro de 1571, do flamengo Pero Alberto, obreiro
de Marcos Borges.
[45]
Resulta de tal depoimento o ficarem
desde então confirmados dois factos; mais proximo um,
mais remoto o outro. Pelo primeiro, corrobora-se a existencia
da typographia da viuva Galharde em 1563. Este
não é essencial. Que a celebre typographia
funccionava
ainda 1564 já nós sabiamos, e o leitor comnosco.
O que
tem valôr é o outro facto; o que revela a
transferencia da
imprensa de Marcos Borges de
«
detrás de nossa Senhora
da Palma» para o Arco do Carangueijo. A
indicação
[56]
considerámo-la preciosa, porque nos indicava quem
fôra
o successor da viuva Galharde; isto é, porque vinha
concorrer,
ainda que de modo indirecto, para nos fortalecer
na presumpção de que era no Arco do Carangueijo,
com
effeito, onde vamos dentro em pouco encontrar Anna Picaya,
com seu filho menor, que Germão Galharde fundára
a officina por elle mantida durante 41 annos.
Que terá, porém, succedido entre 21 de
março de 1564,
data do ultimo livro, conhecido, impresso pela «Viuva
Galharde», e 1571, anno em que Marcos Borges nos apparece
estabelecido, segundo todas as probabilidades, na
casa que ella occupara?
Tudo que é possivel responder, resume-se no seguinte:
Qualquer que haja sido o motivo, o velho estabelecimento
typographico pouco mais terá produzido, depois de
1564, sob a gerencia da viuva de Germão Galharde, e se
mais alguma obra veiu a lume, após a de Fernão
Peres de
Gusmão, perdeu-se, como quasi de certeza outras se perderam,
impressas pelo fundador da casa.
[46]
Certo é que a meiados de 1566, e contra o que estabeleceu
Tito de Noronha, já Antonio Gonçalves, o nomeado
[57]
impressor da 1.ª ed. dos
Lusiadas, trabalhava
por sua
conta, muito distante do Arco do Carangueijo, com material
que pertencêra á officina de Galharde.
Com effeito, do exame comparativo de algumas das
obras impressas em uma e outra das duas officinas resulta
absoluta certeza que Antonio Gonçalves utilisou
frontispicios
e letras iniciaes de phantasia que pertenceram áquelle.
Já Tito de Noronha deixára notado o facto, em uma
de
suas tão copiosas quanto instructivas monographias.
Por nossa parte, temos por bem possivel
que
o
4.º
de
dez folhas n. n., onde se acha impresso o
Auto das
Regateiras,
de Antonio Ribeiro, o
Chiado, e que
não tendo
segundo Innocencio narra, logar, data, nem nome de impressor,
apresenta, comtudo, na portada letras que parece
quererem designar
Germão
Galharde, haja saído da officina
de Antonio Gonçalves, applicando-lhe este alguma
gravura de frontispicio que haja feito parte do material
daquelle impressor.
Não temos, nesta occasião, o vagar preciso para
examinar
este folheto, que se acha na Bibliotheca Nacional, e
pertenceu á livraria de D. Francisco de Mello Manoel da
Camara. Acaso do exame resultaria alguma cousa de mais
positivo. Seja, porém, como fôr, uma prova de
decidir é
a propria composição do frontispicio dos
Lusiadas, impressos
por Antonio Gonçalves em 1572. As peças que o
compõem
pertenceram ao material de Germão Galharde. Esta
asserção comprova-se, pondo em conspecto o
frontispicio
da edição
princeps dos
Lusiadas (a do
pelicano com o
collo
para a esquerda do leitor, bem entendido), e a do
Summario,
de Christovão Rodrigues de Oliveira, sahido a lume
procedente da officina de Galharde, depois de 1551, com
toda a certeza, e talvez em 1554.
[58]
Já em 1570 Antonio Gonçalves
aproveitára este mesmo
frontispicio no
Reportorio dos
tempos, que lhe coube imprimir
tambem, edição que a Innocencio parece ter
escapado,
mas de que ha um exemplar nos Reservados da
Bibliotheca Nacional. Este sempre lembrado impressor
terá começado por ser
«imprimidor-obreiro» do velho typographo
francês, sendo bem possivel que se haja conservado
na casa, após a morte de seu mestre. Resolvida Anna
Picaya a fechar a officina, ou, porventura, fallecida, terá
o seu official, disposto a estabelecer-se, uma vez que a
casa acabava, comprado os aprestos desta. Tudo parece
conciliar-se para acreditar tal supposição.
Mais difficil é o precisar desde quando Marcos Borges
terá passado a occupar as casas da viuva, e o motivo que
lhe facilitaria o estabelecer-se nellas. Não parece, com
effeito, que as duas operações―venda do material
a um,
e cedencia da casa a outro, se cedencia foi, hajam
resúltado
da mesma causa;―o desfazer da velha officina.
Lembremo-nos que em 1567, isto é, um anno após o
estabelecer-se
Antonio Gonçalves, como provaremos, ainda
Marcos Borges imprimia a
Chronica de Jorge
Castrioto
no mesmo sitio onde começára a sua
laboração;
«
atrás
de nossa senhora da Palma». Presumivel
será, pois, que
Anna Picaya se haja conservado, com seu filho, nas suas
casas, após ter acabado com a officina, vindo, porventura,
a fallecer depois de 1568, adquirindo―quem sabe?―Marcos
Borges a propriedade, e estabelecendo-se nella.
Como quere que sêja, vamos ver agora como se chegou
a presumir que a typographia de que temos tratado
haja sido no Arco do Caranguejo.
[59]
XVI
Fallecido Germão Galharde, procedeu-se a inventario,
sendo Anna Picaya nomeada «titor» de seu filho
Antonio.
Concorriam mais filhos, já maiores, á
herança? Eis o de
que não ha certeza. Das quatro obras unicas de que nos
restam exemplares, sahidas da officina do extincto, após
a morte deste, tres dizem-se impressas «
em
casa da viuva
molher que foi de Germão
Galharde.» No titulo e
subscripção
da quarta, porém, segunda na ordem chronologica
da impressão, lê-se:
«
Lvdovicae Sigaeae |
Tvmvlvs
| ¶
L. Andrea Resendio |
Auctore | ¶
Apvd haeredes
Germani |
Galiardi.
An. |
MDLXI | ¶
Olyssippone | ¶
Venalis apud Iohannem de
Borgo |
Regium Bibliopolam, in vico
nouo.»
[47]
Ora, esta excepção,
«
haeredes», que
aliás não resolve
a dúvida, por isso que realisado o casamento de Galharde
«á moda do reino», co-herdeira com o
filho menor era
[60]
a viuva, meieira na casa, parece-nos ter sido muito de
proposito empregada naquelle impresso por motivo que
a occasião tornava perfeitamente plausivel. Corria por
esse tempo o inventario seus termos, e habilitavam se á
herança do chefe da familia a sua viuva e o filho menor. A
expressão
haeredes, posta na
subscripção do
Elogio, de
Mestre André de Resende, em 1561, era, portanto, de
todo o ponto bem cabida; exprimia a situação de
ambos,
como inventariantes e como industriaes. Por isso se empregou.
Quando os saccadores, em desempenho do seu cargo,
convidaram a viuva impressora a
entregar-lhes a importancia
do escote que lhe coubera na
voluntaria
imposição,
(entre 15 de fevereiro e 31 de outubro de 1566) pagou
ella, sem repugnar, os 455 rs. em que foi fintada. Especie
de contribuição extraordinaria de maneio, a que
só escapavam
os privilegiados;―familiares do Santo Officio,
servidores de S. A. e quem quer que tivesse armas e cavallo,
e «jogasse lança de dezoito palmos para
cima»
[48],―era
[61]
para todos os mais a commum sorte; não havia fugir-lhe.
Mas, fechara-se, emfim, o inventario, julgara-se a partilha,
e liquidou-se o que vinha a tocar ao menor; a sua
legitima. Importava em «cincoenta e nove mil, quinhentos
e vinte e dois réis». Havia mais
orphãos em semelhantes
circumstancias. A provisão de S. A. beneficiava-os, para
os effeitos da
voluntaria derrama,
com o desconto do
«terço» do valor total apurado, para que
sobre o remanescente
recahisse o talho. Anna Picaya, tutora de seu filho,
teria de pagar por elle «duzentos e oitenta
réis». Reclamou.
Agora, não era a obrigação do
estabelecimento; era
a legitima do orphão, despiedada,―provaria
até―illegalmente
desfalcada. O menor Antonio Galharde era filho de
um homem que durante mais de quarenta annos tinha
prestado assignalados serviços ás letras do
país que adoptara
por patria. Os seus prélos não tinham gemido
só em
serviço de quantos praticavam a nobre arte de escrever,
senão que tinham tambem trabalhado para a corôa.
Antonio
Galharde era filho de um «official impressor da casa
real»
[49];
a isenção de que seu pae, se vivo fôra,
gosaria, porque
não mandava S. A. que aproveitasse ao filho menor?
Que S. A., pois, «inclinasse por um pouco a
magestade.»
Á triste viuva, sobrecarregada com os encargos da tutella
e ao filho orphão devia-se-lhes
contemplação. Ambos
receberiam mercê no favoravel despacho com que S. A.
se servisse attende-los.
E se isto assim se passou, pode affirmar-se que a
«titor»
do menor Antonio Galharde venceu! No traslado da
[62]
certidão do orphanologico que baixara aos encarregados
da cobrança, e foi lançado a fl.
s
685 e segg.,
do
Livro do
Lançamento, riscou-se a
designação do escote, escripta
na margem esquerda, averbando-se na direita a significativa
cota, constante do proprio documento remissor que segue:
«ORFFAÃOS»
«T
o Dos orfãos que
Johão Do
sal
escrivão Delles
Mandou a esta cassa do lançam.
to per
sua sua
certidão»
«It Ant.
o filho de Jermão
Galharde
Imprimidor tem
de
ligitima cinquoèta e noue mill e quinhètos e
vinte e dous rs
abatido o terco paguara dozètos e oytenta rs e sua titor
[50]
Ana Picaya sua may m
or ao arquo do
cangreijo»
[63]
A margem direita do livro está escripto: «abatido
p.
la provisão de S. A. não
vay a Rol»
Parece, pois, poder concluir-se do teor desta certidão
que a casa que Germão Galharde possuia, e onde residia
e tinha a sua officina typographica, era
ao Arco do
Carangueijo,
isto é, no extremo N. da rua deste nome, para
além da actual rua das Pedras Negras, partindo em linha
obliqua
do começo da travessa do Almada. O chanfro existente
no cunhal posterior do predio que faz face ao Largo da Magdalena,
do lado de L., e que todos podem notar, é quanto
resta do Arco de Dona Thereza, de onde ascendia para o
N. a «Rua do Arco do Carangueijo.»
Passaremos agora a tratar de Antonio Gonçalves, e
findaremos.
XVII
Affirmámos no cap. XV.º d'estes
Estudos que a meiados
de 1566 já Antonio Gonçalves, o nomeado impressor
da 1.ª ed. dos
Lusiadas,
trabalhava por sua conta, muito
distante do Arco do Caranguejo.
Vamos procurar dizer onde era.
Preliminarmente, porém, preciso se torna lembrar que
na segunda metade do seculo XVI, correspondente ao
anno supra mencionado, Lisbôa, sob o ponto de vista da
sua divisão ecclesiastica, a unica por então
estabelecida,
achava-se, de um modo geral, dividida em tres grandes
zonas; a oriental, a central e a septentrional. Confrangidas
em torno dos pendores da primitiva cidade, e descendo
para a vertente sul que lhes corresponde, todas as parochias
de limitado territorio, successivamente fundadas
[64]
durante os quatro seculos anteriores. Na extrema esquerda,
imminente ao Tejo, a de Santo Estevão, excepcionando-se
do acanhado territorio de todas as mais, pela
tira enorme que a alongava até Enxobregas
[51]. Ao centro,
S. Nicolau e Santas Justa e Rufina, soffregas de territorio,
dominando tudo, abrangendo tudo, reservando apenas
cada uma d'ellas para si as eminencias correspondentes á
orientação das respectivas sédes. A
primeira, alastrando-se
por boa parte do valle central da cidade, e trepando
para o «Bairro do Almirante», o Carmo e
circumvisinhanças,
bracejava, a oeste, para os ferragiaes atinentes ás
muralhas, dando a mão ás suas duas convisinhas
dos Martyres
e do Loreto. A freguezia de Santa Justa, mais extensa
ainda do que a de S. Nicolau, dominando, ao septemtrião,
o resto da chãa que aquella lhe deixava, investia
pelo povoado em fóra até á Areia
Gorda, por um lado,
até Arroios, pelo outro, galgava o monte de Sant'Anna,
laborava as cumiadas que a aproximavam da Alcaçova,
mal permittindo, suzerana desdenhosa, como a sua possante
companheira, que algumas pequenas parochias circumstantes
affirmassem a desvaliosa existencia.
Eis porque se lê no «Livro do
Lançamento» que temos
manuseado, a fls. 539, v.
o, o seguinte titulo:
[65]
«
Começa o quatorzeno Rol Da
freguezia De Santa
Justa: Na Rua das Casas de Manoel a.o
(Affonso)
até
ao postiguo De Santo André».
Estamos, pois, junto ao, de nossos dias, chamado Arco
de Santo André, que acaba de ser derribado, e que a
Divisão
Parochial do Patriarcha D. Fernando de Sousa e
Silva, de 1780, mandou considerar, por dentro e por fóra,
no territorio da freguezia daquella invocação
constituindo
em 1566 extremas de N. E. da parochia de Santa Justa.
Por escusado temos affirmar que nas listas da
viação
parochial, estampadas no Summario de Christovão Rodrigues
d'Oliveira, organisadas em 1551, ou pouco depois,
[52]
não se encontra semelhante denominação
de rua, se tal
modo de indicar uma via pública pode ser classificado
«denominação». É,
com effeito, evidente que o redactor
d'esta especie de matriz, conteúda no «Livro do
Lançamento»
em exame, sabia bem quem era o individuo a quem
[66]
chamou «Manoel Affonso», seu contemporaneo ou
não.
Por nossa parte estamos
persuadidos
que
Bastião de Lucena
grandemente se equivocou, atribuindo o baptismal
«Manoel» a um individuo que se chamou
Estevão, pois
que esse é que teve casas na rua de que se trata, tendo
ambos o mesmo sobrenome. Manoel Affonso, que foi um
dos sacadores deste «Quatorzeno Rol», era
proprietario,
sim, mas no Beco do Poço do Ceitil. Tinha ahi uma
atafana[53]
e n'ella residia. Da coincidencia de sobrenomes
terá, porventura, nascido o equivoco.
Como quer que seja, o designar semelhante
indicação
a rua onde deviam começar as operações
da cobrança,
apresenta-se, tanto para o lançador das fintas como para os
sacadores d'ellas, facto natural, correntio. A via pública
de que se tracta poderia ter outra qualquer
denominação,
que para uns e outros esta que lhe foi attribuida bastou.
E bastou tambem para nós.
De facto, se esta cobrança devia começar n'uma
rua
que ia até o postigo de Santo André, que importa
que
lançador e sacadores lhe chamassem, ou verdadeira ou
equivocadamente, «Rua das casas de Manoel Affonso»,
se dúvida não pode haver que tal via
pública outra não é,
senão o troço mais ou menos modificado, no
material e
no aspecto topographico, da actual Costa do Castello que
vae do baluarte de S. Lourenço ao agora já
derribado
Arco de Santo André?
Aquelle baluarte, entreposto nos lanços do norte da
cêrca velha da primitiva
Lisboa, foi aproveitado pelos
constructores da cêrca de D. Fernando, para lhe apoiarem
no paramento o arco do postigo que tomou aquella
[67]
denominação, tambem conhecido por
«Postigo da Rosa»,
depois da fundação do mosteiro da rua das
Farinhas.
[54]
Qualquer de nossos benevolos leitores pode ver ainda agora
os vestigios das nervuras do arco embebidas no vetusto
panno do baluarte, assim como, do lado opposto, os
restos desfigurados do cubello onde o mesmo arco ia assentar.
Tudo isto foi arrasado no ultimo anno do seculo
XVIII.
Do postigo de S. Lourenço, a
cêrca nova descia a
escarpa
que vinha confundir-se no labiryntho de vielas que
demoravam, como ainda agora, entre o vetusto edificio do
chamado Colleginho e a Mouraria. Era-lhes canal de
communicação
com a «rua de Manoel Affonso» a «Rua do
Poço do Ceitil», entalada entre a muralha nova e
os muros
da cêrca da Casa de «Santo
Antão», a que depois se
chamou «o Velho» para o distinguir da nova casa dos
jesuitas,
actual Hospital de S. José. Esta «Rua do
Poço do
[68]
Ceitil», desde muito desapparecida, mas de que a carta
topographica da Commissão Geodesica, dada a lume em
1875, ainda nos quere parecer que marca os vestigios,
constituiu a cabeceira do «Trezeno rol» da
freguezia de
Santa Justa.
Conclue-se daqui pois que os arroladores continuavam
a adoptar a marcha ascencional, como em nosso anterior
estudo vimos, por isso que, explorada a zona de que
aquella rua era o começo, passaram a encabeçar o
14.º
Rol pela via publica immediata.
XVIII
Além destas razões de congruencia, confirmando
ser,
com effeito, a «Rua das casas de Manoel Affonso» o
troço
da atual Costa do Castello que ficou indicado, outros
testemunhos positivos existem que nos asseguram a identidade
da rua do seculo XVI com a via publica do seculo XX.
Não podemos dispensar-nos de os apresentar, por muito
que tal resolução possa parecer extranha ao nosso
objecto. Ver-se-ha que o não é.
Por Alv. datado de Evora, a 8 de junho de 1573, foi
commettida ao Licenceado Luiz Lourenço a
organisação
do tombo das propriedades foreiras á Camara desta cidade.
De tal diligencia se conservam os respectivos Livros
no Archivo Municipal. Examinando o segundo destes
Livros, que tem seu começo na «Rua do Arco do
Rosio,
da banda da praça da palha», na freguezia de Santa
Justa,
averigua-se que de 1547 a 1565 havia a Cidade effectuado
dez aforamentos na «rua que vai da porta de Santo
[69]
André para o postigo de Sam Lourenço, que por
outro
nome se chama Villa Quente»
[55].
Confrontado este titulo com o que Bastião de Lucena
escreveu no Livro que estamos estudando, acha-se que a
situação da via pública do Tombo da
Cidade é de todo
o ponto a mesma que se lê naquelle Livro, salvo a
orientação,
que diametralmente diverge, visto que o juiz do
Tombo partiu do postigo de Santo André para o de S.
Lourenço, e Bastião de Lucena fez o contrario,
para o
que, segundo acabamos de ver, teve uma excellente razão
de ordem.
Ora, que tanto uma como outra das duas
descripções se
accomodam sem obice algum á topographia actual,
não
resta dúvida, pois que o caminho de nossos dias
municipalmente
chamado Costa do Castello, começando na sua
extrema oriental no fim da rua do Milagre de Santo Antonio,
passa, ao inflectir para o N., rente ao panno de
muralha do baluarte de S. Lourenço, e continúa
até terminar
junto do agora derruido Arco de Santo André.
[70]
Se o leitor paciente o seguir comnosco, encontrará,
á
sua direita, antes da rampa que termina a Costa e atinente
a um lanço de muralha que sustenta um pequeno quintal,
uma porta, tendo o n.º de policia 92 A, dando
accésso
a extenso escadorio, que torneja, lá no alto, á
direita,
e segue em varios e apertados lanços até
encontrar, á
esquerda, a famigerada
Porta do
Moniz, aquella porta
do Castello, origem da lenda que Herculano pulverisou.
[56]
No Tombo do Licenceado Luiz Lourenço, as escadas
alludidas são a «Rua que vai da rua direyta para o
Postigo
do Moniz». As casas que ladeavam a entrada de tal
«Rua» foram levantadas em chãos
pertencentes á Cidade.
As da banda do Postigo de S. Lourenço, na frente do
muro do quintal acima alludido, e vinham a ser as
«derradeiras
casinhas quando querem voltar da dita rua pelo caminho
que vai ao Postigo do Moniz», possuia-as um casal,
Antonio Fernandes e sua mulher Barbara Gonçalves,
«parda». As da banda do Postigo de Santo
André pertenciam
a Estevão Affonso, porteiro. E eis porque desta
circumstancia
nos veiu a tentação de achar que
Bastião de
Lucena se equivocou, atribuindo a Manoel Affonso as
casas deste Estevão. Se o porteiro foi dos primeiros
edificadores
que teve este troço da Costa do Castello (1547),
é bem provavel que o seu nome servisse de
conhecença
para a
sua rua, então
quando era este individuo o segundo
de quantos foreiros a Cidade teve n'aquelle sitio, e
aquelle o modo de distinguir as vias publicas lisbonenses
umas das outras.
Alem dos emphiteutas da Camara acima mencionados,
[71]
outros havia que figuram em ambos os documentos que
temos citado. Assim, a Cidade tinha aforado ao dr. Affonso
Figueira, desembargador da Casa do Civel e Ouvidor
do crime, em dois annos diversos, 1555 e 1557, tres
chãos, sobre os quaes este magistrado levantara casas, e
um quarto que elle reservara para seu quintal, e que o era
ao tempo do Tombo que vamos seguindo. A loja de uma
das casas estava em 1566 ocupada pelo tecelão
«João
Francisquo», conservando-se senhorio, o magistrado sobredito.
Este ahi mesmo residiria, mas a toga excepcionou-o
da obrigação do escote, e por isso só
naquella qualidade
apparece no rol da derrama. Do mesmo modo aforara
a Cidade, em 1542 e 1547, dois outros chãos perto
dos antecedentes, a uma Guiomar Dias. Esta, precedendo
a competente licença, fez venda, em 1561, de uma das casas
que n'elles edificara a Ambrosio Luis, feitor da
imposição
dos vinhos.
Ora, tanto o magistrado Affonso Figueira como o funccionario
fiscal apparecem em sua devida altura no Rol de
Bastião de Lucena, isto é, são
mencionados como proprietarios
das respectivas casas, indo do Postigo de Santo André
para o baluarte de S. Lourenço, sendo a concordancia
perfeita entre os dois documentos, por isso que umas das
casas do dr. Affonso Figueira são no Tombo da Cidade,
as primeiras, indo do Arco de Santo André, partindo pelo
N. E. com as de Ambrosio Luis e com outras de outro
aforamento, realisado por aquelle magistrado dois annos
depois.
[57]
[72]
Absolutamente certos, pois, de que dizer «Rua das Casas
de Manoel Affonso até o Postigo de Santo
André», e
«Rua que vai da Porta de Santo André para o
Postigo de
Sam Lourenço» é referir-se a uma mesma
via pública, e
que tal referencia corresponde ao troço actual da Costa
do Castello, que vai do Baluarte de S. Lourenço
até o desembocar
da mesma Costa no alto da calçada de Santo
André, pedimos ao leitor benigno nos perdoe a longa e
porventura enfadonha digressão topographica, na
consideração
de ser necessaria a nosso empenho:―o precisar,
sem especie nenhuma de dúvida, onde foi que teve a sua
officina typographica o já agora tão nomeado
Antonio Gonçalves,
«imprimidor» da notavel
edição
princeps do poema
Os Lusiadas, do
Grande Epico Luis
de Camões, das duas
que trazem a data de 1572, a que apresenta o
Pelicano
frontispicial com o collo voltado para a esquerda do leitor.
XIX
A 17 de setembro de 1566, Manoel Affonso, atafaneiro,
morador ao Poço do Ceitil e Jeronymo Gonçalves,
serralheiro,
[73]
morador na rua dos Cavalleiros, escolhidos para
sacadores do
«quatorzeno» rol da freguezia de Santa
Justa, receberam nos Paços do concelho desta «mui
nobre,
sempre leal cidade de Lisboa», onde se tratava de
dar execução ao Regimento da cobrança
do
voluntario
imposto a que nos temos referido, as competentes copias
do predito Rol, e trataram de avial-as.
Deviam começar, como vimos, da extrema superior da
«Rua do Poço do Ceitil,» que
desembocava, segundo dissemos,
proximo do Baluarte de S. Lourenço, pela parte
posterior do Postigo da
Cerca nova,
sendo a primeira do
«trezeno» Rol.
Percorrendo toda a rua até o Postigo de Santo
André,
voltavam os dois
sacadores para a
calçada desta denominação,
internavam-se na Rua da Amendoeira, davam volta
á travessa desta rua, que lá vimos ainda hoje, e
sahindo
pela rua das Tendas, que parece não lográra ainda
um
qualquer nome, vinham á dos Cavalleiros, findando-lhes
a tarefa no «Beco de Thomé Correa»; um
beco sem
sahida, de nossos dias chamado
Beco do
Forno, primeiro
á esquerda naquella rua, indo da Mouraria, e que tem
lá,
não sabemos porque bullas, advertencia de ser
«
logradouro
particular»(!).
Acompanhemos os honrados exactores na sua
perigrinação
pela rua que ía do «Baluarte de Sam
Lourenço ao Postigo
de Santo André». Despedir-mo-nos-hemos ahi
d'elles.
O que deste Postigo por diante haveriam de fazer não nos
interessa. Depois veremos, por simples curiosidade, qual foi
o importe da sua cobrança na area que lhes fôra
designada.
Por agora, attentemos um momento na feição da
discutida
via publica lisbonense, como ella parece ter sido no
2.º semestre do anno de 1566.
[74]
Devia apresentar, ao menos por partes, mais largura do
que hoje vemos ter, posto que não se avantajasse
grandemente,
neste particular, ás convisinhas. Muito mais desafogada
era ella, por certo, do que é hoje.
Ao longo da sua margem direita, indo para Santo André,
e até alcançar-lhe o Postigo, 21 propriedades, se
a tal
classificação poderiam aspirar as modestas
casinhas que
se iam encostando á barbacã do Castello, tendo na
sua
frente uma larga perspectiva panoramica, de surprehendente
effeito. Da esquerda, a ondulada ribanceira, por
onde, ainda 35 annos antes, se espreguiçava a miseranda
Villa Quente, até ir topar com a cêrca do
Colleginho.
Lá quasi ao começar o forte declive que, tal qual
hoje,
terminava a rua, o postigo aberto na muralha por onde
se começava a subir para o do Moniz. Diante d'elle,
atravessada
no caminho, a cruz de pao, demarcatoria nos titulos
do Tombo municipal. Por ahi perto, talvez, sempre
da esquerda, algum pequeno grupo de casinhas, restos da
subvertida povoação. Após, os declives
sobre os quaes se
levantou, no seculo seguinte, o palacete que assenta no
espigão da calçada de Santo André.
Isto, quanto á topographia local.
Vejamos agora quanto respeita ás
construcções, e, porfim,
aos que as habitavam.
As 21 casas da margem direita, que a rua contava pertenciam
a outros tantos proprietarios. Destes, 12 habitavam
nas proprias casas, ou sós, ou tendo inquilinos. De
todos os 21, o senhorio mais importante, era o clerigo
Francisco Dias. O seu predio―algumas barraquitas,
provavelmente―alojava
9 inquilinos, entre os quaes, 2 cegos.
De consideração, na ordem social, Joanne
Fernandes,
moço da camara da Infanta D. Isabel, tendo na loja
[75]
por inquilino um «sapateiro remendão».
Joanne Fernandes
morava nas proprias casas de que era dono, e foram-lhe
avaliadas em 30$000 réis. Pegado ao postigo de Santo
André, não esqueça o nosso conhecido
magistrado Affonso
Figueira, e confrontando com elle, o Ambrosio Luiz, que
superintendia na imposição dos vinhos. Algures,
ali perto,
um Joanes, cantor de el-rei, que nem por ser tal, se esquivou
ao escote. Fecham a lista três senhoras do appelido
Viegas; Filippa, Antonia e Anna.―Tres irmãas?―Que
sabemos nós? Os predios das duas primeiras, avaliados
em 50$000 réis cada um, obrigaram-nas a 350 réis
de contribuição. As casas de Anna Viegas,―coisa
parecida,
é mais que certo―com as barracas do Padre
Dias, foram computadas no dobro; em 100$000 réis, e
por isso teve de pagar 700 réis.
O predio devia valer a somma em que foi avaliado.
Alem da senhoria, habitavam n'elle mais 6 inquilinos; 3
varões e 3 femeas, como se diz em estatistica de
população.
Entre as femeas, duas eram viuvas; dos varões, um
fallecera ao tempo de chegarem lá os
sacadores, outro
abalara para parte incerta. O terceiro era typographo;―chamava-se
Antonio Gonçalves, e tinha aqui a sua officina.
Elle e Maria Luiz, sua mulher, moravam mais abaixo,
para o lado de Santo André, no predio do pintor Garcia
Fernandes.
XX
Estava, pois, Antonio Gonçalves estabelecido já
em setembro
de 1566, isto é, dois annos mais cedo, do que o
que lhe suppôs Tito de Noronha, na tabella com que enriqueceu
a sua tão valiosa monographia
A Imprensa
Portugueza
durante o seculo XVI.
[76]
É evidente que o auctor se governou, para a
inscripção
da data «1568», pela data do primeiro livro que se
conhece,
sahido dos prélos deste impressor;―as obras
poeticas de Cadaval Gravio. (Pag. 82). O facto, porém,
corrobora o asserto já por nós enunciado nestas
Notas;
convem a saber: que hemos de convencer-nos, todos os
que perlustramos estas materias, que, assim como a nenhum
habitante da Terra será jámais permittido ver a
outra face do globo lunar, assim nos está vedado, e aos
que depois de nós vierem, o descortinar quantas obras, e
quaes assumptos vieram a lume, só no seculo XVI que
seja, em Lisboa, que para sempre de nós e dos porvindouros
ficarão ignorados.
É provavel que Antonio Gonçalves continuasse a
residir
na Costa do Castello, e ahi mantivesse egualmente a
sua officina, até passar a melhor vida. Nestas afastadas
eras, o
inquilinato ainda tinha mui
fracas as azas. Voejava
pouco, e com pouco se contentava. Ahi onde se constituia
familia, ahi onde se ganhava a vida, ahi se criavam
affectos; ahi se lançavam raizes. Na mesma parochia,
onde marido e mulher uma vez se desobrigavam, até o ultimo
dia da vida se ficavam desobrigando. N'ella recebiam
a agua lustral do baptismo, n'ella se casavam, n'ella continuavam
a prole. Depois, no chão sagrado que todos os
fieis pisavam, vindo adorar a Deus, tinham todos, quantas
vezes de geração em
geração!―o proprio e final encerro.
Pela nota com que fechamos, emfim, estes singellos
apontamentos, que um acaso nos permittiu redigir, se verá
desde quando e até quando se conhecem impressões
sahidas
da officina de Antonio Gonçalves, e quaes as obras
que se sabe terem sido objecto d'ellas.
Não esqueça referir que a officina de Antonio
Gonçalves
[77]
foi avaliada em 5$000 réis, pagando o futuro impressor
dos
Lusiadas o
escote de 35
réis para as necessidades
da corôa.
A 26 de abril de 1567 deram os honrados
sacadores do
«Quatorzeno Rol da Freguezia de Santa Justa» por
finda
a sua tarefa, entregando, com a nota de 239
addições cobradas,
ao Thesoureiro da Cidade, André Luiz, recebedor do dinheiro
deste Lançamento, a quantia de 26$476
réis, em que ellas importaram, jurando aos Santos Evangelhos
terem procedido como homens de bem.
Eis a Nota das impressões conhecidas, sahidas dos
prélos
de Antonio Gonçalves, redigida por simples apontamentos,
por se não ter prestado a occasião a uma
minuciosa
e integra descripção bibliographica das que
será
ainda possivel ver.
1568 |
― |
Pythographia
e
Brachyologia―Poemas publicados por Cadaval
Gravio, segundo Tito de Noronha, in A Primeira
Edição dos Lusiadas, pag. 82. |
1569 |
― |
Constituições
Extravagantes do Arcebispado de Lisboa (3.ª
ed.)―aos 7 dias do mes de Fevereiro. Mencionadas por
Innocencio, Diccion, Tom. II, 105. |
» |
― |
Leis
extravagantes collegidas e relatadas por mandado do
muito alto e muito poderoso rey D. Sebastiam, nosso senhor,
por Duarte Nunes do Liam.―Innoc. II, 210. |
1570 |
― |
Repertorio
dos Tempos. Visto
por nós na Sala dos
Reservados
da Bibliotheca Nacional―B―11. Tem o frontispicio
dois annos após empregado pelo mesmo impressor
in
Lusiadas,
de Luiz de Camões. Material que pertenceu a
Germão
Galharde. |
1571 |
― |
De Rebus
Emmanuelis, do Bispo
D. Jeronymo Osorio. Cit.
por Innocencio―Letra J. pag. 272. |
1572 |
― |
Os Lusiadas―por
Luiz de
Camões. Frontispicio que pertenceu
a Germão Galharde―(Pelicano tendo o
pescoço
voltado para a esquerda do leitor). |
[78]
1572 |
― |
Primeira Parte do Compendio da Chronica da
Ordem... do
Monte do Carmo, por Fr. Simão Coelho. Deve
cotejar-se
a noticia de Innocencio com a descripção impressa
no Catalogo
n.º 7 da Livraria de José dos Santos &
Irmão. |
1573 |
― |
Commentario do cêrco de Goa e
Chaul, &―Ha um exemplar
na Livraria da Torre do Tombo. |
1574 |
― |
Successo do Segundo Cêrco de
Diu, de Jeronymo Côrte-Real.―Ha
um exemplar entre os Reservados da
Bibliotheca
Nacional, mas não chegámos a vê-lo, por
falta de
occasião. |
» |
― |
Regras que
ensinam a maneira de escrever a orthographia
portuguesa, por Pedro de Magalhães de
Gandavo. Informações
de Innocencio, pois se não conhece exemplar algum.
|
1576 |
― |
1576―Historia da provincia de Sancta
Cruz, &, pelo mesmo auctor
supra-citado. É util ler a informação
de Innocencio,
ácerca deste rarissimo livro. |
Por muito satisfeito nos daremos, que esta
Noticia logre
alcançar o agrado de nossos consocios, mais certos
leitores que ella poderá ter. Por sua especial bondade nos
relevarão elles, de certo, as deficiencias que se nella
notarem,
antes filhas da mingua de recursos, do que da falta
de boa vontade em alcançar o impossivel;―dá-las
completas.
Julho, 1913.
Gomes de Brito.
[79]
ADDENDA
«Aos cinquo dias do mes de novembro de mil e qujnhentos
setenta
e hum annos em Lisboa nos estaos na casa do despacho da Santa
Inquisiçam
estando hi os senhores jnquisidores perante elles pareceo
Pero Alberto, flamengo de naçam, natural de Envres de jdade
que
dise ser de vimte e dous pera vimte e tres annos e dise que hee
jmpremidor
e trabalha na jmpresã de Marcos Borjes ao Arco de Cramgejo
e pera em todo dizer verdade lhe deu juramento dos Santos
Evangelhos e prometeu de a dizer e denunciando dise que elle vinha a
este Santo Officio pera desencarregar sua consciencia e dizer o que
sabja o qual hee que avera oito annos que elle partio desta cidade
pera Arrochella com hum João de Leam, frances lyurejro o
qual lhe
disseram em Castella que estava nesta cidade e que fora ja preso
pollo Santo Officio e jsto de preso lhe diseram aquj em Lisboa e
tambem ffoj com elles hum cornelio flamengo de naçam,
naturall de
Olanda que tambem hee jmprimidor e trabalhava en casa da viuva de
Germam Galhardo e asj foj com elles hum frances por nome Pierres
d'Alltabel casado nesta cidade com hua criada ou paremta de Njcolao
Botardo que viuja na rua noua e vende papel e tambem era jmpresor
ajnda que o nam usaua muito os quaes todos quatro hiam determjnados
pera jmpremjr huas horas de Nosa Senhora em portugues
e o João de Leam fazia o gasto e o Pierres e elle confesante
e outro
hiam por obrejros e chegando Arrochella por lhe nam quererem dar
licença pera as jmprjmjr as não jmprimjram e
jmprimjram em lugar
das oras ha gramatica de Joannes Espauterio e dizendo elle denunciante
ao Cornelio em hum domjnguo se jriam ouvir mjssa e ouvindo
jsto João de Leam perguntou ao Cornelio que era o que elle
denunciante
dezja e o Cornelio lhe respondeo que elle denunciante querja
jr ouvjr mjssa ao que respondeo o dito João de Leam dizendo
que
senam podia ouvir mjssa na Arrochella porem queriam a
pregaçam e
dizendo jsto antes de jamtar ás oito ou noue horas o dito
Joam de
Leam os leuou todos tres a hua casa grande onde estaua muita gente
e muitos banquuos e começarão a camtar por huns
libros que tinham
nas mãos e dezião Joam de Leam e Cornelio que
aquillo que cantavam
eram Salmos mas elle denunciante nam entendeo a linguoa e
[80]
despois se pos hum homem em hua cadejra alta a ler por hum liuro
em frances espaço de hua hora e o que leo elle denunciante
nam entendeo
e acabado de ler se sajram todos da dita casa e se foram a
jamtar e dahj a tres ou quatro dias elle denunciante, dejxou a dita
companhia
na Arrochella e se foj pera Leam de França, perguntado que
gente era aquela que estaua na casa da Arrochella onde elle denunciante
foj com ho dito Joam de Leam e Cornelio e Pierres ouvjr cantar
os salmos, disse que eram lutheranos, perguntado que doutrjna
era a que se lia na dita casa ou se lho diseram, dise que Joam de
Leam lhe disera que aquela era doutrjna e lej de Christo e toda
aquela gente se chamavam ugunotes, perguntado se era aquella doutrjna
que aly se jnsinaua a gente a jgreja catholica Romana disse que
aquella doutrjna nam era da jgreja Romana porque nem a casa onde
se lia era jgreja se nam hua casa sem santos como cavalaryza,
perguntado
se allgua pesoa o presuadio ou lhe dise que crese aquella
doutrjna que alj ensinavã, dise que nam, perguntado com quem
entrara
na dita casa e onde estiveram sentados dise que com Joam de
Leam e Cornelio e o Pierres e todos quatro se sentaram juntos em hum
banquo e estiueram todos asj atee o cabo da predica que se sajram
perguntado se sabe que allgua pesoa aprouaua a dita doutrjna que
se lia na dita casa disse que soomente Joam de Leam lhe disse que
aquella doutrjna era muito boa e lej de Christo e que os papistas
chamavam
aquella gente ugunotes e o mesmo lhe dise Pierres d'Alltabel
perguntado quãntas vezes foram a dita casa onde se lia a
dita doutrjna
dise que hua soo vez foj la com os que dito tem, perguntado se
vira jr allgua pesoa aos ditos ajuntamentos majs vezes, dise que nam,
que os companhejros nam sabe se tornaram laa majs vezes porque
elle se partio como dito tem pera Leam de França e dispois
destar
seis ou sete meses em Leam de França se tornou a Espanha
onde foj
preso pollo Santo Officio de Toledo e saio reconciliado com habito
que lhe tiraram loguo no cadafalso e lhe deram em pena que estivesse
alj em Toledo hun anno o qual esteue e despois pedio licença
pera jr
trabalhar a Salamanqua e outras partes e lhe diserã que
podia andar
por toda Espanha e porem que se nam embarcasse pera outro reyno
sem sua licença e que ho principall intento que o trouxe a
esta casa
ffoj por lhe parecer que se podia saber nella que elle foj, estando na
Arrochella aquela casa com ho dito Joam de Leam e os companhejros
ouvir a doutrjna dos lutheranos por quãoto hum Alexandre
Lopez
[81]
christão novo e outros que a ese tempo la estavam lhe
diseram que
elle denunciante fora ouvir a dita doutrjna e que se vem dasemto
pera trabalhar aquj em seu officio e que ja isto confesou em Toledo
com ho majs hall nam dise e do costume dise estava bem com todos e
lhe ffoj mandado ter segredo no caso e elle o prometeo sob carguo
do dito juramento e por o promottor fiscal requerer a elles senhores
inquisidores que por ser o dito denunciante estrangeiro e se poder
absentar pera lugar nam certo lhe reteficasemos em fforma elles
senhores
mandaram chamar os muito reverendos padres frej Belchior
de Sam Mjguel e frej Estevam Caveira, ambos da ordem do bem
aventurado Sam Domingos e pregadores perante os quaes despois de
tomarem juramento de ter segredo em forma o dito denunciante disse
que o dito contheudo em esta sua denunciaçam que eu notario
lhe li
toda de verbo ad verbum e lida e por elle entendida disse que asj o
disera e estava escripto na verdade e afirma e ratefica e de nouo torna
a dizer e asjnou com os ditos senhores inquisidores e os ditos padres
que estiveram presentes por honestas e religiosas pesoas e eu
Joam Velho notario appostolico o sprevi, diz no riscado Symam de Saa
Pereira e declarou sendo perguntado que na dita casa onde estava
o dito ajuntamento de gente segundo seu parecer, Pierres tinha hum
liuro na mam e que todos os ditos seus companhejros a saber Joam de
Leam e Pierres e Cornelio cantavam com ha majs gente os ditos
Sallmos em frances que elle denunciante nam entendia e asynou com
elles Senhores padres e eu Joam Velho notario appostolico o sprevi
(aa.)
Jorge Gonsallvez
Ribeiro―
Pedro
Alberto―
Simão de Saa
Pereira―
Frej Belchior de
São Miguel―
Frej
Estevão Caveira».
Livro de Denuncias do Santo Officio
(n.º 106).
Notas:
[1] O
Livro
do Lançamento e
Serviço que a Cidade de Lisboa fez
a El-Rei Nosso Senhor, de que démos
abreviada noticia no jornal
Novidades, de 9 de junho de 1897,
tendo começado em 15 de abril
de 1565, e terminado em 6 de setembro de 1567 as
operações da cobrança,
de que o alludido
Livro é
muito curioso registo.
[2]
«
T.o
da fr. Da Madalena―Rua
Nova dos feros Danbas as
bandas» f.
o 44, V.
[3]
João de Borgonha era proprietario de umas casas
na «rua da
Gibetaria», que tinham 5 inquilinos. Tinha outras casas na
«rua do
Terreiro da Portagem», onde eram seus inquilinos um Pedro de
Sousa, ourives de ouro, e um João Fernandes, mercador,
recem-chegado
do Peru.
Os outros dois inquilinos, dos 4 que o predio tinha, não
são de
importancia.
Finalmente, este abastado livreiro-editor ainda possuia umas
«tendas» nas costas do Terreiro do Trigo.
[4]
Ás vezes, tambem não eram de todo
bem succedidos em suas
um tanto arriscadas especulações; testemunha,
Alonso de Leon,
que, em 1575, foi denunciado á
Inquisição por um tal Raphael Perestrello,
porque entre os livros de que era mercador, em Lisbôa,
vendia alguns, impressos em Flandres ou em França,
«
e falavam
contra o officio divino e contra a missa».
Arch. Histor. Portug. fasc. n.
os
75 e 76, pag. 153.
[5]
«It Migel darenas liureiro seu obreiro.........
avaliado [~e] cinquo
mil rs...» (fol. 45 do cit. codice).
Ácerca deste Miguel de Arenas e de seu parceiro
João de Molina,
assim como de João de Borgonha, e outros livreiros e
impressores
de que esta Noticia se occupa, leem-se com fructo os artigos
que lhes respeitem
in Docum. para a Hist. da Typogr.
Portug. &,
de Venancio Deslandes, Lisboa, Imp. Nac., 1888.
[6] A
Recopilaçam tivera,
segundo as primordiaes informações de
Barbosa Machado, posteriormente ampliadas por Innocencio, duas
edições; uma, de Coimbra, por Antonio de Maris,
1569, outra, de
Lisbôa, por Marcos Borges, 158O. Nem de uma, nem de outra
apparece,
desde muito, exemplar algum.
De uma terceira edição,―aquella a que o texto se
refere―apenas existia um exemplar na copiosa livraria do convento de
S. Francisco
da Cidade. Delle se serviu Alexandre das Neves Portugal, para
ajuntar á 2.ª ed. das
Advertencias dos
meios que os particulares
podem usar para preservar-se da peste, &, por
aquelle naturalista
redigidas, e mandadas publicar pela Academia, em 1797 (?)
Exhausta, com effeito, esta 1.ª ed., voltou a douta
corporação a
fazer reimprimir 2.ª, em 1801, ajuntando-lhe,
porém, agora,
mas com
rosto e paginação especial, o opusculo dos dois
medicos sevilhanos,
o qual na 1.ª apenas fôra objecto de simples
referencia,
impressa no
Prologo. O formato das duas edições das
Advertencias é de 12.º
Ficou, pois, a
Recopilaçam em 4.ª ed.,
copiada da de 1598, conforme
se vê na folha do rosto.
[7] Parece
ser esta a 3.ª
edição,
havendo entre esta e a de Ferrara,
1554, uma de Evora, 1557-58. Nas edições de
Ferrara, e de Colonia
chama-se á novella:
Hystoria de Menina e
Moça. Veja-se no pref.
de
Menina e Moça, ed. do
Porto, 1891, a Nota
1 de pag. LXXVIII,
do punho do nosso consocio, sr. D. José Pessanha.
Innocencio não
mencionou a ed. de Ferrara, por onde entende ser 2.ª esta de
Colonia.
[8]
A Imprensa Portugueza no Seculo
XVI, cap. 4.º―Livreiros.
No Archivo da Camara desta capital ha uma carta de venda, em que
interessa a corporação dos livreiros da Irmandade
de Santa Catharina,
datada de 11 de maio de 1557, e na qual Salvador Martel assigna
como testemunha de certas diligencias. Vid.
Elem. para
a Hist.
do Mun. de Lisboa, Tom. II, 584, nota da pag. anter.
[9] T.o
da freguezia da
See», fol. 9.
[10] A
«rua da Costa», da
relação de Christovão, na freguezia da
Magdalena. Nesta freguezia dá a mesma
relação «Duas travessas
que não tem nome». Uma destas poderá
ser aquella onde estavam
estabelecidos os dois livreiros.
[11] Como se
vê por este exemplo e o outro supra,
Bastião de Lucena,
escrivão deste recenceamento, obrigava a syllaba
«gi» a soar
como «gui», o que não é
peregrino entre a gente menos letrada deste
seculo.
A Fonte da Preguiça ficava «além da
Porta do Mar», para oeste
das casas de Affonso de Albuquerque «que tem as pontas de
diamantes», e logo a seguir a outras que pertenciam
á Cidade, segundo
o que se lê no
L.o
1.º do Tombo
das
propriedades foreiras á Camara,
codice do Archivo Municipal.
Sobre a fonte erguiam-se umas casas, onde, na occasião deste
arrolamento (1565), morava um tal Francisco d'Arruda, de quem,
infelizmente,
Bastião de Lucena não mencionou a
occupação.
[12] Temos a
opinião de que o
Summario não sahiu a lume
antes de
1554, embora se haja inferido das expressões de seu antes
compilador,
do que auctor, a data de 1551.
[13]
É forçoso confessar que
Bastião de Lucena, o escrivão deste
recenseamento, teria feito, se de tal se lhe quizesse suppôr
o proposito,
quanto houvera sido preciso para negar á posteridade a
existencia
do velho Johanes Blavius, tão mal affirmada nas folhas
amarelladas
do codice, onde lhe foi desfigurado o nome.
O respectivo lançamento diz, com effeito, e em verdade, o
seguinte:
«It cladio colon Inprimidor em cassas de bento giz av
do
[~e] tres mill
rs paguara xxj rs»
Ora, não só não houve nenhum impressor
estabelecido, deste
tempo, que se chamasse Claudio, querendo ver a falta de um
«u» no
nome proprio escrito por Lucena, nem o «imprimidor»
arrolado era
simples «obreyro»; isto é, official
typographo, para nós desconhecido,
porque, nesse caso, o escrivão do recenseamento o declararia
tal, como o fizera a respeito de Miguel de Arenas, e o fez,
referindo-se
a Marcos Borges, segundo adiante veremos.
O presumivel, pois, será que Bastião de Lucena
haja desfigurado
o nome de João Blavio, reunindo em dois inintelligiveis
vocabulos o
appelido do impressor, e a indicação da sua terra
natal.
[14] De
certeza, temos que a
«
Primeira Parte da Chronica dos
Menores», de Fr. Marcos de Lisboa, que
João Blavio imprimira em
1557, editada por João de Borgonha, foi reimpressa por
Manoel
João, em 1566. Pareceria curial que o impressor da
1.ª
edição,
estando ainda vivo, e estabelecido, como o vemos pelo texto, fosse
o encarregado da reimpressão, tanto mais que foi o mesmo
João
Blavio que em 1562 imprimiu, por conta daquelle opulento editor, a
Segunda Parte da indicada
Chronica.
Pelo numero de obras, de que ha noticia terem existido, sem que
chegassem até nós, se póde fazer
idéa de quantas se terão perdido,
em edições que se não repetiram, e
não conheceremos jamais.
Não anda liquido qual fôsse a 1.ª ed. do
Palmeirim, em linguagem
portuguêsa, sendo certo que, se o conselheiro Macedo teve a
que dizia ser 3.ª ed., impressa em 1564, outras duas
anteriores
houvera
já, que assim como esta, se não conhecem.
Tampouco se conhece a 1.ª ed. da
Aulegraphia, de Jorge Ferreira
de Vasconcellos, deduzindo-se apenas pelo titulo da de 1561 dever
ser esta a 2.ª, pelo menos.
Da
Comedia Ulysipo, do mesmo Jorge
Ferreira, tambem se não conhece a 1.ª ed., muito
anterior, por certo,
á
que seu genro D. Antonio
de Noronha emprehendeu em 1619. Quanto aos
Triumphos
de Sagramor, do mesmo Ferreira, resta saber se as
conjecturas de
Innocencio, ácerca da existencia desta obra
prevalecerão, ou não.
Enfim, uma prova, ainda que indirecta, de que se imprimiram
no seculo XVIº. obras, de que nenhuma noticia resta,
é que
ha, applicados
a outras obras conhecidas, frontispicios que decerto não
foram
feitos para ellas, senão para outras, em que pela primeira
vez appareceriam, sem se saber quaes fossem, e quem hajam sido
seus autores.
[15] Obras do
Poeta Chiado, colligidas, &, por Alberto Pimentel.
[16]
«
To
Da freguesia De San
Nicoláo», fol. 176.
«It Marcos Borjes Inprimidor obreyro em cassas da molher do
doutor ant
o medis/Bracal paguara x b j i
rs»
[17] Eis o
texto completo do rosto
desta obra:
«
Paradoxo ou sentença
philosophica contra a opinião do
vulgo: Que a natureza não fez o homem senão a
industria. Dirigido
ao muy alto & inuictissimo Rey de Portugal dom
Sebastião
Primeyr (sic) deste nome. Por Jo
Cointha Senhor des Boulez Fidalgo
frances... Agora nouamente, feyto & impresso nesta cidade
de Lixboa em casa de Marcos Borges empressor del Rey nosso
senhor. Ao primeyr (sic)
de Janeyro
de 1566. Vede se na empressão
detras de nossa senhora da Palma».
Em 29 quartos de papel, sem numeração. Innocencio
descreve o
exemplar deste raro opusculo pertencente a Figanière.
[18]
«Arcos por traz da Ermida da Palma.»
Lado de L. 4 propriedades;
lado do S. outras 4.
Tombo do Bairro do Rocio, fls.
156
e 156 v.o
Como simples esclarecimento, que facilite o ajuisar da
situação
desta ermida, diremos que ficava por muito proximo do pequeno
largo ainda agora conhecido por largo dos Torneiros, rasgando-se
na rua dos Fanqueiros, na extrema L. da rua de S. Nicolau.
[19]
«
A Imprensa em Portugal no
seculo XVI», artigo de Sousa
Viterbo
in Diario de Noticias, de 5
de setembro de 1898.
[20] O
segundo destes valiosos estudos foi dado a lume na
Archeologia
Artistica, 1.º anno, vol. I, fasc. II, publicada
pelo sr. Joaquim
de Vasconcellos―Porto, 1873.
[21] Manoel
João rubricou os fêchos do
1.º e do 2.º Livros desta
compilação, imprimindo
«Manoel», empregando, comtudo, o
«u» nos
tres ultimos. Notemos que Tito de Noronha é tambem um de
nossos
diversos auctores modernos que seguem o exemplo dos que, nomeadamente
no seculo XVII.º, adoptaram o «o» na
graphia do
nome proprio
«Manoel», distinguindo-o assim, e crêmos
que bem, do seu igual
castelhano.
Francisco Manoel, Bocage, que adoptou para distinctivo academico o
anagrama do seu baptismal:
Elmano, e já bem proximo
a
nós o estadista Manoel da Silva Passos, ortographaram com
«o» o
seu nome proprio. A mesma pratica se observa entre as familias
nobres que usam deste nome proprio, por appellido ou sobre-nome.
[22] Uma
anterior edição deste
Regimento, datada de 1542, sahira
dos prélos de Germão Galharde. Innocencio cita-a
na letra A (Artigos),
e Tito igualmente se lhe refere na monographia
Ordenações
do Reino, pag. 82.
[23] O
pobre do guarda-roupa, improvisado pregoeiro das
grandezas
de Lisbôa, não attendendo a mais nada, sommou os
«roles» das vias
públicas das 23 freguezias que os tiveram (porque S.
Martinho não
teve «role»), e achou o total das 521, das tres
categorias, que pormenorisou
quasi no final do livro, sem contar as 2 calçadas e alguns
«adros» que elle, ou outrem, fez entrar na especial
dos «62 Postos»,
a que no texto se fez referencia.
Não attentou, porém, o diligente chronista
lisbonense na
compartilha
parochial, e sommando, sem mais exame, as 23
relações de vias
públicas que os priores e curas da cidade lhe facilitaram,
por ordem
do Arcebispo, não deu porque 38 destas, obedecendo
áquelle sistema,
se apresentam
80 vezes repetidas por
2 e 3 freguezias, o que
reduziu, por conseguinte, a 479 o numero verdadeiro das vias
públicas
constantes do
Summario.
Deve porém advertir-se que na Lisbôa do tempo
deste livro havia
já muito antigas vias públicas que, por qualquer
circumstancia, nelle
não figuram. Daremos para exemplo, por ter adquirido a
particular
notoriedade que lhe vem de figurar no
Monge de
Cister, a celebre
«rua de D. Mafalda», que os lançadores
de 1565 arrolaram, «com
suas travessas e hospital» (o dos Palmeiros), na freguezia da
«Madanela».
[24]
Já
deixámos explicado como o
vocabulo «congro» traduz, neste
caso, um acentuado barbarismo. Ao vulgo, é mais que certo,
escapou
naturalmente o termo letrado «combro», de que
poucos estariam,
neste tempo; como ainda agora, no caso de alcançar o
significado.
A ignorancia dos letreireiros que, ao alvorejar o seculo transcurso,
foram encarregados pela Administração Geral dos
Correios de
appôr os disticos nas vias públicas da nossa
capital, foi origem a
muitos desconcertos desta ordem. Assim, o Pateo do
«Porcili», appelido
italiano, foi convertido em Pateo do «Pocildes», o
beco dos
«Beguinos» ficou-se chamando beco dos
«Biguinhos»; outro beco, o
da «Calheta», transformou-se em beco da
«Galheta», a Praça dos
«Remolares» foi muito tempo conhecida por
Praça dos «Romulares»,
&. Infelizmente, não occorreu verificar se a graphia
dos
artistas
saíra triumphante da prova, e por isso, ainda agora se andam
remediando
estas aberrações ortographicas municipaes.
[25] Este
Conde era um
Domingos Fernandes, que tinha por alcunha
«
o conde». Era
«porteiro do concelho», e morava na rua a que
déra
a alcunha, em casas suas.
Pela coincidencia, notaremos que, ha quarenta e tantos annos,
estacionava na então denominada Rua de S. Francisco, um
moço de
fretes, chamado tambem Domingos Fernandes, e que tendo sido
criado de Almeida Garrett, era conhecido pela alcunha:
o visconde,
do titulo daquelle que fôra seu patrão.
[26]
Não se nos afigura fóra de proposito
esclarecer que o Chão
d'Alcamim («
Alcamim,
hortaliça sêcca», segundo Fr.
João de Sousa,
in Vestigios da Lingua Arabica),
antigo cemiterio mourisco, e posteriormente
provavel cemiterio da freguezia de S. Mamede, formava
a divisoria territorial das duas freguezias, esta, e a de S.
Christovão,
uma das suas convisinhas. Ficava sobranceiro ao modesto mas
antiquissimo edificio parochial daquella
invocação; isto é, occupava
o terreno por onde agora discorre a calçada do conde de
Penafiel, e
ligava-se á Costa do Castello, tal qual esta
calçada se liga á juncção
da extrema da rua do Milagre de Santo Antonio com o principio da
sobredita Costa. A igreja parochial de S. Mamede assentava no
sitio da meia laranja, denominada Largo do Correio-Mor.
Ainda em principios da segunda metade do seculo passado, o terreno
montuoso onde fôra o Chão d'Alcamim era
vulgarmente conhecido
pela denominação de
Entulhos da
rua de S. Mamede. No alto da rampa que se rasga sobre a
Costa, e no
rez-do-chão do predio
que para ella faz esquina, á esquerda de quem sobe, estava
estabelecida,
na face de leste, sob o n.º 5, a tipographia de Luis Correia
da Cunha, onde se imprimia, em 1860, a edição em
16.º dos
Lusiadas,
de Luis de Camões, adoptada para texto poetico nos
Institutos
de ensino livre, daquella época. Esta
edição foi repetida pelo mesmo
tipographo, em 1864, em formato igual, e igual numero de paginas.
[27] Como
estamos no terreno resvaladio das
supposições e das probabilidades,
seja-nos permittido aventurar a supposição de que
este
dr. João de Barros possa ser o proprio homonymo do auctor
das
Decadas, com quem alguma vez foi
confundido, e que em 1540 deu
a lume na cidade do Porto o
Espelho de
Casados, impresso por
Vasco Dias Tanco de Frexenal. Dr. João de Barros ou nasceu
no
Porto ou em Braga, e vivia ainda em 1553, mas, se como informa
Barbosa Machado, elle foi do Desembargo do rei D. João III,
e seu
escrivão da camara, não sería
impossivel que, fixando residencia,
por tal facto, era Lisbôa, adquirisse para sua
habitação a casa onde
Manoel João estabeleceu a sua officina.
[28]
É patente que todo aquelle plaino, aquella
achada de que ahi
perto se perpetúa a secular recordação
(largo e rua assim denominados)
passou, e por mais de uma vez, por grande
transformação,
depois do terremoto de 1755. Os antigos paços de S.
Christovão,
que occupavam na parte posterior muito maior area, do que a do
actual palacio que foi dos Vagos, ficaram circumscriptos ao que ahi
vemos. O lado esquerdo das ruas do Regedor e de S.
Christovão
foi refeito. O proprio adro da parochia, onde havia
dois cruzeiros,
foi modificado. A medieval «travessa do monturo do
benete» converteu-se,
se não no todo, em parte ao menos, nas Escadinhas de
S. Christovão; o «arco de João
Corrêa», que se encostava á esquina
dos velhos paços, donde a gentil princeza, irmã
de Affonso V, sahiu desposada para Allemanha, refeito com o palacio
novo,
desappareceu
posteriormente, deixando por testemunha da sua existencia ali
o grande chanfro que modificou o cunhal do palacio, tal qual o
lá
vemos.
[29] Esta
noticia, transcripta como no texto advertimos, do
livro
opportunissimo de Venancio Deslandes, e se lê a pag. 42, nota
1,
conjugada com os largos esclarecimentos da pag. 63 e seg. nota 1,
da mesma obra, ácerca do rarissimo
Tratado de Bento Fernandes,
vem esclarecer o intrincado caso a que Innocencio se refere, ao
registar este auctor, no vol. II do seu
Diccionario.
Após ter inscripto a obra, sob o n.º 1858, seguindo
a
indicação de
Antonio Ribeiro dos Santos, que em suas
Memorias, a pag. 108,
déra
noticia della, como impressa no Porto, em 1541, por Vasco Dias Tanco
de Frexenal, parecendo, todavia, não a ter visto, nota, com
effeito,
o experiente bibliographo que Barbosa já se referira a esta
mesma
obra, como impressa em 1555. Innocencio fecha a sua noticia,
confessando
que tambem nunca vira o
Tratado, nem
sabia onde existisse.
Agora se concilia, pois, tudo. Bento Fernandes terá, com
effeito,
dada uma 1.ª edição em 1541,
tirada
dos prélos de Vasco Dias Tanco,
repetindo 2.ª no proprio anno em que parece ter fallecido, a
julgar
pelo que escreveu o auctor da
Descripção Topographica do
Porto; isto é, em 1555, utilisando agora
os serviços de Francisco
Corrêa.
Accrescente se que Noronha, no final das
Tabellas da
Imprensa
Portugueza no Seculo XVI, pag. 29, assigna a Vasco
Dias Tanco
os annos de 1540 1541, como os da sua permanencia no Porto, onde
teria impresso 3 obras. Do mesmo modo, na
Introdução do
Espelho
de Casados, do dr. João de Barros, fol. 7,
v.
o, regista a presença
de Francisco Corrêa naquella cidade em 1555.
Vê-se, pois, que os dois auctores estão
perfeitamente concordes,
no tocante a cada uma das phases da vida dos dois tipographos, supra
alludidas.
[30]
«T.
o da fr. da
Magdalena»,
f.
o 82
v.
o
[31]
Aliás
Lisarte, de que, definitivamente,
veíu a formar-se
Lisardo,
por ex. «
Silvya de
Lysardo» (1597), passando assim o que
parece
ter sido nome proprio a appelido, como o seu consimilhante
Jusarte,
que de ambos os modos foi, de frequencia, empregado.
A Jusarte Pacheco, morto no accomettimento de Calecut, filho do
grande Duarte Pacheco, chama Gaspar Corrêa
«Lisuarte Pacheco»,
segundo se lê na
Lenda de Affonso de
Albuquerque, pag. 19. Na
descendencia do genovês «Salvago»,
naturalisado pelo rei D. Manoel,
anda um Jusarte Salvago, a quem D. João III nomeou
Almoxarife
dos Armazens de Lisboa.
De Jusarte, appellido, se deriva Zuzarte, e assim o nota o sr. Anselmo
Braamcamp Freire, descrevendo o Brasão dos
Jusartes na
Armaria Portuguesa, pag. 284, da
folha appensa ao
Arch. Hist.
Port., vol. VIII, fasc. 87 e 88.
Ao passo, porém, que Jusarte alterna com Lisuarte ou
Lisarte, como
nomes proprios, vêmos Jusarte empregado n'este mesmo seculo,
e
muito proximo aos tempos dos Pachecos, na India, como appelido.
Assim, o proprio Gaspar Corrêa, além de outros de
menos nomeada, se occupa extensamente na
Lenda do 5.º Governador D.
Duarte de Meneses, de Martim Affonso de Mello Jusarte,
capitão de
Ormuz, cujos trabalhos em Malaca e outras partes narra com
individuação.
Este appelido, revivescendo no seculo XVII na pessoa do escriptor
Fr. Pedro da Cruz Jusarte, vem até nossos dias ligado a uma
das familias
mais consideradas do Alemtejo; a dos Condes de Avillez, cujos
antepassados e descendentes o empregam logo a seguir ao sobrenome―p.
ex.: «Jorge d'Avillez Jusarte de Sousa Tavares de
Campos».
Quanto ao ramo dos Zuzartes, vemos, ainda no
Tombo
Pombalino
D. Marianna da Silva Zuzarte, proprietaria em 1755 de casas no
beco do Bugio. Quando, posteriormente, se formou a rua da
Saúdade,
derrubada a parte do beco onde taes casas eram, foi-lhes marcado
terreno e alinhamento na nova rua, para a
reconstrucção, que
veiu a receber o numero de policia 8. Em nossos dias, era proprietario
d'estas casas um cavalheiro Araujo Zuzarte, antigo administrador
de um dos Bairros d'esta Cidade.
[32] Isto
é: 455 réis.
[33] Este
«Ilusuarte Peris», cujo nome e
appelido parecem ter soffrido
a truculenta sorte de João Blavio de Agripina Colonia, sob a
pena
barbara de Bastião de Lucena, era proprietario na rua que
tinha o
seu nome, sendo elle que, provavelmente, a
fundou, á
semelhança de
outros muitos exemplos mais, quer por aforamentos feitos á
corôa
dos terrenos onde se edificavam as primeiras casas, quer por qualquer
outro modo que attribuísse aos
fundadores um tal qual direito
de propriedade no denominar das vias públicas.
As casas de Ilusuarte Peris constam dos lançamentos 27 a 29
do
grupo comprehendido no titulo expresso no texto, e tinham por
inquilinos:
«Margaida Ribeyra, Francisca Anriquez, molher cortezan e
Eytor
Fernandes, Indio».
O mesmo Ilusuarte Peris tinha tambem outras casas na «rua das
Cristaleyras» e ahi eram seus inquilinos uma viuva e um
tintureiro.
Esta rua apparece já nos roes de Christovão
(1554?). A de «Ilusuarte
Peris» deve ter-se formado nos annos que separam a obra do
guarda-roupa
do Arcebispo lisbonense do recenseamento que estamos examinando.
[34] Em
qualquer das duas edições da
Pratica Darismetyca (1519 e
1530), impressas por Galharde, se declara este
«
frãcez»,
passando a
primeira por ter sido a sua estreia, como chefe de officina. Por igual
lhe declara a nacionalidade a subscripção do
Livro 2.º das
Ordenações,
bem como a do 3.º, e ainda a dos
Statutos da Ordem
de
Santiago,
não sendo difficil que se registem mais exemplos.
Tambem no
Memorial de Pecados, de
Garcia de Resende, impresso
em 1521, apparece o appelido d'este impressor composto, em parte,
á
francesa;―«
Gaillarde»,
e nas
Ordenações,
«
Galhard».
Além
d'estas, ha outras variantes, taes como, a da
Cronica
llamada el
triunfo, &, onde parece que se lê
«
Gallarde», e a
do
Cerimonial da
missa, que imprime
«
Gallardo». Na
Cartilha que cont[~e] breuem[~e]te
é que o appelido do celebre impressor apparece como veiu a
ficar:―«
Galhardo».
Na diplomatica de D. João III chama se-lhe:
«
Germão
Galharte».
[35]
Affirma-o,
como facto por elle proprio verificado, o
conspicuo
bibliographo Tito de Noronha,
in
Ordenações
do Reino―Seculo
XVI,
apud
Archeologia Artistica,
1.º anno, vol. 1, fasc. II, cap.
XI, pag. 76 (1873).
Repetiu a affirmativa
in
A Primeira
Edição dos
Lusiadas,
Porto, 1880, a pag. 80, nota (68),
in
fine.
[36] Jornal
do Commercio, de
2 de maio do 1871.
[37] Mais
outra vez vem a lume o titulo d'este livro quasi
quatro vezes
secular. É como segue:
«Missale secumdum consuetudinem Elborensis ecclesiae
noviter
impressum».
Na subscripção final lê-se:
«Impressum Ulixipone expensis magistri Antonii Lermet
Elborensis
civitatis librarius per Germanus Galhardum. Anno salutis nostre
millessimo
quingentessimo nono. Pridie Kalendas
martii. Deo Gratias».
Assim, pelo plausivel alvitre de Tito de Noronha, entre
«
quingentessimo»
e «
nono» devia
ter-se composto
vigesimo, falta que
só quem
não sabe quanto é facil de escapar, ainda ao mais
attento revisor, o
salto da composição de um vocabulo entalado entre
outros, e n'uma
data, principalmente, não comprehenderá. No texto
se exemplifica
um curioso similhante caso de nossos dias.
[38] Em sua
Bibliographia
Historica
Portugueza consigna
Figanière
ter visto em um exemplar da terceira Decada da
Asia, de João
de Barros, impresso por João de Barreira em 1563, a
omissão typographica
M. D. LIII.
[39] Isto
é, em
1513-«
Ordenações
do
Reino―Seculo XVI», pag. 31.
Adiante veremos que a conjectura não se confirma.
[40] Gaspar
Nicolas, natural de Guimarães, foi
escrivão da tabola de
Coimbra e das cizas da mesma cidade, como consta de varios diplomas
de nomeação e quitação, das
chancellarias de D. Manoel e D.
João III, no Arch. Nac. da Torre do Tombo.
Era, pois, como hoje diriamos, um funccionario de fazenda, e, portanto,
no caso de se occupar da materia que foi assumpto ao seu,
desde seculos, rarissimo livro.
Tito de Noronha determinou, em 1874, o começo da actividade
officinal de Germão Galharde, pelo conhecimento
que teve do exemplar
e edição citados no texto; exemplar, pertencente,
ou que veiu a pertencer
ao sr. visconde de Azevedo. Innocencio, porém já
em 1859
notava que no catalogo da livraria de Joaquim Pereira da Costa andava
descripto um exemplar da
Pratica
Darismetyca, com
a data de
1519. Ao diligente bibliographo, parecia, comtudo,
erro semelhante
data, e aqui vêmos como se enganou!
Germão Galharde, como está registado no
começo da nota
1, de
pag. 44, fez 2.ª edic. do Tratado sobredito em 1530.
[41] Eis
as expressões do fecundissimo polygrapho:
«Duvido se tem V. m. já noticia de outro livrinho
que estou imprimindo,
e o fiz mais depressa do que a
Calsada dos
Galhardos.
Chamo-lhe Pantheon, terá quatro até sinco folhas,
com 2500 versos.»
Bibliot. Nacion. de Lisbôa―MM s.―Fundo antigo, 155.
«
Cartas
de D. Francisco Manuel de Mello a Antonio Luiz de
Azevedo,
com introd. e notas, por Edgar Prestage―Imp. Nac. 1911».
É a n.º 24, e o passo lê-se a pag. 70.
[42] Este
pateo é o primeiro, á esquerda,
na rua de Santo Ambrosio,
tendo o portão que lhe dá entrada o n.º
17.
Depois que os Galhardos
o largaram, habitaram ahi
as
Patinhas, isto é, as filhas de um Don
José Patiño que exerceu aqui, em
Lisbôa, qualquer cargo official do
seu país.―Um appelido estrangeiro convertido em assumpto de
galhofa.
Morreram
as Patinhas, e succedeu na
denominação do pateo um
tal José Alexandre, que ahi persistiu até ha
pouco.
Hoje, o Pateo é
Villa,
porque os estrangeirismos, ainda que prestem
a riso, são-nos mais bem acceitos, do que o que sempre teve
sabor nacional. Já o dizia, ainda que por fórma
muito mais conceituosa,
no seculo XVII, um dos nossos mais distinctos escriptores.
Emfim, a
Villa appellida-se
«
Domingues», e
voltará a andar por
ali outra vez o dominio castelhano...
[43]
Frontispicio:
«
Reportorio dos tempos em linguajem
português.
Foy impresso em Lixboa em casa de Germão Galharde, Anno
1560.»
Fecho:
«
Acabou-se o Reportorio dos Tempos em
linguagem português.
Agora nouamente emendado e impresso cõ muytas cousas
acrescentadas
de nouo, etc.,
O qual foy impresso
em a muy nobre e s[~e]pre
leal cidade de Lixboa, em casa da viuua, molher que foi de
Germão Galharde [~q] sancta gloria aja. Anno de
1560.»
[44]
Reservados
da Bibliotheca Nacional―A―443.
[45] Tendo
nosso presado amigo, sr. dr. Antonio
Baião, publicado
no
Archivo Historico Portuguez,
vol. VII, pag. 150 e seg., (1909)
o extracto desta denuncia, como fazendo parte de suas noticias
ácerca
da
Inquisição em Portugal e
Brazil, appensaremos aos presentes
Estudos o seu teor, na integra, para
que nossos benignos leitores
possam ajuisar plenamente do valor deste documento, não
só quanto
ao caso que nos occupa, senão tambem quanto ao que elle
revela, sob
o ponto de vista do triste estado dos espiritos em Portugal, na
época
tão bem retratada no predito documento.
Ao nosso presado amigo muito agradecemos o grande obsequio
que lhe ficámos devendo, com a copia deste depoimento, que
tão
amavel quão solicitamente se serviu communicar-nos.
[46] Entre
as gravuras frontispiciaes conhecidas do seculo XVI
algumas
ha que foram executadas para obras que não chegaram
até
nós. Lembra-nos, por exemplo, a que se vê na Sala
dos Reservados
da Bibliotheca Nacional, n.º A―149, que deve ter sido
expressamente
aberta para obra differente daquella em que ali se nos patenteia,
e que todavia, se não conhece.
Porventura se terá presente o que, referindo-nos em uma das
Notas do Cap. IV, á
Primeira Parte da
Chronica dos Menores, de
Fr. Marcos de Lisboa, se nos offereceu ponderar, a respeito de obras
que se sabe terem sido impressas, mas que de todo desappareceram.
[47] Nosso
venerado Patrono, Diogo Barbosa Machado,
já déra noticia
desta obra, com a competente indicação,
ipsis verbis, do respectivo
titulo.
A ella se referiu, repetindo-o, ainda que menos pontualmente, o
incançavel Innocencio, notando, com assás de
razão, as imperfeições
infelismente commettidas pelo douto Antonio Ribeiro dos Santos, no
tocante a este particular motivo.
Ultimamente, o Sr. Anselmo Braamcamp Freire deu a
descripção
da obra, e seu titulo, imprimindo este com toda a
perfeição,
in
Archivo
Historico Portuguez, vol. VIII, n.
os
8 a 11 (92 a
95―1911),
fielmente transcriptos uma e outro dos que lhe deu a Sr.ª D.
Carolina
Michaëlis de Vasconcellos, por copia do exemplar que a S.
Ex.ª
pertence. É este mesmo titulo que está presente
na occasião, e se
transcreve de preferencia aos dois citados
supra.
[48] Manda,
todavia, a
Ordenação,
no Liv. II, Tit. 61, «que qualquer
pessoa que de nós tiver Privilegio, de qualquer sorte que
seja,
ou que o tenha por respeito da pessoa com quem viver, em qualquer
maneira que pelo Privilegio da tal pessoa guardado fôr, tenha
lança
de
vinte palmos, ou dahi para cima,
em sua casa».―Isto é, tenha
lança de 4,
m40, ou superior a esta
medida.
Vê-se, portanto, do confronto dos dois textos que a
medida-padrão
destas armas diminuira, pelo discurso do tempo, muito perto
de 0,50.
Na Europa do XIV.º seculo, a medida mais commum das
lanças
com que se armava a gente collecticia a soldo de qualquer procer,
era, segundo Cibrario,
in
Economia Politica da Meia Edade,
de
dezoito pés, o que
corresponde a 5,
m94.
[49] Carta
de 14 de fevereiro de 1530,
in Deslandes,
Doc.
para a
Hist. da Typ. Portug.
[50] Este
vocabulo, e o seguinte em abreviatura,
«morador», denunciam
uns restos de barbarismos de concordancia, que ainda nesta
epoca já adiantada do seculo, e até no seguinte,
transparecem aqui,
ali, no commum falar e escrever.
Reinava uma como especie de preguiça em acommodar
á fórma
feminina os vocabulos em
or, e um
que outro mais.
A materia foi superiormente versada pelo tão infeliz,
quão abalisado
philologo Francisco Dias Gomes, que em sua
«
Analyse sobre
a elocução e estylo de Sá de
Miranda», deu, entre varios exemplos,
um, com o primeiro dos dois apontados vocabulos, tirado de Ruy de
Pina:―«E a entregou aa Ifante Dona Briatriz como
titor que era do
duque Dom Diogo seu filho.»
Correlativamente, os determinativos não acompanhavam a
fórma
feminina que designavam, como n'aquelle caso que nos occorre do
informador de Christovão Rodrigues de Oliveira:
«
Os dignidades
que ha na See.»
A Memoria de Francisco Dias lê-se entre as de
Litteratura
da Academia, tom. IV, pag. 26 e segg.
[51] A
freguezia de Santa Engracia só teve Breve de
desannexação
da de Santo Estevão em 1568. Só depois de 1606
é que o edificio parochial
foi patente ao culto. O parocho de Santo Estevão pastoreou
durante
trinta e um annos ambas as
freguezias cummulativamente;
isto é, desde 1576, anno em que começou, emfim, a
vigorar a desannexação,
até 1607, em que havia já na nova parochia
cartorio proprio,
e independente da parochia
mater.
Veja-se o que escrevemos
no vol. VIII, pag. 5, do
Archivo
Historico
Portuguez―1910―Art.
As Tenças Testamentarias da Infanta D.
Maria.
[52]
Já
temos advertido que o livro do guarda-roupa
do Arcebispo
de Lisboa não pode ser da data que anda em costume
attribuir-se-lhe;―1551.
O proprio livro contém em alguma de suas paginas, ao
referir-se
á Misericordia, e ás esmolas que esta
Instituição recebia, a
confirmação do que affirmamos.
Como, porém, o auctor conta ter sido no anno de 1551 que o
Arcebispo
lhe commetteu o encargo de fazer o livro, nada se oppõe a
que desde este anno elle começasse a colligir os materiaes
para elle,
dirigindo-se aos parochos, para alcançar os
«roles» das vias publicas,
feitos―é evidente―á face das
desobrigas. E como entre
encommenda-los
e o conseguir have-los á mão sempre mediaria
algum tempo,
sendo 25 os parochos collaboradores n'esta obra de louvores
ás
grandezas e magnificencias lisbonenses, pareceu-nos que pelos termos
que empregámos alcançariamos exprimir com
exacção o nosso
pensamento.
[53] E
portanto
atafaneiro.
É vóz
arabica;―«
atahana».
[54] O
traçado descrito e os pormenores
são os que resultam da leitura
do passo respectivo no Tom. VIII dos
Elementos para a
Historia
do Municipio de Lisboa, de nosso tão
distinto colega, sr. Freire
de Oliveira, aliada á do muito elucidativo texto tecnico da
valedora
monografia
A Cêrca Moura de
Lisboa, do nosso prestante amigo sr.
Vieira da Silva.
Nossa, é só a conjectura de que os edificadores
da cêrca de D.
Fernando apoiariam o postigo de Santo André á
torre que a
barbacã
ou cinta muralhada que circundava o monte do Castello ali poderia
ter, aproveitando os lanços d'esta para ligarem á
velha a nova cêrca,
partindo, para a continuação da obra, do baluarte
de S. Lourenço.
Resta uma pergunta:―Tinha
toda a
muralha que abraçava o monte
do Castello, desde a Porta de D. Fradique até á
porta da Alcaçova
ou de S. Jorge ou vice-versa, antiguidade egual á do
baluarte de S.
Lourenço? Por outra, é tudo obra mourisca, ou
anterior, se tal baluarte
o é tambem?
[55] Villa
Quente, que um desagregamento do solo pendurado do
monte do Castello subvertera em 1531, e passa, a nosso vêr,
menos
justificadamente, por um
tremor de
terra mais, a ajuntar á longa
lista dos que tem affligido Lisboa, no decorrer dos seculos, era um
punhado de humildes casas, semeadas entre o começo da actual
calçada
de Santo André, e o «caminho que ía ao
postigo do Monis»,
diante de cuja entrada havia uma «cruz de pao». A
rampa que o pequeno
povoado occupava para o N. da cinta muralhada que circumdava
o monte do Castello, e o abrangia como um annel, em toda a
sua circumferencia, estendia-se pelo limitado espaço que
servia de
recosto á cêrca de Santo Antão
(Colleginho), vindo confundir-se com
os meandros de betesgas e encruzilhadas que o separavam da Mouraria,
constituindo o que alguma vez se chamou «o bairro da rua
suja».
[56] Historia
de Portugal,
vol. I, 3.ª ed. MDCCCLXIII; nota XXIII,
a pag. 531.
[57]
Aforamento
de um chão junto da Porta de Santo
André, da
banda de fóra, no principio da rua que vai da dita Porta
para o postigo
de Sam Lourenço, feito pela cidade ao dr. Affonso Figueira,
onde este magistrado edificara umas casas que partiam da banda
do Poente
com muro e torre da cidade,
&.
Esta
torre é a que
suppomos existir já na barbacã do Castello, no
angulo formado pelo lanço que devia descer da Porta de D.
Fradique
a entestar com a parte que se continuava na rua que ia ao baluarte
de S. Lourenço.
Deveria jazer pela parte posterior do actual
Passo, e terá sido
aproveitada para guarda do Postigo de Santo André. Dominava
assim
a aspera calçada que se lhe desenrolava em frente, e vinha
ligar-se
á muito antiga «Rua dos Cavalleiros.»
Lista de erros corrigidos
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igual (da
pág. 81)
foram substituídos por traços longos ('―').