Eça de Queiroz
A Illustre
Casa de Ramires
PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De Lello & Irmão, editores
1900
Pertence no Brazil o direito de propriedade d'esta obra ao
cidadão Francisco Alves, livreiro editor no Rio de Janeiro,
que, para a garantia que lhe offerece a lei n.º 496 de 1
d'Agosto de
1898, fez o competente deposito na Bibliotheca nacional, segundo a
determinação do art. 13.º da mesma Lei.
Porto―Imprensa
Moderna
A ILLUSTRE
CASA DE RAMIRES
Obras do mesmo auctor:
Revista de Portugal. 4 grossos
volumes |
12$000 |
As Minas de Salomão, 1
volume |
600 |
Os Maias. 2 grossos
volumes |
2$000 |
O Crime do Padre Amaro. Terceira
edição
inteiramente refundida, recomposta, e differente na fórma e
na
acção da edição primitiva,
1 grosso
volume |
600 |
O Primo Bazilio. Terceira
edição, 1 grosso
volume. |
1$000 |
A Reliquia, 1 grosso
volume |
1$000 |
O Mandarim. Quarta
edição, 1
volume |
500 |
Correspondencia de Fradique Mendes,
1
volume |
600 |
No prelo:
A ILLUSTRE
CASA DE RAMIRES
I
Desde as quatro horas da tarde, no calor e silencio do domingo de
Junho, o Fidalgo da Torre, em chinellos, com uma quinzena de linho
envergada sobre a camisa de chita côr de rosa, trabalhava.
Gonçalo Mendes Ramires (que n'aquella sua velha
aldêa de Santa Ireneia, e na villa
visinha, a aceada e vistosa Villa-Clara, e mesmo na cidade, em
Oliveira, todos conheciam pelo «Fidalgo da Torre»)
trabalhava n'uma
Novella Historica,
A Torre de D. Ramires,
destinada ao primeiro
numero dos
Annaes de Litteratura e de Historia,
Revista nova, fundada por
José
Lucio Castanheiro, seu antigo camarada de Coimbra, nos tempos do
Cenaculo Patriotico, em casa das Severinas.
[2] A livraria, clara e
larga, escaiolada d'azul, com pesadas estantes de
pau preto onde repousavam, no pó e na gravidade das lombadas
de carneira, grossos folios de convento e de fôro, respirava
para o pomar por duas janellas, uma de peitoril e poiaes de pedra
almofadados de velludo, outra mais rasgada, de varanda, frescamente
perfumada pela madresilva que se enroscava nas grades. Deante d'essa
varanda, na claridade forte, pousava a mesa―mesa immensa de
pés
torneados, coberta com uma colcha desbotada de damasco vermelho, e
atravancada n'essa tarde pelos rijos volumes da
Historia
Genealogica, todo
o
Vocabulario de Bluteau, tomos soltos do
Panorama,
e ao canto, em
pilha, as obras de Walter Scott sustentando um copo cheio de cravos
amarellos. E d'ahi, da sua cadeira de couro, Gonçalo Mendes
Ramires, pensativo
deante das tiras de papel almaço, roçando pela
testa a rama da
penna de pato, avistava sempre a inspiradora da sua Novella,―a Torre,
a antiquissima Torre, quadrada e negra sobre os limoeiros do pomar que
em redor crescera, com uma pouca d'hera no cunhal rachado, as fundas
frestas gradeadas de ferro, as ameias e a miradoira bem cortadas no
azul
de Junho, robusta sobrevivencia do Paço acastellado, da
fallada Honra de Santa
Ireneia, solar dos Mendes Ramires desde os meiados do seculo X.
Gonçalo Mendes Ramires (como confessava esse
[3] severo
genealogista, o morgado de Cidadelhe) era certamente o mais genuino e
antigo fidalgo de Portugal. Raras familias, mesmo coevas, poderiam
traçar a sua ascendencia, por linha varonil e sempre pura,
até aos vagos
Senhores que entre Douro e Minho mantinham castello e terra murada
quando os
barões francos desceram, com pendão e caldeira,
na hoste do
Borguinhão. E os Ramires entroncavam limpidamente a sua
casa, por linha pura e sempre varonil, no filho do Conde Nuno Mendes,
aquelle agigantado Ordonho Mendes, senhor de Treixedo e de Santa
Ireneia, que casou em 967 com Dona Elduara, Condessa de Carrion, filha
de Bermudo o
Gottoso,
Rei de
Leão.
Mais antigo na Hespanha que o Condado Portucalense, rijamente, como
elle, crescera e se afamára o Solar de Santa
Ireneia―resistente como elle ás fortunas e aos tempos. E
depois, em cada lance forte
da Historia de Portugal, sempre um Mendes Ramires avultou
grandiosamente pelo heroismo, pela lealdade, pelos nobres espiritos. Um
dos mais
esforçados da linhagem, Lourenço, por alcunha o
Cortador,
collaço de Affonso Henriques (com quem na mesma noite, para
receber a pranchada de cavalleiro, vellára as armas na
Sé de Zamora),
apparece logo na batalha d'Ourique, onde tambem avista Jesus-Christo
sobre finas nuvens d'ouro, pregado n'uma cruz de dez covados.
[4] No cerco
de Tavira, Martim Ramires, freire de San-Thiago, arromba a golpes de
acha um postigo da
Couraça, rompe por entre as cimitarras que lhe decepam as
duas mãos,
e surde na quadrella da torre albarran, com os dous pulsos a esguichar
sangue, bradando alegremente ao Mestre:―«D. Payo Peres,
Tavira
é nossa! Real, Real por Portugal!» O velho Egas
Ramires, fechado na sua
Torre, com a levadiça erguida, as barbacans
erriçadas de
frecheiros, nega acolhida a El-Rei D. Fernando e Leonor Telles que
corriam o Norte em folgares e caçadas―para que a
presença da
adultera
não macule a pureza extreme do seu solar! Em Aljubarrota,
Diogo Ramires o
Trovador
desbarata um troço de bésteiros, mata o
Adiantado-mór de Galliza, e por elle, não por
outro, cahe derribado o pendão real de Castella, em que ao
fim da lide seu irmão d'armas, D. Antão d'Almada,
se
embrulhou para o levar, dançando e cantando, ao Mestre
d'Aviz. Sob os muros
d'Arzilla combatem magnificamente dois Ramires, o edoso Sueiro e seu
neto
Fernão, e deante do cadaver do velho, trespassado por quatro
virotes, estirado no pateo da Alcaçova ao lado do corpo do
Conde de Marialva―Affonso V
arma juntamente cavalleiros o Principe seu filho e Fernão
Ramires, murmurando entre lagrimas: «Deus vos queira
tão bons como
esses que ahi jazem!...» Mas eis que Portugal se faz aos
mares! E
[5] raras
são
então as armadas e os combates de Oriente em que se
não esforce um
Ramires―ficando na lenda tragico-maritima aquelle nobre
capitão do Golpho Persico,
Balthazar Ramires, que, no naufragio da
Santa Barbara,
reveste a sua pesada armadura, e no castello de prôa, hirto,
se afunda em silencio
com a náu que se afunda, encostado á sua grande
espada. Em
Alcacer-Kebir, onde dous Ramires sempre ao lado d'El-Rei encontram
morte soberba, o mais novo, Paulo Ramires, pagem do Guião,
nem lezo nem ferido,
mas não querendo mais vida pois que El-Rei não
vivia, colhe um
ginete solto, apanha uma acha d'armas, e gritando:―«Vai-te,
alma, que
já tardas, servir a de teu senhor!»―entra na
chusma mourisca e para
sempre desapparece. Sob os Philippes, os Ramires, amuados, bebem e
caçam nas suas terras. Reapparecendo com os
Braganças, um Ramires,
Vicente, Governador das Armas d'Entre-Douro e Minho por D.
João IV,
mette a Castella, destroça os Hespanhoes do Conde, de
Venavente, e
toma Fuente-Guiñal, a cujo furioso saque preside da varanda
d'um
Convento de Franciscanos, em mangas de camisa, comendo talhadas de
melancia.
Já, porém, como a nação,
degenera a nobre
raça... Alvaro Ramires, valido de D. Pedro II,
brigão façanhudo, atordôa
Lisboa com arruaças, furta a mulher d'um Védor da
Fazenda que mandára matar a
pauladas
[6] por
pretos, incendeia em Sevilha depois de perder cem dobrões
uma casa
de tavolagem, e termina por commandar uma urca de piratas na frota de
Murad o
Maltrapilho. No reinado do Sr. D.
João
V Nuno Ramires
brilha na Côrte, ferra as suas mulas de prata, e arruina a
casa celebrando sumptuosas festes de Egreja, em que canta no
côro vestido com o habito
de Irmão Terceiro de S. Francisco. Outro Ramires,
Christovam, Presidente da Mesa de Consciencia e Ordem, alcovita os
amores d'el-rei D. José
I com a filha do prior de Sacavem. Pedro Ramires, Provedor e
Feitor-mór das Alfandegas, ganha fama em todo o Reino pela
sua obesidade, a sua chalaça, as suas proezas de
glutão no
Paço da Bemposta com o arcebispo de Thessalonica. Ignacio
Ramires acompanha D. João VI ao
Brazil como Reposteiro-Mór, negoceia em negros, volta com um
bahú carregado de peças d'ouro que lhe rouba um
administrador, antigo frade capuchinho, e morre no seu solar da cornada
de um boi. O avô de
Gonçalo, Damião, doutor liberal dado
ás Musas, desembarca com D. Pedro no Mindello,
compõe as empoladas proclamações do
Partido, funda um
jornal, o
Anti-Frade, e depois das Guerras Civis
arrasta uma existencia rheumatica em Santa Ireneia, embrulhado no seu
capotão de briche, traduzindo
para vernaculo, com um lexicon e um pacote de simonte, as obras de
Valerius
[7] Flaccus. O pae de
Gonçalo, ora Regenerador, ora Historico,
vivia em
Lisboa no Hotel Universal, gastando as solas pelas escadarias do Banco
Hypothecario e pelo lagedo da Arcada, até que um Ministro do
Reino, cuja
concubina, corista de S. Carlos, elle fascinára, o nomeou,
(para o
afastar da Capital) Governador Civil de Oliveira. Gonçalo,
esse, era
bacharel formado com um R no terceiro anno.
E n'esse anno justamente se estreou nas Lettras Gonçalo
Mendes Ramires. Um seu companheiro de casa, José Lucio
Castanheiro, algarvio
muito magro, muito macilento, de enormes oculos azues, a quem
Simão Craveiro chamava o «Castanheiro
Patriotinheiro»,
fundára um Semanario, a
Patria―«com
o alevantado intento
(affirmava sonoramente o
Prospecto) de despertar, não só na mocidade
Academica, mas
em todo o paiz, do cabo Silleiro ao cabo de Santa Maria, o amor
tão arrefecido das
bellezas, das grandezas e das glorias de Portugal!» Devorado
por essa
idéa, «a sua Idéa», sentindo
n'ella uma carreira, quasi uma
missão, Castanheiro incessantemente, com ardor teimoso de
Apostolo, clamava pelos botequins da Sophia, pelos claustros da
Universidade, pelos quartos dos amigos entre a fumaça dos
cigarros,―«a necessidade,
caramba, de reatar a tradição! de desatulhar,
caramba, Portugal da
alluvião do estrangeirismo!»―Como o Semanario
appareceu
[8]
regularmente
durante tres Domingos, e publicou realmente estudos recheiados de
griphos e
citações sobre as
Capellas da Batalha,
a
Tomada
d'Ormuz, a
Embaixada de Tristão da
Cunha, começou logo a ser
considerado
uma aurora, ainda pallida mas segura, de Renascimento Nacional. E
alguns bons espiritos da Academia, sobretudo os companheiros de casa do
Castanheiro, os tres que se occupavam das cousas do saber e da
intelligencia (porque dos tres restantes um era homem de cacete e
forças, o outro
guitarrista, e o outro «premiado»), passaram,
aquecidos por aquella
chamma patriotica, a esquadrinhar na Bibliotheca, nos grossos tomos
nunca d'antes visitados de Fernam Lopes, de Ruy de Pina, d'Azurara,
proezas e
lendas―«só portuguezas, só nossas
(como supplicava o Castanheiro), que
refizessem á nação abatida uma
consciencia da sua
heroicidade!» Assim crescia o Cenaculo Patriotico da casa das
Severinas. E foi então que
Gonçalo Mendes Ramires, moço muito affavel,
esvelto e loiro, d'uma
brancura sã de porcelana, com uns finos e risonhos olhos que
facilmente se
enterneciam, sempre elegante e apurado na batina e no verniz dos
sapatos―apresentou ao Castanheiro, n'um domingo depois do
almoço, onze
tiras de papel intituladas
D. Guiomar. N'ellas se
contava a velhissima
historia da castellã, que, emquanto longe nas guerras do
Ultra-mar o castellão barbudo
[9]
e
cingido de ferro atira a acha-d'armas
ás portas de Jerusalem, recebe ella na sua camara, com os
braços
nús, por noite de Maio e de lua, o pagem de annellados
cabellos... Depois ruge o inverno, o castellão volta, mais
barbudo, com um bordão de
romeiro. Pelo villico do Castello, homem espreitador e de amargos
sorrisos, conhece a
traição, a macula no seu nome tão
puro, honrado em todas as
Hespanhas! E ai do pagem! ai da dama! Logo os sinos tangem a finados.
Já no
patim da Alcaçova o verdugo, de capuz escarlate, espera,
encostado ao
machado, entre dous cepos cobertos de pannos de dó... E no
final
choroso da
D. Guiomar, como em todas essas
historias do Romanceiro d'Amor,
tambem brotavam rente ás duas sepulturas, escavadas no
êrmo, duas roseiras brancas a que o vento enlaçava
os aromas e as rosas. De
sorte que (como notou José Lucio Castanheiro,
coçando
pensativamente o queixo) não resaltava n'esta
D.
Guiomar nada que fosse
«só
portuguez, só nosso, abrolhando do sólo e da
raça!» Mas
esses amores lamentosos passavam n'um solar de Riba-Côa: os
nomes dos cavalleiros, Remarigues,
Ordonho, Froylas, Gutierres, tinham um delicioso sabor godo: em cada
tira resoavam bravamente os genuinos: «
Bofé!...
Mentes
pela gorja!... Pagem, o meu murzello!...»: e
através de toda
esta vernaculidade circulava uma sufficiente turba de
cavallariços com saios
alvadios, beguinos
[10]
sumidos
na sombra das cugulas, ovençaes
sopezando
fartas bolsas de couro, uchões espostejando nedios lombos de
cêrdo... A Novella portanto marcava um salutar retrocesso ao
sentimento nacional.
―E depois (accrescentava o Castanheiro) este velhaco do
Gonçalinho surde com um estylo terso, masculo, de boa
côr archaica...
D'optima côr archaica! Lembra até o
Bobo,
o
Monge
de Cister!... A
Guiomar, realmente, é uma castellã vaga, da
Bretanha ou da
Aquitania. Mas no villico, mesmo no castellão, já
transparecem
portuguezes, bons portuguezes de fibra e d'alma, d'entre Douro e
Cavado... Sim senhor! Quando o Gonçalinho se enfronhar
dentro do nosso passado,
das nossas chronicas, temos emfim nas Lettras um homem que sente bem o
torrão, sente bem a raça!
D. Guiomar encheu tres paginas da
Patria.
N'esse Domingo, para celebrar a sua entrada na Litteratura,
Gonçalo Mendes
Ramires pagou aos camaradas do Cenaculo e a outros amigos uma
ceia―onde foi acclamado, logo depois do frango com ervilhas, quando os
moços do
Camolino, esbaforidos, renovavam as garrafas de Collares, como
«o nosso
Walter Scott!» Elle, de resto, annunciára
já
com simplicidade um Romance em dois volumes, fundado nos annaes da sua
Casa, n'um rude feito de sublime orgulho de Tructesindo Mendes Ramires,
o amigo e
[11]
Alferes-mór
de D. Sancho I. Por temperamento, por aquelle saber especial de trajes
e alfaias que revelára na
D. Guiomar,
até pela
antiguidade da sua linhagem, Gonçalinho parecia
gloriosamente votado a
restaurar em Portugal o Romance Historico. Possuia uma
missão―e
começou logo a passear pela Calçada, pensativo,
com o gorro sobre os olhos,
como quem anda reconstruindo um mundo. No acto d'esse anno levou o R.
Quando regressou das ferias para o Quarto-Anno já
não refervia na rua da Mathematica o Cenaculo ardente dos
Patriotas. O Castanheiro, formado, vegetava em Villa Real de Santo
Antonio: com elle desapparecera a
Patria:
e os
moços zelosos que na
Bibliotheca
esquadrinhavam as Chronicas de Fernam Lopes e de Azurara, desamparados
por aquelle Apostolo que os levantava, recahiram nos romances de
Georges Ohnet e retomaram á noite o taco nos bilhares da
Sophia.
Gonçalo voltava tambem mudado, de luto pelo pae que morrera
em Agosto, com a barba crescida, sempre affavel e suave,
porém mais grave, averso a ceias e a
noites errantes. Tomou um quarto no Hotel Mondego, onde o servia, de
gravata branca, um velho creado de Santa Ireneia, o Bento:―e os seus
companheiros preferidos foram tres ou quatro rapazes que se preparavam
para a Politica, folheavam attentamente o
Diario das Camaras,
conheciam
[12] alguns
enredos da Côrte, proclamavam a necessidade
d'uma «Orientação positiva» e
d'um
«largo fomento rural», consideravam como leviandade
reles e jacobina a irreverencia da Academia pelos Dogmas, e, mesmo
passeando ao luar no Choupal ou no Penedo da Saudade, discorriam com
ardor sobre os dous Chefes de Partido―o Braz Victorino, o homem novo
dos Regeneradores, e o velho Barão de S. Fulgencio,
chefe classico dos Historicos. Inclinado para os Regeneradores, por que
a
Regeneração lhe representava tradicionalmente
idéas de conservantismo,
de elegancia culta e de generosidade, Gonçalo frequentou
então
o Centro Regenerador da Couraça, onde aconselhava
á noite, tomando
chá preto, «o fortalecimento da auctoridade da
Corôa», e
«uma forte expansão colonial!» Depois,
logo na Primavera, desmanchou alegremente
esta gravidade politica: e ainda tresnoitou, na taberna do Camolino, em
bacalhoadas festivas, entre o estridor das guitarras. Mas
não alludio mais ao seu grande Romance em dous volumes: e ou
recuára ou
se esquecera da sua missão d'Arte Historica. Realmente
só na
Paschoa do Quinto-Anno retomou a penna―para lançar, na
Gazeta
do Porto,
contra
um seu patricio, o Dr. André Cavalleiro, que o Ministerio do
S.
Fulgencio nomeára Governador civil de Oliveira, duas
correspondencias
muito acerbas, d'um rancor intenso e pessoal, (a ponto de chasquear
«a feroz
[13]
bigodeira
negra de S. Ex.
a»). Assignara
Juvenal, como
outr'ora o pae, quando publicava communicados politicos d'Oliveira
n'essa mesma
Gazeta do Porto,
jornal amigo, onde um
Villar Mendes, seu remoto
parente, redigia a
Revista Estrangeira. Mas
lêra
aos amigos no
Centro―«os dous botes decisivos que atirariam o Sr.
Cavalleiro abaixo do seu
Cavallo!» E um d'esses moços serios, sobrinho do
Bispo de Oliveira,
não disfarçou o seu assombro:
―Oh Gonçalo, eu sempre pensei que você e o
Cavalleiro eram intimos! Se bem me lembro quando você chegou
a Coimbra, para os
Preparatorios, viveu na casa do Cavalleiro, na rua de S.
João... Pois
não ha uma amizade tradicional, quasi historica, entre
Ramires e Cavalleiros?... Eu pouco conheço Oliveira, nunca
andei para os vossos sitios; mas
até creio que Corinde, a quinta do Cavalleiro, pega com
Santa Ireneia!
E Gonçalo enrugou a face, a sua risonha e lisa face, para
declarar seccamente que Corinde não pegava com Santa
Ireneia: que
entre as duas terras corria muito justificadamente a ribeira do
Coice:
e que o Sr. André Cavalleiro, e sobre tudo
Cavallo, era um animal
detestavel que pastava na outra margem!―O sobrinho do Bispo saudou e
exclamou:
―Sim senhor, boa piada!
Um anno depois da Formatura, Gonçalo foi a
[14] Lisboa por causa
da hypotheca da sua quinta de Praga, junto a Lamego, que certo
fôro annual
de dez réis e meia gallinha, devido ao Abbade de Praga,
andava
empecendo terrivelmente nos Conselhos do Banco Hypothecario;―e tambem
para conhecer mais estreitamente o seu Chefe, o Braz Victorino, mostrar
lealdade e submissão partidaria, colher algum fino conselho
de conducta Politica. Ora uma noite, voltando de jantar em casa da
velha Marqueza de Louredo, a «tia Louredo», que
morava a Santa Clara,
esbarrou no Rocio com José Lucio Castanheiro;
então empregado no
Ministerio da Fazenda, na repartição dos Proprios
Nacionaes. Mais defecado,
mais macilento, com
uns oculos mais largos e mais tenebrosos, o Castanheiro ardia todo,
como em Coimbra, na chamma da sua Idéa―«a
resurreição do sentimento portuguez!» E
agora, alargando a
proporções condignas da Capital o plano
da
Patria, labutava
devoradoramente na
creação
d'uma Revista quinzenal de setenta paginas, com capa azul, os
Annaes
de Litteratura e
de Historia. Era uma noite de Maio, macia e
quente. E, passeando
ambos em torno das fontes seccas do Rocio, Castanheiro, que
sobraçava
um rolo de papel e um gordo folio encadernado em bezerro, depois de
recordar as cavaqueiras geniaes da rua da Misericordia, de maldizer a
falta de intellectualidade de Villa Real de Santo Antonio―voltou
[15] soffregamente
á sua Idéa, e supplicou a Gonçalo
Mendes Ramires
que lhe cedesse para os
Annaes
esse Romance que
elle annunciára
em Coimbra, sobre
o seu avoengo Tructesindo Ramires, Alferes-mór de Sancho I.
Gonçalo, rindo, confessou que ainda não
começára essa grande obra!
―Ah! murmurou o Castanheiro, estacando, com os negros oculos sobre
elle, duros e desconsolados. Então você
não persistio?... Não permaneceu fiel
á Idéa?...
Encolheu os hombros, resignadamente, já acostumado, atravez
da sua missão, a estes desfallecimentos do Patriotismo. Nem
consentio que Gonçalo, humilhado perante aquella
Fé que se
mantivera tão pura e servidôra―alludisse, como
desculpa, ao inventario laborioso
da Casa, depois da morte do papá...
―Bem, bem! Acabou!
Proscratinare luzitanum est.
Trabalha agora no verão... Para Portuguezes, menino, o
verão
é o tempo das bellas fortunas e dos rijos feitos. No
verão nasce Nun'Alvares no Bomjardim!
No verão se vence em Aljubarrota! No verão chega
o Gama á
India!... E no verão vae o nosso Gonçalo escrever
uma novellasinha sublime!... De resto
os
Annaes só
apparecem em Dezembro, caracteristicamente no Primeiro de
Dezembro. E você em tres mezes resuscita um mundo. Serio,
Gonçalo Mendes!...
[16]
É
um dever, um santo dever, sobretudo para os novos, collaborar nos
Annaes.
Portugal, menino, morre por falta de sentimento nacional!
Nós estamos immundamente morrendo do mal de não
ser Portuguezes!
Parou―ondeou o braço magro, como a correia d'um latego,
n'um gesto que açoutava o Rocio, a Cidade, toda a
Nação. Sabia o amigo Gonçalinho o
segredo d'esta borracheira sinistra? É que, dos Portuguezes,
os peores despresavam a Patria―e os melhores ignoravam a Patria. O
remedio?... Revelar Portugal, vulgarisar Portugal. Sim, amiguinho!
Organizar, com estrondo, o reclamo de Portugal, de modo que todos o
conheçam―ao menos como se conhece o Xarope Peitoral de
James, hein? E que todos o adoptem―ao menos como se adoptou o
sabão do Congo, hein? E
conhecido, adoptado, que todos o amem emfim, nos seus
heróes, nos seus
feitos, mesmo nos seus defeitos, em todos os seus padrões, e
até nas veras pedrinhas das suas calçadas! Para
esse fim, o maior a
emprehender n'este apagado seculo da nossa Historia, fundava elle os
Annaes.
Para berrar! Para atroar Portugal, aos bramidos sobre os telhados, com
a noticia inesperada da sua grandeza! E aos descendentes dos que
outr'ora fizeram o Reino incumbia, mais que aos outros, o cuidado
piedoso de o refazer... Como? Reatando a
tradição, caramba!
[17]―Assim,
vocês! Por essa historia de Portugal
fóra, vocês são uma enfiada de Ramires
de toda a belleza. Mesmo o desembargador, o que comeu n'uma ceia de
Natal dois leitões!... É apenas uma
barriga. Mas que barriga! Ha n'ella uma pujança heroica que
prova
raça, a raça mais forte
do que
promette a força humana, como
diz
Camões. Dois leitões, caramba! Até
enternece!... E os outros Ramires, o de Silves,
o de Aljubarrota, os de Arzilla, os da India! E os cinco valentes, de
quem você talvez nem saiba, que morreram no Salado! Pois bem,
resuscitar estes varões, e mostrar n'elles a alma
façanhuda,
o querer sublime que nada verga, é uma soberba
lição aos
novos... Tonifica, caramba! Pela consciencia que renova de termos sido
tão grandes sacode
este chocho consentimento nosso em permanecermos pequenos! É
o que eu
chamo reatar a tradição... E depois feito por
você
proprio, Ramires, que
chic! Caramba, que
chic!
É um fidalgo, o
maior fidalgo de
Portugal, que, para mostrar a heroicidade da Patria, abre simplesmente,
sem sahir do seu solar, os archivos da sua Casa, velha de mais de mil
annos.
É de rachar!... E você não precisa
fazer um grosso
romance... Nem um romance muito desenvolvido está na indole
militante da Revista.
Basta um conto, de vinte ou trinta paginas... Está claro, os
Annaes
por
ora não podem pagar. Tambem, você não
precisa!
[18] E que
diabo!
não se trata de pecunia, mas d'uma grande
renovação social... E depois,
menino, a litteratura leva a tudo em Portugal. Eu sei que o
Gonçalo em Coimbra,
ultimamente, frequentava o Centro Regenerador. Pois, amigo, de folhetim
em folhetim, se chega a S. Bento! A penna agora, como a espada
outr'ora, edifica reinos... Pense você n'isto! E adeus! que
ainda hoje tenho de
copiar, para lettra christã, este estudo do Henriques sobre
Ceylão... Você não conhece o
Henriques?... Não conhece. Ninguem conhece. Pois
quando na Europa, n'essas grandes Academias da Europa, ha uma duvida
sobre a Historia ou a Litteratura cingaleza, gritam para cá,
para o
Henriques!
Abalou, agarrado ao seu rolo e ao seu tomo―e Gonçalo ainda
o avistou, na porta e claridade da tabacaria Nunes, agitando o
braço
esguio d'Apostolo deante d'um sujeito obeso, de vasto collete branco,
que recuava, com espanto, assim perturbado no quieto gozo do seu grosso
charuto e da doce noite de Maio.
O Fidalgo da Torre recolheu para o Bragança, impressionado,
ruminando a
idéa do Patriota. Tudo n'ella o seduzia―e lhe convinha: a
sua collaboração n'uma Revista consideravel, de
setenta paginas,
em companhia de Escriptores doutos, lentes das Escolas, antigos
Ministros, até Conselheiros d'Estado:
[19] a antiguidade da sua
raça, mais antiga que o Reino, popularisada por uma historia
d'heroica belleza, em que com tanto fulgor resaltavam a bravura e a
soberba d'alma dos Ramires; e emfim a seriedade academica do seu
espirito, o seu nobre gosto pelas investigações
eruditas, apparecendo no momento em
que tentava a carreira do Parlamento e da Politica!... E o trabalho, a
composição moral dos vetustos Ramires, a
resurreição archeologica do
viver Affonsino, as cem tiras de almaço a atulhar de prosa
forte―não o
assustavam... Não! porque felizmente já possuia a
«sua
obra»―e cortada em bom panno, alinhavada com linha habil.
Seu tio Duarte, irmão de sua
mãe (uma senhora de Guimarães, da casa das
Balsas), nos seus annos de
ociosidade e imaginação, de 1845 a 1850, entre a
sua carta
de Bacharel e o seu Alvará de Delegado, fôra
poeta―e
publicára no
Bardo,
semanario de Guimarães, um Poemeto em verso solto, o
Castello
de Santa
Ireneia, que assignára com duas iniciaes D.B.
esse castello era o seu, o
Paço antiquissimo de que restava a negra torre entre os
limoeiros da horta. E o Poemeto cantava, com romantico garbo, um lance
de altivez feudal em que se sublimára Tructesindo Ramires,
Alferes-mór
de Sancho I, durante as contendas de Affonso II e das senhoras
Infantas. Esse volume do
Bardo,
encadernado em marroquim, com o
brazão dos Ramires,
o açor negro
[20]
em
campo escarlate, ficára no Archivo da Casa como um
trecho da Chronica heroica dos Ramires. E muitas vezes em pequeno
Goncalo recitára, ensinados pela mamã, os
primeiros
versos do Poema, de tão harmoniosa melancolia:
Na pallidez da tarde, entre a folhagem
Que o outomno amarellece...
Era com esse sombrio feito do seu vago avoengo que Gonçalo
Mendes Ramires decidira em Coimbra, quando os camaradas da
Patria
e das ceias o acclamavam «o nosso Walter Scott»,
compôr um Romance moderno, d'um realismo épico, em
dous robustos volumes, formando um estudo
ricamente colorido da Meia-Edade Portugueza... E agora lhe servia, e
com deliciosa facilidade, para essa Novella curta e sobria, de trinta
paginas, que
convinha aos
Annaes.
No seu quarto do Bragança abrio a varanda. E
debruçado, acabando o charuto, na dormente suavidade da
noite de Maio, ante a magestade silenciosa do rio e da lua, pensava
regaladamente que nem teria a canceira d'esmiuçar as
chronicas e os folios massudos... Com
effeito! toda a reconstruccão Historica a
realisára, e
solidamente, com um saber destro, o tio Duarte. O Paço
acastellado de Santa Ireneia,
com as fundas carcovas, a torre albarran,
[21]
a alcaçova, a masmorra, o pharol
e o balsão: o velho Tructesindo, enorme, e os seus flocos de
cabellos e barbas ancestraes derramados sobre a loriga de malha; os
servos mouriscos, de surrões de couro, cavando os regueiros
da horta; os oblatos
resmungando á lareira as
Vidas dos Santos;
os
pagens jogando no campo
do tavolado―tudo resurgia, com veridico realce, no Poemeto do tio
Duarte! Ainda recordava mesmo certos lances: o truão
açoutado; o festim e os uchões que arrombavam as
cubas de cerveja; a jornada de
Violante Ramires para o Mosteiro de Lorvão...
Junto à fonte mourisca,
entre
os ulmeiros,
A cavalgada pára...
O enrêdo todo com a sua paixão de grandeza
barbara, os recontros bravios
em que se saciam a punhal os rancores de raça, o heroico
fallar despedido de labios de ferro―lá estavam nos versos
do titi,
sonoros e bem balançados...
Monge, escuta! O solar de D. Ramires
Por si, e pedra a pedra se aluira,
Se jámais um bastardo lhe
pisasse,
Com sapato aviltado, as lages puras!
[22] Na realidade
só lhe restava transpôr as formas
fluidas do Romantismo de1846 para a sua prosa tersa e mascula (como
confessava o Castanheiro),
de optima côr archaica, lembrando o
Bobo.
E era um plagio?
Não! A quem, com mais seguro direito do que a elle, Ramires,
pertencia a memoria dos Ramires historicos? A
resurreição do
velho Portugal, tão bella no
Castello de Santa
Ireneia,
não era obra
individual do tio Duarte―mas dos Herculanos, dos Rebellos, das
Academias, da
erudição esparsa. E, de resto, quem conhecia hoje
esse Poemeto, e mesmo o
Bardo,
delgado semanario que perpassára,
durante cinco
mezes, ha cincoenta annos, n'uma villa de Provincia?...! Não
hesitou
mais, seduzido. E em quanto se despia, depois de beber aos goles um
copo d'agua com bicarbonato de soda, já martellava a
primeira
linha do conto, á maneira lapidaria da
Salammbô:―«Era
nos Paços de Santa Ireneia, por uma noite d'inverno, na sala
alta da Alcaçova...»
Ao outro dia, procurou José Lucio Castanheiro na
repartição dos Proprios Nacionaes, á
pressa,―por que, depois d'uma conferencia no
Banco Hypothecario, ainda promettera acompanhar as primas Chellas a uma
Exposição de Bordados na livraria Gomes. E
annunciou ao Patriota que, positivamente, lhe assegurava para o
primeiro numero dos
Annaes
a Novella,
[23] a que
já decidira o titulo―a
Torre de
D. Ramires:
―Que lhe parece?
Deslumbrado, José Castanheiro atirou os magrissimos
braços, resguardados pelas mangas d'alpaca, até
á abobada do esguio
corredor em que o recebera:
―Sublime!...
A Torre de D. Ramires!... O grande
feito de Tructesindo Mendes Ramires contado por Gonçalo
Mendes Ramires!... E tudo
na mesma
Torre! Na Torre o velho Tructesindo pratica o feito; e setecentos annos
depois, na mesma Torre, o nosso Gonçalo conta o feito!
Caramba, menino, carambissima! isso é que é
reatar a
tradição!
Duas semanas depois, de volta a Santa Ireneia, Gonçalo
mandou um creado
da quinta, com uma carroça, a Oliveira, a casa de seu
cunhado José Barrôlo, casado com Gracinha Ramires,
para lhe trazer da rica
livraria classica que o Barrôlo herdára do tio
Deão da Sé todos os volumes da
Historia
Genealogica―«e (accrescentava
n'uma carta) todos
os cartapacios que por lá encontrares com o titulo de
«Chronicas do Rei Fulano...» Depois, do
pó das suas estantes,
desenterrou as obras de Walter Scott, volumes desirmanados do
Panorama,
a
Historia de Herculano, o
Bobo,
o
Monge de
Cistér. E assim
[24] abastecido, com
uma farta rêsma de tiras d'almaço sobre a banca,
começou a repassar o Poemeto do tio Duarte, inclinado ainda
a transpôr para a
aspereza d'uma manhã de Dezembro, como mais congenere com a
rudeza feudal
dos seus avós, aquella lusida cavalgada de donas, monges e
homens
d'armas que o tio Duarte estendera, atravez d'uma suave melancolia
outomnal, pelas veigas do Mondêgo...
Na pallidez da tarde, entre a folhagem
Que o outomno amarellece...
Mas, como era então Junho e a lua crescia,
Gonçalo determinou por fim aproveitar as
sensações de calor, luar e
arvoredos, que lhe fornecia a aldeia―para levantar, logo á
entrada da sua Novella, o
negro e immenso Paço de Santa Ireneia, no silencio d'uma
noite d'Agosto, sob
o resplendor da lua cheia.
E já enchera desembaraçadamente, ajudado pelo
Bardo, duas tiras, quando uma
desavença com o seu caseiro, o Manoel Relho, que
amanhava a quinta por oitocentos mil reis de renda, veio perturbar, na
fresca e noviça inspiração do seu
trabalho, o
Fidalgo da Torre. Desde o Natal o Relho, que durante annos de
compostura e ordem se emborrachava sempre aos domingos com alegria e
com pachorra, começára
a tomar, tres e quatro vezes por semana, bebedeiras
[25]
desabridas, escandalosas, em que espancava a mulher, atroava a quinta
de berros, e saltava para a estrada, esguedelhado, de
varapáu, desafiando a quieta aldeia. Por
fim, uma noite em que Gonçalo, á banca, depois do
chá, laboriosamente escavava os fossos do Paço de
Santa Ireneia―de repente a Rosa
cozinheira rompeu a gritar «Aqui d'El-rei contra o
Relho!» E, atravez
dos seus brados e dos latidos dos cães, uma pedra, depois
outra, bateram na
varanda veneravel da livraria! Enfiado, Gonçalo Mendes
Ramires pensou no
revólver... Mas justamente n'essa tarde o creado, o Bento,
descêra aquella
sua velha e unica arma á cozinha para a desenferrujar e
arear!
Então, atarantado, correu ao quarto, que fechou á
chave, empurrando contra a
porta a commoda com tão desesperada anciedade que frascos de
crystal, um cofre de tartaruga, até um crucifixo, tombaram e
se partiram.
Depois gritos e latidos findaram no pateo―mas Gonçalo
não se
arredou n'essa noite d'aquelle refugio bem defendido, fumando cigarros,
ruminando um furor sentimental contra o Relho, a quem tanto
perdoára, sempre
tão affavelmente tratára, e que apedrejava as
vidraças da Torre! Cêdo, de manhã
convocou o Regedor; a Rosa, ainda tremula, mostrou no
braço as marcas roxas dos dedos do Relho; e o homem, cujo
arrendamento findava em Outubro, foi despedido da quinta com a mulher,
[26] a arca e o catre.
Immediatamente appareceu um lavrador dos Bravaes, o José
Casco, respeitado em toda a freguezia pela sua seriedade e
força
espantosa, propondo ao fidalgo arrendar a Torre. Gonçalo
Mendes Ramires
porém, já desde a morte do pae, decidira elevar a
renda a novecentos e cincoenta mil réis:―e o Casco desceu
as escadas, de cabeça
descahida. Voltou logo ao outro dia, repercorreu miudamente toda a
quinta, esfarellou a terra entre os dedos, esquadrinhou o curral e a
adega, contou as oliveiras e as cêpas: e n'um
esforço, em que lhe arfaram todas
as costellas, offereceu novecentos e dez mil réis!
Gonçalo
não cedia, certo da sua equidade. O José Casco
voltou ainda com a mulher; depois,
n'um domingo, com a mulher e um compadre,―e era um coçar
lento do queixo
rapado, umas voltas desconfiadas em torno da eira e da horta, umas
demoras sumidas dentro da tulha, que tornavam aquella manhã
de Junho
intoleravelmente longa ao Fidalgo, sentado n'um banco de pedra do
jardim, debaixo d'uma mimosa, com a
Gazeta do Porto.
Quando o Casco,
pallido, lhe veio offerecer novecentos e trinta mil
réis―Gonçalo
Mendes Ramires arremessou o jornal, declarou que ia elle, por sua
conta, amanhar a propriedade, mostrar o que era um torrão
rico, tratado pelo
saber moderno, com phosphatos, com machinas! O homem de Bravaes,
[27] então,
arrancou um fundo suspiro, acceitou os novecentos e cincoenta mil reis.
Á maneira antiga o Fidalgo apertou a mão ao
lavrador―que entrou na cozinha a enxugar um largo copo de vinho,
esponjando na testa, nas cordoveias rijas do pescoço, o suor
anciado que o alagava.
Mas, como entulhada por estes cuidados, a veia abundante de
Gonçalo estancou―não foi mais que um fio
arrastado e turvo. Quando
n'essa tarde se accomodou á banca, para contar a sala
d'armas do
Paço de Santa Ireneia por uma noite de lua―só
conseguiu converter
servilmente n'uma prosa aguada os versos lisos do tio Duarte, sem
relêvo que os modernisasse, désse magestade
senhorial ou bellesa saudosa
áquelles macissos muros onde o luar, deslisando atravez das
rexas, salpicava scentelhas pelas pontas das lanças altas, e
pela cimeira dos
morriões... E desde as quatro horas, no calor e silencio do
domingo de Junho, labutava, empurrando a penna como lento arado em
chão
pedregoso, riscando logo rancorosamente a linha que sentia deselegante
e molle, ora n'um reboliço, a sacudir e reenfiar sob a mesa
os chinellos
de marroquim, ora immovel e abandonado á esterilidade que o
travava, com os olhos esquecidos na Torre, na sua difficillima Torre,
negra entre os limoeiros e o azul, toda envolta no piar e
esvoaçar das
andorinhas.
[28] Por fim,
descorçoado, arrojou a penna que tão
desastrosamente emperrára. E fechando na gavêta,
com uma pancada, o volume precioso do
Bardo:
―Irra! Estou perfeitamente entupido! É este calor! E depois
aquelle animal do Casco, toda a manhã!...
Ainda releu, coçando sombriamente a nuca, a derradeira linha
rabiscada e suja:
―«...Na sala altaneira e larga, onde os largos e pallidos
raios da lua...» Larga, largos!... E os pallidos raios, os
eternos
pallidos raios!... Tambem este maldito castello,
tão
complicado!...
E este D. Tructesindo, que eu não apanho, tão
antigo!...
Emfim, um horror!
Atirou, n'um repellão, a cadeira de couro; cravou, com
furor, um charuto nos dentes;―e abalou da livraria, batendo
desesperadamente a porta, n'um tedio immenso da sua obra, d'aquelles
confusos e enredados
Paços de Santa Ireneia, e dos seus avós, enormes,
resoantes,
chapeados de ferro, e mais vagos que fumos.
II
Bocejando, apertando os cordões das largas pantalonas de
seda que lhe escorregavam da cinta, Gonçalo, que durante
todo o dia
preguiçára, estirado no divan de damasco azul,
com uma vaga dôr nos rins,
atravessou languidamente o quarto para espreitar, no corredor, o antigo
relogio de charão. Cinco horas e meia!... Para desannuviar,
pensou
n'uma caminhada pela fresca estrada dos Bravaes. Depois n'uma visita
(devida
já desde a Paschoa!) ao velho Sanches Lucena, eleito
novamente deputado, nas Eleições Geraes de Abril,
pelo circulo de Villa
Clara. Mas a jornada á
Feitosa,
á quinta do Sanches Lucena,
demandava uma hora a
cavallo, desagradavel com aquella teimosa dôr nos rins que o
filára na vespera á noite, depois do
chá, na Assembleia da Villa. E, indeciso,
arrastava os passos no corredor,
[30]
para
gritar ao Bento ou á Rosa que lhe
subissem uma limonada, quando, atravez das varandas abertas, resoou um
vozeirão de grosso metal, que gracejando mais se engrossava,
rolava pelo pateo, n'uma cadencia cava de malho malhando:
―Oh sô Gonçalo! Oh sô
Gonçalão! Oh sô Gonçalissimo
Mendes Ramires!...
Reconheceu logo o
Titó, o Antonio
Villalobos, seu vago
parente, e seu companheiro de Villa Clara, onde aquelle
homenzarrão
excellente, de velha raça Alemtejana, se estabelecera sem
motivo,
só por affeição bucolica á
villa. E havia onze annos que a atulhava com os
seus possantes membros, o lento rebombo do seu vozeirão, e a
sua
ociosidade espalhada pelos bancos, pelas esquinas, pelas ombreiras das
lojas, pelos balcões das tabernas, pelas sachristias a
caturrar com os
padres, até pelo cemiterio a philosophar com o coveiro. Era
um irmão do
velho morgado de Cidadelhe (o genealogista), que lhe
estabelecêra
uma mesada de oito moedas para o conservar longe de Cidadelhe―e do seu
sujo serralho de moças do campo, e da obra tenebrosa a que
agora
se atrellára, a
Veridica
Inquirição,
uma Inquirição sobre as bastardias, crimes e
titulos illegitimos das familias fidalgas de Portugal. E
Gonçalo, desde estudante, amára sempre aquelle
Hercules bonacheirão, que o seduzia pela prodigiosa
força, a incomparavel
[31]
potencia
em beber todo um pipo e em comer todo um anho, e sobretudo pela
independencia, uma suprema independencia, que, apoiada ao
bengalão terrifico e
com as suas oito moedas dentro da algibeira, nada temia e nada desejava
nem da Terra nem do Céo.―Logo debruçado na
varanda, gritou:
―Oh Titó, sóbe!... Sóbe emquanto eu
me visto. Tomas um calice de genebra... Vamos depois passear
até aos Bravaes...
Sentado no rebordo do tanque redondo e sem agua que ornava o pateo,
erguendo para o casarão a sua franca e larga face
requeimada, cheia de barba ruiva, o Titó movia lentamente
como um leque um velho
chapéo de palha:
―Não posso... Ouve lá! Tu queres hoje
á noite cear no Gago, commigo e com o João
Gouveia? Vae tambem o Videirinha e o
violão. Temos uma tainha assada, uma famosa. E enorme, que
eu comprei esta manhã a
uma mulher da Costa por cinco tostões. Assada pelo Gago!...
Entendido,
hein? O Gago abre pipa nova de vinho, do Abbade de Chandim. Eu
conheço o
vinho. É d'aqui, da ponta fina.
E Titó, com dous dedos, delicadamente, sacudio a ponta molle
da orelha. Mas Gonçalo, repuxando as pantalonas, hesitava:
―Homem, eu ando com o estomago arrazado... E desde hontem á
noite uma
dôr nos rins, ou no
[32]
figado,
ou no baço, não sei bem, n'uma d'essas
entranhas!... Até hoje, para o jantar, só caldo
de gallinha e gallinha cosida... Emfim! vá! Mas,
á cautela, recommenda
ao Gago que me prepare para mim um franguinho assado... Onde nos
encontramos? Na
Assembléa? O Titó despegára logo do
tanque, pousando na nuca
o chapéo de palha:
―Hoje não me gasto pela Assembléa. Tenho
senhora. Das dez para as dez e meia, no Chafariz... Vae tambem o
Videirinha com a viola. Viva!... Das dez para as dez e meia!
Entendido... E franguinho assado para S. Ex.
a,
que se queixa do rim!
E atravessou o pateo, com lentidão bovina, parando a colher
n'uma roseira, junto ao portão, uma rosa com que florio a
quinzena
de velludilho côr d'azeitona.
Immediatamente Gonçalo decidira não jantar, certo
dos beneficios d'aquelle jejum até ás dez horas,
depois de um
passeio pelos Bravaes e pelo valle da Riosa. E, antes de entrar no
quarto para se vestir, empurrou a porta envidraçada sobre a
escura escada da
cozinha, gritou pela Rosa cozinheira. Mas nem a boa velha, nem o Bento
por quem tambem berrou furiosamente, responderam, no pesado silencio em
que jaziam, como abandonados, esses sombrios fundos de grande lage e de
grande abobada
[33]
que
restavam do antigo Palacio, restaurado por Vicente Ramires depois da
sua campanha em Castella, incendiado no tempo de El-Rei D.
José I. Então Gonçalo desceu dous
degráos da gasta escadaria de
pedra e atirou outro dos longos brados com que atroava a Torre―desde
que as campainhas andavam desmanchadas. E descia ainda para invadir a
cozinha quando a Rosa acudio. Sahira para o pateo da horta com a filha
da Crispola!
não sentira o Snr. Doutor!...
―Pois estou a berrar ha uma hora! E nem você nem Bento!...
É por que não janto. Vou cear a Villa Clara com
os amigos.
A Rosa, do sonoro fundo do corredor, protestou, desolada. Pois o Sr.
Doutor ficava assim em jejum até horas da noite?―Filha d'um
antigo hortelão da Torre, crescida na Torre, já
cozinheira da Torre quando Gonçalo nascêra, sempre
o tratára por
«menino», e mesmo por «seu
riquinho» até que elle partio para Coimbra e
começou a ser, para ella e para o Bento, o «Sr.
Doutor».―E o Sr. Doutor, ao
menos, devia tomar o caldinho de gallinha, que apurára desde
o meio dia, cheirava
que nem feito no céo!
Gonçalo, que nunca discordava da Rosa ou do Bento,
consentio―e já subia, quando reclamou ainda a Rosa para se
informar da Crispola, uma desgraçada
[34] viuva
que, com um rancho
faminto de
crianças, adoecera pela Paschoa de febres perniciosas.
―A Crispola vae melhor, Sr. Doutor. Já se levanta. Diz a
pequena que já se levanta... Mas muito derreadinha...
Gonçalo desceu logo outro degráo,
debruçado na escada, para mergulhar mais confidencialmente
n'aquellas tristezas:
―Olhe, oh Rosa, então se a pequena ahi está,
coitada, que leve para casa á mãe a gallinha que
eu tinha para jantar. E
o caldo... Que leve a panella! Eu tomo uma chavena de chá
com biscoitos. E olhe!
Mande tambem dez tostões á Crispola... Mande dois
mil
réis. Escute! Mas não lhe mande a gallinha e o
dinheiro assim seccamente... Diga que estimo as melhoras, e que
lá passarei por casa para saber. E esse animal do
Bento que me suba agua quente!
No quarto, em mangas de camisa, deante do espelho, um immenso espelho
rolando entre columnas douradas, estudou a lingua que lhe parecia
saburrosa, depois o branco dos olhos, receiando a
amarellidão de bilis solta. E terminou por se contemplar na
sua feição
nova, agora que rapára a barba em Lisboa, conservando o
bigodinho castanho, frisado e leve, e uma môsca um pouco
longa, que lhe alongava mais a face
aquilina e fina, sempre d'uma brancura de nata. O seu desconsolo era o
cabello,
[35] bem
ondeado, mas tenue e fraco, e, apezar de todas as aguas e pomadas,
necessitando já risca mais elevada, quasi ao meio da testa
clara.
―É infernal! Aos trinta annos estou calvo...
E todavia não se despegava do espelho, n'uma
contemplação agradada, recordando mesmo a
recommendação da tia Louredo,
em Lisboa:―«Oh sobrinho! o menino, assim galante e esperto,
não se enterre
na provincia! Lisboa está sem rapazes. Precisamos
cá
um bom Ramires!»―Não! não se
enterraria na provincia, immovel sob a hera e a poeira melancolica das
cousas immoveis, como a sua Torre!... Mas vida elegante em Lisboa,
entre a sua parentella historica, como a aguentaria com o conto e
oitocentos mil reis de renda que lhe restava, pagas as dividas do
papá? E depois realmente vida em Lisboa só a
desejava com uma posição politica,―cadeira em S.
Bento, influencia intellectual no seu Partido, lentas e seguras
avançadas para o Poder. E essa,
tão docemente sonhada em Coimbra, nas faceis cavaqueiras do
Hotel Mondego,―muito remota a entrevia! Quasi inconquistavel, para
além de um muro alto e
aspero, sem porta e sem fenda!... Deputado―como? Agora, com o horrendo
S. Fulgencio e os Historicos no Ministerio durante tres gordos annos,
não
voltariam Eleições Geraes. E mesmo n'alguma
Eleição Supplementar que possibilidade lograria
[36]elle,
que, desde Coimbra, bem levianamente, arrastado por uma elegancia de
tradições, se manifestára
sempre Regenerador, no «Centro» da
Couraça, nas correspondencias para a
Gazeta
do
Porto,
nas verrinas ardentes contra o chefe do Districto, o Cavalleiro
detestavel?... Agora só lhe restava esperar. Esperar,
trabalhando; ganhando em
consistencia social; edificando com sagacidade, sobre a base do seu
immenso nome historico, uma pequenina nomeada politica; tecendo e
estendendo a malha preciosa das amizades partidarias desde Santa
Ireneia até ao
Terreiro do Paço... Sim! eis a theoria explendida:―mas
consistencia,
nomeada, affeições politicas, como se conquistam?
«Advogue, escreva nos jornaes!» fôra o
conselho distrahido e risonho do seu chefe, o Braz
Victorino. Advogar em Oliveira, mesmo em Lisboa? Não podia,
com aquelle
seu horror ingenito, quasi physiologico, a autos e papelada forense.
Fundar um jornal em Lisboa como o Ernesto Rangel, seu companheiro de
Coimbra no Hotel Mondego? Era façanha facil para o neto
adorado da
Snr.
a D. Joaquina Rangel que armazenava dez mil
pipas de vinho nos
barracões de Gaia. Batalhar n'um jornal de Lisboa? N'essas
semanas de Capital, sempre pelo Banco Hypothecario, sempre com as
«primas»,
nem formára relações duraveis e uteis
nos dous grandes Diarios Regeneradores, a
Manhã e a
Verdade...
De sorte que, realmente,
[37]
n'esse
muro
que o separava da fortuna só descobria um buraquinho, bem
apertado mas
serviçal―os
Annaes de Litteratura e
d'Historia,
com a sua
collaboração de Professores, de Politicos,
até d'um Ministro, até
de um Almirante, o Guerreiro Araujo, esse tocante massador. Appareceria
pois nos
Annaes com a sua
Torre,
revelando
imaginação e um
saber rico. Depois, trepando da Invenção para o
terreno mais
respeitavel da Erudição, daria um estudo (que
até lhe lembrára no comboio, ao
voltar de Lisboa!) sobre as «Origens Visigothicas do Direito
Publico em
Portugal...» Oh, nada conhecia, é certo, d'essas
Origens, d'esses Visigodos. Mas,
com a bella historia da
Administração
Publica em
Portugal
que lhe emprestára o Castanheiro, comporia corrediamente um
resumo elegante... Depois, saltando da Erudição
ás Sciencias
Sociaes e Pedagogicas―por que não amassaria uma boa
«Reforma do Ensino Juridico em
Portugal» em dous artigos massudos, de Homem d'Estado?...
Assim avançava, bem
chegado aos Regeneradores, construindo e cinzelando o seu pedestal
litterario,
até que os Regeneradores voltassem ao Ministerio, e no muro
se escancarasse a desejada porta triumphal.―E no meio do quarto, em
ceroulas, com as mãos nas ilhargas, Gonçalo
Mendes Ramires
concluio pela necessidade de apressar a sua Novella.
―Mas, quando acabarei eu essa
Torre? assim
emperrado, sem veia, com o figado combalido?...
[38] O Bento, velho de
face rapada e morena, com um lindo cabello branco todo encarapinhado,
muito limpo, muito fresco na sua jaqueta de ganga, entrára
vagarosamente, segurando a infusa d'agua quente.
―Oh Bento, ouve lá! Tu não encontraste na mala
que eu trouxe de Lisboa, ou no caixote, um frasco de vidro com um
pó branco?
É um remedio inglez que me deu o Sr. Dr. Mattos... Tem um
rotulo em inglez, com um nome inglez, não sei quê,
fruit salt...
Quer dizer
sal de fructas...
O Bento cravou no soalho os olhos, que depois cerrou, meditando. Sim,
no quarto de lavar, em cima do bahú vermelho,
ficára
um frasco com pó, embrulhado num pergaminho antigo como os
do Archivo.
―É esse! declarou Gonçalo. Eu precisava em
Lisboa uns documentos por causa d'aquelle malvado fôro de
Praga. E por engano, na
balburdia, levo do Archivo um pergaminho perfeitamente inutil! Vae
buscar o rolo... Mas tem cuidado com o frasco!
O Bento, cuidadoso, sempre lento, ainda enfiou os botões
d'agatha nos punhos da camisa do Sr. Doutor, e desdobrou sobre a cama,
para elle vestir, a quinzena, as calças bem vincadas, de
cheviote
leve. E Gonçalo, retomado pela idéa de artigos
para os
Annaes,
folheava,
rente á janella, a
Historia da
Administração
Publica em
Portugal, quando Bento
[39]
voltou com um rolo
de pergaminho, d'onde pendia, por fitas roidas, um sello de chumbo.
―Esse mesmo! exclamou o Fidalgo atirando o volume para o poial da
janella. É esse mesmo que eu enrolei no pergaminho para se
não quebrar. Desembrulha, deixa em cima da commoda... O Sr.
Dr. Mattos aconselhou que o tomasse com agua tepida, em jejum. Parece
que ferve. E limpa o sangue, desannuvia a cabeça... Pois eu
muito necessitado ando de
desannuviar a cabeça!... Toma tu tambem, Bento. E dize
á Rosa
que tome. Todos tomam agora, até o Papa!
Com cuidado, o Bento desenrolára o frasco, estendendo sobre
o marmore da commoda o pergaminho duro, onde a lettra do seculo XVI se
encarquilhava amarella e morta. E Gonçalo, abotoando o
colarinho:
―Ora ahi está o que eu levo preciosamente para deslindar o
fôro de Praga! Um pergaminho do tempo de D.
Sebastião... E
só percebo mesmo a data, mil quatrocentos... Não,
mil quinhentos e setenta e
sete. Nas vesperas da jornada d'Africa... Emfim! serviu para embrulhar
o frasco.
O Bento, que escolhera no gavetão um collete branco,
relanceou de lado o pergaminho veneravel:
―Naturalmente foi carta que El-rei D. Sebastião escreveu a
algum avosinho do Sr. Doutor...
―Naturalmente, murmurava o Fidalgo, deante
[40]do
espelho. E para lhe dar alguma cousa boa, alguma cousa gorda...
Antigamente ter rei era ter renda. Agora... Não apertes
tanto essa fivella, homem! Trago
ha dias o estomago inchado... Agora, com effeito, esta
instituição de Rei anda muito safada, Bento!
―Parece que anda, observou gravemente o Bento. Tambem, o
Seculo
affiança que os Reis estão a acabar, e por dias.
Ainda hontem affiançava. E o
Seculo
é
jornal bem
informado... No de hoje, não sei se o Sr. Doutor leu,
lá vem a grande festa dos annos do Sr.
Sanches Lucena, e o fogo de vistas, e o brodio que deram na
Feitosa...
Enterrado no divan de damasco, Gonçalo estendera os
pés ao Bento que lhe
laçava as botas brancas:
―Esse Sanches Lucena é um idiota! Ora que arranjo
fará a esse homem, aos sessenta annos, ser deputado, passar
mezes em Lisboa no Francfort, abandonar as propriedades, deixar aquella
linda quinta... E para
quê? Para rosnar de vez em quando
«apoiado!» Antes elle
me cedesse a cadeira, a mim, que sou mais esperto, não
possuo grandes terras, e
gosto do Hotel Bragança. E por Sanches Lucena... O Joaquim
amanhã que me tenha a egoa prompta, a esta hora, para eu ir
á
Feitosa
visitar esse
animal... E ponho então o fato novo de montar que trouxe de
Lisboa, com
as polainas altas... Ha mais de
[41]
dois annos que não vejo a D. Anna
Lucena. É uma linda mulher!
―Pois quando o Sr. Doutor estava em Lisboa elles passaram ahi, na
caleche. Até pararam, e o Sr. Sanches Lucena apontou para a
Torre, a mostrar á senhora... Mulher muito perfeita! E traz
uma
grande luneta, com um grande cabo, e um grande grilhão, tudo
d'oiro...
―Bravo!... Encharca bem esse lenço com agoa de Colonia, que
tenho a cabeça tão pesada!... Essa D. Anna era
uma
jornaleira, uma moça do campo, de Corinde?
Bento protestou, com o frasco suspenso, espantado para o Fidalgo:
―Não senhor! A Snr.
a D. Anna Lucena
é de gente
muito baixa! Filha d'um carniceiro d'Ovar... E o irmão andou
a monte por ter morto o
ferrador d'Ilhavo.
―Emfim, resumiu Gonçalo, filha de carniceiro,
irmão a monte, bella mulher, luneta d'oiro... Merece fato
novo!
Em Villa-Clara, ás dez horas, sentado n'um dos bancos de
pedra do Chafariz, sob as olaias, o Titó esperava com o
amigo
João Gouveia―que era o Administrador do Concelho da Villa.
Ambos se abanavam
[42]
com os chapeus, em silencio, gozando a frescura e o sussurro da agua
lenta na sombra. E a «meia» batia no relogio da
Camara,
quando Gonçalo, que se retardára na
Assembléa n'um voltarete
enremissado, appareceu annunciando uma fome terrivel, «a fome
historica dos Ramires»,
e apressando a marcha para o Gago―sem mesmo consentir que o
Titó descesse
á tabacaria do Brito, a buscar uma garrafa de aguardente de
canna da Madeira, velha e «da ponta fina...»
―Não ha tempo! Ao Gago! Ao Gago!... Senão devoro
um de Vocês, com esta
furiosa fome Ramirica!
Mas, logo ao subirem a Calçadinha, parou elle cruzando os
braços, interpellando divertidamente o Sr. Aministrador do
Concelho pelo estupendo feito do
seu Governo...
Então o
seu Governo,
os
seus amigos Historicos, o
seu
honradissimo S.
Fulgencio―nomeavam, para Governador Civil de Monforte, o Antonio
Moreno! O Antonio Moreno,
tão justamente chamado em Coimbra Antoninha Morena!
Não,
realmente, era a derradeira degradação a que
podia rolar um paiz!
Depois d'esta, para harmonia perfeita dos serviços,
só outra
nomeação, e urgente―a da Joanna Salgadeira,
Procuradora Geral da Corôa!
E o João Gouveia, um homem pequeno, muito escuro, muito
secco, de bigode mais duro que piassaba,
[43]esticado
n'uma sobrecasaca curta, com o chapeu de coco atirado para a orelha,
não discordava. Empregado
imparcial, servindo os Historicos como servira os Regeneradores, sempre
acolhia com imparcial ironia as nomeações de
bachareis novos,
Historicos ou Regeneradores, para os gordos logares Administrativos.
Mas, n'este caso, sinceramente, quasi vomitára, rapazes!
Governador Civil, e
de Monforte, o Antonio Moreno, que elle tantas vezes
encontrára no
quarto, em Coimbra, vestido de mulher, de roupão aberto, e a
carinha
bonita coberta de pó de arroz!...―E, travando do
braço do
Fidalgo, recordava a noite em que o José Gorjão,
muito bebedo, de cartola e
com um revólver, exigia furiosamente que o padre Justino,
tambem bebedo, o casasse com o Antoninho deante d'um nicho da Senhora
da Boa Morte! Mas o
Titó, que esperava, floreando o bengalão,
declarou áquelles
senhores que se o tempo sobejava para arrastarem assim na rua, a
conversar de Politica e d'indecencias―então voltava elle ao
Brito, buscar a
aguardentesinha... Immediatamente o Fidalgo da Torre, sempre
brincalhão,
sacudiu o braço do Administrador, e galgou pela
Calçadinha, aos corcovos, com
as mãos fortemente juntas, como colhendo uma redea, contendo
um cavallo que se desboca.
E na sala alta do Gago, ao cimo da escada esguia e ingreme que subia da
taberna, a um canto
[44]da
comprida mesa allumiada por dois candieiros de petroleo, a ceia foi
muito alegre, muito saboreada. Gonçalo,
que se declarava miraculosamente curado pelo passeio até aos
Bravaes e pelas emoções do voltarete em que
ganhára
desenove tostões ao Manoel Duarte―começou por
uma pratada d'ovos com
chouriço, devorou metade da tainha, devastou o seu
«frango de doente», clareou
o prato da salada de pepino, findou por um montão de
ladrilhos de marmellada: e
atravez d'este nobre trabalho, sem que a fina brancura da sua pelle se
afogueasse, esvasiou uma caneca vidrada de Alvaralhão,
porque logo ao primeiro trago, e com desgosto do Titó,
amaldiçoára o vinho novo do Abbade. Á
sobremesa appareceu o Videirinha, «o
Videirinha do violão», tocador afamado de Villa
Clara, ajudante da Pharmacia, e poeta com versos de amor e de
patriotismo já impressos no
Independente
d'Oliveira. Jantára n'essa tarde, com o
violão,
em casa do commendador Barros, que celebrava o anniversario da sua
commenda: e só
acceitou um copo d'Alvaralhão, em que esmagou um ladrilho de
marmellada
«para adocicar a goella». Depois, á meia
noite,
Gonçalo obrigou o Gago a espertar o lume, ferver um
café «muito forte, um
café terrivel, Gago amigo! um café capaz de abrir
talento no Sr. Commendador
Barros!» Era essa a hora divina do violão e do
«fadinho». E já o Videirinha
[45]recuára
para a sombra da sala, pigarreando, affinando os bordões,
pousado com melancolia á borda d'um banco alto.
―A
Soledad, Videirinha! pediu o bom
Titó, pensativo,
enrolando um grosso cigarro.
Videirinha gemeu deliciosamente a
Soledad:
Quando fôres ao cemiterio
Ai Soledad, Soledad!...
Depois, apenas elle findou, acclamado, e emquanto acertava as
cravelhas, o Fidalgo da Torre e João Gouveia, com os
cotovellos na
mesa, os charutos fumegando, conversaram sobre essa venda de
Lourenço
Marques aos Inglezes, preparada surrateiramente (conforme clamavam,
arripiados de horror, os jornaes da Opposição)
pelo Governo do
S. Fulgencio. E Gonçalo tambem se arripiava! Não
com a
alienação da Colonia―mas com a impudencia do S.
Fulgencio! Que aquelle careca obeso, filho sacrilego d'um frade que
depois se fizera mercieiro em Cabecelhos, trocasse a libras, para se
manter mais dois annos no Poder, um pedaço
de Portugal, torrão augusto, trilhado heroicamente pelos
Gamas, os
Athaydes, os Castros, os seus proprios avós―era para elle
uma
abominação que justificava todas as violencias,
mesmo uma revolta, e a casa de
Bragança enterrada
[46]no
lodo
do Tejo! Trincando, sem parar, amendoas torradas,
João Gouveia observou:
―Sejamos justos, Gonçalo Mendes! Olhe que os
Regeneradores...
O Fidalgo sorrio superiormente. Ah! se os Regeneradores realisassem
essa grandiosa operação―bem! Esses,
primeiramente,
nunca commetteriam a indecencia de vender a Inglezes terra de
Portuguezes! Negociariam com Francezes, com Italianos, povos latinos,
raças fraternas...
E depois os bons milhões soantes seriam applicados ao
fomento do Paiz,
com saber, com probidade, com experiencia. Mas esse horrendo careca do
S. Fulgencio!...―E no seu furor, engasgado, gritou por genebra, por
que realmente aquelle cognac do Gago era uma peçonha torpe!
O Titó encolheu os hombros, resignado:
―Não me deixaste ir buscar a aguardentesinha, agora
aguenta... E a genebra é ainda mais peçonhenta.
Nem para os
negros d'esse Lourenço Marques que tu queres vender...
Portuguezes indecentes, a vender Portugal! Até o Sr.
Administrador do Concelho devia prohibir
estas conversas...
Mas o Sr. Administrador do Concelho affirmou que as consentia, e
rasgadamente... Por que tambem elle, como Governo, venderia
Lourenço Marques, e Moçambique, e toda a Costa
Oriental! E
ás
[47]talhadas!
Em leilão! Alli, toda a Africa, posta em praça,
apregoada no Terreiro do Paço! E sabiam os amigos
porquê? Pelo
são principio de forte
administração―(estendia o braço, meio
alçado do banco, como n'um Parlamento)... Pelo
são principio de que todo o proprietario
de terras distantes, que não póde valorisar por
falta de
dinheiro ou gente, as deve vender para concertar o seu telhado,
estrumar a sua horta, povoar o seu curral, fomentar todo o bom
torrão que pisa com os
pés... Ora a Portugal restava toda uma riquissima provincia
a amanhar, a regar, a lavrar, a semear―o Alemtejo!
O Titó lançou o vozeirão, desdenhando
o Alemtéjo como uma pellicula de terra de má
qualidade, que, fóra umas legoas de
campos em torno de Beja e de Serpa, por um grão
só dava dois, e, apenas
esgaravetada, logo mostrava o granito...
―O mano João tem lá uma herdade immensa,
immensissima, que rende trezentos mil réis!
O Administrador, que advogára em Mertola, protestou,
encristado. O Alemtejo! Provincia abandonada, sim! Abandonada
miseravelmente, desde seculos, pela imbecilidade dos governos... Mas
riquissima, fertilissima!
―Pois então os Arabes... E qual Arabes! Ainda ha dias o
Freitas Galvão me contava...
Mas Gonçalo Mendes, que cuspira tambem a
[48]genebra com uma
carantonha, acudiu, n'um resumo varredor, condemnando todo o Alemtejo
como uma desgraçada illusão!
Estirado por sobre a mesa, o Administrador gritava:
―Você já esteve no Alemtejo?
―Tambem nunca estive na China, e...
―Então não falle! Só a vinha
espantosa que plantou o João Maria...
―Quê! Umas cem pipas de zurrapa! Mas, n'outros sitios,
legoas e legoas sem...
―Um celleiro!
―Uma charneca!
E atravez do tumulto o Videirinha, repenicando com solitario ardor,
levado na torrente d'ais do «fado» da Ariosa,
soluçava contra uns olhos negros, donos do seu
coração:
Ai! que dos teus negros olhos
Me vem hoje a
perdição...
O petroleo dos candieiros findava: e o Gago, reclamado para trazer
castiçaes, surdio em mangas de camisa, detraz d'uma cortina
de chita, com a sua esperta humildade banhada em riso, lembrando a suas
Excellencias que passava da uma horasinha da noite... O Administrador,
que detestava noitadas,
[49]nocivas
á sua garganta (de amygdalas
loucamente inflammaveis), puxou o relogio com terror. E rapidamente
reabotoado na sobrecasa, de chapéo côco mais
tombado
á banda, apressou o lento Titó, por que ambos
moravam no alto da Villa―elle defronte do Correio, o outro na viella
das Therezas, n'uma casa onde outr'ora
habitára e apparecera apunhalado o antigo carrasco do Porto.
O Titó porém não se aviava. Com o
bengalão debaixo do braço, ainda chamou o Gago ao
fundo sombrio da sala estreita, para cochichar sobre o embrulhado
negocio d'uma compra de espingarda, soberba espingarda Winchester,
empenhada ao Gago pelo filho do tabellião Guedes
d'Oliveira. E, quando desceu a escadaria, encontrou á porta
da taberna,
no estendido luar que orlava a rua adormecida, o Fidalgo da Torre e o
João Gouveia bruscamente engalfinhados na costumada contenda
sobre o Governador Civil de Oliveira―o André Cavalleiro!
Era sempre a mesma briga, pessoal, furiosa e vaga. Gonçalo
clamando que não alludissem deante d'elle, pelas cinco
chagas de Christo,
a esse bandido, esse Snr. Cavalleiro e sobretudo Cavallo,
mandão
burlesco que desorganizava o Districto! E João Gouveia muito
teso, muito
secco, com o côco mais cahido na orelha, assegurando a
inteligencia
superior do amigo Cavalleiro, que estabelecera limpeza e
[50] ordem, como Hercules, nas
cavallariças d'Oliveira! O Fidalgo rugia. E Videirinha, com
o violão resguardado atraz das costas, supplicava aos amigos
que recolhessem
á taberna, para não alvorotar a rua...
―Tanto mais que defronte, coitada, a sogra do Dr. Venancio
está desde hontem com a pontada!
―Pois então, berrou Gonçalo, não
venham com disparates que revoltam! Dizer você, Gouveia, que
Oliveira nunca teve Governador Civil
como o Cavalleiro!... Não é por meu pae! O
papá já lá vae ha trez annos,
infelizmente. E concordo que não fosse boa auctoridade. Era
frouxo, andava doente... Mas depois tivemos o Visconde de Freixomil.
Tivemos o Bernardino. Você serviu com elles. Eram dois
homens!... Mas
este cavallo d'este Cavalleiro! A primeira
condição para a
auctoridade superior d'um Districto é não ser
burlesca. E o Cavalleiro
é d'entremez! Aquella guedelha de trovador, e a horrenda
bigodeira negra, e o olho languinhento a pingar namoro, e o papo
empinado, e o
pó-pó-poh! É
d'entremez! E estupido, d'uma estupidez fundamental, que lhe
começa nas patas, vem subindo, vem crescendo. Oh senhores,
que animal!... Sem contar que é malandro.
Teso na sombra do immenso Titó, como uma estaca junto d'uma
torre, o Administrador mordia o charuto. Depois, de dedo espetado, com
uma serenidade cortante:
[51]―Você
acabou?... Pois, Gonçalinho, agora escute!
Em todo o districto d'Oliveira, note bem, em todo elle! não
ha ninguem,
absolutamente ninguem, que de longe, muito de longe, se compare ao
Cavalleiro em intelligencia, caracter, maneiras, saber, e finura
politica!
O Fidalgo da Torre emmudeceu, varado. Por fim sacudindo o
braço, n'um desabrido, arrogante desprezo:
―Isso são as opiniões d'um subalterno!
―E isso são as expressões d'um malcreado! uivou
o outro, crescendo todo, com os olhinhos esbugalhados a fuzilar.
Immediatamente entre os dois, mais grosso que um barrote,
avançou o braço do Titó, estendendo
uma sombra na
calçada:
―Olá! Oh rapazes! Que desconchavo é este?
Vocês estão borrachos?... Pois tu,
Gonçalo...
Mas já Gonçalo, n'um d'esses seus impulsos
generosos e amoraveis que tão finamente seduziam, se
humilhava, confessava a sua brutalidade, sensibilisado:
―Perdoe você, João Gouveia! Sei perfeitamente que
você defende o Cavalleiro por amizade, não por
dependencia... Mas que quer,
homem? Quando me fallam n'esse Cavallo... Não sei,
é por
contagio da besta, orneio, atiro coice!
[52]
O Gouveia, sem rancor, logo reconciliado (porque admirava
carinhosamente o Fidalgo da Torre), deu um puxão forte
á
sobrecasaca e apenas observou «que o Gonçalinho
era uma flôr, mas
picava...» Depois, aproveitando a
emoção submissa de Gonçalo,
recomeçou a glorificação do
Cavalleiro, mais sobria. Reconhecia certas fraquezas. Sim, com effeito,
aquelle modo impertigado... Mas que coração!―E o
Gonçalinho devia considerar...
O Fidalgo, de novo revoltado, recuou, espalmando as mãos:
―Escute você, oh João Gouveia! Por que
é que você lá em cima, á
ceia, não comeu a salada de pepino? Estava divina,
até
o Videirinha a appeteceu! Eu repeti, acabei a travessa... Por que foi?
Por que
você tem horror physiologico, horror visceral ao pepino. A
sua natureza e o pepino são incompativeis. Não ha
raciocinios,
não ha subtilezas, que o persuadam a admittir lá
dentro o pepino. Você
não duvida que elle seja excellente, desde que tanta gente
de bem o adora: mas você
não póde... Pois eu estou para o Cavalleiro como
você para o pepino.
Não posso! Não ha molhos, nem razões,
que m'o disfarcem. Para mim
é ascoroso. Não vae! Vomito!... E agora
ouça...
Então Titó, que bocejava, interveio,
já farto:
―Bem! Parece-me que apanhamos a nossa dóse
[53]de Cavalleiro, e
valente! Somos todos muito boas pessoas e só nos resta
debandar. Eu
tive senhora, tive tainha... Estou derreado. E não tarda a
madrugada, que
vergonha!
O Administrador pulou. Oh Diabo! E elle, ás nove horas da
manhã, com commissão de recenseamento!... Para
esmagar bem o
amúo, cingiu Gonçalo n'um rijo abraço.
E, quando o Fidalgo descia para o Chafariz
com o Videirinha (que n'estas noites festivas de Villa Clara o
acompanhava sempre pela estrada até ao portão da
Torre),
João Gouveia ainda se voltou, pendurado do braço
do Titó no meio da
Calçadinha, para lhe lembrar um preceito moral «de
não sei que
philosopho»:
―«Não vale a pena estragar boa ceia por causa de
má politica...» Creio que é
d'Aristoteles!
E até Videirinha, que de novo afinava a viola, se preparava
para um solto descante ao luar, murmurou respeitosamente por entre
abafados harpejos:
―Não vale a pena, Sr. Doutor... Realmente não
vale a pena, por que em Politica hoje é branco,
ámanhã
é negro, e depois, zás, tudo é nada!
O fidalgo encolhera os hombros. A Politica! Como se elle pensasse na
Auctoridade, no Sr. Governador civil d'Oliveira―quando injuriava o Sr.
André Cavalleiro, de Corinde! Não! o que
detestava era o
[54]homem―o
falso homem d'olho langoroso! Por que entre elles existia um d'esses
fundos aggravos que outr'ora, no tempo dos Tructesindos, armavam um
contra o outro, em dura arrancada de lanças, dois bandos
senhoriaes...―E pela estrada, com a lua no alto dos oiteiros de
Valverde, em quanto no
violão do Videirinha tremia o choro lento do fado do
Vimioso,
Gonçalo Mendes recordava, aos pedaços, aquella
historia que tanto enchera a
sua alma desoccupada. Ramires e Cavalleiros eram familias vizinhas, uma
com a velha torre em Santa Ireneia, mais velha que o Reino―a outra com
quinta bem tratada e rendosa em Corinde. E quando elle, rapaz de
dezoito annos, enfiava enfastiadamente os preparatorios do Lyceu,
André
Cavalleiro, então estudante do Terceiro-Anno, já
o tratava
como um amigo serio. Durante as férias, como a
mãe lhe dera um
cavallo, apparecia todas as tardes na Torre; e muitas vezes, sob os
arvoredos da quinta ou passeando pelos arredores de Bravaes e Valverde,
lhe confiava, como a um espirito maduro, as suas
ambições politicas, as suas
idéas de vida que desejava grave e toda votada ao Estado.
Gracinha Ramires desabrochava na
flôr dos
seus dezeseis annos; e mesmo em Oliveira lhe chamavam a
«flôr da Torre».
Ainda então vivia a governante ingleza de Gracinha, a boa
Miss Rhodes―que, como todos na Torre, admirava com enthusiasmo
André
[55]
Cavalleiro pela sua amabilidade, a sua ondeada cabelleira romantica, a
doçura quebrada dos seus olhos largos, a maneira ardente de
recitar Victor Hugo e João de Deus. E, com essa fraqueza que
lhe
amollecia a alma e os principios perante a soberania do Amor,
favorecera demoradas conversas de André com Maria da
Graça sob as
olaias do Mirante e mesmo cartinhas trocadas ao escurecer por sobre o
muro baixo da
Mãe d'Agua. Todos os domingos o Cavalleiro jantava na
Torre:―e o velho procurador Rebello já
preparára, com esforço e
resmungando, um conto de reis para o enxoval da
«menina». O pae de Gonçalo,
Governador Civil de Oliveira, sempre atarefado, enredado em Politica e
em dividas, amanhecendo
só na Torre aos Domingos, approvava esta
collocação de
Gracinha, que, meiga e romanesca, sem mãe que a velasse,
creava na sua vida,
já difficil, um tropeço e um cuidado. Sem
representar como elle uma familia
de immensa Chronica, anterior ao Reino, do mais rico sangue de Reis
godos,
André Cavalleiro era um moço bem nascido, filho
de general, neto de desembargador, com brasão legitimo na
sua casa
apalaçada de Corinde, e terras fartas em redor, de boa
semeadura, limpas de hypothecas... Depois, sobrinho de Reis Gomes, um
dos Chefes Historicos, já
filiado no Partido Historico (desde o Segundo Anno da Universidade), a
sua carreira
[56]
andava marcada com segurança e brilho na Politica e na
Administração. E emfim Maria da Graça
amava enlevadamente aquelles reluzentes
bigodes, os hombros fortes de Hercules bem educado, o porte ufano que
lhe encouraçava o peitilho e que impressionava. Ella, em
contraste, era pequenina e fragil, com uns olhos timidos e esverdeados
que o sorriso humedecia e enlanguescia, uma transparente pelle de
porcellana fina, e cabellos magnificos, mais lustrosos e negros que a
cauda d'um corcel de guerra, que lhe rolavam até aos
pés, em que se
podia embrulhar toda, assim macia e pequenina. Quando desciam ambos as
alamedas da quinta, miss Rhodes (que o pae, professor de Litteratura
Grega em Manchester, recheára de Mithologia) pensava sempre
em «Marte
cheio de força amando Psyché cheia de
graça.» E mesmo os
criados da Torre se maravilhavam do «lindo par!»
Só a Snr.
a D. Joaquina
Cavalleiro, a mãe de André, senhora obesa e
rabugenta, detestava aquella terna assiduidade do filho na Torre, sem
motivo pesado, só por «desconfiar da
pinta da menina e desejar nóra mais comesinha...»
Felizmente, quando
André Cavalleiro se matriculava no Quinto Anno, a
desagradavel matrona morreu d'uma anasarca. O pae de Gonçalo
recebeu a chave do
caixão: Gracinha tomou luto: e Gonçalo,
companheiro de casa do Cavalleiro na rua de
S. João, em Coimbra, enrolou um fumo na manga
[57]da batina. Logo em Santa
Ireneia se pensou que o explendido André, libertado da
pêca
opposição da mamã, pediria a
«Flôr da Torre» depois do Acto
de Formatura. Mas, findo esse desejado Acto, Cavalleiro abalou para
Lisboa―por que se preparavam Eleições em
Outubro, e elle recebera do tio Reis
Gomes, então Ministro da Justiça, a promessa de
«ser deputado»
por Bragança.
E todo esse verão o passou na Capital; depois em Cintra,
onde o negro langor dos seus olhos humidos amollecia
corações;
depois n'uma jornada quasi triumphal a Bragança com foguetes
e «vivas
ao sobrinho do Sr. conselheiro Reis Gomes!» Em Outubro
Bragança
«confiou ao dr. André Cavalleiro (como escreveu o
Echo
de Traz-os-Montes)
o direito de a representar em Côrtes com os seus brilhantes
conhecimentos
litterarios e a sua formosissima presença de
orador...» Recolheu
então a Corinde; mas nas suas visitas á Torre,
onde o pae de Gonçalo
convalescia d'uma febre gastrica que exacerbára a sua antiga
diabetes,
André já não arrastava sofregamente
Gracinha, como outr'ora, para as silenciosas sombras da quinta,
permanecendo de preferencia na sala azul, a conversar sobre Politica
com Vicente Ramires, que se não movia da poltrona,
embrulhado n'uma manta. E Gracinha, nas suas cartas para Coimbra a
Gonçalo, já se carpia de não correrem
tão doces nem
tão intimas
[58]as
visitas do André á Torre, «occupado,
como andava sempre agora, a estudar para
deputado...»
Depois do Natal o Cavalleiro voltou para Lisboa, para a abertura das
Côrtes, muito apetrechado, com o seu creado Matheus, uma
linda egua que comprára em Villa Clara ao Manoel Duarte, e
dous caixotes de
livros. E a boa Miss Rhodes sustentava que Marte, como convinha a um
heróe, só reclamaria Psyché depois
d'um nobre feito, uma estreia nas
Camaras, «n'um discurso lindo, todo
flôres...»
Quando Gonçalo, nas férias de Paschoa,
appareçeu na Torre, encontrou Gracinha inquieta e
descorada. As
cartas do seu André, que se estreára «e
n'um discurso lindo, todo flôres...», eram cada
semana mais curtas, mais
calmas. E a ultima (que ella lhe mostrou em segredo), datada da Camara,
contava em tres linhas mal rabiscadas «que tivera muito que
trabalhar em
commissões, que o tempo se pozera lindo, que n'essa noite
era o baile dos condes de Villaverde, e que elle continuava com muitas
saudades o seu fiel André...» Gonçalo
Mendes Ramires, logo
n'essa tarde, desabafou com o pae, que definhava na sua poltrona:
―Eu acho que o André se está portando muito mal
com a Gracinha... O papá não lhe parece?
Vicente Ramires apenas moveu, n'um gesto de vencida tristeza, a
mão descarnada d'onde a cada momento lhe escorregava o annel
d'armas.
[59]
Por fim em Maio a sessão das Camaras terminou―essa
sessão que tanto interessára Gracinha, anciosa
«que elles
accabassem de discutir e tivessem férias.» E quasi
immediatamente ella em
Santa Ireneia, Gonçalo em Coimbra, souberam pelos jornaes
que «o talentoso deputado
André Cavalleiro partira para Italia e França
n'uma longa viagem
de recreio e d'estudo.» E nem uma carta á sua
escolhida, quasi
sua noiva!... Era um ultraje, um bruto ultraje, que outr'ora, no seculo
XII,
lançaria todos os Ramires, com homens de cavallo e peonagem,
sobre o solar dos Cavalleiros, para deixar cada trave denegrida pela
chamma, cada servo pendurado d'uma corda de canave. Agora Vicente
Ramires, apagado e mortal, murmurou simplesmente: «Que
traste!» Elle
em Coimbra, rugindo, jurou esbofetear um dia o infame! A boa Miss
Rhodes, para se consolar, desembrulhou a sua velha harpa, encheu Santa
Ireneia de magoados harpejos. E tudo findou nas lagrimas que Gracinha,
durante semanas,
tão desconsolada da vida que nem se penteava, escondeu sob
as olaias do Mirante.
E, ainda depois d'esses annos, a esta lembrança das lagrimas
da irmã, um rancor invadiu Gonçalo,
tão redivivo que atirou
para o lado, para sobre as sebes da valla, uma bengallada, como se
fossem ás costas
do Cavalleiro!―Caminhavam então junto á
[60]ponte da
Portella, onde os campos se alargam, e da estrada se avista
Villa-Clara, que a lua branqueava toda, desde o convento de Santa
Thereza, rente ao Chafariz,
até ao muro novo do cemiterio, no alto, com os seus finos
cyprestes. Para o fundo do valle, clara tambem no luar, era a egrejinha
de Craquêde,
Santa Maria de Craquêde, resto do antigo Mosteiro em que
ainda jaziam, nos
seus rudes tumulos de granito, as grandes ossadas dos Ramires
Affonsinos. Sob o arco, docemente, o riacho lento, arrastando entre os
seixos, sussurrava na sombra. E Videirinha, enlevado n'aquelle silencio
e suavidade saudosa, cantava, n'um gemer surdo de bordões:
Baldadas são tuas queixas,
Escusados são teus ais,
Que é como se eu morto
fôra.
E não me verás
nunca mais!...
E Gonçalo retomára as suas
recordações, repassava tristezas que depois
cahiram sobre a Torre. Vicente Ramires morrera n'uma tarde d'Agosto,
sem soffrimento, estendido na sua poltrona á varanda, com os
olhos cravados na velha Torre, murmurando para o padre
Soeiro:―«Quantos
Ramires verá ella ainda, n'esta casa, e á sua
sombra?...» Todas
essas ferias as consumiu Gonçalo no escuro cartorio,
desajudado
[61](por
que o
procurador, o bom Rebello, tambem Deus o chamára),
revolvendo papeis,
apurando o estado da casa―reduzida aos dois contos e trezentos mil
reis que rendiam os foros de Craquêde, a herdade de Praga, e
as duas
quintas historicas, Treixedo e Santa Ireneia. Quando regressou a
Coimbra deixou Gracinha em Oliveira, em casa de uma prima, D. Arminda
Nunes Viegas, senhora muito abastada, muito bondosa, que habitava no
Terreiro da
Louça um immenso casarão cheio de retratos
d'avoengos e de arvores
de costado, onde ella, vestida de velludo preto, pousada n'um
camapé de
damasco, entre aias que fiavam, perpetuamente relia os seus Livros de
Cavallaria, o
Amadis,
Leandro o Bello,
Tristão
e
Brancaflôr, as
Chronicas do Imperador
Clarimundo... Foi ahi que José
Barrôlo
(senhor d'uma das mais ricas casas d'Amarante) encontrou Gracinha
Ramires, e a amou com uma paixão profunda, quasi
religiosa―estranha n'aquelle
moço indolente, gorducho, de bochechas coradas como uma
maçã, e
tão escasso d'espirito que os amigos lhe chamavam
«o José
Bacôco». O bom Barrolo residira sempre em Amarante
com a mãe, não conhecia o
trahido romance da «Flôr da Torre»―que
nunca se espalhára para
além dos cerrados arvoredos da quinta. E, sob o enternecido
e romanesco patrocinio de D. Arminda, noivado e casamento docemente se
apressaram, em tres mezes,
[62]depois
d'uma carta de Barrôlo a Gonçalo Mendes Ramires
jurando―«que a affeição pura que
sentia pela prima Graça, pelas suas virtudes e outras
qualidades respeitaveis, era tão grande que nem achava no
Diccionario
termos para a explicar...» Houve uma bôda luxuosa:
e os noivos
(por desejo de Gracinha, para se não affastar da querida
Torre), depois
d'uma jornada filial a Amarante, «armaram o seu
ninho» em
Oliveira, á esquina do largo d'El-Rei e da rua das
Tecedeiras, n'um palacete que o Bacôco
herdára, com largas terras, do seu tio Melchior,
Deão da
Sé. Dois annos correram, mansos e sem historia. E
Gonçalo Mendes Ramires passava
justamente em Oliveira as suas ultimas férias de Paschoa
quando
André Cavalleiro, nomeado Governador Civil do Districto,
tomou posse, estrondosamente, com foguetes, philarmonicas, o Governo
civil e o Paço do Bispo
illuminados, as armas dos Cavalleiros em transparentes no
café da Arcada
e na Recebedoria!... Barrôlo conhecia o Cavalleiro quasi
intimamente, admirava o seu talento, a sua elegancia, o seu brilho
Politico. Mas Gonçalo Mendes Ramires, que dominava
soberanamente o bom
Bacôco, logo o intimou a não visitar o Sr.
Governador Civil, a
não o saudar sequer na rua, e a partilhar, por dever
d'alliança, os rancores que
existiam entre Cavalleiros e Ramires! José Barrôlo
cedeu,
submisso, espantado, sem comprehender.
[63]Depois
uma noite, no quarto, enfiando as chinellas, contou a Gracinha
«a exquisitice de Gonçalo»:
―E sem motivo, sem offensa, só por causa da Politica!...
Ora, vê tu! Um bello rapaz como o Cavalleiro! Podiamos fazer
um ranchinho
tão agradavel!...
Outro sereno anno passou... E n'essa primavera, em Oliveira, onde se
demorára para a festa dos annos de Barrôlo, eis
que Gonçalo suspeita, fareja, descobre uma incomparavel
infamia! O impertigado homem da bigodeira negra, o Sr. André
Cavalleiro,
recomeçára com soberba impudencia a cortejar
Gracinha Ramires, de longe, mudamente, em olhadellas fundas, carregadas
de saudade e langor, procurando agora apanhar como amante aquella
grande fidalga, aquella Ramires, que desdenhára como esposa!
Tão levado ia Gonçalo pela branca estrada, no
rolo amargo d'estes pensamentos, que não reparou no
portão da Torre,
nem na portinha verde, á esquina da casa, sobre tres
degráos. E seguia,
rente do muro da horta, quando Videirinha, que estacára com
os dedos mudos nos
bordões do violão, o avisou, rindo:
―Oh, Sr. Doutor, então larga assim, a estas horas de
corrida para os Bravaes?
[64]
Gonçalo virou, bruscamente despertado, procurando na
algibeira, entre o dinheiro solto, a chavinha do trinco:
―Nem reparava... Que lindamente você tem tocado, Videirinha!
Com lua, depois de ceia, não ha companheiro mais poetico...
Realmente
você é o derradeiro trovador portuguez!
Para o ajudante de Pharmacia, filho d'um padeiro d'Oliveira, a
familiaridade d'aquelle tamanho Fidalgo, que lhe apertava a
mão na botica deante do Pires boticario e em Oliveira deante
das Auctoridades, constituia uma gloria, quasi uma
coroação, e
sempre nova, sempre deliciosa. Logo sensibilisado, feriu os
bordões rijamente:
―Então, para acabar, lá vae a grande trova, Sr.
Doutor!
Era a sua famosa cantiga, o
Fado dos Ramires,
rosario de heroicas Quadras celebrando as Lendas da Casa illustre―que
elle desde mezes apurava e completava, ajudado na terna tarefa pelo
saber do velho Padre Soeiro, capellão e archivista da Torre.
Gonçalo empurrou a portinha verde. No corredor espirrava uma
lamparina mortiça, já sem azeite, junto ao
castiçal de prata. E Videirinha, recuando ao meio da
estrada, com um «dlindlon»
ardente, fitára a Torre, que, por cima dos telhados da vasta
casa, mergulhava as ameias, o negro miradoiro,
[65]no
luminoso silencio do ceu de verão. Depois para
ella e para a lua atirou as endeixas glorificadoras, na dolente melodia
d'um fado de Coimbra, rico em
ais:
Quem te v'rá sem que
estremeça,
Torre de Santa Ireneia,
Assim tão negra e callada,
Por noites de lua cheia...
Ai! Assim callada,
tão negra,
Torre de Santa
Ireneia!
Ainda suspendeu para agradecer ao Fidalgo, que o convidava a subir e
enxugar um calice de genebra salvadora. Mas retomou logo o descante,
ditoso em descantar, como sempre arrebatado pelo sabor dos seus versos,
pelo prestigio das Lendas, emquanto Gonçalo
desapparecia―com folgazãs desculpas ao Trovador
«por cerrar a portinha do
Castello...»
Ai! ahi estás, forte e
soberba,
Com uma historia em cada ameia,
Torre mais velha que o reino,
Torre de Santa Ireneia!...
E começára a quadra a Muncio Ramires,
Dente
de
Lobo, quando em cima uma sala, aberta á frescura
da noite, se allumiou―e o
Fidalgo da Torre,
[66]
com o charuto acceso, se debruçou da varanda para receber a
serenada. Mais ardente, quasi soluçante, vibrou o cantar do
Videirinha. Agora era a quadra de Gutierres Ramires, na Palestina,
sobre o monte das Oliveiras, á porta da sua tenda, deante
dos
Barões que o acclamavam com as espadas nuas, recusando o
Ducado de Galiléa e o senhorio
das Terras d'Além-Jordão.―Que não
podia, em
verdade, acceitar terra, mesmo Santa, mesmo de Galiléa...
Quem já tinha em Portugal
Terras de Santa Ireneia!
―Boa piada! murmurou Gonçalo.
Videirinha, enthusiasmado, entoou logo outra nova, trabalhada n'essa
semana―a do sahimento de Aldonça Ramires, Santa
Aldonça, trazida do mosteiro d'Arouca ao solar de Treixedo,
sobre o almadraque em que morrera, aos hombros de quatro Reis!
―Bravo! gritou o Fidalgo pendurado da varanda. Essa é
famosa, oh Videirinha! Mas ahi ha Reis de mais... Quatro Reis!
Enlevado, empinando o braço do violão, o ajudante
da Pharmacia lançou outra, já antiga―a d'aquelle
terrivel Lopo Ramires que,
morto, se erguera da sua campa no Mosteiro de Craquêde,
montára um
[67]ginete
morto, e toda a noite galopára atravez da Hespanha para se
bater nas
Navas de Tolosa! Pigarreou―e, mais chorosamente, atacou a do
Descabeçado:
Lá passa a negra figura...
Mas Gonçalo, que abominava aquella lenda, a silenciosa
figura degolada, errando por noites de inverno entre as ameias da Torre
com a
cabeça nas mãos―despegou da varanda, deteve a
Chronica immensa:
―Toca a deitar, oh Videirinha, hein? Passa das tres horas,
é um horror. Olhe! O Titó e o Gouveia jantam
cá na Torre, no
Domingo. Appareça tambem, com o violão e cantiga
nova: mas menos sinistra...
Bona sera! Que linda noite!
Atirou o charuto, fechou a vidraça da sala―a
«sala velha,» toda revestida d'esses denegridos e
tristonhos retratos de Ramires que elle desde pequeno chamava as
carantonhas
dos vovós.
E,
atravessando o corredor, ainda sentia rolarem ao longe, no silencio dos
campos cobertos de luar, façanhas rimadas dos seus:
Ai! lá na grande batalha...
El-Rei Dom Sebastião...
O mais moço dos Ramires
Que era pagem do guião...
[68]
Despido, soprada a vella, depois de um rapido signal da cruz, o Fidalgo
da Torre adormeceu. Mas no quarto, que se povoou de Sombras,
começou para elle uma noite revôlta e pavorosa.
André
Cavalleiro e João Gouveia romperam pela parede, revestidos
de cótas de malha, montados
em horrendas tainhas assadas! E lentamente, piscando o olho
máo, arremessavam contra o seu pobre estomago pontoadas de
lança,
que o faziam gemer e estorcer sobre o leito de pau preto. Depois era,
na Calçadinha de Villa-Clara, o medonho Ramires morto, com a
ossada a ranger dentro da armadura, e El-rei Dom Affonso II,
arreganhando afiados dentes de lobo, que o arrastavam furiosamente para
a batalha das Navas. Elle resistia, fincado nas lages, gritando pela
Rosa, por Gracinha, pelo Titó! Mas D. Affonso tão
rijo murro lhe despedia
aos rins, com o guante de ferro, que o arremessava desde a Hospedaria
do Gago até
á Serra Morena, ao campo da lide, luzente e fremente de
pendões e
d'armas. E immediatamente seu primo d'Hespanha, Gomes Ramires, Mestre
de Calatrava, debruçado do negro ginete, lhe arrancava os
derradeiros
cabellos, entre a retumbante galhofa de toda a hoste sarracena e os
prantos da tia Louredo trazida como um andor aos hombros de quatro
Reis!...―Por fim, moido, sem socêgo, já com a
madrugada clareando
nas fendas das janellas
e as
[69]andorinhas
piando no beiral dos telhados, o Fidalgo da Torre atirou um derradeiro
repellão aos lençoes, saltou ao
soalho, abrio a vidraça―e respirou deliciosamente o
silencio, a frescura, a verdura, o repouso da quinta. Mas que
sêde! uma sêde desesperada que lhe
encortiçava os labios! Recordou então o famoso
fruit
salt
que lhe
recommendára o Dr. Mattos,―arrebatou o frasco, correu
á sala de jantar, em
camisa. E, a arquejar, deitou duas fartas colheradas n'um copo d'agua
da Bica-Velha, que esvasiou d'um trago, na fervura picante.
―Ah! que consolo, que rico consolo!...
Voltou derreadamente á cama: e readormeceu logo, muito
longe, sobre as relvas profundas d'um prado d'Africa, debaixo de
coqueiros susurrantes, entre o apimentado aroma de radiosas flores que
brotavam atravez de pedregulhos d'oiro. D'essa perfeita beatitude o
arrancou o Bento, ao meio dia, inquieto com «aquelle tardar
do Sr.
Doutor.»
―É que passei uma noite horrenda, Bento! Pesadelos,
pavores, bulhas, esqueletos... Foram os malditos ovos com
chouriço; e o
pepino... Sobretudo o pepino! Uma idéa d'aquelle animal do
Titó... Depois, de madrugada, tomei o tal
fruit
salt, e estou
optimo, homem!... Estou optimissimo! Até me sinto capaz de
trabalhar. Leva para a
livraria uma chavena de chá verde, muito forte... Leva
tambem torradas.
[70]
E momentos depois, na livraria, com um roupão de flanella
sobre a camisa de dormir, sorvendo lentos goles de chá,
Gonçalo
relia junto da varanda essa derradeira linha da Novella, tão
rabiscada e molle, em
que «os largos raios da lua se estiravam pela larga sala
d'armas...»
De repente, n'uma rasgada impressão de claridade, entreviu
detalhes
expressivos para aquella noite de Castello e de verão―as
pontas das
lanças dos esculcas faiscando silenciosamente pelos adarves
da muralha, e o coaxar triste das rans nas bordas lodosas dos fossos...
―Bons traços!
Achegou de vagar a cadeira, consultou ainda no volume do
Bardo
o Poemeto do tio Duarte. E, desannuviado, sentindo as Imagens e os
Dizeres surgirem como bolhas d'uma agua represa que rebenta, atacou
esse lance do Capitulo I em que o velho Tructesindo Ramires, na sala
d'armas de Santa Ireneia, conversava com seu filho Lourenço
e seu primo
D. Garcia Viegas, o
Sabedor, de aprestos de
guerra...
Guerra! Porque? Acaso pelos cerros arraianos corriam, ligeiros entre o
arvoredo, almogavares mouros? Não! Mas
desgraçadamente,
«n'aquella terra já remida e christã,
em breve se crusariam, umas contra outras, nobre lanças
portuguezas!...»
Louvado Deus! a penna desemperrára! E, attento
[71]ás
paginas marcadas n'um tomo da
Historia
d'Herculano, esboçou
com
segurança a Epocha da sua Novella―que abria entre as
discordias de Affonso II e de seus
irmãos por causa do testamento d'El-Rei seu pae, D. Sancho
I. N'esse
começo do Capitulo já os Infantes D. Pedro e D.
Fernando, esbulhados,
andavam por França e Leão. Já com
elles
abandonára o Reino o forte primo dos Ramires,
Gonçalo Mendes de Souza, chefe magnifico da casa
dos Souzas. E agora, encerradas nos castellos de Monte-Mór e
de Esgueira,
as senhoras Infantas, D. Thereza e D. Sancha, negavam a D. Affonso o
senhorio real sobre as villas, fortalezas, herdades e mosteiros, que
tão
copiosamente lhes doára El-Rei seu pae. Ora, antes de morrer
no
Alcaçar de Coimbra, o senhor D. Sancho supplicára
a Tructesindo Mendes Ramires,
seu collaço e Alferes-Mór, por elle armado
cavalleiro em
Lorvão, que sempre lhe servisse e defendesse a filha amada
entre todas, a infanta D. Sancha, senhora de Aveyras. Assim o
jurára o leal Rico-Homem junto
do leito onde, nos braços do Bispo de Coimbra e do Prior do
Hospital
sustentando a candeia, agonisava, vestido de burel como um penitente, o
vencedor de Silves... Mas eis que rompe a féra contenda
entre Affonso II, asperamente cioso da sua auctoridade de Rei―e as
Infantas, orgulhosas, impellidas á resistencia pelos freires
do Templo e pelos
Prelados a quem
[72]D. Sancho
legára tão vastos pedaços do
Reino! Immediatamente Alemquer e os arredores d'outros castellos
são devastados pela hoste
real que recolhia das Navas de Tolosa. Então D. Sancha e D.
Thereza
appellam para El-rei de Leão, que entra com seu filho D.
Fernando por
terras de Portugal a soccorrer as «Donas
opprimidas.»―E
n'este lance o tio Duarte, no seu
Castello de Santa Ireneia,
interpellava com soberbo garbo o Alferes-Mór de Sancho I:
Que farás tu, mais velho
dos
Ramires?
Se ao pendão leonez juntas o
teu
Trahes o preito que deves ao rei vivo!
Mas se as Infantas deixas indefezas
Trahes a jura que déstes ao
rei morto!...
Esta duvida, porém, não angustiára a
alma d'esse Tructesindo rude e leal que o Fidalgo da Torre rijamente
modelava. N'essa noite, apenas recebera pelo irmão do
Alcaide d'Aveyras, disfarçado em
beguino, um afflicto recado da senhora D. Sancha―ordenava a seu filho
Lourenço
que, ao primeiro arreból, com quinze lanças,
cincoenta
homens de pé da sua mercê e quarenta besteiros,
corresse sobre Monte-mór. Elle no
emtanto daria alarido―e em dous dias entraria a campo com os parentes
de solar, um troço mais rijo de cavalleiros acontiados e de
[73]frecheiros,
para se juntar a seu primo, o
Souzão,
que na
vanguarda dos
leonezes descia d'Alva-do-Douro.
Depois logo de madrugada o pendão dos Ramires, o
Açor negro em campo escarlate, se plantára deante
das barreiras gateadas: e ao
lado, no chão, amarrado á haste por uma tira de
couro,
reluzia o velho emblema senhorial, o sonoro e fundo
caldeirão polido. Por todo o
Castello se apressavam os serviçaes, despendurando as
cervilheiras,
arrastando com fragor pelas lages os pesados saios de malhas de ferro.
Nos pateos os armeiros aguçavam ascumas, amaciavam a dureza
das grevas e
coxotes com camadas d'estopa. Já o adail, na ucharia,
arrolára as rações de vianda para os
dous quentes dias da arrancada. E por todas as cercanias de Santa
Ireneia, na doçura da tarde, os atambores mouriscos,
abafados no arvoredo, tararam! tararam! ou mais vivos nos
cabeços,
ratatam! ratatam! convocavam os cavalleiros de soldo e a peonagem da
mesnada dos Ramires.
No emtanto o irmão do Alcaide, sempre disfarçado
em beguino, de volta ao castello d'Aveyras com a boa nova de prestes
soccorros, transpunha ligeiramente a levadiça da carcova...
E aqui, para alegrar
tão sombrias vesperas de guerra, o tio Duarte, no seu
Poemeto, engastára
uma sorte galante:
[74]
Á moça, que na
fonte enchia a bilha,
O frade rouba um beijo e diz Amen!
Mas Gonçalo hesitava em desmanchar com um beijo de clerigo a
pompa d'aquella formosa sortida d'armas... E mordia pensativamente a
rama da penna―quando a porta da livraria rangeu.
―O correio...
Era o Bento com os Jornaes e duas cartas. O Fidalgo apenas abriu uma,
lacrada com o enorme sinete d'armas do Barrôlo―repellindo a
outra em que reconhecera a lettra detestada do seu alfaiate de Lisboa.
E immediatamente, com uma palmada na mesa:
―Oh diabo! quantos do mez, hoje? quatorze, hein?
O Bento esperava com a mão no fecho da porta.
―É que não tardam os annos da mana
Graça! De todo esqueci, esqueço sempre. E sem ter
um presentinho engraçado... Que secca,
hein?
Mas na véspera o Manoel Duarte, na Assembléa,
á mesa do voltarete, annunciára uma fuga a Lisboa
por tres dias, para tratar do
emprego do sobrinho nas Obras Publicas. Pois corria a Villa-Clara pedir
ao snr. Manoel Duarte que lhe comprasse em Lisboa um bonito
guarda-solinho de sêda branca com rendas...
―O snr. Manoel Duarte tem gosto; tem muito
[75]gosto!
E então o
Joaquim que não selle a egoa; já não
vou ao
Sanches Lucena. Oh, senhores, quando pagarei eu esta infame visita? Ha
tres mezes!... Emfim, por dous dias mais a bella D. Anna não
envelhece; e o velho Lucena tambem
não morre.
E o Fidalgo da Torre, que decidira arriscar o beijo
folgazão, retomou a penna, arredondou o seu final com
elegante harmonia:
«A moça, furiosa, gritou:
Fu!
Fu!
villão! E o beguino, assobiando,
aligeirou as sandalias pelo corrego, na sombra das altas faias,
emquanto que por todo o fresco valle, até Santa Maria de
Craquêde, os atambores mouriscos, tararam! ratamtam!
convocavam á mesnada dos
Ramires, na doçura da tarde...»
III
Durante a longa semana, nas horas da calma, o Fidalgo da Torre
trabalhou com afferro e proveito. E n'essa manhã, depois de
repicar a
sineta no corredor, duas vezes o Bento empurrára a porta da
livraria,
avisando o snr. Doutor «que o almocinho, assim á
espera,
certamente se estragava.» Mas de sobre a tira
d'almaço Gonçalo rosnava
«já vou!»―sem despegar a penna, que
corria como quilha leve em agua mansa, na pressa amorosa de terminar,
antes do almoço, o seu Capitulo I.
Ah! e que canceira lhe custára, durante esses dias, esse
copioso Capitulo, tão difficil, com o immenso Castello de
Santa
Ireneia a erguer; e toda uma edade esfumada da Historia de Portugal a
condensar em contornos robustos; e a mesnada dos Ramires a apetrechar,
sem que faltasse uma ração nos
[78]alforges,
ou uma garruncha
nos caixotes, sobre o dorso das mulas! Mas felizmente, na vespera,
já movera para
fóra do Castello o troço de Lourenço
Ramires, em soccorro
de Monte-mór, com um vistoso coriscar de capellos e
lanças em torno ao
pendão tendido.
E agora, n'esse remate do Capitulo, era noite, e o sino de recolher
tangera, e a almenára luzira na Torre albarran, e
Tructesindo Ramires descera á sala terrea da
Alcaçova para
ceiar―quando fóra, deante da carcova, com tres toques
fortes annunciando filho-d'algo, uma bozina apressada soou. E, sem que
o villico tomasse permissão do
Senhor, o alçapão da levadiça rangeu
nas
correntes de ferro, rebombou cavamente nos apoios de pedra. Quem assim
chegava em dura pressa era Mendo Paes, amigo de Affonso II e mordomo da
sua Curia, casado com a filha mais velha de Tructesindo, D.
Theresa―aquella que, pelo ondeante e alvo pescoço, pelo
pisar mais leve que um vôo, os
Ramires chamavam a
Garça Real. O
Senhor de Santa Ireneia correra ao patim para
acolher, n'um abraço, o genro amado―«membrudo
cavalleiro, com
os cabellos ruivos, a alvissima pelle da raça germanica dos
visigodos...» E, de mãos enlaçadas,
ambos penetraram n'essa sala de abobada,
allumiada por tochas que toscos anneis de ferro seguravam, chumbados
aos muros.
Ao meio pousava a massiça meza de carvalho,
[79]rodeada de
escanhos até ao topo, onde se erguia, deante d'um aspero
mantel de linho coberto de pratos de estanho e de picheis luzidios, a
cadeira senhorial com o
Açor grossamente lavrado nas altas espaldas, e d'ellas
suspensa, pelo cinturão tauxeado de prata, a espada de
Tructesindo. Por
traz negrejava a funda lareira apagada, toda entulhada de ramos de
pinheiro, com a prateleira guarnecida de conchas, entre bocaes de
sanguesugas, sob dois molhos de palmas trazidas da Palestina por
Gutierres Ramires, o
d'Ultramar. Rente a um
esteio da
chaminé, um
falcão, ainda emplumado, dormitava na sua alcondora: e ao
lado, sobre as lages, n'uma camada de juncos, dois alões
enormes dormiam tambem, com o focinho nas
patas, as orelhas rojando. Toros de castanheiro sustentavam a um canto
um pipo de vinho. Entre duas frestas engradadas de ferro, um monge, com
a face sumida no capuz, sentado na borda de uma arca, lia, á
claridade do candil que por cima fumegava, um pergaminho desenrolado...
Assim
Gonçalo adornára a soturna sala Affonsina com
alfaias tiradas do Tio
Duarte, de Walter Scott, de narrativas do
Panorama.
Mas que
esforço!... E mesmo, depois de collocar sobre os joelhos do
monge um folio impresso em Moguncia por Ulrick Zell,
desmanchára toda essa linha
tão erudita, ao recordar, com um murro na mesa, que ainda a
Imprensa
[80]se
não
inventára em tempos de seu avô Tructesindo, e que
ao monge lettrado apenas
competia «um pergaminho de amarellada escripta...»
E caminhando nos ladrilhos sonoros, desde a lareira até ao
arco da porta cerrado por uma cortina de couro, Tructesindo, com a
branca barba espalhada sobre os braços cruzados, escutava
Mendo Paes,
que, na confiança de parente e amigo, jornadeára
sem
homens da sua mercê, cingindo apenas por cima do brial de
lã cinzenta uma espada
curta e um punhal sarraceno. Açodado e coberto de
pó correra
Mendo Paes desde Coimbra para supplicar ao sogro, em nome do Rei e dos
preitos jurados, que se não bandeasse com os de
Leão e com as
senhoras Infantas. E já desenrolára ante o velho
todos os fundamentos invocados
contra ellas pelos doutos Notarios da Curia―as
resoluções do
Concilio de Toledo! a bulla do Apostolo de Roma, Alexandre! o velho
fóro dos
Visigodos!... De resto, que injuria fizera ás senhoras
Infantas seu real
irmão para assim chamarem hostes Leonezas a terras de
Portugal? Nenhuma! Nem regedoria nem renda dos castellos e villas da
doação de D.
Sancho lhes negava o senhor D. Affonso. O Rei de Portugal só
queria que nenhum
palmo de chão portuguez, baldio ou murado, jazesse
fóra de seu senhorio
real. Escasso e avido El-Rei D. Affonso?... Mas não
entregára
elle á senhora D. Sancha
[81]oito
mil
morabitinos d'oiro? E a gratidão da irmã
fôra o Leonez passando a raia e logo cahidos os castellos
formosos d'Ulgoso, de Contrasta, d'Urros e de Lanhosello! O mais velho
da casa dos Souzas,
Gonçalo Mendes, não se encontrára ao
lado dos cavalleiros
da Cruz na jornada das Navas, mas lá andava em recado das
Infantas, como moiro,
talando terra portugueza desde Aguiar até Miranda! E
já pelos
cerros d'Além-Douro apparecera o pendão renegado
das treze arruellas―e por
traz, farejando, a alcateia dos Castros! Carregada ameaça, e
de armas
christãs, opprimindo o Reino―quando ainda Moabitas e
Agarenos corriam
á redea solta pelos campos do Sul!... E o honrado Senhor de
Santa Ireneia, que tão rijamente ajudára a fazer
o Reino,
não o deveria decerto desfazer arrancando d'elle os
pedaços melhores para monges e para
donas rebeldes!―Assim, com arremessados passos, exclamára
Mendo
Paes, tão acalorado do esforço e da
emoção, que
duas vezes encheu de vinho uma conca de pau e d'um trago a despejou.
Depois, limpando a bocca
ás costas da mão tremula:
―Ide por certo a Monte-mór, senhor Tructesindo Ramires! Mas
em recado de paz e boa avença, persuadir vossa senhora D.
Sancha e as
senhoras Infantas que voltem honradamente a quem hoje contam por seu
pae e seu Rei!
[82]
O enorme senhor de Santa Ireneia parára, pousando no genro
os olhos duros, sob a ruga das sobrancelhas, hirsutas e brancas como
sarças em manhã de geada:
―Irei a Monte-mór, Mendo Paes, mas levar o meu sangue e o
dos meus para que justiça logre quem justiça tem.
Então Mendo Paes, amargurado, ante a heroica teima:
―Maior dó, maior dó! Será bom sangue
de Ricos-homens vertido por más desfórras...
Senhor Tructesindo Ramires, sabei que em
Canta-Pedra vos espera Lopo de Baião, o Bastardo, para vos
tolher a passagem
com cem lanças!
Tructesindo ergueu a vasta face―com um riso tão soberbo e
claro que os alões rosnaram torvamente, e, acordando, o
falcão
esticou a aza lenta:
―Boa nova e de boa esperança! E, dizei, senhor
Mordomo-mór da Curia, tão de
feição e certa assim m'a
trazeis para me intimidar?
―Para vos intimidar?... Nem o Senhor Archanjo S. Miguel vos
intimidaria descendo do céo com toda a sua hoste e a sua
espada de lume!
De sobra o sei, senhor Tructesindo Ramires. Mas casei na vossa casa. E
já que n'esta lide não sereis por mim bem
ajudado, quero, ao menos,
que sejaes bem avisado.
[83]
O velho Tructesindo bateu as palmas para chamar os sergentes:
―Bem, bem, a cear, pois! Á ceia, Frei Munio!... E
vós, Mendo Paes, deixai receios.
―Se deixo! Não vos póde vir damno que me anceie
de cem lanças, de duzentas, que vos surjam a caminho.
E, emquanto o monge enrolava o seu pergaminho, se acercava da
mesa―Mendo Paes ajuntou com tristeza, desafivelando vagarosamente o
cinturão da espada:
―Só um cuidado me pesa. E é que, n'esta jornada,
senhor meu sogro, ides ficar de mal com o Reino e com o Rei.
―Filho e amigo! De mal ficarei com o Reino e com o Rei, mas de bem com
a honra e commigo!
Este grito de fidelidade, tão altivo, não resoava
no poemeto do tio Duarte. E quando o achou, com inesperada
inspiração, o Fidalgo da Torre, atirando a penna,
esfregou as mãos, exclamou, enlevado:
―Caramba! Aqui ha talento!
Rematou logo o Capitulo. Estava esfalfado, á banca do
trabalho desde as nove horas, a reviver intensamente, e em jejum, as
energias magnificas dos seus fortes avós! Numerou as
tiras―fechou na gaveta
á chave o volume do
Bardo.
Depois
á janella, com o
collete
desabotoado, ainda lançou o brado genial
[84]n'um grave e rouco tom,
como o
lançaria Tructesindo:―...«de mal com o Reino e
com o Rei, mas de bem
com a honra e commigo!...» E sentia n'elle realmente toda a
alma de um
Ramires, como elles eram no seculo XII, de sublime lealdade, mais
presos á
sua palavra que um santo ao seu voto, e alegremente desbaratando, para
a manter, bens, contentamento e vida!
O Bento, que espalhára outro repique desesperado, escancarou
a porta da livraria:
―É o Pereira... Está lá em baixo no
pateo o Pereira que quer fallar ao Sr. Doutor.
Gonçalo Mendes franziu a testa, com impaciencia, assim
repuxado d'aquellas alturas onde respirava os nobres espiritos da sua
raça:
―Que massada!... O Pereira... Que Pereira?
―O Pereira; o Manoel Pereira, da Riosa; o Pereira Brazileiro.
Era um lavrador, com casal na Riosa, chamado
Brazileiro
por ter herdado vinte contos de um tio, regatão no
Pará.
Comprára então terras, trazia arrendada a
Cortiga,
a fallada propriedade
dos condes de Monte-Agra, envergava aos domingos uma sobrecasaca de
panno fino, e dispunha de sessenta votos na Freguezia.
―Ah! Dize ao Pereira que suba, que conversamos emquanto
almóço... E põe outro talher.
[85]
A sala de jantar da Torre, que abria por trez portas
envidraçadas para uma funda varanda alpendrada, conservava,
do tempo do avô
Damião, (o traductor de Valerius Flaccus) dous formosos
pannos d'Arraz representando a
Expedição
dos
Argonautas.
Louças da India e do Japão, desirmanadas e
preciosas, recheiavam um immenso armario de mogno. E sobre o marmore
dos aparadores rebrilhavam os restos, ainda ricos, das pratas famosas
dos Ramires que o Bento constantemente areava e polia com amor. Mas
Gonçalo, sobretudo de verão, sempre
almoçava e jantava na varanda luminosa e fresca, bem
esteirada, revestida até
meio-muro por finos azulejos do seculo XVIII, e offerecendo a um canto,
para as preguiças do charuto, um profundo canapé
de
palhinha com almofadas de damasco.
Quando lá entrou, com os jornaes da manhã que
não abrira, o Pereira esperava, encostado a um grosso
guarda-sol de panninho escarlate, considerando pensativamente a quinta
que, d'alli, se abrangia
até aos álamos da ribeira do Coice e aos outeiros
suaves de
Valverde. Era um velho esgalgado e rijo, todo ossos, com um
carão moreno, de
olhos miudinhos e azulados, e uma barbicha rala, já branca,
entre
dous enormes collarinhos presos por botões de ouro. Homem de
propriedade,
acostumado á Cidade
[86]e
ao trato das Auctoridades, estendeu largamente a
mão ao Fidalgo da Torre, e acceitou, sem
embaraço, a cadeira que
elle lhe empurrára para a mesa―onde dominavam, com os seus
ricos
lavores duas altas enfusas de crystal antigo, uma cheia
d'açucenas e a
outra de vinho verde.
―Então, que bom vento o traz pela Torre, Pereira amigo?
Não o vejo desde Abril!
―É verdade, meu Fidalgo, desde o sabbado em que cahiu a
grande trovoada, na vespera da eleição! confirmou
o
Pereira affagando o cabo do guarda-sol que conservára entre
os joelhos.
Gonçalo, n'uma esfaimada pressa do almoço,
repicou a campainha de prata. Depois rindo:
―E os seus votos, Pereira amigo, segundo o costume, lá
foram para o eterno Sanches Lucena, direitinhos, como os rios
vão para o
mar!
O Pereira tambem riu, com um riso agradado que lhe descobria os
máos dentes. Pois o circulo era uma propriedade do Sr.
Sanches Lucena! Cavalheiro de fortuna, homem de bem, conhecedor,
serviçal...
E então, quando lhe calhava como em Abril o apoio do
Governo, nem Nosso Senhor Jesus Christo que voltasse á terra
e se propuzesse por
Villa-Clara desalojava o patrão da
Feitosa!
O Bento, vagaroso, de jaqueta de lustrina preta sobre o avental
resplandecente, entrava com um
[87]prato
d'ovos estrellados, quando o Fidalgo, que desdobrára o
guardanapo, o amarrotou,
arremessou com nojo:
―Este guardanapo já serviu! Eu estou farto de gritar.
Não me importa guardanapo rôto, ou com passagens,
ou com remendos... Mas
branquinho, fresquinho cada manhã, a cheirar a alfazema!
E reparando no Pereira, que discretamente arredava a cadeira:
―O quê! Você não almoça,
Pereira?...
Não, agradecia muito ao Fidalgo, mas n'essa tarde comia as
sopas com o genro nos Bravaes, que era festa pelos annos do netinho.
―Bravo! Parabens, Pereira amigo! Dê lá um beijo
meu ao netinho... Mas então ao menos um copo de vinho verde.
―Entre as comidas, meu Fidalgo, nem agua nem vinho.
Gonçalo farejára, arredára os ovos. E
reclamou o «jantar da familia», sempre muito farto
e saboroso na Torre, e começando por
essas pesadas sopas de pão, presunto e legumes, que elle
desde
creança adorava e chamava as
palanganas.
Depois, barrando de
manteiga uma bolacha:
―Pois francamente, Pereira, esse seu Sanches Lucena não faz
honra ao circulo! Homem excellente, decerto, respeitavel,
obsequiador... Mas mudo, Pereira! Inteiramente mudo!
[88] O lavrador
roçou vagarosamente pelas ventas cabelludas o
lenço vermelho,enrolado em bóla:
―Sabe as cousas, pensa com acêrto...
―Sim! mas pensamento e acêrto não lhe sahem de
dentro do craneo! Depois está muito velho, Pereira! Que
edade terá elle?
Sessenta?
―Sessenta e cinco. Mas de gente muito rija, meu Fidalgo. O
avô durou até aos cem annos. E ainda o conheci na
loja...
―Como, na loja?
Então o Pereira, enrolando mais o lenço,
estranhou que o Fidalgo não soubesse a historia do Sanches
Lucena. Pois o avô, o Manoel
Sanches, era um linheiro do Porto, da rua das Hortas. E casado tambem
com uma
moça muito vistosa, muito farfalhuda...
―Bem! atalhou o Fidalgo. Isso é honroso para o Sanches
Lucena. Gente que engordou, que trepou... E eu concordo, Pereira, o
circulo deve mandar a Lisboa um homem como o Sanches Lucena, que tenha
n'elle terra, raizes, interesses, nome... Mas é preciso que
seja tambem
homem com talento, com arrojo. Um deputado, que, nas grandes
questões,
nas crises, se erga, transporte a Camara!... E depois, Pereira amigo,
em Politica quem mais grita mais arranja. Olhe a estrada da Riosa!
Ainda em papel, a lapis vermelho... E, se o Sanches Lucena fosse homem
de
[89]berrar em S.
Bento, já o Pereira trazia por lá os seus carros
a chiar.
O Pereira abanou a cabeça, com tristeza:
―Ahi talvez o Fidalgo acerte... Para essa estradinha da Riosa sempre
faltou quem gritasse. Ahi talvez o Fidalgo acerte!
Mas o Fidalgo emmudecera, embebido na cheirosa sopa, dentro d'uma
caçoila nova, com raminhos de hortelã. E
então o Pereira, acercando mais a cadeira, cruzou no rebordo
da mesa as mãos, que meio
seculo de trabalho na terra tornára negras e duras como
raizes―e
declarou que se atrevera a incommodar o Fidalgo, áquellas
horas do
almocinho, porque n'essa semana começava um córte
de madeiras para
os lados de Sandim, e desejava, antes que surdissem outros arranjos,
conversar com S. Ex.
a sobre o arrendamento da
Torre...
Gonçalo reteve a colhér, num pasmo risonho:
―Você queria arrendar a Torre, Pereira?
―Queria conversar com V. Ex.
a. Como o Relho
está
despedido...
―Mas eu já tratei com o Casco, o José Casco dos
Bravaes! Ficamos meio apalavrados, ha dias... Ha mais de uma semana.
O Pereira coçou arrastadamente a barba rala. Pois era pena,
grande pena... Elle só no sabbado s'inteirára da
desavença com o Relho. E, se o
[90]Fidalgo
não resalvava o segredo, por quanto
ficára o arrendamento?
―Não resalvo, não, homem! Novecentos e cincoenta
mil réis.
O Pereira tirou da algibeira do collete a caixa de tartaruga, e sorveu
detidamente uma pitada, com o carão pendido para a esteira.
Pois maior pena, mesmo para o Fidalgo. Emfim! depois de palavra
trocada... Mas era pena, porque elle gostava da propriedade;
já pelo S.
João pensára em abeirar o Fidalgo; e, apezar dos
tempos correrem escassos,
não andaria longe de offerecer um conto e cincoenta, mesmo
um conto cento e cincoenta!
Gonçalo esqueceu a sopa, n'uma emoção
que lhe afogueou a face fina, ante um tal accrescimo de renda―e a
excellencia de tal rendeiro, homem abastado, com metal no banco, e o
mais fino amanhador de terras de todas as cercanias!
―Isso é sério, oh Pereira?
O velho lavrador pousou a caixa de rapé sobre a toalha, com
decisão:
―Meu Fidalgo, eu não era homem que entrasse na Torre para
caçoar com V. Ex.
a! Proposta a valer,
escriptura a fazer...
Mas se o arrendamento está tratado...
Recolheu a caixa, apoiava a mão larga na meza para se
erguer, quando Gonçalo acudiu, nervoso, empurrando o prato:
[91]―Escute, homem!...
Eu, não contei por miudo o caso do
Casco. Você comprehende, sabe como essas cousas passam... O
Casco veiu, conversamos; eu pedi novecentos e cincoenta mil reis e
porco pelo Natal. Primeiramente concordou, que sim; logo adiante
emendou, que
não... Voltou com o compadre; depois, com a mulher e o
compadre, e o afilhado, e o cão! Depois só. Andou
ahi pela quinta, a
medir, a cheirar a terra; acho até que a provou. Aquellas
rabulices do Casco!... Por
fim, uma tarde, lá gemeu, lá acceitou os
novecentos e
cincoenta mil reis, sem porco. Cedi do porco. Aperto de mão,
copo de vinho. Ficou de
apparecer para combinar, tratar da escriptura. Não o avistei
mais, ha
quasi duas semanas! Naturalmente já virou, já se
arrependeu... Para resumir, não tenho com o Casco contracto
firme. Foi uma conversa em que apenas estabelecemos, como base, a renda
de novecentos e cincoenta. E eu, que detesto cousas vagas,
já andava pensando em encontrar melhor
homem!
Mas o Pereira coçava o queixo, desconfiado. Elle, em
negocios, gostava de lisura. Sempre se entendêra bem com o
Casco. Nem por um
condado se atravessaria nos arranjos do Casco, homem violento,
assomado. De modo que desejava as cousas claras, para não
surdir desgosto
rijo. Não se lavrára escriptura, bem! Mas
ficára, ou
não, palavra dada entre o Fidalgo e o Casco?
[92]
Gonçalo Mendes Ramires, que findára
apressadamente a sopa e enchia um copo de vinho verde para se calmar,
fitou o lavrador, quasi severamente:
―Homem, essa pergunta!... Pois se eu tivesse confirmado ao Casco
decisivamente a palavra de Gonçalo Ramires, estava agora
aqui a tratar, ou sequer a conversar comsigo, Pereira, sobre o
arrendamento da Torre?
O Pereira baixou a cabeça. Tambem era verdade!... Pois,
n'esse caso, elle abria a sua tenção, claramente.
E, como
conhecia a propriedade, e apurára o seu calculo―offerecia
ao Fidalgo um conto cento e
cincoenta mil réis, sem porco. Mas não dava para
a familia
nem leite, nem hortaliça, nem fructa. O Fidalgo, homem
só, pouco
se aproveitava. A Torre, porém, casa antiga, enxameava de
gentes e
d'adherentes. Todos apanhavam, todos abusavam... Emfim, esse era o seu
principio. E de resto, para a meza do Fidalgo e mesmo dos creados,
bastava o pomar e a horta de regalo... Que horta e pomar necessitavam
trato mais geitoso: mas elle, por amor do Fidalgo, e gosto seu, por
lá passaria
e tudo luziria... Emquanto ás outras
condições, acceitava as do antigo arrendamento. E
escriptura assignada para a outra semana, no sabbado... Estava feito?
Gonçalo, depois de um momento em que pestanejou
[93]nervosa e
tremulamente, estendeu a mão aberta ao Pereira:
―Toque! Agora sim! Agora fica palavra dada!
―E nosso Senhor lhe ponha virtude, concluiu o Pereira, firmado no
immenso guarda-sol para se erguer. Então no sabbado, em
Oliveira, para a escriptura... Assigna V. Ex.
a
ou o Sr. padre Soeiro?
Mas o fidalgo calculava:
―Não, homem, não póde ser! No
sabbado, com effeito, estou em Oliveira, mas são os annos da
mana Maria da Graça...
O Pereira destapou de novo os maus dentes, n'um riso de estima:
―Ah! e como vae a snr.
a D. Maria da
Graça? Ha que edades a
não vejo! Desde o anno passado, na procissão de
Passos, em Oliveira...
Muito boa senhora! Muito dada! E o Sr. José
Barrôlo? Pessoa
excellente tambem, a valer, o Sr. José Barrôlo...
E que terra a d'elle,
a
Ribeirinha! A melhor propriedade d'estas vinte
leguas em redor. Linda propriedade! A do André Cavalleiro
que lhe está pegada, a
Biscaia, não se lhe
compára―é como cardo ao pé de couve.
O Fidalgo da Torre descascava um pecego, sorrindo:
―Do André Cavalleiro nada presta, Pereira! Nem terra, nem
alma!
[94]
O lavrador pareceu surprehendido. Elle imaginava que o Fidalgo e o
Cavalleiro continuavam chegados e amigos... Não em Politica!
Mas particularmente, como cavalheiros...
―O que? Eu e o Cavalleiro? Nem como cavalheiro nem como politico. Que
elle nem é cavalheiro nem politico. É apenas
cavallo, e resabiado.
O Pereira ficou silencioso, com os olhos na toalha. Depois, resumindo:
―Então está entendido, no sabbado, na cidade. E,
se não faz transtorno ao Fidalgo, passamos pelo
tabellião Guedes, e fica o feito
arrumado. O Fidalgo, naturalmente, vae para a casa da senhora sua
mana...
―Sempre. Appareça você ás trez horas.
Lá conversamos com o padre Soeiro.
―Tambem ha que edades não encontro o Sr. padre Soeiro!
―Oh! esse ingrato, agora, raramente apparece na Torre. Sempre em
Oliveira, com a mana Graça, que é a menina dos
seus encantos... Então nem um calice de vinho do Porto,
Pereira?... Bem, até
sabbado. Não esqueça o beijinho para o neto.
―Cá me vae no coração, meu Fidalgo...
Ora essa! Pois consentia eu que V. Ex.
a se
levantasse? Sei perfeitamente a escada, e ainda passo pela cozinha para
debicar com a tia Rosa. Já desde o tempo do
paesinho de V. Ex.
a, que Deus haja,
conheço bem a
[95]Torre!...
E sempre
m'esperancei de trazer n'esta quinta uma lavoura a meu gosto, de
consolar!
Durante o café, esquecido dos jornaes, Gonçalo
gozou a excellencia d'aquelle negocio. Duzentos mil réis
mais de renda. E a
Torre tratada pelo Pereira, com aquelle amor da terra e saber de lavra
que transformára o chavascal do Monte-Agra n'uma maravilha
de
seára, vinha e horta!... Além d'isso, homem
abastado, capaz de um
adeantamento. E eis ahi mais uma evidencia do valor da Torre, esse
affinco do Pereira em a arrendar, elle tão apertado,
tão seguro... Quasi
se arrependia de lhe não ter arrancado um conto e duzentos.
Emfim, a
manhã fôra fecunda! E, realmente, nenhum accordo
firmado o collava ao Casco. Entre elles apenas
s'esboçára uma conversa, sobre um arrendamento
possivel da Torre, a debater depois miudamente, n'uma base nova de
novecentos e cincoenta mil reis... E que insensatez se elle, por
escrupuloso respeito d'essa conversa esboçada, recusasse o
Pereira, retivesse o Casco,
lavrador de rotina―dos que raspam a terra para comer, e a deixam cada
anno deperecendo, mais cançada e chupada!...
―Bento, traze charutos! E o Joaquim que tenha a egua sellada das cinco
para as cinco e meia. Sempre vou á
Feitosa...
Hoje
é o dia!
Accendeu um charuto, voltou á livraria. E, immediatamente
[96]releu o final
magnifico: «De mal com o Reino e com o Rei, mas de bem com a
honra e commigo!»―Ah! como alli gritava a alma inteira do
velho
portuguez, no seu amor religioso da palavra e da honra! E, com a tira
d'almasso entre os dedos, junto da varanda, considerou um momento a
Torre, as poeirentas frestas engradadas de ferro, as resistentes
ameias, ainda inteiras, onde agora adejava um bando de pombas...
Quantas manhãs,
ás frescas horas d'alva, o velho Tructesindo se
encostára áquellas
ameias, então novas e brancas! Toda a terra em redor,
semeada ou bravia, decerto pertencia ao poderoso Rico-Homem. E o
Pereira, n'esse tempo colono ou servo,
só abordava o seu Senhor de joelhos e tremendo! Mas
não lhe
pagava um conto cento e cincoenta mil réis de sonora moeda
do Reino. Tambem,
que diabo, o vôvô Tructesindo não
precisava...
Quando os saccos rareavam nas arcas, e os acostados rosnavam por
tardança de soldo, o leal
Rico-Homem, para se prover, tinha as tulhas e as adégas dos
Concelhos mal
defendidos―ou então, n'uma volta de estrada, o
ovençal voltando
de recolher as rendas reaes, o bufarinheiro genovez com os machos
ajoujados de trouxas. Por baixo da Torre (como lhe contára o
papá) ainda
negrejava a masmorra feudal, meio atulhada, mas com restos de correntes
chumbadas aos pilares, e na abobada a argola d'onde
[97]pendia
a polé, e no
lagedo os buracos em que se escorava o potro. E, n'essa surda e humida
cova, ovençal, bufarinheiro, clerigos e mesmo burguezes de
fôro uivavam sob o açoite ou no torniquete,
até largarem agonizando
o derradeiro morabitino. Ah! a ramantica Torre, cantada tão
meigamente ao
luar pelo Videirinha, quantos tormentos abafára!...
E de repente, com um berro, Gonçalo agarrou de sobre a mesa
um volume de Walter Scott, que atirou sem piedade, como uma pedra,
contra o tronco de uma faia. É que descortinára o
gato da Rosa
cozinheira, trepado, d'unhas fincadas n'um ramo, arqueando a espinha,
para assaltar um ninho de melros.
Quando n'essa tarde o Fidalgo da Torre, airoso no seu fato novo de
montar, polainas de couro polido, luvas de camurça branca,
parou a egua ao portão da
Feitosa―um
velho todo
esfarrapado, com
longos cabellos cahidos pelos hombros e immensas barbas espalhadas pelo
peito, immediatamente se ergueu do banco de pedra onde comia rodellas
de chouriço, bebendo d'uma cabaça, para o avisar
que
o Sr. Sanches Lucena e a Sr.
a D. Anna andavam
por fóra, de
carruagem.
Gonçalo pediu ao velho que puchasse o ferro da sineta. E
entregando um cartão
[98]ao
moço, que entreabrira a rica grade dourada, com um
S
e um
L
entrelaçados, sob uma corôa de conde:
―O Sr. Sanches Lucena, bem?
O Sr. Conselheiro, agora, um pouquinho melhor...
―O que? Esteve doente?
―Pois o Sr. Conselheiro, aqui ha tres ou quatro semanas, andou muito
agoniado...
―Oh! Sinto muito... Diga ao Sr. Conselheiro que sinto muitissimo!
Chamou o velho que repicára a sineta para o recompensar com
um tostão. E, interessado por aquellas barbaças e
melenas de mendigo de
Melodrama:
―Vocemecê pede esmola por estes sitios?
O homem ergueu para elle os olhos sujos, avermelhados da poeira e do
sol, mas risonhos, quasi contentes:
―Tambem me chego pela Torre, meu Fidalgo. E, graças a Deus,
lá me fazem muito bem.
―Então quando lá voltar diga ao Bento...
Você conhece o Bento?
Se conhecia! E a Snr.
a Rosa...
―Pois diga ao Bento que lhe dê umas calças,
homem! Você assim, com essas calças,
não anda decente.
O velho riu, n'um riso lento e desdentado, mirando
[99]com gosto os sordidos
farrapos que lhe trapejavam nas canellas, mais denegridas e seccas que
galhos de inverno:
―Rôtinhas, rôtinhas... Mas o Sr. dr. Julio diz que
me ficam assim bem. O Sr. dr. Julio, quando lá passo, sempre
me tira o retrato
na machina. Ainda na semana passada... Até com uns
pedaços de
grilhões dependurados do pulso, e uma espada erguida na
mão... Parece que para
mostrar ao Governo.
Gonçalo, rindo, picou a egua. Pensava agora em alongar por
Valverde: depois recolheria por Villa-Clara, e tentaria o
Gouvêa a
partilhar na Torre um cabrito assado no espeto de cerejeira, para que
elle na vespera, na Assembléa, convidára o Manoel
Duarte
e o Titó. Mas ao atravessar a «Cruz das
Almas», onde a estrada de
Corinde, tão linda, com as suas filas d'alamos, crusa a
ladeira de Valverde, parou―notando ao fundo, para o lado de Corinde,
como o confuso esbarro d'uma carrada de lenha, e uma carriola
d'açougue, e uma mulher de
lenço escarlate bracejando sobre a albarda d'um burro, e
dous lavradores de enxada
ás costas. E, de repente, todo o encalhe se despegou―a
mulher trotando no seu burrinho, logo sumida n'uma volta de arvoredo; a
carriola solavancando n'um rolo leve de poeira; o carro
avançando
para a «Cruz das Almas» a
[100]chiar
tardamente; os cavadores descendo para uma
chã atravez das leiras de feno... Na estrada só
restou, como
desamparado, um homem de jaqueta ao hombro, que se arrastava
penosamente, coxeando. Gonçalo trotou, com curiosidade:
―Que foi?... Vocemecê que tem?
O homem, com a perna encolhida, levantou para Gonçalo uma
face arrepanhada, quasi desmaiada, que reluzia sob as camarinhas de
suor:
―Nosso Senhor lhe dê muito boas tardes, meu Fidalgo! Ora o
que hade ser? Desgraças d'esta vida!
E, gemendo, contou a sua historia.―Desde mezes padecia d'uma chaga
n'um tornozello, que não seccára, nem com
emplastos,
nem com pó de murtinhos, nem com benzeduras... E agora
andava arriba, na fazenda do Sr. dr. Julio, a concertar um socalco,
para ajudar um compadre tambem doente com maleitas―e, zás,
desaba um pedregulho, que tópa
na ferida, leva a carne, lasca o osso, o deixa n'aquella lastima!...
Até
rasgára a fralda para ensopar o sangue e amarrar por cima o
lenço.
―Mas assim não póde andar, homem! D'onde
é vocemecê?
―De Corinde, meu Fidalgo. Manoel Sôlha, do logar da Finta.
Até lá, sempre me hei-de arrastar.
―E então, d'essa gente toda, que ahi estava ha bocado,
ninguem o poude ajudar?... Uma carriola, dous latagões...
[101]
Uma rija guinada, no teimoso esforço de firmar a perna,
arrancou um grito ao Sôlha. Mas sorriu, arquejando... Que
queria o
Fidalgo? Cada um, n'este mundo, tem a sua pressa... Emfim, a rapariga
do burro
promettêra passar pela Finta, para avisar. E talvez um dos
seus rapazes apparecesse na estrada com uma eguasita que elle
comprára pela
Paschoa―e que, por desgraça, tambem mancava!...
Immediatamente, com um salto leve, o Fidalgo da Torre desmontou:
―Bem! Então, egua por egua, já
vocemecê tem aqui esta...
O Sôlha embasbacou para Gonçalo:
―Ora essa! Santo nome de Deus!... Pois eu havia de ir a cavallo, e V.
Ex.
a a pé?
Gonçalo ria:
―Homem, com essas discussões de «eu a
pé» e «você a
cavallo», e «faz favôr» e
«não
senhor», é que perdemos um tempo precioso. Monte,
esteja quieto, e trote para a Finta!
O outro recuava para a valleta da estrada, sacudindo a
cabeça, esgazeado, como no espanto de um sacrilegio:
―Isso é que não, meu senhor, isso é
que não! Antes eu acabasse aqui á mingoa, com a
chaga em bolor!
Gonçalo bateu o pé, com auctoridade:
[102]―Monte, que mando
eu! Vocemecê é um lavrador de
enxada, eu sou um Doutor formado em Coimbra, sou eu que sei, sou eu que
mando!
E o Sôlha, logo submisso ante aquella força
deslumbrante do Saber superior, agarrou em silencio a crina da egua,
enfiou respeitosamente o estribo, ajudado pelo Fidalgo, que, sem tirar
as luvas brancas, lhe amparava o pé entrapado e manchado de
sangue.
Depois, quando elle repousou no sellim com um
ah!
consolado:
―Então que tal?
O homem só murmurava o nome de Nosso Senhor, na
gratidão e no assombro d'aquella caridade:
―Mas isto é a volta do mundo... Eu aqui, na egua do
Fidalgo! E o Fidalgo, o Sr. Gonçalo Ramires, da Torre, a
pé
pela estrada!
Gonçalo gracejou. E, para entreter a caminhada, perguntou
pela quinta do Dr. Julio, que agora se arrojára a obras e
plantações de vinha. Depois, como o Manoel
Sôlha conhecia o Pereira Brasileiro (que
pensára em arrendar as terras do Dr. Julio), conversaram
sobre esse esperto homem, sobre as grandezas da
Cortiga.
Já sem
embaraço,
direito no sellim, no gosto d'aquella intimidade com o Fidalgo da
Torre, o Sôlha
esquecia a chaga, a dôr que adormentára. E
á
estribeira do Sôlha, attento e sorrindo, o Fidalgo estugava o
passo na poeira branca.
[103]
Assim se avizinhavam da
Bica-Santa, um dos sitios
decantados d'aquellas cercanias formosas. Ahi a estrada, cortada na
encosta d'um monte, alarga e fórma um arejado
terraço, d'onde
se abrange todo o valle de Corinde, tão rico em casaes, em
arvoredos, em
seáras, em aguas. No pendor do monte, coberto de carvalhos e
de fragas musgosas,
bróta a fonte nomeada, que já em tempos d'El-Rei
D. João
V curava males d'entranhas―e que uma devota senhora de Corinde, D.
Rosa Miranda Carneiro, mandou encanar desde o alto até a um
tanque de
marmore, onde agora corre beneficamente, por uma bica de bronze, sob a
imagem e patrocinio de Santa Rosa de Lima. De cada lado do tanque se
encurvam dous compridos bancos de pedra, que a espalhada ramaria das
carvalheiras tolda de sombra e frescura. É um suave retiro
onde se
apanham violetas, se comem merendas, e senhoras dos arredores se sentam
em rancho, nas tardinhas de domingo, escutando os melros, gozando a
povoada, luminosa e verdejante largueza do valle.
Antes porém de desembocar na
Bica-Santa,
e perto do logar
do Serdal, a estrada de Corinde quebra n'uma volta:―e, ahi, de
repente, a egua pulou, n'um reparo, que obrigou o Fidalgo da Torre,
desconfiado da pericia do Sôlha, a deitar a mão
á
caimba do freio. Fôra o encontro inesperado d'uma
[104]carruagem―uma caleche
forrada d'azul, com a parelha coberta de rêdes brancas contra
a môsca, e na
almofada, têzo, um cocheiro de bigode, farda de golla
escarlate e chapéo de
tópe amarello. E Gonçalo mantinha ainda a egua
pelo freio, como arrieiro
serviçal em trilho perigoso―quando avistou, sentado n'um
dos bancos de pedra, junto da Bica, com um chale-manta por cima dos
joelhos, o velho Sanches Lucena. Ao lado o trintanario, agachado,
esfregava com um
mólho d'herva a botina que a bella D. Anna lhe estendia,
apanhando o vestido de linho crú, apoiando a outra
mão, sem luva, na cinta
vergada e fina.
A desconcertada apparição do Fidalgo da Torre,
puxando pela rédea a sua egua onde se escarranchava
regaladamente um cavador em mangas de camisa, alvorotou aquelle
repousado e dormente recanto da
Bica.
Sanches Lucena esbugalhava os olhos, esbugalhava os oculos, n'um
arremesso de curiosidade que o levantára, com o
pescoço
esticado, o chale-manta escorregado para a relva. D. Anna recolheu
bruscamente a botina, logo empertigada, na gravidade condigna da
senhora da
Feitosa,
retomando como uma insignia o cabo d'ouro da luneta d'ouro, suspensa
por um
cordão
d'ouro. E até o trintanario ria pasmadamente para o
Sôlha.
Mas já, com o seu desembaraço elegante,
Gonçalo,
[105]n'um
relance, saudára D. Anna, apertava com fervor a
mão espantada do Sanches
Lucena, e, alegremente se congratulava por aquelle encontro ditoso!
Pois vinha justamente da
Feitosa! E ahi soubera
com
desgosto, por um
moço da quinta decerto exagerado, que o Sr. Conselheiro nas
ultimas semanas andára doente... E, então como
estava? como
estava?―Oh! a physionomia era excellente!
―Pois não é verdade, Sr.
a
D. Anna? O aspecto
é excellente!
Com um leve requebro da cabeça, um fofo ondear do
mólho de plumas brancas sobre o chapéo de palha
vermelha, ella volveu n'uma
voz rolada, lenta e gorda, que arripiou Gonçalo:
―O Sanches agora, graças a Deus, desfructa melhor saude...
―Um pouco melhor, sim, com effeito, muito agradecido a V. Ex.
a,
Sr. Gonçalo Ramires! murmurou o descarnado e corcovado
homem,
repuxando para os joelhos o chale-manta.
E, com os oculos a luzir, cravados em Gonçalo, na
curiosidade que o abrazava, quasi lhe rosára a face afilada,
mais amarella que
um cirio:
―Mas, com perdão de V. Ex.
a! como
é que V.
Ex.
a anda por aqui, pela estrada de Corinde,
n'este estado, a pé, trazendo
á rédea um lavrador de enxada?...
[106]
Rindo, sobretudo para D. Anna, cujos olhos formosamente negros, d'uma
funda refulgencia liquida, tambem esperavam, serios e reservados,
Gonçalo contou o desastre do bom homem, que
encontrára no caminho gemendo, arrastando a perna
escalavrada...
―De sorte que lhe offereci a minha egua... E até, se V.
Ex.
a me permitte, minha senhora, é
necessario que eu combine com
elle o resto da jornada...
Rapidamente, voltou ao Sôlha, que, de novo acanhado ante os
senhores da
Feitosa, com o chapeu na
mão, encolhido
sobre o sellim,
como attenuando a sua grandeza, logo se desestribou para desmontar. Mas
já Gonçalo lhe ordenava que trotasse para a
Finta―e lhe
mandasse a egua por um dos seus rapazes, alli á Bica-Santa,
onde elle se
demorava com o Snr. Conselheiro. E quando o Sôlha largou,
saudando
desabaladamente, torcido, como impellido a seu pezar pelos acenos
risonhos com que o Fidalgo o despedia, o assombro do Sanches Lucena
recomeçou:
―Ora uma cousa d'estas! Eu tudo esperaria, tudo, menos o Sr.
Gonçalo Mendes Ramires a trazer á
rédea, pela estrada de
Corinde, um cavador d'enxada! É a
repetição do Bom
Samaritano... Mas para melhor!
Gonçalo gracejou, sentado no banco, junto de Sanches
Lucena.―Oh! o Bom Samaritano não merecera
[107]uma pagina tão
amavel no
Evangelho sómente por offerecer o burro a um Levita doente:
decerto mostrára
virtudes mais bellas...―E sorrindo para D. Anna, que, do outro lado de
Sanches Lucena, espalhava a luneta, com lentidão magestosa,
pelas
arvores e pela Fonte que tão bem conhecia:
―Ha dous annos, minha senhora, que eu não tenho a honra...
Mas Sanches Lucena despediu um grito:
―Oh! Sr. Gonçalo Ramires! V. Ex.
a
traz sangue na
mão!
O Fidalgo reparou, espantado. Sobre a luva de camurça branca
resaltavam duas manchas arroxeadas:
―Não é sangue meu! foi naturalmente quando o
Sôlha montou, e eu lhe segurei o pé escalavrado...
Arrancou a luva, que arremessou para as hervas bravas, por traz do
banco de pedra. E continuando o sorriso:
―Com effeito, não tenho a honra de encontrar a V. Ex.
a,
minha senhora, desde o baile do barão das Marges, em
Oliveira, o famoso
baile de Entrudo... Ha mais de dois annos, era eu estudante. E ainda me
recordo que V. Ex.
a estava vestida
esplendidamente de
Catharina da Russia...
E, emquanto a envolvia no sorrir dos olhos finos e meigos,
pensava:―«Formosa creatura! mas ordinaria!
[108]e que
voz!...» D. Anna tambem se recordava do baile dos Marges:
―O cavalheiro, porém, está equivocado. Eu
não fui de Russa, fui de Imperatriz...
―Sim, d'Imperatriz da Russia, de Grande Catharina... E com um gosto!
com um luxo!
Sanches Lucena voltou vagarosamente para Gonçalo os oculos
d'ouro, apontou um dedo alongado e livido:
―Pois tambem eu me lembro que sua mana, e minha senhora, a Sr.
a
D. Graça, trazia um trage de lavradeira de Vianna... Foi uma
luzidissima festa; nem admira; o nosso Marges é sempre
primoroso... E
desde essa noite não tornei a encontrar a mana de V. Ex.
a
em
intimidade. Apenas de longe, na missa...
De resto pouco residia agora em Oliveira, apesar de conservar a casa
montada, creadagem e cocheira―porque, ou culpa do ar ou culpa da agua,
não se dava bem na Cidade.
Gonçalo acalorou mais o seu interesse:
―Mas então, realmente, V. Ex.
a o que
tem tido?
Sanches Lucena sorriu, com amargura. Os medicos, em Lisboa,
não se entendiam. Uns attribuiam ao estomago―outros
attribuiam ao
coração. Portanto, aqui ou alli, viscera
essencial atacada. E soffria
crises―más crises... Emfim, com a graça de
[109]Deus, e regimen, e leite,
e
descanço, ainda esperava arrastar uns annos.
―Oh! com certeza! exclamou Gonçalo alegremente. E V. Ex.
a
não pensa que a estada em Lisboa, e as Camaras, e a
Politica, a terrivel Politica, o fatiguem, o agitem?...
Não, pelo contrario, Sanches Lucena passava toleravelmente
em Lisboa. Melhor mesmo que na
Feitosa! Depois,
gostava
d'aquella
distracção das Camaras. E como conservava amigos
na Capital, uma roda escolhida, uma roda fina...
―Um d'esses nossos excellentes amigos, V. Ex.
a
decerto conhece. Elle
é parente de V. Ex.
a... O D.
João da
Pedrosa.
Gonçalo, alheio ao homem, mesmo ao nome, murmurou
polidamente:
―Sim, o D. João, decerto...
E Sanches Lucena, passando pelas suissas brancas a mão
magrissima, quasi transparente, onde reluzia um enorme annel d'armas de
saphira:
―E não sómente o D. João... Outro dos
nossos amigos é egualmente parente de V. Ex.
a,
e chegado. Muitas vezes
temos fallado de V. Ex.
a, e da sua casa. Que
elle pertence tambem á primeira
nobreza... É o Arronches Manrique.
―Cavalheiro muito dado, muito divertido! accrescentou D. Anna, com uma
convicção que lhe
[110]alteou
o peito, a que o corpete
justo marcava a força viçosa e a
perfeição.
A Gonçalo tambem nunca chegára esse nome
sonóro. Mas não hesitou:
―Sim, perfeitamente, o Manrique... De resto, eu tenho tantos parentes
em Lisboa, e vou tão pouco a Lisboa!... E V. Ex.
a,
Sr.
a D.
Anna...
Mas o Sanches Lucena insistia, deliciado n'aquella conversa de
parentescos fidalgos:
―V. Ex.
a, naturalmente, tem em Lisboa toda a
sua parentella historica. Assim eu creio que V. Ex.
a
é primo do
Duque de
Lourençal... O Duarte Lourençal! Elle
não usa o titulo, por Miguelismo,
ou antes por habito: mas emfim é o legitimo Duque de
Lourençal.
É quem representa a casa de Lourençal.
Gonçalo, sorrindo attentamente, desabotoára o
fraque, procurava a sua velha charuteira de couro.
―Sim, com effeito, o Duarte... Somos primos. Diz elle que somos
primos. E eu acredito. Entendo tão pouco d'arvores de
costado!... De
facto as casas em Portugal andam muito cruzadas; todos somos parentes,
não só pelo lado d'Adão, mas pelos
Godos... E V. Ex.
a,
Sr.
a D.
Anna, prefere a estada em Lisboa?
Mas, reparando que escolhera um charuto, distrahidamente o
trincára:
―Oh! perdão minha senhora... Ia fumar sem saber se V.
Ex.
a...
[111]
Ella saudou, descendo as longas pestanas:
―O cavalheiro póde fumar; o Sanches não fuma,
mas eu até aprecio o cheiro.
Gonçalo agradeceu, enjoado com aquella voz redonda e gorda,
aquelles horrendos «
cavalheiro, o cavalheiro!...»
Mas
pensava:―«que linda pelle! que bella creatura!...»
E Sanches Lucena, inexoravel,
estendera o dedo agudo:
―Pois eu conheço muito, não o Sr. D. Duarte
Lourençal, não tenho essa subida honra por ora,
mas seu irmão, o Sr. D. Philippe.
Cavalheiro estimabilissimo, como V. Ex.
a decerto
sabe... E
depois, que talento... Que talento, no cornetim!
―Ah!
―O quê! V. Ex.
a não ouviu
seu primo, o Sr. D.
Philippe Lourençal, tocar cornetim?
E até a bella D. Anna se animou, com um sorriso languido dos
beiços cheios, mais vermelhos que cerejas maduras sobre o
fresco rebrilho dos dentes pequeninos:
―Oh! tóca ricamente! O Sanches gosta muito de musica; eu
tambem... Mas, como V. Ex.
a comprehende, qui na
aldéa, com a falta de
recursos...
Gonçalo, arremessando o phosphoro, exclamára
logo, n'um sincero interesse:
―Então, queria que V. Ex.
a ouvisse
um amigo meu, que
é verdadeiramente sublime no violão, o
Videirinha!...
[112]
Sanches Lucena estranhou o nome, a sua vulgaridade. E o Fidalgo,
singelamente:
―É um rapaz muito meu amigo, de Villa-Clara... O
José Videira, ajudante da Pharmacia...
Os oculos de Sanches Lucena cresceram de puro espanto:
―Ajudante da Pharmacia e amigo do Sr. Gonçalo Mendes
Ramires!
Sim, desde estudante, dos exames do Lyceu. Até o Videirinha
passava as ferias na Torre, com a mãe, antiga costureira da
casa.
Tão bom rapaz, tão simples... E na realidade, no
violão, um
genio!
―Agora tem elle uma cantiga admiravel que chamou o
Fado dos
Ramires. A musica é com effeito um fado de
Coimbra, um fado
conhecido. Mas os versos são d'elle, umas quadras
engraçadas sobre
cousas da minha Casa, lendas, patranhas... Pois ficou sublime! Ainda ha
dias na Torre, comigo e com o Titó...
E a este nome, familiar e menineiro, Sanches Lucena mostrou outro
reparo:
―O Titó?
O Fidalgo ria:
―É uma velha alcunha d'amizade que nós damos ao
Antonio Villalobos.
Então Sanches Lucena atirou ambos os braços, como
se alguem muito querido apparecesse na estrada:
[113]―O Antonio
Villalobos! Mas esse é um dos nossos fieis e
bons amigos! Cavalheiro estimabilissimo! Quasi todas as semanas nos faz
o favor de apparecer pela
Feitosa...
E agora era o Fidalgo que pasmava ante essa intimidade a que nunca o
Titó alludira, quando no Gago, na Torre, na
Assembléa, se berrava, politicando, o nome do Sanches Lucena!
―Ah V. Ex.
a conhece...
Mas D. Anna, que se erguera bruscamente do banco, e,
debruçada, recolhia a luva e a sombrinha―lembrou ao marido
o estriar lento da tarde, a neblina subindo sempre áquella
hora do valle aquecido:
―Sabes que nunca te faz bem... E tambem não faz bem
á parelha, assim parada, ha tanto tempo.
Immediatamente Sanches Lucena, receioso, puxára da algibeira
um espesso lenço de sêda branca para abafar o
pescoço. E, receioso tambem pela parelha, logo se arrancou
pesadamente do banco de pedra, com um aceno cançado ao
trintanario para apanhar o chale, avisar o
cocheiro. Mas
ainda atravessou, vergado e arrimado á bengala, para o
parapeito que resguarda a estrada sobre o despenhado pendor do monte,
dominando o valle. E confessava a Gonçalo que aquelle era,
nos arredores
da
Feitosa, o seu passeio preferido.
Não
só pela
belleza do sitio,
[114]já
cantado pelo «nosso mavioso Cunha Torres»;―mas
porque do terraço da Bica, sem esforço, sentado
no banco, avistava n'uma largueza
terras suas:
―Olhe V. Ex.
a... Para além d'aquelle
souto, até
á chã e ao comoro onde está a casota
amarella e por traz o pinhal, tudo
é meu... O pinhal ainda é meu...
Acolá, do renque d'álamos
para deante, depois do lameiro, é tambem meu... Alli, do
lado da ermida, pertence ao Monte-Agra... Mas, mais para lá,
passado o azinhal, pelo monte acima,
é tudo meu!
O livido dedo, o braço escanifrado na manga de casimira
preta, cresciam por sobre o valle.―Além os pastos...
Adeante os centeios...
Depois o bravio...―Tudo d'elle! E, por traz da magra figura
alquebrada, de chapéo enterrado na nuca, o abafo de seda
subido
até ás pallidas orelhas quasi despegadas, D.
Anna, esvelta, clara e sã como um
marmore, com um sorriso esquecido nos labios gulosos, o formoso peito
mais cheio, acompanhava a enumeração copiosa,
affincava a
luneta sobre os pastos, e os pinhaes, e os centeios, sentindo
já―tudo d'ella!
―E agora acolá, detraz do olival, concluiu Sanches Lucena
com respeito, é sitio seu, Sr. Gonçalo Mendes
Ramires...
―Meu?...
―De V. Ex.
a, quero dizer, ligado á
casa de V. Ex.
a. Pois
não reconhece?... Além, por traz do
[115]moinho, passa a estrada de
Santa Maria de Craquêde. São os tumulos dos seus
antepassados... Passeio que eu tambem ás vezes
faço, e com gosto. Ainda ha um
mez visitamos detidamente as ruinas. E acredite que fiquei
impressionado! Aquelle bocado de claustro tão antigo, os
grandes esquifes de pedra, a espada
chumbada á abobada por cima do tumulo do meio...
É de commover! E achei
muito bonito, muito filial, da parte de V. Ex.
a,
o ter
sempre aquela lampada de bronze accêsa de noite e de dia...
Gonçalo engrolou um murmurio risonho―porque não
se recordava da espada, nunca recommendára a lampada. Mas
Sanches Lucena, agora,
supplicava um precioso favor ao snr. Gonçalo Mendes Ramires.
E era que S.
Ex.
a lhe concedesse a honra de o conduzir na
carruagem á Torre...
Alvoroçadamente Gonçalo recusou. Nem podia!
combinára com o homem
da perna dorida esperar alli, na Bica, pela sua egoa.
―Mas fica aqui o meu trintanario, que leva a egoa de V. Ex.
a
á Torre.
―Não, não, se V. Ex.
a me
permitte, eu espero...
Depois metto pelo atalho da Crassa, porque tenho ás oito
horas na Torre,
á minha espera para jantar, o Titó.
D. Anna, do meio da estrada, apressou logo o marido sacudidamente, com
a ameaça renovada da
[116]friagem,
do relento... Mas, junto da
caleche, Sanches Lucena ainda emperrou para affirmar a
Gonçalo, com a
descarnada mão sobre o encovado peito, que aquella tarde lhe
ficava celebre...
―Porque vi uma cousa que poucas vezes se terá visto: o
maior fidalgo de Portugal, a pé pela estrada de Corinde,
levando á
rédea no seu proprio cavallo um cavador de enxada!
Ajudado por Gonçalo, trepou emfim pesadamente ao estribo. D.
Anna já se enterrára nas almofadas,
alçando entre as
mãos, como uma insignia, o cabo rebrilhante da luneta
d'ouro. O trintanario tambem se entezou, cruzou os braços: e
a caleche apparatosa, com as manchas
brancas das rêdes dos cavallos, mergulhou no silencio e na
penumbra da
estrada, sob a espalhada ramaria das faias.
«Que massada!» exclamou Gonçalo. E
não se consolava de tarde tão linda assim
desperdiçada... Intoleravel, esse Sanches Lucena, com
o Snr. D. Fulano e o Snr. D. Sicrano, e a sua gula de
«róda
fina», e «tudo d'elle» por collina e
valle! A mulher, explendida péça de
carne, como filha de carniceiro,―mas sem migalha de graça
ou alma. E que voz,
Jesus, que voz! Gente pedante e sabuja...―E agora só
desejava
recuperar a sua egoa, galopar para a Torre, e desabafar com o
Titó, familiar
da
Feitosa! o seu ásco por toda
aquella
Sancharia.
[117]
A egoa não tardou, a tróte largo, montada pelo
filho do Sôlha, que, ao avistar o Fidalgo, saltou
á estrada, de chapeu na
mão, encouchado e encarnado, balbuciando que o pae
chegára bem, pedia a Nosso
Senhor lhe pagasse a caridade...
―Bem, bem! Recados a teu pae. Que estimo as melhoras. Lá
mandarei saber.
N'um pulo montára―galopava pelo facil atalho da Crassa.
Mas, deante do portão da Torre, encontrou um moço
do Gago, com
um bilhete do Titó, annunciando que não podia
jantar na Torre porque partia
n'essa semana para Oliveira!
―Que disparate! Para Oliveira tambem eu parto; mas janto hoje!
Até combinavamos, o levava na carruagem... Elle que ficou a
fazer, o Snr. D. Antonio?
O rapaz coçou pensativamente a cabeça:
―O Snr. D. Antonio passou lá por casa para eu trazer o
bilhete ao Fidalgo... Depois, creio que tem festa, porque entrou
defronte no tio Cosme fogueteiro, a comprar bichas de rabear...
Aquellas inesperadas bichas de rabear causaram logo ao Fidalgo uma
immensa inveja:
―E onde é a festa, sabes?
―Eu não sei, meu Fidalgo... Mas parece que é
cousa rija, porque o Snr. João Gouvêa encommendou
lá ao
patrão dous grandes pratos de bolos de bacalhau.
[118]
Bolos de bacalhau! Gonçalo sentio como a amargura de uma
traição:
―Oh! que animaes!
E de repente ideou uma vingança alegre:
―Pois se vires hoje o Snr. D. Antonio ou o Snr. João
Gouvêa não te esqueças de lhes dizer
que sinto muito... Que eu tambem
cá tinha á noite na Torre uma festa. E havia
senhoras. Vinha a Snr.
a
D. Anna Lucena... Não te esqueças, hein?
Gonçalo galgou as escadas rindo da sua
invenção. Mas, n'essa noite, ás nove
horas, depois do arrastado e atochado jantar com o Manoel Duarte,
entrou na sala grande dos retratos, apenas allumiada pelo
lampeão dourado do corredor, para buscar uma caixa de
charutos. E casualmente, atravez da janella aberta, reparou n'um homem
que, em baixo, rente da sombra dos alamos, rondava, espreitava... Mais
attento, imaginou reconhecer os poderosos hombros, o andar bovino do
Titó. Mas
não, com certesa! o homem trasia jaqueta e
carapuço de lã.
Curioso, abafando os passos, ainda se abeirou da varanda. O vulto
porém descera
da estrada, logo sumido sob as arvores d'uma quelha que contorna o
Casal do Miranda, e desemboca adiante, na Portella, junto das primeiras
casas de Villa-Clara.
IV
O palacete dos Barrôlos em Oliveira (conhecido desde o
começo do seculo pela Casa dos
Cunhaes)
erguia a sua fidalga
fachada de doze varandas no Largo d'El-Rei, entre uma solitaria viella
que conduz ao Quartel e a rua das Tecedeiras, velha rua mal empedrada,
ladeirenta, opprimida pelo comprido terraço do jardim, e
pelo muro fronteiro da antiga
cerca das Monicas. E n'essa manhã, justamente quando
Gonçalo, na caleche da Torre puxada pela parelha do Torto,
desembocava no Largo d'El-Rei, subia pela Tecedeiras, dobrando a
esquina dos Cunhaes, n'um cavallo negro de fartas clinas, que feria as
lages com soberba e garbo, o Governador Civil, o André
Cavalleiro, de collete branco e chapeu de palha. N'um
relance, do fundo da caleche, o Fidalgo ainda o surprehendeu levantando
os pestanudos olhos
[120]negros
para as varandas de ferro do palacete. E pulou, com um murro no joelho,
rugindo surdamente―«que
biltre!» Ao apear no portão (um portão
baixo, como esmagado pelo
immenso escudo de armas dos Sás) tão suffocada
indignação o impellia que não reparou
nas effusões do porteiro, o velho Joaquim da Porta, e
esqueceu dentro da caleche os presentes para Gracinha, a caixa com o
guardasolinho e um cesto de flores da Torre coberto de papel de
sêda. Depois em cima, na
sala d'espera, onde José Barrôlo correra, ao
sentir nas
lages do Largo silencioso o estrepito do calhambeque, desabafou logo,
arrebatadamente, atirando o guarda pó para uma cadeira de
couro:
―Oh senhores! Que eu não possa vir á cidade sem
encontrar de cara este animal do Cavalleiro! E sempre no Largo,
defronte da casa! É
sorte!... Esse bigodeira não achará outro logar
para onde
vá caracolar com a pileca?
José Barrôlo, um moço gordo, de cabello
ruivo e crespo, com um buço claro n'uma face mais redonda e
córada que uma bella
maçã, accudiu, ingenuamente:
―Pileca?!... Oh, menino, tem agora um cavallo lindo! Um cavallo lindo,
que comprou ao Marges!
―Pois bem! É um burro feio em cima d'um cavallo bonito. Que
fiquem ambos na cavallariça. Ou que vão ambos
pastar
para as Devezas!
[121]
O Barrôlo escancarou a bôca larga e fresca, de
soberbos dentes, n'um lento pasmo. E de repente, com uma patada no
soalho, vergado pela cinta, rompeu n'uma risada que o suffocava, lhe
inchava as veias:
―Essa é d'arromba! Não, essa é para
contar no Club... Um burro feio em cima d'um cavallo bonito! E ambos a
pastarem!... Tu vens hoje rico, menino! Olha que essa! Ambos a
pastarem, com os focinhos na herva, o Governador civil e o cavallo...
É d'arromba!
Rebolava pela sala, com palmadas radiantes sobre a coxa obesa. E
Gonçalo, adoçado por aquella
ovação que celebrava a sua facecia:
―Bem. Dá cá esses ossos, ou antes esses untos. E
como vae a familia? A Gracinha?... Oh! viva a linda flôr!
Era ella, com a sua ligeiresa airosa e menineira, os magnificos
cabellos soltos sobre um penteador de rendas, correndo
alvoroçada
para o irmão, que a envolveu n'um abraço e em
dous beijos sonoros. E
immediatamente, recuando, a declarou mais bonita, mais gorda:
―Positivamente estás mais gorda, até mais
alta... É sobrinho?... Não? nada, por ora?
Gracinha córou, com aquelle seu languido sorriso que mais
lhe humedecia e lhe enternecia a doçura dos olhos
esverdeados.
[122]―Se ella
não quer, ella não quer! gritava o
José Barrôlo, gingando, com as mãos
enterradas nos bolsos do jaquetão que lhe
desenhava as ancas roliças. A culpa não
é cá
do patrão... Mas ella não se decide!
O fidalgo da Torre reprehendeu a irmã:
―Pois é necessário um menino. Eu por mim
não caso, não tenho geito: e lá se
vão d'esta feita Barrôlos e
Ramires! A extincção dos Barrôlos
é uma limpeza. Mas, acabados os Ramires, acaba Portugal.
Portanto, Snr.
a D. Graça Ramires,
depressa, em nome da
nação, um morgado! Um morgado muito gordo, que eu
pretendo que se chame Tructesindo!
Barrôlo protestou, aterrado:
―O que? Turtesinho? Não! para tal sorte não o
fabríco eu!
Mas Gracinha deteve aquelles gracejos picantes, desejosa de saber da
Torre, e do Bento, e da Rosa cosinheira, e da horta, e dos
pavões... Conversando, penetraram na outra sala, guarnecida
de contadores da India, de pesados cadeirões dourados de
damasco azul, com
tres varandas sobre o Largo d'El-Rei. Barrôlo enrolou um
cigarro, reclamou
a historia do Relho, da grande desordem. Tambem elle
arranjára uma
«pega» com o rendeiro da
Ribeirinha,
por causa d'um
córte de pinhal.
Essa do Relho porém fôra tremenda...
[123]
E Gonçalo, enterrado ao canto do fundo camapé
azul, desabotoando preguiçosamente o jaquetão de
chaviote claro:
―Não! foi muito simples. Já ha mezes esse Relho
andava bebedo, sem despegar... Uma noite berrou, ameaçou a
Rosa, agarrou n'uma
espingarda. Eu desci, e n'um instante a Torre ficou
desembaraçada de
Relhos e de barulhos.
―Mas veio o Regedor, com cabos! accudio o Barrôlo.
Gonçalo saccudiu os hombros, impaciente:
―Veio o regedor? Veio depois, para legalisar! Já o homem
abalára, corrido. E como resultado arrendei a Torre ao
Pereira, ao Pereira da Riosa...
Contou esse negocio excellente, tratado na varanda, ao
almoço, entre dous copos de vinho verde. Barrôlo
admirou a renda―gabou o
rendeiro. Assim Gonçalo descortinasse outro Pereira para a
quinta de
Treixedo, terra tão generosa, tão mal amanhada!
Á borda do camapé, coberta pelos bellos cabellos
que lavára n'essa manhã e que cheiravam a
alecrim, Gracinha comtemplava o irmão com
ternura:
―E do estomago, andas melhor? Continuam as ceias com o Titó?
―Oh! esse animal! exclamou Gonçalo. Ha dias prometteu
jantar na Torre, até a Rosa assou um cabrito no espeto,
magnifico... Depois
falhou: creio
[124]
que teve uma orgia infame, com bichas de rabear. Elle vem esta semana a
Oliveira... E é verdade! vocês sabiam da
intimidade do Titó com o Sanches Lucena?
Historiou então, com exagero alegre, o encontro da
Bica-Santa, o horror que lhe causára a bella D. Anna, a
descoberta inesperada
d'essa familiaridade do Titó na
Feitosa.
Barrôlo recordou que uma tarde, antes do S. João,
avistára o Titó, deante do portão da
Feitosa,
a passear
pela trela um
cãosinho branco de regaço...
―Mas o que eu não comprehendo, menino, é esse
teu «horror» pela D. Anna... Caramba! Mulher
soberba! Um quebrado de quadris, uns
olhões, um peitoril...
―Calle essa bôca impura, devasso! gritou Gonçalo.
Pois aqui ao lado da sua mulher, que é a flôr das
Graças,
ousa louvar semelhante peça de carne!
Gracinha rindo, sem ciumes, comprehendia «a
admiração do José.»
Realmente, a Anna Lucena, que vistosa, que bella!...
―Sim, concedeu Gonçalo, bella como uma bella egoa... Mas
aquella voz gorda, papuda... E a luneta, os modos... E «o
cavalheiro
póde fumar, o cavalheiro está
enganado...» Oh! senhores,
pavorosa!
Barrôlo gingava, deante do sophá, com as
mãos nos bolsos da rabona:
[125]―Uvas verdes, Snr.
D. Gonçalo, uvas verdes!
O Fidalgo dardejou sobre o cunhado uns olhos ferozes:
―Nem que ella se me offerecesse, de joelhos, em camisa, com os
duzentos contos do Sanches n'uma salva d'ouro!
Sorrindo, vermelha como uma pionia, com um «oh»
escandalisado, Gracinha bateu no hombro de Gonçalo―que
puxou por ella,
galhofeiramente:
―Venha lá essa bochecha, e outra beijoca, para purificar!
Com effeito, só pensar na D. Anna arrasta a gente
ás imagens
brutaes... Dizias então do estomago... Sim, filha,
combalido. E ha dias mais pesado, desde o tal cabrito no espeto e da
companhia beberrona do Manoel Duarte. Tu tens
cá agua de Vidago?... Então,
Barrôlinho, sê
angelico. Manda trazer já uma garrafinha bem fresca. E olha!
pergunta se subiram um
açafate e uma caixa de papelão que eu deixei na
caleche? Que ponham no meu
quarto. E não desembrulhes, que é surpreza...
Escuta! Que
me levem agua bem quente. Preciso mudar toda a roupa... Estava uma
poeirada por esse caminho!
E quando o Barrôlo abalou, a rebolar e a assobiar,
Gonçalo, esfregando as mãos:
―Pois vocês ambos estão explendidos! E na
harmonia que convem. Tu positivamente mais fórte,
[126]mais cheia. Até
pensei
que fosse sobrinho. E o Barrôlo mais delgado, mais leve...
―Oh, agora o José passeia, monta a cavallo, já
não adormece tanto depois de jantar...
―E a outra familia? A tia Arminda, o rancho Mendonça?
Bem?... Padre Sueiro, que é feito d'esse santo?
―Teve um ataquesito de rheumatismo, muito ligeiro. Agora bom, sempre
no Paço do Bispo, na Bibliotheca... Parece que se entretem a
fazer um livro sobre os Bispos.
―Bem sei, a Historia da Sé d'Oliveira... Pois eu tambem
tenho trabalhado muito, Gracinha! Ando a escrever um Romance.
―Ah!
―Um Romance pequeno, uma Novella, para os
Annaes de
Litteratura e de Historia, uma Revista que fundou um rapaz
meu amigo, o
Castanheiro...
É sobre um facto historico da nossa gente... Sobre um
avô
nosso, muito antigo, Tructesindo.
―Tem graça, que fez elle?
―Horrores. Mas é pittoresco... E depois o Paço
de Santa Ireneia, no século XII, em todo o seu explendor!
Emfim uma bella
reconstrucção do velho Portugal e sobre tudo dos
velhos Ramires. Has-de gostar...
Não ha amores, tudo guerras. Apenas, muito remotamente, uma
das nossas antepassadas, uma
[127]D.
Menda, que eu nem sei se realmente existiu. Tem seu chic, hein?... E tu
comprehendes, como eu desejo tentar a Politica, preciso primeiramente
apparecer, espalhar o meu nome...
Gracinha sorria docemente para o irmão, no costumado enlevo:
―E agora tens alguma idéa? A tia Arminda lá
continua sempre com a teima que devias entrar na Diplomacia. Ainda ha
dias... «Ai, o
Gonçalinho, assim galante, e com aquelle nome, só
n'uma grande
embaixada!»
Gonçalo despegára lentamente do vasto
camapé, reabotoando o jaquetão claro:
―Com effeito ando com uma idéa, ha dias... Talvez me viesse
d'um romance inglez, muito interessante, e que te recommendo, sobre as
antigas Minas de Ophir,
King Salomon's Mines...
Ando com
idéas de ir para a Africa.
―Oh Gonçalo, credo! Para a Africa?
O escudeiro entrára com duas garrafas de agua de Vidago,
ambas desarrolhadas, n'uma salva. Precipitadamente, para aproveitar o
«piquesinho», Gonçalo encheu um copo
enorme de crystal lavrado. Ah! que delicia d'agua!―E como o
Barrôlo voltava, annunciando que
cumprira as ordens de S. Ex.
a:
―Bem! então logo conversamos ao almoço,
Gracinha! Agora lavar, mudar de roupa, que não paro com
estas infames comichões...
[128]
Barrôlo acompanhou o cunhado ao quarto, um dos mais
espaçosos e alegres do Palacete, forrado de cretones
côr de canario com uma
varanda para o jardim, e duas janellas de peitoril sobre a rua das
Tecedeiras e os velhos arvoredos do convento das Monicas.
Gonçalo impaciente
despiu logo
o casaco, saccudiu para longe o collete:
―Pois tu estás explendido, Barrôlo! Deves ter
perdido tres ou quatro kilos. São naturalmente os kilos que
Gracinha ganhou...
Vocês, se assim se equilibram, ficam perfeitos.
Deante do espelho Barrôlo acariciava a cinta, com um risinho
deleitado:
―Realmente, parece que adelgacei... Até sinto nas
calças...
Gonçalo abrira o gavetão da rica commoda de
ferragens douradas, onde conservava sempre roupa (até duas
casacas), para evitar o
transporte de malas entre os Cunhaes e a Torre. E ria, aconselhava o
bom
Barrôlo a «adelgaçar» sem
descanço,
para belleza da futura raça Barrolica―quando em baixo, na
silenciosa rua das Tecedeiras as patas de um cavallo de luxo feriram as
lages em cadencia lenta.
Logo desconfiado, Gonçalo correu á janella, ainda
com a camisa que desdobrava. E era
elle! Era o
André
Cavalleiro, que descia
ladeando, sopeando a rédea, para escarvar com garbo e fragor
[129]a rampa
mal empedrada. Gonçalo virou para o Barrôlo a face
chammejante de furôr:
―Isto é uma provocação! Se este
descarado d'este Cavalleiro passa outra vez na maldita pileca, por
debaixo das janellas, apanha com um balde d'agua suja!...
Barrôlo, inquieto, espreitou:
―Naturalmente vae para casa das Louzadas... Anda agora muito intimo
das Louzadas... Sempre por aqui o vejo... E é para as
Louzadas.
―Que seja para o inferno! Pois, em toda a cidade, não ha
outro caminho para casa das Louzadas? Duas vezes em meia hora! Grande
insolente! Tem uma chapada d'agua de sabão, pela grenha e
pela bigodeira,
tão certo como eu ser Ramires, filho de meu pae Ramires!
Barrôlo beliscava a pelle do pescoço, constrangido
ante aquelles rancores ruidosos que desmanchavam o seu socego.
Já, por
imposição de Gonçalo, rompera
desconsoladamente com o Cavalleiro. E agora
antevia sempre uma bulha, um escandalo que o indisporia com os amigos
do Cavalleiro, lhe vedaria o Club e as doçuras da Arcada,
lhe
tornaria Oliveira mais enfadonha que a sua quinta da
Ribeirinha
ou da
Murtosa, solidões detestadas.
Não se conteve,
arriscou o costumado reparo:
[130]―Ó
Gonçalinho, olha que tambem todo esse
espalhafato só por causa da Politica...
Gonçalo quasi quebrou o jarro, na furia com que o pousou
sobre o marmore do lavatorio:
―Politica! Ahi vens tu com a Politica! Por Politica não se
atira agua suja aos Governadores Civis. Que elle não
é
Politico, é só malandro! Além d'isso...
Mas terminou por encolher os hombros, emmudecer, diante do pobre
bacôco de bochechas pasmadas, que, n'aquellas rondas do
Cavalleiro pelos Cunhaes, só notava o «lindo
cavallo» ou
«o caminho mais curto para as Louzadas!...»
―Bem! resumiu. Agora larga, que me quero vestir... Do bigodeira me
encarrego eu.
―Então, até logo... Mas se elle passar nada
d'asneiras, hein?
―Só justiça, aos baldes!
E bateu com a porta nas costas resignadas do bom Barrôlo,
que, pelo corredor, suspirando, lamentava o assomado genio do
Gonçalinho, as coleras desproporcionadas em que o
lançava «a
Politica.»
Em quanto se ensaboava com vehemencia, depois se vestia n'uma pressa
irada, Gonçalo ruminou aquelle intoleravel escandalo.
Fatalmente, apenas se apeava em Oliveira, encontrava o homem da grande
guedelha, caracolando por sob as janellas do palacete,
[131]na pileca de grandes
clinas! E o que o desolava era perceber no
coração de Gracinha, pobre
coração meigo e sem fortaleza, uma teimosa raiz
de ternura pelo Cavalleiro, bem enterrada, ainda vivaz, facil de
reflorir... E nenhum outro sentimento forte que a defendesse, n'aquella
ociosidade d'Oliveira―nem superioridade do marido, nem encanto d'um
filho no seu berço. Só a amparava o orgulho,
certo respeito
religioso pelo nome de Ramires, o medo da pequena terra espreitadeira e
mexeriqueira. A sua salvação seria o abandono da
cidade, o encerrado
retiro n'uma das quintas do Barrôlo, a
Ribeirinha,
sobretudo a
Murtosa,
com a linda matta, os musgosos muros de convento, a aldêa em
redor para
ella se occupar como castellã benefica. Mas quê!
Nunca o
Barrôlo, consentiria em perder o seu voltarete no Club, e a
cavaqueira da tabacaria
«Elegante», e as chalaças do Major Ribas!
Afogueado pelo calor, pela emoção,
Gonçalo abriu a varanda. Em baixo, no curto
terraço ladrilhado, orlado de vasos de
louça, precedendo o jardim, Gracinha, ainda soltos os
cabellos por cima do penteador, conversava com outra senhora, muito
alta, muito magra, de chapeu marujo enfeitado de papoulas, que segurava
entre os braços um repolhudo
mólho de rosas.
[132]
Era a «prima» Maria Mendonça, mulher de
José Mendonça, condiscipulo do Barrôlo
em Amarante, agora capitão do Regimento de
Cavallaria estacionado em Oliveira. Filha d'um certo D. Antonio, senhor
(hoje Visconde) dos Paços de Severim, devorada pela
preoccupação de parentescos fidalgos, de origens
fidalgas, ligava sempre surrateiramente o vago solar de Severim a todas
as casas nobres de Portugal―sobre tudo, mais gulosamente, á
grande casa de Ramires: e, desde que o
regimento se aquartellára em Oliveira, tratára
logo Gracinha
por «tu» e Gonçalo por
«primo», com a intimidade especial, que convem a
sangues superiores. Todavia mantinha amisades muito seguidas e activas
com brazileiras ricas d'Oliveira―até com a viuva Pinho,
dona da loja de pannos,
que (segundo se murmurava) lhe fornecia os dous filhos ainda pequenos
de
calções e de jalecas. Tambem convivia
intimamente, já na cidade,
já na
Feitosa, com D. Anna Lucena.
Gonçalo gostava da sua graça, da
sua agudeza, da vivacidade maliciosa que a agitava n'uma linda
crepitação de galho, ardendo com alegria. E
quando, ao rumor da janella perra, ella levantou os olhos lusidios e
espertos, foi em ambos uma surpresa carinhosa:
―Oh prima Maria! Que felicidade, logo que chego e que abro a janella...
―E para mim, primo Gonçalo, que o não via
[133]desde
a sua volta de Lisboa!... Pois está mais lindo, assim de
bigode...
―Dizem que estou lindissimo, absolutamente irresistivel!
Até aconselho á prima Maria que se não
approxime muito de mim,
para se não incendiar.
Ella deixou pender desoladamente nos braços o seu pesado
molho de rosas:
―Ai Jesus, então estou perdida, que ainda agora prometti
á prima Graça jantar cá esta tarde!...
Oh Gracinha, por quem
és, põe um biombo entre os dois!
Gonçalo gritou, pendurado da varanda, já
deliciado com os chistes da prima Maria:
―Não! enfio eu um
abat-jour pela
cabeça para
attenuar o meu brilho!... E o maridinho, os pequenos? Como vae o nobre
rancho?
―Vivendo, com algum pão e muita graça de Deus...
Então até logo, primo Gonçalo! E seja
misericordioso!
E ainda elle ria, encantado―já a prima Maria depois de
cochichar e d'estalar dois beijos apressados na face de Gracinha,
desapparecêra pela porta envidraçada da sala com a
sua elegancia esgalgada.
Gracinha, lentamente, subiu os tres degraus de marmore do jardim. Da
varanda, Gonçalo ainda avistou atravez da ramaria leve,
entre as
sebes de buxo, o penteador branco, os fartos cabellos cabidos,
[134]relusindo no sol como uma
cascata de azeviche. Depois o negro brilho, as claras rendas,
desappareceram sob os loureiros da rua que conduzia ao Mirante.
Mas Gonçalo não se arredou d'entre as janellas,
limando vagamente as unhas, espreitando pelas cortinas, n'uma
desconfiança, quasi
n'um terror que o Cavalleiro de novo surgisse na pileca―agora que
Gracinha se embrenhára para os lados d'esse commodo Mirante,
construcção do seculo XVIII, imitando um
Templosinho do Amor, que rematava o longo
terraço do jardim e dominava a rua das Tecedeiras. Mas a
calçada
permanecia silenciosa, sob as derramadas sombras de arvoredo do
Palacete e do Convento. E por fim decidiu descer, envergonhado da
espionagem―certo que a irmã não se mostraria ao
Cavalleiro na
varandinha do Mirante, assim com os cabellos em desalinho, por cima
d'um penteador.
E cerrava a porta, quando se encontrou deante dos braços do
Padre Sueiro, que o prenderam pela cinta com affago e respeito.
―Oh! meu ingratissimo Padre Sueiro! exclamava Gonçalo,
batendo ternamente nas gordas costas do Capellão.
Então
que feia acção foi esta? Mais de um mez sem
apparecer na Torre! Agora para o Sr. Padre Sueiro
já não ha Gonçalinho, ha só
Gracinha...
Enternecido, quasi com uma lagrima a bailar
[135]nos
mansos olhos miudos, que mais negrejavam entre a frescura rozea da face
roliça e a
cabecinha branca como algodão―Padre Sueiro sorria, fechando
as
mãos sobre o peito
da batina d'alpaca, d'onde surdia a ponta de um lenço de
quadrados vermelhos. E não lhe escasseára
certamente o
desejo d'ir á Torre. Mas aquelle trabalhinho na Bibliotheca
do Paço do Bispo...
Depois o seu rheumatismosito... Emfim a Sr.
a D.
Graça sempre esperando
S. Ex.
a, um dia, outro dia...
―Bem, bem! acudiu alegremente Gonçalo, comtanto que o
coração não se esquecesse da Torre...
―Ah! esse! murmurou Padre Sueiro com commovida gravidade.
E pelo corredor de paredes azues, adornadas com gravuras coloridas das
batalhas de Napoleão, Gonçalo resumiu as
novidades da Torre:
―Como o Padre Sueiro sabe, rebentou aquelle escandalo do Relho... E
ainda bem, porque conclui um negocio explendido. Imagine! Arrendei ha
dias a quinta ao Pereira Brazileiro, ao Pereira da Riosa, por um conto
cento e cincoenta mil réis...
O capellão suspendeu a pitada, que colhera n'uma caixa de
prata dourada, pasmado para o Fidalgo:
―Ora ahi está como as cousas se inventam! Pois por
cá constou que V. Ex.
a
tratára com o José
Casco, o José
Casco dos Bravaes. Até no Domingo, ao almoço, a
Sr.
a D.
Graça...
[136]―Sim, interrompeu
o Fidalgo com uma fugidia côr na face
fina. Effectivamente o Casco veio á Torre,
conversámos.
Primeiramente quiz, depois não quiz. Aquellas cousas do
Casco! Einfim, uma
massada... Não ficou nada decidido. E quando o Pereira, uma
bella manhã, me
appareceu com a proposta, eu, inteiramente desligado, acceitei, e com
que alvoroço!... Imagine! Um augmento soberbo de renda, o
Pereira como rendeiro... O Padre Sueiro conhece bem o Pereira...
―Homem entendido, concordou o Capellão coçando
embaraçadamente o queixo. Não ha duvida. E homem
de bem... Depois
não havendo palavra dada ao Cas...
-―Pois o Pereira para a semana vem á cidade, atalhou
apressadamente Gonçalo. O Padre Sueiro previne o
tabellião
Guedes, e assignamos essa bella escriptura. São as
condições
costumadas. Creio que ha uma reserva a respeito da hortaliça
e do porco... Emfim o Padre Sueiro
deve receber carta do Pereira.
E immediatamente, descendo a escada, passando o lenço
perfumado pelo bigode, gracejou com o capellão sobre o
famoso
Fado
dos
Ramires em que elle collaborava com o Videirinha. Oh! Padre
Sueiro fornecera lendas sublimes! Mas aquella de Santa
Aldonça, realmente,
fôra ataviada com exageração... Quatro
Reis a levarem a Santa aos
hombros!
[137]―São
Reis de mais, Padre Sueiro!
O bom capellão protestou, logo interessado e serio, no amor
d'aquella obra que glorificava a Casa:
―Ora essa! Com perdão de V. Ex.
a...
Perfeitissimamente
exacto. Lá o conta o Padre Guedes do Amaral, nas suas
Damas
da
Côrte do
Ceu, livro precioso, livro rarissimo, que o Sr.
José Barrôlo
tem na Livraria. Não especifica os Reis, mas diz quatro...
«Aos hombros de quatro
Reis e com acompanhamento de muitos Condes.» Mas o nosso
José
Videira declarou que não podia metter os Condes por causa da
rima.
O Fidalgo ria, dependurando n'um cabide, ao fundo da escada, o chapeu
de palha com que descêra:
―Por causa da rima, pobres Condes... Mas o fado está lindo.
Eu trago uma copia para a Gracinha cantar ao piano... E agora outra
cousa, Padre Sueiro. O que se conta por ahi do Governador Civil, d'esse
Sr.
André Cavalleiro?...
O capellão encolheu os hombros, desdobrando cautelosamente o
seu vasto lenço de quadrados vermelhos:
―Eu, como V. Ex.
a sabe, não entendo
de Politica. Depois
tambem não frequento os cafés, os sitios onde se
questiona Politica...
Mas parece que gostam.
No corredor um escudeiro gordo, de opulentas
[138]suissas
ruivas, que
Gonçalo não conhecia, badalou a sineta do
almoço.
Gonçalo reparou, avisou o homem que a Snr.
a
D. Maria da Graça
andava para o fundo do
jardim...
―Entrou agora, Snr. D. Gonçalo! accudiu o escudeiro. E
até manda perguntar se V. Ex.
a deseja
para o
almoço vinho verde de
Amarante, de
Vidainhos.
Sim, com certeza, vinho de
Vidainhos. Depois
sorrindo:
―Oh Padre Sueiro, previna este escudeiro novo que eu não
tenho
Dom. Sou simplesmente Gonçalo,
graças a Deus!
O capellão murmurou que todavia, em documentos da Primeira
Dynastia, appareciam Ramires com
Dom. E, como
Gonçalo parara deante
do reposteiro corrido da sala, logo o bom velho se curvou, com as suas
escrupulosas, reverentes ceremonias, para o Fidalgo passar.
―Então, Padre Sueiro, por quem é!
Mas elle, com apegado respeito:
―Depois de V. Ex.
a, meu senhor...
Gonçalo afastou o reposteiro, empurrou docemente o
capellão:
―Padre Sueiro, já nos documentos da Primeira Dynastia se
estabeleceu que os Santos nunca andam atraz dos Peccadores!
―V. Ex.
a manda, e sempre com que
graça!
[139]
Depois dos annos de Gracinha, uma tarde, pelas tres horas,
Gonçalo, recolhendo com Padre Sueiro d'uma visita
á Bibliotheca do
Paço do Bispo, sentiu logo da antecamara o
vozeirão do Titó, que
rolava na sala azul em trovão lento. Franziu vivamente o
reposteiro―e sacudiu o
punho para o immenso homem que enchia um dos cadeirões
dourados,
estirando por sobre as flôres do tapete umas botas novas de
grossas tachas
reluzentes:
―Oh infame!... Então n'outro dia assim me larga, sem
escrupulo, depois de eu lhe preparar um cabrito estupendo, assado n'um
espeto de cerejeira? E para quê?... Para uma orgia reles, com
bolinhos
de bacalhau e bichinhas de rabear!
Titó não desmanchou a sua conchegada beatitude:
―Impossibilissimo. De tarde encontrei o João Gouveia no
Chafariz. E só então nos lembrámos de
que eram os annos da D.
Casimira. Dia sagrado!
Aquellas ceias de Villa-Clara, as tresnoutadas
«pandegas» com violão, impressionavam
sempre Barrôlo, que as appetecia. E com o olho
aguçado, do canto da mesa onde esfarelava cuidadosamente
pacotes de tabaco dentro de uma terrina do Japão:
―Quem é a D. Casimira? Vocês em Villa-Clara
descobrem uns typos... Conta lá!
[140]―Um monstro!
declarou Gonçalo. Uma matronaça
bojuda como uma pipa, com um pêllo nojento no
queixo. Vive ao pé do
Cemiterio, n'um cacifro que tresanda a petroleo, onde este senhor e as
auctoridades vão
jogar o quino, e derriçar com umas serigaitas de cazabeque
vermelho
e de farripas... Nem se póde decentemente contar deante do
Snr.
Padre Sueiro!
O capellão, que sem rumor se esbatera n'uma sombra discreta,
entre os franjados setins d'uma cortina e um pesado contador da India,
moveu os hombros n'um consentimento risonho, como acostumado a todas as
fealdades do Peccado. E, com pachorra, o Titó emendava o
esboço burlesco do Fidalgo:
―A D. Casimira é gorda, mas muito aceada. Até me
pediu para eu lhe comprar hoje, na cidade, uma bacia nova d'assento. A
casa
não cheira a petroleo e fica por traz do convento de Santa
Theresa. As serigaitas
são simplesmente as sobrinhas, duas raparigas alegres que
gostam de rir e de troçar... E o Snr. Padre Sueiro podia,
sem medo...
―Bem, bem! atalhou Gonçalo. Gente deliciosa! Deixemos a D.
Casimira, que tem bacia nova para os seus semicupios... Vamos
á outra
infamia do Sr. Antonio Villalobos!
Mas Barrôlo insistia, curioso:
―Não, não, conta lá,
Titó... Noite d'annos, patuscada rija, hein?
[141]―Ceia pacata,
contou o Titó com a seriedade que lhe merecia
a festa das suas amigas. A D. Casimira tinha uma bella frangalhada com
ervilhas. O João Gouveia trouxe do Gago uma travessa de
bôlos
de bacalhau que calharam... Depois, fogo de vistas na horta. O
Videirinha tocou, as pequenas cantaram... Não se passou mal.
Gonçalo esperava―irresistivelmente interessado pela ceia
das Casimiras:
―Acabou, hein?... Agora a outra infamia, mais grave! Então
o Snr. Antonio Villalobos é intimo do Sanches Lucena,
frequenta
todas as semanas a
Feitosa, toma chá e
torradas
com a bella D.
Anna, e esconde tenebrosamente dos seus amigos estes privilegios
gloriosos?...
―Sem contar, gritou o Barrôlo deliciosamente divertido, que
lhe passeia á trela os cãesinhos felpudos!
―Sem contar que lhe passeia á trela os cãesinhos
felpudos! echoou cavamente Gonçalo. Responda, meu illustre
amigo!
O Titó remecheu o vasto corpo dentro do cadeirão,
recolheu as botas de tachas luzentes, afagou lentamente a face barbuda,
que uma
vermelhidão aquecêra. E depois de encarar
Gonçalo,
intensamente, com um esforço de sagacidade que mais o
afogueou:
[142]―Tu já
alguma vez, por curiosidade, me perguntaste se eu
conhecia o Sanches Lucena? Nunca me perguntaste...
O Fidalgo protestou. Não! Mas constantemente na Assembleia,
no Gago, na
Torre, elles berravam, em questões de Politica, o nome do
Sanches Lucena! Nada mais natural, até mais prudente, do que
alludir
o Snr. Titó á sua intimidade illustre! Ao menos
para evitar que elle, ou
os amigos, deante do Snr. Titó que comia as torradas da
Feitosa,
tratassem o Sanches Lucena como um trapo!
O Titó despegou do cadeirão. E afundando as
mãos nos bolsos da quinzena d'alpaca, sacudindo
desinteressadamente os hombros:
―Cada um tem sobre o Sanches a sua opinião... Eu apenas o
conheço ha quatro ou cinco mezes, mas acho que é
serio, que sabe as
cousas... Agora, lá nas Camaras...
Gonçalo, indignado, bradava que se não discutiam
os meritos do Snr. Sanches Lucena―mas os segredos do Snr.
Titó Villalobos! E o
escudeiro novo, avançando as suissas ruivas por uma fenda do
reposteiro, annunciou que o Snr. Administrador de Villa-Clara procurava
Suas Ex.
as...
Barrôlo largou logo a terrina de tabaco:
―O Snr. João Gouveia! Que entre! Bravo! temos cá
toda a rapaziada de Villa-Clara!
[143]
E Titó, da janella onde se refugiara, lançou o
vozeirão, mais troante, abafando a importuna conversa do
Sanches e da
Feitosa:
―Viemos ambos! Por signal n'uma traquitana infame... Até se
nos desferrou uma das pilecas e tivemos de parar na Vendinha.
Não se perdeu tempo, que ha agora lá um vinhinho
branco que é
d'aqui da ponta fina!...
Beliscava a orelha. Aconselhava ruidosamente Barrôlo e
Gonçalo a passarem na Vendinha, para provar a pinga celeste.
―Até aqui o Snr. Padre Sueiro lhe atiçava uma
caneca valente, apesar do Peccado!
Mas João Gouveia entrou, encalmado, empoeirado, com um vinco
vermelho na testa, do chapeu e do calor―e abotoado na sobrecasaca
preta, de
calças pretas, de luvas pretas. Sem folego, apertou
silenciosamente pela sala as mãos amigas que o acolhiam. E
desabou sobre o
camapé, implorando ao amigo Barrôlo a caridade
d'uma bebidinha fresca!
―Estive para entrar no café Monaco. Mas reflecti que n'esta
grandiosa casa dos Barrôlos as bebidas são de mais
confiança.
―Ainda bem! Você que quer? Orchata? Sangria? Limonada?
―Sangria.
E, limpando o pescoço e a testa, amaldiçoou o
indecente calor d'Oliveira:
[144]―Mas ha gente que
gosta! Lá o meu chefe, o Snr. Governador
Civil, escolhe sempre a hora do calor para passear a cavallo. Ainda
hoje... Na repartição até ao meio dia;
depois,
cavallo á porta; e larga até á estrada
de Ramilde, que é uma Africa... Não sei
como lhe não fervem os miolos!
―Oh! acudiu Gonçalo, é muito simples. Se elle os
não tem!
O administrador saudou gravemente:
―Já cá faltava com a sua ferroadasinha o Snr.
Gonçalo Mendes Ramires! Não comecemos,
não comecemos... Este seu cunhado,
Barrôlo, é bicho indomesticavel! Sempre reponta!
O bom Barrôlo gaguejou, constrangido, que
Gonçalinho em Politica não dispensava a piada...
―Pois olhe! declarou o administrador, sacudindo o dedo para
Gonçalo. Esse Snr. André Cavalleiro, que
não tem miolos,
ainda esta manhã na Repartição gabou
com immensa sympathia os miolos
do Snr. Gonçalo Mendes Ramires!...
E Gonçalo, muito serio:
―Tambem não faltava mais nada! Para esse Governador Civil
ser perfeitamente absurdo só lhe restava que me considerasse
um
asno!
―Perdão! gritou o Administrador, que se erguera,
desabotoando logo a sobrecasaca, para commodidade da contenda.
[145]
Barrôlo acudio, afflicto, carregando nos hombros do
Gouveia―para o socegar e o repôr no camapé:
―Não, meninos, não! Politica, não! E
então essa massada do Cavalleiro... Vamos ao que importa.
Você janta comnosco,
João Gouveia?
―Não, obrigado. Já prometti jantar com o
Cavalleiro. Temos lá o Ignacio Vilhena. Vae lêr um
artigo que escreveu para o
Boletim
de
Guimarães sobre umas fôrmas de fabricar
ossos de martyres, descobertas
nas obras do convento de S. Bento. Estou com curiosidade... E a Snr.
a
D.
Graça, bem? Quem eu não avistava havia mezes era
o Snr. Padre
Sueiro. Nunca apparece agora pela Torre!... Mas sempre rijo, sempre
viçoso. Oh, Snr. Padre Sueiro, qual é o seu
segredo para toda essa meninice?
Do seu canto, o capellão sorriu timidamente. O segredo?
Poupar a Vida―não a consumindo nem com
ambições nem com decepções.
Ora para elle, louvado Deus, a vida corria muito simples e muito
pequenina. E fóra o seu rheumatismo...
Depois, córando d'acanhamento, atravez das
sentenças evangelicas que lhe escapavam:
―Mas mesmo o rheumatismo não é mal perdido.
Deus, que o manda, sabe porque o manda... Soffrer edifica. Por que
enfim o que nós
soffremos nos leva a pensar no que os outros soffrem...
[146]―Pois olhe, volveu
com alegre incredulidade o Administrador, eu,
quando tenho os meus ataques de garganta, não penso na
garganta dos
outros! Penso só na minha que me dá bastante
cuidado. E
agora a vou regalar n'aquella bella sangria...
O escudeiro vergava, com a luzente bandeja de prata, carregada de copos
de sangria onde boiavam rodellinhas de limão. E todos se
tentaram, todos beberam, até Padre Sueiro, para mostrar ao
Snr. Antonio
Villalobos que não desdenhava o vinho, dadiva amavel de
Deus―pois como
ensina Tibulo com verdade, apezar de gentilico,
vinus facit
dites animos,
mollia corda dat, enrija a alma e adoça o
coração.
João Gouveia, depois d'um suspiro consolado, pousou na
bandeja o copo que esvasiára d'um trago e interpellou
Gonçalo:
―Vamos a saber! Então n'outro dia que historia phantastica
foi essa d'uma festa na Torre, com senhoras, com a D. Anna Lucena?...
Eu
não acreditei quando o pequeno do Gago me encontrou, me deu
o recado. Depois...
Mas d'entre as cortinas da janella, onde acabava a sangria,
Titó novamente rebombou, interpellando tambem o Fidalgo:
―Oh sô Gonçalo! E o que me contou ha pouco
[147]o
Barrôlo?... Que andavas com idéas de abalar para a
Africa?
Ao espanto de João Gouveia quasi se misturou terror. Para a
Africa?... O quê? Com um emprego para a Africa?...
―Não! plantar côcos! plantar cacau! plantar
café! exclamava o Barrôlo, com divertidas palmadas
na côxa.
Pois Titó approvava a idéa! Tambem elle, se
arranjasse um capital, dez ou quinze contos, tentava a Africa, a
traficar com o preto... E tambem se fôsse mais pequeno, mais
secco. Que homens do seu
corpanzil, necessitando muita comezaina e muita vinhaça,
não
aguentam a Africa, rebentam!
―O Gonçalo sim! É chupado, é rijo;
não carrega na agua-ardente; está na conta para
Africanista... E sempre te digo! Carreira bem mais decente que essa
outra por que tens mania, de deputado! Para que? Para palmilhar na
Arcada, para bajular Conselheiros.
Barrôlo concordou, com alarido. Tambem não
comprehendia a teima de Gonçalo em ser deputado! Que
massada! Eram logo as intrigas,
e as desandas nos jornaes, e os enxovalhos. E sobretudo aturar os
eleitores.
―Eu, nem que me nomeassem depois Governador Civil, com um titulo e uma
gran-cruz a tiracollo, como o Freixomil!
[148]
Gonçalo escutára, n'um silencio risonho e
superior, enrolando laboriosamente um cigarro com o tabaco do
Barrôlo:
―Vocês não comprehendem... Vocês
não conhecem a organisação de
Portugal. Perguntem ahi ao Gouveia... Portugal é uma
fazenda, uma bella fazenda, possuida por uma parceria. Como
vocês sabem ha
parcerias commerciaes e parcerias ruraes. Esta de Lisboa é
uma
parceria politica, que governa a herdade chamada
Portugal...
Nós os
Portuguezes pertencemos todos a duas classes: uns cinco a seis
milhões
que trabalham na fazenda, ou vivem n'ella a olhar, como o
Barrôlo, e que
pagam; e uns trinta sujeitos em cima, em Lisboa, que formam a
parceria,
que recebem e que governam. Ora eu, por gosto, por necessidade, por
habito de familia, desejo mandar na fazenda. Mas, para entrar na
parceria
politica, o cidadão portuguez precisa uma
habilitação―ser deputado. Exactamente como,
quando pretende entrar na Magistratura, necessita uma
habilitação―ser bacharel. Por isso procuro
começar como deputado para acabar como parceiro e
governar... Não é verdade,
João Gouveia?
O Administrador voltára á bandeja das sangrias,
de que saboreava outro copo, agora lentamente, aos goles:
―Sim, com effeito, essa é a carreira... Candidato,
[149]Deputado,
Politico, Conselheiro, Ministro, Mandarim. É a carreira... E
melhor
que a d'Africa. Por fim na Arcada, em Lisboa, tambem cresce cacau e ha
mais sombra!
Barrôlo no emtanto abraçára o hombro
possante do Titó, com quem mergulhou no vão da
janella, n'uma confraternidade d'ideias,
gracejando:
―Pois eu, sem ser dos taes
parceiros, tambem
mando nos bocados de Portugal que mais me interessam por que me
pertencem!... E sempre queria
vêr que esse S. Fulgencio, ou o Braz Victorino, ou
lá os politicos do Terreiro do Paço, se mettessem
a dispôr nas minhas
terras, na
Ribeirinha ou na
Murtosa...
Era a tiro!
Encostado á vidraça, Titó
coçava a barba, impressionado:
―Pois sim, Barrôlo! Mas você na
Ribeirinha
e na
Murtosa tem de pagar as
contribuições que elles mandarem. E
n'esses concelhos tem d'aguentar as auctoridades que elles nomearem. E
goza para
lá d'estradas se elles lh'as fizerem. E vende o carro de
pão e a pipa de
vinho com mais ou menos proveito, segundo as leis que elles votarem...
E assim tudo. O Gonçalo não deixa de acertar.
É o diabo! Quem manda é quem lucra... Olhe! o
maroto do meu senhorio em Villa-Clara, agora para o S. Miguel, augmenta
a renda da casa em que eu moro, um cochicho que
[150]ninguem quer, por que
mataram lá o carrasco, que ainda lá
apparece... E o Cavalleiro, esse, como
parceiro,
vive de
graça n'este
bello palacio de S. Domingos, com cocheira, com jardim, com horta...
Barrôlo atirou um
chut, de
mão espalmada,
abafando o vozeirão do Titó, com medo que as
regalias do Cavalleiro, assim proclamadas, renovassem as furias de
Gonçalo. Mas o Fidalgo não percebera,
attento ao João Gouveia, que, enterrado no camapé
depois da sangria, novamente
contava o seu assombro, ao encontrar no chafariz, em Villa-Clara, o
rapasola do Gago com o recado da grande festa na Torre:
―E cheguei a desconfiar que realmente você désse
festa, quando bateram as nove, depois as nove e meia, e o
Titó sem chegar para a
ceia da D. Casimira!... Bem, pensei, tambem recebeu recado e abalou
para a Torre! Por fim, apenas elle appareceu, de carapuço e
de jaqueta,
percebi que fôra troça do Snr. D.
Gonçalo...
Então o Fidalgo pasmou com uma inesperada, estranha suspeita:
―De carapuço e jaqueta? O Titó andava n'essa
noite de carapuço e de jaqueta?...
Mas bruscamente Barrôlo, da funda janella, lançou
para dentro, para a sala, um brado de pavor:
―Oh! rapazes! Santo Deus! Ahi veem as Louzadas!
[151]
João Gouveia saltou do camapé, como n'um perigo,
reabotoando arrebatadamente a sobrecasaca; Gonçalo,
atarantado, esbarrou
com o Titó e o Barrôlo que recuavam, no terror de
serem apercebidos
atravez dos vidros largos; até Padre Sueiro, prudente,
abandonou o seu
recanto onde corria os oculos pela
Gazeta do Porto.
E todos,
d'entre a fenda das cortinas, como soldados na fresta de uma cidadella,
espreitavam o Largo, que o sol das quatro horas dourava por sobre os
telhados musgosos da Cordoaria. Do lado da rua das Pêgas, as
duas Louzadas, muito
esgalgadas, muito sacudidas, ambas com manteletes curtos de seda preta
e vidrilhos, ambas com guardasoes de xadresinbo desbotado,
avançavam,
estirando pelo largo empedrado duas sombras agudas.
As duas manas Louzadas! Seccas, escuras e garrulas como cigarras, desde
longos annos, em Oliveira, eram ellas as esquadrinhadoras de todas as
vidas, as espalhadoras de todas as maledicencias, as tecedeiras de
todas as intrigas. E na desditosa Cidade não existia nodoa,
pécha, bule rachado, coração dorido,
algibeira arrasada,
janella entreaberta, poeira a um canto, vulto a uma esquina, chapeu
estreado na missa, bolo encommendado nas Mathildes, que os seus quatro
olhinhos furantes d'azeviche sujo não descortinassem―e que
a sua solta
lingoa, entre os dentes ralos, não commentasse com malicia
estridente!
[152]D'ellas surdiam
todas as cartas anonymas que infestavam o Districto: as pessoas devotas
consideravam como penitencias essas visitas em que ellas durante horas
galravam, abanando os braços escanifrados: e sempre por onde
ellas passassem ficava latejando um sulco de desconfiança e
receio. Mas quem ousaria rechaçar as duas manas Louzadas?
Eram filhas do
decrepito e venerando General Louzada; eram parentas do Bispo; eram
poderosas na poderosa confraria do Senhor dos Passos da Penha. E depois
d'uma castidade tão rigida, tão antiga e
tão
resequida, e por ellas tão espaventosamente alardeada―que o
Marcolino do
Independente
as
alcunhára de
Duas Mil Virgens.
―Não veem para cá! trovejou o Titó,
com immenso allivio.
Com effeito no meio do Largo, rente á grade que circumda o
antigo Relogio-de-Sol, as duas manas paradas, erguiam o bico escuro,
farejando e espiando a Egrejinha de S. Matheus onde o sino
lançára um repique de baptisado.
―Oh, c'os diabos, que é para cá!
As Louzadas, decididas, investiam contra o portão dos
Cunhaes! Então foi um panico! As gordas pernas do
Barrôlo, fugindo, abalaram,
quasi derrubaram sobre os contadores, os potes bojudos da India.
Gonçalo bradava que se escondessem no pomar.
[153]Desconcertado, o Gouveia
rebuscava com desespero o seu chapeu côco. Só o
Titó, que as abominava e a quem ellas chamavam o
Polyphemo,
retirou com
serenidade, abrigando o Padre Sueiro sob o seu braço forte.
E já o bando
espavorido se arremessára sobre o reposteiro―quando
Gracinha appareceu, com um fresco vestido de sedinha côr de
morango, sorrindo, pasmada, para o tropel que
rolava:
―Que foi? Que foi?...
Um clamor abafado envolveu a dôce senhora ameaçada:
―As Louzadas!
―Oh!
Fugidiamente o Titó e João Gouveia apertaram a
mão que ella lhes abandonou, esmorecida. A sineta do
portão
tilintára, temerosa! E a fila acavallada, onde Padre Sueiro
rebolava a reboque, enfiou para a livraria que o Barrôlo
aferrolhou, gritando ainda a Gracinha, com uma
inspiração:
―Esconde as sangrias!
Pobre Gracinha! Atarantada, sem tempo de chamar o escudeiro, carregou
ella para uma banqueta do corredor, n'um esforço
desesperado, a pesada salva―com que as Louzadas, se a descortinassem,
edificariam por sobre a cidade, e mais alta que a Torre de S. Matheus,
uma historia pavorosa de «vinhaça e
bebedeira». Depois,
offegando, relanceou no
[154]espelho
o penteado. E direita como n'uma arena, com a temeridade simples e
risonha dos antigos Ramires, esperou a arremettida das manas terriveis.
No outro domingo, depois do almoço, Gonçalo
acompanhou a irmã a casa da tia Arminda Villegas, que na
vespera, ao tomar (como costumava todos os sabbados) o seu banho aos
pés, se escaldára e
recolhera á cama, apavorada, reclamando uma junta dos cinco
cirurgiões
d'Oliveira. Depois acabou o charuto sob as acacias do Terreiro da
Louça,
pensando na sua Novella abandonada na Torre durante essas semanas, e no
lance famoso do Capitulo II que o tentava e que o assustava―o encontro
de
Lourenço Ramires com Lopo de Bayão,
o
Bastardo,
no valle fatal de
Cantapedra. E recolhia aos Cunhaes (porque promettera ao
Barrôlo uma
trotada a cavallo, até ao Pinhal de Estevinha, para
aproveitar a
doçura do domingo ennevoado) quando, na rua das Vellas,
avistou o tabellião
Guedes, que sahia da confeitaria das Mathildes com um grosso embrulho
de pasteis. Ligeiramente, o Fidalgo atravessou logo a rua―emquanto o
Guedes, da borda do passeio, pesado e barrigudo, na ponta dos botins
miudinhos gaspeados de verniz, descobria, n'uma cortezia immensa, a
calva, emplumada
[155]ao
meio pelo famoso tufo de cabello grisalho que lhe
valera a alcunha de «Guedes Pôpa»:
―Por quem é, meu caro Guedes, ponha o chapeu! Como
está? Sempre féro e moço. Ainda
bem!... Fallou com o meu Padre Sueiro? O Pereira
da Riosa, por fim, só vem á cidade na quarta
feira...
Sim! Sim! O Snr. Padre Sueiro passára pelo cartorio, para
avisar―e elle apresentava os parabens a S. Ex.
a
pelo seu novo
rendeiro...
―Homem muito competente, o Pereira! Já ha vinte annos que o
conheço... E olhe V. Ex.
a a
propriedade do Conde de
Monte-Agra! Ainda me lembro d'ella, um chavascal; hoje que primor!
Só a vinha que elle
tem plantado! Homem muito competente... E V. Ex.
a
com demora?
―Dois ou tres dias... Não se atura este calor de Oliveira.
Hoje, felizmente, refrescou. E que ha de novo? Como vae a politica? O
amigo Guedes sempre bom Regenerador, leal e ardente, hein?
Subitamente o Tabellião, com o seu embrulho de doces
conchegado ao collete de seda preta, agitou o braço gordo e
curto, n'uma
indignação que lhe esbraseou de sangue o
pescoço, as orelhas
cabelludas, a face rapada, toda a testa até ás
abas do chapeu branco
orlado de fumo negro:
―E quem o não ha-de ser, Snr. Gonçalo Mendes
Ramires? Quem o não ha-de ser?... Pois este ultimo escandalo!
[156]
Os risonhos olhos de Gonçalo logo se alargaram, serios:
―Que escandalo?
O Tabellião recuou. Pois S. Ex.
a
não sabia da
ultima prepotencia do Governador Civil, do Snr. André
Cavalleiro?
―O quê, caro amigo?...
O Guedes cresceu todo sobre o bico dos botins pequeninos, e bojou, e
inchou, para exclamar:
―A transferencia do Noronha!... A transferencia do
desgraçado Noronha!
Mas uma senhora, tambem obesa, de buço carregado, toda a
estalar em ricas e rugidoras sêdas de missa, arrastando
severamente pela
mão um menino que rabujava, parou, fitou o Guedes―porque o
digno homem com o seu ventre, o seu embrulho, a sua
indignação,
atravancava a entrada das Mathildes. Apressadamente, o Fidalgo
levantou, para ella entrar, o fecho da porta envidraçada.
Depois, n'um alvoroço:
―O amigo Guedes naturalmente vae para casa. É o meu
caminho. Andamos e conversamos... Ora essa! Mas o Noronha... Que
Noronha?
―O Ricardo Noronha... V. Ex.
a conhece. O
pagador das Obras-Publicas!
―Ah! sim, sim... Então transferido? Transferido
arbitrariamente?
[157]
Na rua das Brocas por onde desciam, no silencio, a solidão
das lojas cerradas, a colera do Guedes resoou, mais solta:
―Infamemente, Snr. Gonçalo Mendes Ramires,
infamissimamente! E para Almodovar, para os confins do Alemtejo!...
Para uma terra sem recursos, sem distracções, sem
familias!...
Parára, com os doces contra o coração,
os olhinhos esbugalhados para o Fidalgo, coriscando. O Noronha! Um
empregado trabalhador, honradissimo! E sem Politica, absolutamente sem
Politica. Nem dos Historicos, nem dos Regeneradores. Só da
familia, das tres irmãs que
sustentava, tres flôres... E homem estimadissimo na cidade,
cheio de prendas!
Um talento immenso para a musica!... Ah! o Snr. Gonçalo
Ramires
não sabia? Pois compunha ao piano cousas lindas! Depois
precioso para
reuniões, para annos. Era elle quem organisava sempre em
Oliveira as
representações de curiosos...
―Porque, como ensaiador, creia V. Ex.
a que
não ha outro,
mesmo na capital... Não ha outro! E, zás, de
repente, para
Almodovar, para o Inferno, com as irmãs, com os tarecos!
Só o
piano!... Veja V. Ex.
a só o
transporte do piano!
Gonçalo resplandecia:
―É um bello escandalo. Ora que felicidade esta de o ter
encontrado, meu caro Guedes!... E não se sabe o motivo?
[158]
De novo caminhavam demoradamente pelo passeio estreito. E o
tabellião encolhia os hombros, com amargura. O motivo!
Publicamente, como sempre n'estas prepotencias, o motivo era a
conveniencia do
Serviço...
―Mas todos os amigos do Noronha, por toda a cidade, conhecem o
verdadeiro motivo... O intimo, o secreto, o medonho!
―Então?
Guedes relanceou a rua, com prudencia. Uma velha atravessava, coxeando,
segurando uma bilha. E o tabellião segredou cavamente, junto
á face deslumbrada do fidalgo.―É que o Snr.
André
Cavalleiro, esse infame, se encantára com a mais velha das
irmãs Noronhas, a
D. Adelina, formosissima rapariga, alta e morena, uma estatua!... E
repellido (porque a menina, cheia de juizo, uma perola, percebera a
intenção villissima) em quem se vinga, por
despeito, o Snr. Governador Civil? No pagador! Para Almodovar com as
meninas, com os tarecos!... Era o pagador quem pagava!
―É uma bella maroteira! murmurou Gonçalo,
banhado de gosto e riso.
―E note V. Ex.
a! exclamava o Guedes, com a
mão gorda a
tremer por cima do chapeu. Note V. Ex.
a que o
pobre Noronha, na
sua innocencia,
tão bom homem, gostando sempre d'agradar aos seus chefes,
[159]ainda ha semanas
dedicára ao Cavalleiro uma valsa linda!... A
Mariposa,
uma
valsa linda!
Gonçalo não se conteve, esfregou as
mãos n'um triumpho:
―Mas que preciosa maroteira!... E não se tem fallado? Esse
jornal d'opposição, o
Clarim d'Oliveira,
nem uma
denuncia, nem uma allusão?...
O Guedes pendeu a cabeça, descorçoado. O Snr.
Gonçalo Ramires conhecia bem essa gente do
Clarim...
Estylo―e estylo
brincado, opulento... Mas para assoalhar, assim n'um caso gravissimo
como o do Noronha, a verdade bem nua―pouco nervo, nenhuma valentia. E
depois o Biscainho, o redactor principal, andava a passar
surrateiramente para os Historicos. Ah! O Snr. Gonçalo
Mendes Ramires não se
inteirára? Pois esse torpissimo Biscainho bolinava. De certo
o Cavalleiro lhe acenára com
posta... Além d'isso, como provar a infamia? Cousas intimas,
cousas de familia.
Não se podia apresentar a declaração
da D. Adelina,
menina virtuosissima―e com uns olhos!... Ah! se fosse no tempo do
Manoel Justino e da
Aurora
de Oliveira!... Esse era homem para estampar logo na
primeira
pagina, em letra graúda: «Alerta! que a
Auctoridade superior
do Districto tentou levar a deshonra ao seio da familia
Noronha!...»
―Esse era um homem! Coitado, lá está no
cemiterio de S. Miguel... E agora, Snr. Gonçalo Ramires, o
despotismo campeia,
desenfreado!
[160]
Bufava, arfava, esfalfado d'aquelle fogoso desabafo. Dobraram calados a
esquina das Brocas para a bella rua, novamente calçada, da
Princeza D. Amelia. E logo na segunda porta, parando, tirando da
algibeira o trinco, o Guedes, que ainda resfolgava, offereceu a S. Ex.
a
para
descançar.
―Não, não, obrigado, meu caro amigo. Tive
immenso, immenso prazer, em o encontrar... Essa historia do Noronha
é tremenda!... Mas
nada me espanta do Snr. Governador Civil. Só me espanta que
o não
tenham corrido d'Oliveira, como elle merece, com pancada e assuada...
Emfim, nem toda a gente boa jaz no cemiterio de S. Miguel...
Até
ámanhã, meu Guedes. E obrigado!
Da rua da Princeza D. Amelia até o Largo de El-Rei,
Gonçalo correu com o deslumbramento de quem descobrisse um
thesouro e o levasse debaixo da capa! E ahi levava com effeito o
«escandalo, o rico
escandalo», que tanto farejára, por que tanto
almejára, para
desmantelar o Snr. Governador Civil na sua fiel cidade de Oliveira que
lhe levantava arcos de buxo! E, por uma mercê de Deus, o
«rico
escandalo» demoliria tambem o homem no
coração de Gracinha, onde, apezar do
antigo ultraje, elle permanecia como um bicho n'um fructo, esfuracando
e estragando... E
não duvidava da efficacia do escandalo! Toda a cidade se
revoltaria contra a Authoridade
[161]femieira,
que opprime, desterra um funccionario admiravel―por que a
irmã do pobre senhor se recusou
á baba dos seus beijos. E Gracinha?... Como resistiria
Gracinha áquelle
desengano―o seu antigo André abrazado pela menina Noronha e
por ella
repellido com nôjo e com mófa? Oh! o escandalo era
soberbo! Só
restava que estalasse, bem ruidoso, sobre os telhados d'Oliveira e
sobre o peito de Gracinha como trovão benefico que limpa
ares corrompidos. E d'esse
trovão, rolando por todo o Norte, se encarregava elle com
delicia. Libertava a cidade d'um Governador detestavel, Gracinha d'um
sonho errado. E assim, com uma certeira pennada, trabalhava
pro
patria et pro domo!
Nos Cunhaes correu ao quarto do Barrôlo, que se vestia
trauteando o
Fado dos Ramires, e gritou atravez
da porta com
uma decisão flammejante:
―Não te posso acompanhar á Estevinha. Tenho que
escrever urgentemente. E não subas, não me
perturbes. Necessito socego!
Nem attendeu aos protestos desolados com que o Barrôlo
accudira ao corredor, em ceroulas. Galgou a escada. No seu quarto,
depois de despir rapidamente o casaco, de excitar a testa com um
borrifo d'agua de Colonia, abancou á mesa―onde Gracinha
collocava sempre
entre flores, para elle trabalhar, o monumental tinteiro de prata que
pertencera ao tio Melchior.
[162]E
sem emperrar, sem rascunhar, n'um d'esses soltos fluxos de Prosa que
brotam da paixão, improvisou uma
Correspondencia rancorosa para a
Gazeta do Porto
contra o Snr. Governador
Civil. Logo o titulo fulminava―
Monstruoso attentado!
Sem desvendar o
nome da familia Noronha, contava miudamente, como um acto certo e por
elle testemunhado, «a tentativa villôa e baixa da
primeira Auctoridade
do Districto contra a pudicicia, a paz de
coração, a honra de uma
doce rapariga de dezeseis primaveras!» Depois era a
resistencia
desdenhosa―«que a nobre creança oppuzera ao Don
Juan administrativo, cujos bellos bigodes
são o espanto dos povos!» Por fim
vinha―«a desforra torpe e sem
nome que S. Ex.
a tomára sobre o
zeloso empresado (que é tambem um
talentoso artista), obtendo d'este nefasto Governo que fosse
transferido, ou antes arrojado, cruelmente exilado, com a familia de
tres delicadas senhoras, para os confins do Reino, para a mais arida e
escassa das nossas Provincias, por o não poder empacotar
para a Africa no porão
sordido d'uma fragata!» Lançava ainda alguns
rugidos sobre «a agonia
politica de Portugal». Com pavor triste, recordava os peiores
tempos do Absolutismo, a innocencia soterrada nas masmorras, o prazer
desordenado do Principe sendo a expressão unica da Lei! E
terminava perguntando ao Governo
se cobriria este seu agente―«este grotesco Nero, que
[163]como outr'ora o
outro, o grande, em Roma, tentava levar a
seducção ao seio
das familias melhores, e commettia esses abusos de poder, motivados por
lascivias de temperamento, que foram sempre, em todos os seculos e
todas as civilisações, a
execração
do justo!»―E assignava
Juvenal.
Eram quasi seis horas quando desceu á sala, ligeiro e
resplandecente. Gracinha martellava o piano, estudando o
Fado
dos Ramires.
E
Barrôlo (que não se arriscára a um
passeio solitario)
folheava, estendido no camapé, uma famosa
Historia
dos Crimes da
Inquizição que
começára ainda em solteiro.
―Estou a trabalhar desde as duas horas! exclamou logo
Gonçalo, escancarando a janella. Fiquei derreado. Mas,
louvado seja Deus, fiz obra de Justiça... D'esta vez o Snr.
André
Cavalleiro vae abaixo do seu cavallo!
Barrôlo fechou immediatamente o livro, com o cotovello nas
almofadas, inquieto:
―Houve alguma coisa?
E Gonçalo, plantado deante d'elle, com um risinho suave, um
risinho feroz, remexendo na algibeira o dinheiro e as chaves:
―Oh! quasi nada. Uma bagatella. Apenas uma infamia... Mas para o nosso
Governador Civil infamias são bagatellas.
Sob os dedos de Gracinha o
Fado dos Ramires
esmoreceu, apenas
roçado, n'um murmurio incerto.
[164]
O Barrôlo esperava, esgaseado:
―Desembucha!
E Gonçalo desabafou, com estrondo:
―Pois uma maroteira immensa, homem! O Noronha, o pobre Noronha,
perseguido, espesinhado, expulso! Com a familia... Para o inferno, para
o Algarve!
―O Noronha pagador?
―O Noronha pagador. Foi o infeliz pagador que pagou!
E, regaladamente, desenrolou a historia lamentavel. O Snr.
André Cavalleiro namoradissimo, todo em chammas pela
irmã mais
velha do Noronha. E atacando a rapariga com ramos, cartas, versos,
estropidos cada manhã por deante da janella, a ladear na
pileca!
Até lhe soltára, ao que parece, uma velha
marafona, uma alcoviteira... E a rapariga, um anjo cheio de dignidade,
impassivel. Nem se revoltava, apenas se ria. Era uma troça
em casa das Noronhas, ao chá, com a
leitura da versalhada ardente em que elle a tratava de
«Nympha, d'estrella da
tarde...» Emfim uma sordidez funambulesca!
O pobre
Fado dos Ramires debandou pelo teclado,
n'um tumulto de gemidos desconcertados e asperos.
―E eu não ter ouvido nada! murmurava o Barrôlo,
assombrado. Nem no Club, nem na Arcada...
[165]―Pois, meu
amiguinho, quem ouviu, e um famoso estampido, foi o pobre
Noronha. Arremessado para o fundo do Alemtejo, para um sitio doentio,
coalhado de pantanos. É a morte... É uma
condemnação á morte!
A esta apparicão da Morte, surdindo dos pantanos,
Barrôlo atirou uma palmada ao joelho, desconfiado:
―Mas quem diabo te contou tudo isso?
O Fidalgo da Torre encarou o cunhado com desdem, com piedade:
―Quem me contou!? E quem me contou que D. Sebastião morreu
em Alcacer-Kebir?... São os factos. É a Historia.
Toda Oliveira sabe. Por acaso ainda esta manhã o Guedes e eu
conversamos sobre o
caso. Mas eu já sabia!... E tenho tido pena. Que diabo!
Não ha crime em se
estar apaixonado como o pobre André. Louco, perdido!
Até a chorar na Repartição, deante do
Secretario Geral. E a
rapariga ás gargalhadas!... Agora onde ha crime, e horrendo,
é na
perseguição ao irmão, ao pagador,
empregado excellente, d'um talento raro... E o dever de todo o homem de
bem, que prese a dignidade da Administração e a
dignidade dos costumes, é denunciar a infamia... Eu, pela
minha parte, cumpri esse
bom dever. E com certo brilho, louvado Deus!
―Que fizeste?
[166]―Enterrei na
ilharga do Snr. Governador Civil a minha bôa
penna de Toledo, até á rama!
O Barrôlo, impressionado, beliscava a pelle do
pescoço. O piano emmudecera: mas Gracinha não se
movia do môcho,
com os dedos entorpecidos nas teclas, como esquecida deante da larga
folha onde se enfileiravam, na lettra apurada do Videirinha, as quadras
triumphaes dos Ramires. E subitamente Gonçalo sentiu
n'aquella immobilidade
suffocada o despeito que a trespassava. Sensibilisado, para a libertar,
lhe poupar algum soluço escapando irresistivelmente, correu
ao piano,
bateu com carinho nos pobres hombros vergados que estremeceram:
―Tu não dás conta d'esse lindo fado, rapariga!
Deixa, que eu te cantarolo uma quadra, á bôa moda
do Videirinha...
Mas primeiramente sê um anjo... Grita ahi no corredor que me
tragam um copo d'agua bem fresca do Poço Velho.
Ensaiou as teclas, entoou versos, ao accaso, n'um esforço
esganiçado:
Ora na grande batalha,
Quatro Ramires valentes...
Gracinha desapparecera por uma fenda do reposteiro, sem rumor.
Então o bom Barrôlo, que deante da sua terrina da
India enrolava um
cigarro
[167]com
pensativo cuidado, correu, desafogou, debruçado sobre
Gonçalo, da certeza que lentamente o invadira:
―Pois, menino, sempre te digo... Essa irmã do Noronha
é um mulherão soberbo! Mas o que eu
não acredito é que ella se
fizesse arisca. Com o Cavalleiro, bonito rapaz, Governador civil?...
Não acredito.
O Cavalleiro saboreou!
E com as bochechas lusidias d'admiração:
―Aquelle velhaco! Para cavallos e para mulheres não ha
outro, em Oliveira!
V
A
Gazeta do Porto, com a
Correspondencia vingadora,
devia desabar sobre Oliveira na quarta-feira de manhã, dia
dos annos da
prima Maria Mendonça. Mas Gonçalo, ainda que
não
temesse (resalvado pelo seu pseudonymo de
Juvenal)
uma briga grosseira com o
Cavalleiro nas ruas da Cidade, nem mesmo com algum dos seus partidarios
servis e
façanhudos como o Marcolino do
Independente―recolheu
discretamente a Santa Ireneia na terça-feira, a cavallo,
acompanhado pelo
Barrôlo até á Vendinha, onde ambos
provaram o vinho branco celebrado pelo
Titó. Depois, para recordar os logares memoraveis em que na
sua Novella se encontravam, com desastrado choque d'armas,
Lourenço Ramires
e o Bastardo de Bayão―tomou o caminho que, atravessando os
pomares da espalhada aldêa de Canta-Pedra, entronca na
estrada dos
Bravaes.
[170]
N'um trote folgado passára á Fabrica de Vidros,
depois o Cruzeiro sempre coberto pelas pombas que esvoaçam
do pombal da Fabrica. E
entrava no logar de Nacejas―quando, á janella d'uma casinha
muito
limpa, rodeada de parreiras, appareceu uma linda rapariga, morena e
fina, com
jaqué de panno azul e lenço de cambraieta bordada
sobre fartos
bandós ondeados. Gonçalo, sopeando a egua,
saudou, sorriu suavemente:
―Perdão, minha menina... Vou bem por aqui, para Canta-Pedra?
―Vae, sim senhor. Em baixo, á ponte, mette para a direita,
para os alamos. E é sempre a seguir...
Gonçalo suspirou, gracejando:
―Antes desejava ficar!
A moça corou. E o Fidalgo ainda se torceu no selim para
gosar a fina face morena, entre os dous craveiros da janellinha, na
casa
tão bem caiada.
N'esse momento, ao lado, d'uma quelha enramada, desembocava um
caçador do campo, de jaleca e barrete vermelho, com a
espingarda atravessada nas costas, seguido por dois perdigueiros. Era
um latagão
airoso, que todo elle, no bater dos sapatões brancos, no
menear da cinta
enfaixada em seda, no levantar da face clara de suissas louras,
transbordava de presumpção e pimponice.
[171]N'um relance surprehendeu
o sorriso, a attenção galante do Fidalgo. E
estacou, pregando sobre elle, com lenta arrogancia, os bellos olhos
pestanudos. Depois passou desdenhosamente, sem se arredar da egua na
ladeira estreita, quasi raspando pela perna do Fidalgo o cano da
caçadeira. Mas adiante ainda atirou uma
tossidela secca e de chasco―com um bater mais petulante dos
tacões.
Gonçalo picou a egoa, colhido logo por aquelle
desgraçado temor, aquelle desmaiado arrepio da carne, que
sempre, ante qualquer risco, qualquer ameaça, o
forçava irresistivelmente a encolher, a
recuar, a abalar. Em baixo, na ponte, desesperado contra a sua timidez,
deteve o trote, espreitou para traz, para a branca casa florida. O
mocetão
parára, encostado á espingarda, sob a janella
onde a rapariga morena
se debruçava entre os dous vasos de cravos. E assim
encostado,
depois de rir para a moça, acenou ao Fidalgo, n'um desafio
largo, com
a cabeça alta, a borla do barrete toda espetada como uma
crista flammante.
Gonçalo Mendes Ramires metteu a galope pelo copado caminho
d'alamos que acompanha o riacho das Donas. Em Canta-Pedra nem se
demorou a estudar (como tencionava para proveito da sua Novella) o
valle, a ribeira espraiada, as ruinas do Mosteiro de
Recadães sobre a
collina, e no cabeço fronteiro o
[172]moinho
que assenta sobre as denegridas
pedras da antiga e tão fallada Honra d'Avellans. De resto o
ceu,
cinzento e abafado desde manhã, entenebrecia para os lados
de Craquede
e de Villa-Clara. Um bafo môrno remexeu a folhagem sedenta. E
já gotas pesadas se esmagavam na poeira―quando elle, sempre
galopando, entrou na estrada dos Bravaes.
Na Torre encontrou uma carta do Castanheiro. O patriota andava por
saber «se essa
Torre de D. Ramires se
erguia
emfim para honra das
letras, como a outra, a genuina, se erguera outr'ora, em seculos mais
ditosos, para orgulho das armas...» E accrescentava n'um
Post-Scriptum―«Planeio
immensos
cartazes, pregados a cada
esquina de cada cidade de Portugal, annunciando em letras de covado a
apparição salvadora dos
Annaes!
E, como tenciono prometter
n'elles aos povos a sua preciosa Novellasinha, desejo que o amigo
Gonçalo me
informe se ella tem, á moda de 1830, um saboroso sub-titulo,
como
Episodios
do seculo XII, ou
Chronica do Reinado de Affonso
II,
ou
Scenas da Meia-Idade Portugueza... Eu voto
pelo sub-titulo. Como o sub-solo n'um
edificio, o sub-titulo n'um livro alteia e dá solidez.
Á
obra, pois, meu Ramires, com essa sua imaginação
feracissima!...»
Esta invenção de immensos cartazes, com o seu
nome e o titulo da sua Novella em letras de côres
[173]estridentes, enchendo cada
esquina
de Portugal, deleitou o Fidalgo. E logo n'essa noite, ao rumor da chuva
densa que estalava na folhagem dos limoeiros, retomou o seu
manuscripto, parado nas primeiras linhas, amplas e sonoras, do Cap.
II...
Atravez d'ellas, e na frescura da madrugada, Lourenço Mendes
Ramires, com o troço de cavalleiros e peonagem da sua
mercê, corria sobre Monte-Mór em soccorro das
senhoras Infantas. Mas, ao
penetrar no valle de Canta-Pedra, eis que o esforçado filho
de Tructesindo
avista a mesnada do Bastardo de Bayão, esperando desde alva
(como
annunciára Mendo Paes) para tolher a passagem.―E
então, n'esta sombria
Novella de sangue e homizios, brotava inesperadamente, como uma rosa na
fenda d'um bastião, um lance de amor, que o tio Duarte
cantára no
Bardo
com dolente elegancia.
Lopo de Bayão, cuja belleza loura de fidalgo godo era
tão celebrada por toda a terra d'Entre Minho-e-Douro que lhe
chamavam o
Claro-Sol,
amára arrebatadamente D. Violante, a filha mais nova de
Tructesindo Ramires. Em dia de S. João, no solar de Lanhoso,
onde se celebravam
lides de toiros e jogos de tavolagem, conhecera elle a donzella
explendida, que o tio Duarte no seu Poemeto louvava com deslumbrado
encanto:
Que liquido fulgor dos negros olhos!
Que fartas tranças de
lustroso ebano!
[174]
E ella, certamente, rendera tambem o coração
áquelle moço resplandecente e côr
d'ouro, que, n'essa tarde de festa, arremessando o
rojão contra os toiros, ganhára duas fachas
bordadas pela nobre Dona de
Lanhoso―e á noite, no sarau, se requebrára com
tão repicado
garbo na dança dos Marchatins... Mas Lopo era bastardo,
d'essa raça de
Bayão, inimiga dos Ramires por velhissimas brigas de terras
e precedencias desde o conde D. Henrique―ainda assanhadas depois,
durante as contendas de D. Tareja e de Affonso Henriques, quando na
curia dos Barões, em
Guimarães, Mendo de Bayão, bandeado com o Conde
de Trava, e Ramires o
Cortador, collaço do moço
Infante, se arrojaram ás faces os guantes
ferrados. E, fiel ao odio secular, Tructesindo Ramires
recusára com áspera
arrogancia a mão de Violante ao mais velho dos de
Bayão, um dos valentes de
Silves, que pelo Natal, na Alcaçova de S.
ta
Ireneia, lh'a pedira para
Lopo, seu sobrinho, o
Claro-Sol, offerecendo
avenças quasi submissas
d'alliança e doce paz. Este ultraje revoltára o
solar de
Bayão―que se honrava em Lopo, apezar de bastardo, pelo
lustre da sua bravura e graça
galante. E então Lopo ferido doridamente no seu
coração, mais furiosamente no seu orgulho, para
fartar o esfaimado desejo, para infamar o claro nome dos Ramires―tentou
raptar D. Violante. Era na primavera, com todas as veigas do
[175]Mondego
já verdes. A donosa senhora, entre alguns
escudeiros da Honra e parentes, jornadeava de Treixedo ao mosteiro de
Lorvão, onde sua tia D. Branca era abbadeça...
Languidamente, no
Bardo,
descantára o tio Duarte o romantico lance:
Junto á fonte mourisca,
entre
os ulmeiros,
A cavalgadura pára...
E junto aos ulmeiros da fonte surgira o
Claro-Sol―que,
com os seus, espreitava d'um cabeço! Mas, logo no
começo da
curta briga, um primo de D. Violante, o agigantado Senhor dos
Paços d'Avellim, o
desarmou, o manteve um momento ajoelhado sob o lampejo e gume da sua
adaga. E com vida perdoada, rugindo de surda raiva, o Bastardo abalou
entre os poucos solarengos que o acompanhavam n'esta affouta
arremettida. Desde
então mais fero ardera o rancor entre os de Bayão
e os Ramires. E
eis agora, n'esse começo da Guerra das Infantas, os dois
inimigos rosto
a rosto no valle estreito de Canta-Pedra! Lopo com um bando de trinta
lanças e mais de cem besteiros da Hoste Real.
Lourenço Mendes Ramires com
quinze cavalleiros e noventa homens de pé do seu
pendão.
Agosto findava: e o demorado estio amarellecera toda a relva, as
pastagens famosas do valle, até a folhagem de amieiros e
freixos pela beira do riacho
[176]das
Donas que s'arrastava entre as pedras lustrosas, em fios escassos, com
dormido murmurio. Sobre um outeiro, dos lados de Ramilde, avultava,
entre possantes ruinas erriçadas de
sarças, a denegrida
Torre Redonda,
resto da velha Honra de
Avellans, incendiada durante as cruas rixas dos de Salzedas e dos de
Landim, e agora habitada pela alma gemente de Guiomar de Landim, a
Mal-casada.
No
cabeço fronteiro e mais alto, dominando o valle, o mosteiro
de
Recadães estendia as suas cantarias novas, com o forte
torreão,
asseteado como o d'uma fortaleza―d'onde os monges se
debruçavam,
espreitando, inquietos com aquelle coriscar d'armas que desde alva
enchia o valle. E o mesmo temor acossára as aldeias
chegadas―porque, sobre a crista
das collinas, se apressavam para o santo e murado refugio do convento
gentes com trouxas, carros toldados, magras filas de gados.
Ao avistar tão rijo troço de cavalleiros e
peões, espalhado até á beira do riacho
por entre a sombra dos freixos, Lourenço Ramires
soffreou, susteve a leva, junto d'um montão de pedras onde
apodrecia,
encravada, uma tosca cruz de pau. E o seu esculca que
largára redeas
soltas, estirado sob o escudo de couro, para reconhecer a mesnada―logo
voltou, sem que frecha ou pedra de funda o colhessem, gritando:
―São homens de Bayão e da Hoste Real!
[177]
Tolhida pois a passagem! E em que desigualado recontro! Mas o denodado
Ramires não duvidou avançar, travar peleja.
Sósinho que assomasse ao valle, com uma
quebradiça lança de monte,
arremetteria contra todo o arraial do Bastardo...―No emtanto
já o adail de
Bayão se adeantára, curveteando no rosilho magro,
com a espada atravessada por cima do morrião que pennas de
garça emplumavam. E
pregoava, atroava o valle com o rouco pregão:
―Deter, deter! que não ha passagem! E o nobre senhor de
Bayão, em recado d'El-Rey e por mercê de Sua
Senhoria, vos guarda vidas
salvas se volverdes costas sem rumor e tardança!
Lourenço Ramires gritou:
―A elle, besteiros!
Os virotes assobiaram. Toda a curta ala dos cavalleiros de
Santa-Ireneia tropeou para dentro do valle, de lanças
ristadas. E o filho
de Tructesindo, erguido nos estribões de ferro, debaixo do
panno solto do seu pendão que apressadamente o alferes
saccára
da funda, descerrou a vizeira do casco para que lhe mirassem bem a face
destemida, e
lançou ao Bastardo injurias de furioso orgulho:
―Chama outros tantos dos villões que te seguem que, por
sobre elles e por sobre ti, chegarei esta noite a Monte-Mór!
E o Bastardo, no seu fouveiro, que uma rêde de
[178]malha cobria,
toda acairelada d'ouro, atirava a mão calçada de
ferro, clamava:
―Para traz, d'onde vieste, voltarás, bulrão
traidor, se eu por mercê mandar a teu pae o teu corpo n'umas
andas!
Estes feros desafios rolavam em versos serenamente compassados no
Poemeto do Tio Duarte. E depois de os reforçar,
Gonçalo Mendes Ramires, (sentindo a alma enfunada pelo
heroismo da sua raça como por
um vento que sopra de funda compina) arrojou um contra o outro os dous
bandos valorosos. Grande briga, grande grita...
―Ala! Ala!
―Rompe! Rompe!
―Cerra por Bayão!
―Casca pelos Ramires!
Através da grossa poeirada e do alevanto zunem os
garruchões, as rudes balas de barro despedidas das fundas.
Almogavres de Santa-Ireneia, almogavres da Hoste Real, em turmas
ligeiras, carregam, topam, com baralhado arremesso d'ascumas que se
partem, de dardos que se cravam: e
ambas logo refogem, refluem―em quanto, no chão revolto,
algum mal-ferido estrebucha aos urros, e os atordoados cambaleando
buscam, sob o abrigo do arvoredo, a fresquidão do riacho. Ao
meio, no
embate mais
nobre da peleja, por cima dos corceis que se empinam, arfando
[179]ao peso das coberturas de
malha, as lisas pranchas dos montantes lampejam, retinem, embebidas nas
chapas dos broqueis:―e já, dos altos
arções de couro vermelho, desaba algum hirto e
chapeado senhor, com um baque de ferragens sobre a terra molle.
Cavalleiros e
infanções, porém, como n'um torneio,
apenas terçam lanças para se derribarem,
abolados os arnezes, com clamores de excitada ufania: e sobre a
villanagem contraria, em quem cevam o furor da matança, se
abatem os seus
espadões, se despenham as suas achas, esmigalhando os cascos
de ferro como bilhas de
grêda.
Por entre a pionagem de Bayão e da Hoste Real
Lourenço Ramires avança mais levemente que
ceifeiro apressado entre herva tenra. A cada arranque do seu rijo
murzello, alagado d'espuma, que sacode furiosamente a testeira
rostrada―sempre, entre pragas ou gritos por
Jesus!
um peito verga trespassado, braços se retorcem em agonia.
Todo o seu
afan era chocar armas com Lopo. Mas o Bastardo, tão
arremessado e
affrontador em combate, não se arredára n'essa
manhã
da lomba do outeiro onde uma fila de lanças o guardava, como
uma estacada: e com brados,
não com golpes, aquentava a lide! No ardor desesperado de
romper a viva cerca
Lourenço gastava as forças, berrando roucamente
pelo Bastardo com os
duros ultrajes de
churdo! e
marrano!
Já d'entre
[180]a
trama
falseada do camalho lhe borbulhavam do hombro, pela loriga, fios lentos
de sangue. Um lanço de virotão, que lhe partira
as
charneiras da greva esquerda, fendera a perna d'onde mais sangue
brotava, ensopando o forro d'estopa. Depois, varado por uma frecha na
anca, o seu grande ginete abateu, rolou, estalando no escoucear as
cilhas pregueadas. E, desembrulhado dos loros com um salto,
Lourenço Ramires encontrou em roda uma
sebe erriçada de espadas e chuços, que o
cerraram―em quanto do outeiro,
debruçado na sella, o Bastardo bramava:
―Tende! tende! para que o colhaes ás mãos!
Trepando por cima de corpos, que se estorcem sob os seus sapatos de
ferro, o valente moço arremette, a golpes arquejados, contra
as pontas luzentes que recuam, se furtam... E, triumphantes, redobram
os gritos de Lopo de Bayão:
―Vivo, vivo! tomadel-o vivo!
―Não, se me restar alma, villão! rugia
Lourenço.
E mais raivosamente investia, quando um calhau agudo lhe acertou no
braço―que logo amorteceu, pendeu, com a espada arrastando,
presa ainda ao punho pelo grilhão, mas sem mais servir que
uma roca.
N'um relance ficou agarrado por peões que lhe filavam a
gorja, emquanto
outros com varadas
[181]de
ascuma
lhe vergavam as pernas retesadas. Tombou por fim direito como um
madeiro;―e nas cordas com que logo o amarraram, jazeu hirto, sem elmo,
sem cervilheira, os olhos duramente cerrados, os cabellos presos n'uma
pasta de poeira e de sangue.
Eis pois captivo Lourenço Ramires! E, deante das andas
feitas de ramos e franças de faias em que o estenderam,
depois de o borrifarem
á pressa com a agua fresca do riacho,―o Bastardo, limpando
ás costas
da mão o suor que lhe escorria pela face formosa, pelas
barbas douradas, murmurava, commovido:
―Ah! Lourenço, Lourenço, grande dôr,
que bem poderamos ser irmãos e amigos!
Assim, ajudado pelo tio Duarte, por Walter Scott por noticias do
Panorama,
compozera Gonçalo a
mal-venturada lide de
Canta-Pedra. E com este desabafo de Lopo, onde perpassava a magua do
amor vedado, fechou o Cap. II, sobre que labutára tres
dias―tão
embrenhadamente que em torno o Mundo como que se calára e se
fundira em penumbra.
Uma girandola de foguetes estoirou ao longe, para o lado dos Bravaes,
onde no Domingo se fazia a romaria celebrada da Senhora das Candeias.
Depois
[182]da chuva
d'aquelles tres dias, uma frescura descia do ceu amaciado e lavado
sobre os campos mais verdes. E como ainda restava meia hora farta antes
de jantar, o Fidalgo agarrou o chapeu, e mesmo na sua velha quinzena de
trabalho, com uma bengalinha de canna, desceu
á estrada, tomou pelo caminho que s'estreita entre o muro da
Torre e as terras de centeio onde assentavam no seculo XII as barbacans
da Honra de Santa Ireneia.
Pela silenciosa vereda, ainda humida, Gonçalo pensava nos
seus avós formidaveis. Como elles resurgiam, na sua Novella,
solidos e resoantes! E realmente uma comprehensão
tão segura
d'aquellas almas Affonsinas mostrava que a sua alma conservava o mesmo
quilate e sahira do mesmo rico bloco d'ouro. Porque um
coração molle, ou
degenerado, não saberia narrar
corações tão fortes, d'eras
tão fortes:―e nunca o bom Manoel Duarte ou o
Barrôlo excellente entenderiam, bastante para lhes
reconstruir os altos espiritos, Martim de Freitas ou Affonso de
Albuquerque... N'esta fina verdade desejaria elle que os Criticos
insistissem ao estudar depois a
Torre de D. Ramires―pois
que o Castanheiro lhe assegurára artigos consideraveis nas
Novidades e na
Manhã.
Sim! eis o
que convinha marcar com
relevo (e elle o
lembraria ao Castanheiro!)―que os Ricos Homens de Santa-Ireneia
reviviam
[183]no seu
neto, senão pela continuação heroica
das mesmas façanhas, pela mesma alevantada
comprehensão do heroismo... Que diabo! sob o
reinado do horrendo S. Fulgencio elle não podia desmantelar
o solar de
Bayão, desmantelado ha seiscentos annos por seu
avô Lionel
Ramires―nem retomar aos Mouros essa torreada Monforte onde o Antoninho
Moreno era o languido Governador Civil! Mas sentia a grandeza e o
prestimo historico d'esse arrojo que outr'ora impellia os seus a
arrasar Solares rivaes, a escalar Villas mouriscas: resuscitava pelo
Saber e pela Arte, arrojava para a vida ambiente, esses
varões temerosos, com os seus
corações, os seus trajes, as suas immensas
cutiladas, as suas bravatas sublimes: dentro do espirito e das
expressões do seu Seculo era pois um bom
Ramires―um Ramires de nobres energias, não
façanhudas, mas
intellectuaes, como competia n'uma Edade d'intellectual
descanço. E os jornaes,
que tanto motejam a decadencia dos Fidalgos de Portugal, deveriam em
justiça affirmar (e elle o lembraria ao
Castanheiro!):―«Eis ahi um,
e o maior, que, com as fórmas e os modos do seu tempo,
continua e honra
a sua raça!»
Através d'estes pensamentos, que mais lhe enrijavam as
passadas sobre chão tão calcado pelos seus―o
Fidalgo da Torre
chegára á esquina do muro
[184]da quinta,
onde uma ladeirenta e apertada azinhaga a divide do pinheiral e da
matta. Do portão nobre, que outr'ora se
erguera n'esse recanto com lavores e brazão d'armas, restam
apenas os dois
humbraes de granito, amarellados de musgo, cerrados contra o gado por
uma cancella de taboas mal pregadas, carcomidas da chuva e dos annos. E
n'esse momento, da azinhaga funda, apagada em sombra, subia chiando,
carregado de matto, um carro de bois, que uma linda boeirinha guiava.
―Nosso Senhor lhe dê muito boas tardes!
―Boas tardes, flôrzinha!
O carro lento passou. E logo atraz surdio um homem, esgrouviado e
escuro, trazendo ao hombro o cajado, d'onde pendia um mólho
de cordas.
O Fidalgo da Torre reconheceu o José Casco dos Bravaes. E
seguia, como desattento, pela orla do pinheiral, assobiando, raspando
com a bengalinha as silvas floridas do vallado. O outro
porém
estugou o passo esgalgado, lançou duramente, no silencio do
arvoredo e da
tarde, o nome do Fidalgo. Então, com um pulo do
coração, Gonçalo Mendes Ramires parou,
forçando um sorriso affavel:
―Olá! É vossê, José!
Então que temos?
O Casco engasgára, com as costellas a arfar sob a encardida
camisa de
trabalho. Por fim,
[185]desenfiando
das cordas o marmelleiro que cravou no
chão pela choupa:
―Temos que eu fallei sempre claro com o Fidalgo, e não era
para que
depois me faltasse á palavra!
Gonçalo Ramires levantou a cabeça com uma
dignidade lenta e
custosa―como se levantasse uma massa de ferro:
―Que está vossê a dizer, Casco? Faltar
á palavra! em que lhe faltei eu
á palavra?... Por causa do arrendamento da Torre? Essa
é nova! Então
houve por acaso escriptura assignada entre nós?
Você não voltou, não
appareceu...
O Casco emmudecera, assombrado. Depois, com uma colera em que lhe
tremiam os beiços brancos, lhe tremiam as seccas
mãos cabelludas,
fincadas ao cabo do varapau:
―Se houvesse papel assignado o Fidalgo não podia recuar!...
Mas era
como se houvesse, para gente de bem!... Até V. S.
a
disse,
quando eu
acceitei: «viva! está tratado!...» O
fidalgo deu a sua palavra!
Gonçalo, enfiado, apparentou a paciencia d'um senhor
benevolo:
―Escute, José Casco. Aqui não é
logar, na estrada. Se quer conversar
commigo appareça na Torre. Eu lá estou sempre,
como vossê sabe, de
manhã... Vá ámanhã,
não me encommóda.
[186]
E endireitava para o pinhal, com as pernas molles, um suor arripiado na
espinha―quando o Casco, n'um rodeio, n'um salto leve, atrevidamente se
lhe plantou diante, atravessando o cajado:
―O Fidalgo ha-de dizer aqui mesmo! O Fidalgo deu a sua palavra!... A
mim não se me fazem d'essas desfeitas... O Fidalgo deu a sua
palavra!
Gonçalo relanceou esgaseadamente em redor, na ancia d'um
soccorro. Só o
cercava solidão, arvoredo cerrado. Na estrada, apenas clara
sob um resto
de tarde, o carro de lenha, ao longe, chiava, mais vago. As ramas altas
dos pinheiros gemiam com um gemer dormente e remoto. Entre os troncos
já
se adensava sombra e nevoa. Então, estarrecido,
Gonçalo tentou um
refúgio na ideia de Justiça e de Lei, que aterra
os homens do campo. E
como amigo que aconselha um amigo, com brandura, os beiços
resequidos e
tremulos:
―Escute, Casco, escute, homem! As coisas não se arranjam
assim, a
gritar. Póde haver desgosto, apparecer o regedor. Depois
é o tribunal, é
a cadeia. E você tem mulher, tem filhos pequenos... Escute!
Se descobriu
motivo para se queixar, vá á Torre, conversamos.
Pacatamente tudo se
esclarece, homem... Com berros, não! Vem o cabo, vem a
enxovia...
Então de repente o Casco cresceu todo, no solitario
[187]caminho,
negro e
alto como um pinheiro, n'um furor que lhe esbugalhava os olhos
esbraseados, quasi sangrentos:
―Pois o Fidalgo ainda me ameaça com a
justiça!... Pois ainda por cima
de me fazer a maroteira me ameaça com a cadeia!...
Então, com os diabos!
primeiro que entre na cadeia lhe hei-de eu esmigalhar esses ossos!...
Erguera o cajado...―Mas, n'um lampejo de razão e respeito,
ainda
gritou, com a cabeça a tremer para traz, atravez dos dentes
cerrados:
―Fuja, fidalgo, que me perco!... Fuja que o mato e me perco!
Gonçalo Mendes Ramires correu á cancella entalada
nos velhos humbraes de
granito, pulou por sobre as taboas mal pregadas, enfiou pela latada que
orla o muro, n'uma carreira furiosa de lebre acossada! Ao fim da vinha,
junto aos milheiraes, uma figueira brava, densa em folha,
alastrára
dentro d'um espigueiro de granito destelhado e desusado. N'esse
esconderijo de rama e pedra se alapou o Fidalgo da Torre, arquejando. O
crepusculo descera sobre os campos―e com elle uma serenidade em que
adormeciam frondes e relvas. Affoutado pelo silencio, pelo socego,
Gonçalo abandonou o cerrado abrigo, recomeçou a
correr, n'um correr
manso, na ponta das botas brancas, sobre o chão molle das
[188]chuvadas,
até
ao muro da Mãe d'Agua. De novo estacou, esfalfado. E
julgando entrever,
longe, á orla do arvoredo, uma mancha clara, algum
jornaleiro em mangas
de camisa, atirou um berro ancioso:―«Oh! Ricardo! Oh!
Manoel! Eh lá!
alguem! Vai ahi alguem?...»―A mancha indecisa fundira na
indecisa
folhagem. Uma rã pinchou n'um regueiro. Estremecendo,
Gonçalo retomou a
carreira até ao canto do pomar―onde encontrou fechada uma
porta, velha
porta mal segura, que abanava nos gonzos ferrugentos. Furioso, atirou
contra ella os hombros que o terror enrijára como trancas.
Duas taboas
cederam, elle furou atravez, esgaçando a quinzena n'um
prégo.―E
respirou emfim no agazalho do pomar murado, deante das varandas da casa
abertas á frescura da tarde, junto da Torre, da sua Torre,
negra e de
mil annos, mais negra e como mais carregada d'annos contra a macia
claridade da lua-nova que subia.
Com o chapeu na mão, enxugando o suor, entrou na horta,
costeou o
feijoal. E agora subitamente sentia uma colera amarga pelo desamparo em
que se encontrára, n'uma quinta tão povoada,
exameando de gentes e
dependentes! Nem um caseiro, nem um jornaleiro, quando elle
gritára, tão
afflicto, da borda da Mãe d'Agua! De cinco creados nenhum
acudira,―e
elle perdido, alli, a uma pedrada da eira e da abegoaria! Pois que dois
homens corressem com paus
[189]ou
enxadas―e ainda colhiam o Casco na
estrada, o malhavam como uma espiga.
Ao pé do gallinheiro, sentindo uma risada fina de rapariga,
atravessou o
pateo para a porta alumiada da cosinha. Dois moços da horta,
a filha da
Crispola, a Rosa, tagarellavam, regaladamente sentados n'um banco de
pedra, sob a fresca escuridão da latada. Dentro o lume
estrallejava―e a
panella do caldo, fervendo, rescendia. Toda a colera do Fidalgo rompeu:
―Então, que sarau é este? Vocês
não me ouviram chamar?... Pois
encontrei lá em baixo, ao pé do pinheiral, um
bebedo, que me não
conheceu, veiu para mim
com uma foice!...
Felizmente levava a bengala.
E chamo, grito... Qual! Tudo aqui de palestra, e a ceia a cozer! Que
desaforo! Outra vez que succeda, todos para a rua... E quem resmungar,
a
cacete!
A sua face chammejava, alta e valente. A pequena da Crispola logo se
escapulira, encolhida, para o recanto da cosinha, para traz da maceira.
Os dois moços, erguidos, vergavam como duas espigas sob um
grande vento.
E emquanto a Rosa, aterrada, se benzia, se derretia em
lamentações sobre
«desgraças que assim
s'armam!»―Gonçalo, deleitado pela
submissão dos
dois homens, ambos tão rijos, com tão grossos
varapaus encostados á
parede, amansava:
―Realmente! sois todos surdos, n'esta pobre casa!...
[190]Além
d'isso a
porta do pomar fechada! Tive de lhe atirar um empurrão.
Ficou em
pedaços.
Então um dos moços, o mais alentado, ruivo, com
um queixo de cavallo,
pensando que o Fidalgo censurava a frouxidão da porta pouco
cuidada,
coçou a cabeça, n'uma desculpa:
―Pois, com perdão do fidalgo!... Mas já depois
da saída do Relho se lhe
pôz uma travessa e fechadura nova... E valente!
―Qual fechadura! gritou, o Fidalgo soberbamente. Despedacei a
fechadura, despedacei a travessa... Tudo em estilhas!
O outro moço, mais desembaraçado e esperto, riu,
para agradar:
―Santo nome de Deus!... Então, é que o fidalgo
lhe atirou com força!
E o companheiro, convencido, espetando o queixo enorme:
―Mas que força! a matar! Que a porta era rija... E
fechadura nova, já
depois do Relho!
A certeza da sua força, louvada por aquelles fortes,
reconfortou
inteiramente o fidalgo da Torre, já brando, quasi paternal:
―Graças a Deus, para arrombar uma porta, mesmo nova,
não me falta
força. O que eu não podia, por decencia, era
arrastar ahi por essas
estradas um bebedo com uma foice até casa do Regedor... Foi
para isso
que chamei, que gritei. Para que vossês o agarrassem, o
levassem ao
Regedor!...
[191]Bem,
acabou. Oh! Rosa, dê a estes rapazes, para a
ceia, mais
uma caneca de vinho... A vêr se para outra vez se affoutam,
se
apparecem...
Era agora como um antigo senhor, um Ramires d'outros seculos, justo e
avisado, que reprehende uma fraqueza dos seus solarengos―e logo
perdôa
por conta e amor das façanhas proximas. Depois com a bengala
ao hombro,
como uma lança, subio pela lobrega escada da cozinha. E em
cima no
quarto, apenas o Bento entrára para o vestir,
recomeçou a sua epopeia,
mais carregada, mais terrifica―assombrando o sensivel homem, estacado
rente da commoda, sem mesmo pousar a enfusa d'agoa quente, as botas
envernisadas, a braçada de toalhas que o ajoujavam... O
Casco! O José
Casco dos Bravaes, bebedo, rompendo para elle, sem o conhecer, com uma
foice enorme, a berrar―«Morra, que é
marrão!...» E elle na estrada,
deante do bruto, de bengalinha! Mas atira um salto, a
foiçada resvala
sobre um tronco de pinheiro... Então arremette
desabaladamente,
brandindo a bengala, gritando pelo Ricardo e pelo Manoel como se ambos
o
escoltassem―e ataranta o Casco, que recua, se some pela azinhaga, a
cambalear, a grunhir...
―Hein, que te parece? Se não é a minha audacia,
[192]o homem
positivamente
me ferra um
tiro de espingarda!
O Bento, que quasi se babava, com o jarro esquecido a pingar no tapete,
pestanejou, confuso, mais attonito:
―Mas o Snr. Dr. disse que era uma foice!
Gonçalo bateu o pé, impaciente:
―Correu para mim com uma foice. Mas vinha atraz do carro... E no carro
trazia uma espingarda. O Casco é caçador, anda
sempre d'espingarda...
Emfim estou aqui vivo, na Torre, por mercê de Deus. E tambem
porque
felizmente, n'estes casos, não me falta decisão!
E apressou o Bento―porque com o abalo, o esforço,
positivamente lhe
tremiam as pernas de cançasso e de fome... Além
da sêde!
―Sobretudo sêde! Esse vinho que venha bem fresco... Do Verde
e do
Alvaralhão, para misturar.
O Bento, com um tremulo suspiro da emoção
atravessada, enchera a bacia,
estendia as toalhas. Depois, gravemente:
―Pois, Snr. Dr., temos esse andaço nos sitios! Foi o mesmo
que succedeu
ao Snr. Sanches Lucena, na
Feitosa...
―Como, ao Snr. Sanches Lucena?
O Bento desenrolou então uma tremenda historia trazida
á Torre, durante
a estada do Snr. Doutor em
[193]Oliveira,
pelo cunhado da Crispola, o Ruy
carpinteiro, que trabalhava nas obras da
Feitosa.
O Snr. Sanches
Lucena descêra uma tarde, ao lusco fusco, á porta
do Mirante, quando
passam na estrada dous jornaleiros, bebedos ou facinoras, que implicam
com o excellente senhor. E chufas, risinhos, momices... O Snr. Sanches,
com paciencia, aconselhou os homens que seguissem, não se
desmandassem.
De repente um d'elles, um rapazola, sacode a jaqueta do hombro, ergue o
cajado! Felizmente o companheiro, que se affirmára, ainda
gritou:―«Ai!
rapaz, que elle é o nosso deputado!» O rapazola
abalou, espavorido. O
outro até se atirou de joelhos deante do Snr. Sanches
Lucena... Mas o
pobre senhor, com o abalo, recolheu á cama!
Gonçalo acompanhára a historia, seccando
vagarosamente as mãos á toalha,
impressionado:
―Quando foi isso?
―Pois disse ao Snr. Dr.... Quando o Snr. Dr. estava em Oliveira. Um dia
antes ou um dia depois dos annos da Snr.
a D.
Graça.
O Fidalgo arremessou a toalha, limpou pensativamente as unhas. Depois
com um risinho incerto e leve:
―Emfim, sempre serviu d'alguma coisa ao Sanches Lucena ser deputado por
Villa-Clara...
E já vestido, abastecendo a charuteira (porque
[194]resolvera
passar a noite
na Villa, a desabafar com o Gouveia)―de novo se voltou para Bento, que
arrumava a roupa:
―Então o bebedo, quando o outro lhe gritou «Ai,
que é o nosso
deputado,» cahiu em si, fugiu, hein?... Ora vê tu!
Ainda vale ser
deputado! Ainda inspira respeito, homem! Pelo menos inspira mais
respeito que descender dos reis de Leão!... Paciencia, toca
a jantar.
Durante o jantar, misturando copiosamente o Verde e o
Alvaralhão,
Gonçalo não cessou de ruminar a ousadia do Casco.
Pela vez primeira, na
historia de Santa Ireneia, um lavrador d'aquellas aldêas,
crescidas á
sombra da Casa illustre, por tantos seculos senhora em monte e valle,
ultrajava um Ramires! E brutamente, alçando o cajado, deante
dos muros
da quinta historica!... Contava seu pae que, em vida do
bisavô Ignacio,
ainda desde Ramilde até Corinde os homens dobravam o joelho
nos caminhos
quando passava o Senhor da Torre. E agora levantavam a foice!... E
porque? Por que elle não se desfalcára
submissamente das suas rendas em
proveito d'um façanhudo!―Em tempos do avô
Tructesindo, villão de tal
attentado assaria, como porco
[195]montez,
n'uma ruidosa fogueira, deante das
barbacans da Honra. Ainda em dias do bisavô Ignacio
apodreceria n'uma
masmorra. E o Casco não podia escapar sem castigo. A
impunidade só lhe
incharia a audacia: e assomado, rancoroso, n'outro encontro, sem mais
fallas, desfechava a caçadeira. Oh! não lhe
desejava um mal duravel,
coitado, com dois filhos pequeninos―um que mamava. Mas que o
arrastassem á Administração, algemado,
entre dois cabos de policia―e
que na triste saleta, d'onde se avistam as grades da cadeia, apanhasse
uma reprehensão tremenda do Gouveia, do Gouveia muito secco,
muito
esticado na sobrecasaca negra... Assim se devia resguardar, por meios
tortuosos―pois que não era deputado, e que, com o seu
talento, o seu
nome, essa espantosa linhagem d'avós que
edificára o Reino, carecia o
prestigio d'um Sanches Lucena, o precioso prestigio que suspende no ar
os varapáus atrevidos!
Apenas findou o café, mandou pelo Bento avisar os dous
moços da horta, o
Ricardo e o outro de queixo de cavallo, que o esperassem no pateo,
armados. Porque na Torre ainda sobrevivia uma «Sala
d'armas»―cacifro
tenebroso, junto ao Archivo, onde se amontoavam peças
aboladas
d'armaduras, um lorigão de malha, um broquel mourisco,
alabardas,
espadões, polvarinhos, bacamartes de 1820, e entre esta
poeirenta
ferralhagem negra tres espingardas limpas
[196]com
que os moços
da quinta, na
romaria de S. Gonçalo, atiravam descargas em louvor do Santo.
Depois, elle, encafuou o revólver na algibeira, desenterrou
do armario
do corredor um velho bengalão de cabo de chumbo
entrançado, agarrou um
apito. E assim precavido, aquecido pelo Verde e pelo
Alvaralhão, com os
dous creados de caçadeira ao hombro, importantes e tesos,
partiu para
Villa-Clara, procurar o Snr. Administrador do Concelho. A noite
envolvia
os campos em socego e frescura. A lua nova, que alimpára o
tempo, roçava
a crista dos outeiros de Valverde como a roda lustrosa d'um carro de
ouro. No silencio os rijos sapatões pregueados dos dous
jornaleiros
resoavam em cadencia. E Gonçalo adiante, de charuto
flammante, gosava
aquella marcha, em que de novo um Ramires trilhava os caminhos de Santa
Ireneia com homens da sua mercê e solarengos armados.
Ao começo da villa, porém, recolheu discretamente
a escolta na taverna
da Serena: e elle cortou para o Mercado da Herva, para a Tabacaria do
Simões, onde o Gouveia, áquella hora, antes da
partida da Assembléa,
costumava pousar, comprar uma caixa de phosphoros, considerar
pensativamente na vidraça as cautelas da Loteria. Mas n'essa
noite o
Snr. Administrador faltára ao Simões costumado.
Largou então para a
Assembléa: e logo em baixo,
[197]no
bilhar, um sujeito calvo, que
contemplava
as carambolas solitarias do marcador, espapado na bancada, de collete
desabotoado, mascando um palito―informou o Fidalgo da
doença do amigo
Gouveia:
―Cousa leve, inflammação de garganta... V. Ex.
a
de certo o encontra em
casa. Não arreda do quarto desde Domingo.
Outro cavalheiro porém, que remexia o seu café
á esquina d'uma mesa
atulhada de garrafas de licôr, affiançou que o
Snr. Administrador já
espairecera n'essa tarde. Ainda pelas cinco horas elle o
encontrára na
Amoreira, com o pescoço atabafado n'uma manta de
lã.
Gonçalo, impaciente, abalou para a Calçadinha. E
atravessava o Largo do
Chafariz quando descortinou o desejado Gouveia, á porta
muito alumiada
da loja de pannos do Ramos, conversando com um homemzarrão
de forte
barba retinta e de guarda-pó alvadio.
E foi o Gouveia, que, de dedo espetado, investiu para
Gonçalo:
―Então, já sabe?
―O quê?
―Pois não sabe, homem?... O Sanches Lucena!
―O quê?
―Morreu!
O fidalgo embasbacou para o Administrador, depois
[198]para o outro
cavalheiro, que repuxava na mão enorme, com um
esforço inchado, uma luva
preta apertada e curta.
―Santo Deus!... Quando?
―Esta madrugada. De repente. «Angina pectoris,»
não sei quê no
coração... De repente, na cama.
E ambos se consideraram, em silencio, no espanto renovado d'aquella
morte que impressionava Villa-Clara. Por fim Gonçalo:
―E eu ainda ha bocado, na Torre, a fallar d'elle! E, coitado, como
sempre, com pouca admiração...
―E eu! exclamou o Gouveia. Eu, que ainda hontem lhe escrevi!... E uma
carta comprida, por causa d'um empenho do Manoel Duarte... Foi o
cadaver
que recebeu a carta.
―Boa piada! rosnou o sujeito obeso, que se debatia ferrenhamente contra
a luva. O cadaver recebeu a carta... Boa piada!
O Fidalgo torcia o bigode, pensativo:
―Ora, ora... E que edade tinha elle?
O Gouveia sempre o imaginára um completo velho, de setenta
invernos.
Pois não! apenas sessenta, em Dezembro. Mas consumido,
arrasado. Casára
tarde, com fêmea forte...
―E ahi temos a bella D. Anna, viuva aos vinte
[199]e
oito annos, sem filhos,
naturalmente herdeira, com o seu mealheiro de duzentos contos... Talvez
mais!
―Boa maquia! roncou de novo o oupado homem que enfiára a
luva, e agora
gemia, com as veias tumidas, para lhe apertar o colchete.
Aquelle cavalheiro constrangia o Fidalgo―ancioso por desafogar com o
Gouveia sobre «a vacatura politica,» assim
inesperadamente aberta, no
circulo de Villa-Clara, pela brusca desapparição
do Chefe tradicional. E
não se conteve, puchou o Administrador pelo botão
da sobrecasaca para a
sombra favoravel da parede:
―Oh! Gouveia! então agora, hein?... Temos
eleição supplementar... Quem
virá pelo circulo?
E o Administrador, muito simplesmente, sem se resguardar do
homemzarrão
de guarda-pó, que, emfim enluvado, accendera o charuto, se
acercava com
familiaridade―deduziu os factos:
―Agora, meu amigo, com o tio do Cavalleiro ministro da
Justiça e o José
Ernesto ministro do Reino, vae deputado pelo circulo quem o
André
Cavalleiro mandar. É claro... O Sanches Lucena manteve
sempre o seu
logar em S. Bento por uma indicação natural do
partido. Era aqui o
primeiro homem, o grande homem dos Historicos... Bem! Hoje, para
decidir
o Governo, como falta a indicação natural
[200]do
partido, que resta? O
desejo pessoal do Cavalleiro. Você sabe como o Cavalleiro
é
regionalista. Pelo circulo pois, logicamente, sahe quem se apresente ao
Cavalleiro como um bom continuador do Lucena, pela influencia e pela
estabilidade territorial... N'outro circulo ainda se podia encaixar
á
pressa um deputado fabricado em Lisboa, nas Secretarias. Aqui
não! O
deputado tem de ser local e Cavalleirista. E o proprio Cavalleiro,
acredite você, está a esta hora
embaraçado.
O gordalhufo murmurou com importancia, atravez do immenso charuto que
mamava:
―Amanhã já estou com elle, já sei...
Mas o Administrador emmudecera, coçava o queixo, cravando em
Gonçalo os
olhos espertos, que rebrilhavam, como se uma ditosa idéa,
quasi uma
inspiração, o illuminasse. E de repente, para o
outro, que cofiava a
barba retinta:
―Pois, meu caro senhor, até além
d'ámanha. Ficamos entendidos. Eu
remetto o cestinho dos queijos directamente ao Snr. Conselheiro.
Tomou o braço de Gonçalo, que apertou com
impaciencia. E sem attender
mais ao homemzarrão, que saudava rasgadamente, arrastou o
Fidalgo para a
Calçadinha silenciosa:
―Oh, Gonçalo, ouça lá...
Vossê agora tinha
[201]uma
occasião soberba!
Você,
se quizesse, dentro de poucos dias, estava deputado por Villa-Clara!
O Fidalgo da Torre estacára―como se uma estrella de repente
se
despenhasse na rua mal allumiada.
―Ora escute! exclamou o Administrador, largando o braço de
Gonçalo,
para desenrolar mais livremente a sua idéa. Você
não tem compromissos
serios com os Regeneradores. Você deixou Coimbra ha um anno,
tenta agora
a vida publica, nunca fez acto definitivo de partidario. Lá
uma ou outra
correspondencia para os jornaes, historias!...
―Mas...
―Escute, homem! Você quer entrar na Politica? Quer.
Então, pelos
Historicos ou pelos Regeneradores, pouco importa. Ambos são
constitucionaes, ambos são christãos... A
questão é entrar, é furar. Ora
você, agora, inesperadamente, encontra uma porta aberta. O
que o póde
embaraçar? As suas inimisades particulares com o Cavalleiro?
Tolices!
Atirou um gesto, largo e secco, como se varresse essas puerilidades:
―Tolices! Entre vocês não ha morte d'homem. Nem
vocês, no fundo, são
inimigos. O Cavalleiro é rapaz de talento, rapaz de gosto...
Não vejo
outro, aqui no districto, com quem você tenha mais
conformidade de
espirito, de educação, de maneiras, de
tradições... N'uma terra pequena,
mais dia menos
[202]dia,
fatalmente, se impunha a
reconciliação. Então seja
agora, quando a reconciliação o leva
ás Camaras!... E repito. Pelo
circulo de Villa-Clara sahe deputado quem o Cavalleiro mandar!
O Fidalgo da Torre respirou, com esforço, na
emoção que o suffocava. E
depois d'um silencio em que tirára o chapéo,
abanára com elle,
pensativamente, a face descahida:
―Mas o Cavalleiro, como você disse, é todo local
todo regional... Não
quererá impôr senão um homem como o
Lucena, com fortuna, com
influencia...
O outro parou, alargou os braços:
―E então, você?... Que diabo! Você tem
aqui propriedade. Tem a Torre,
tem Treixedo. Sua irmã hoje é rica, mais rica que
o Lucena. E depois o
nome, a familia... Vocês, os Ramires, estão
estabelecidos, com solar em
Santa Ireneia, ha mais de duzentos annos.
O fidalgo da Torre ergueu com viveza a cabeça:
―Duzentos?... Ha mil, ha quasi mil!
―Ora ahi tem! Ha mil annos. Uma casa anterior á monarchia.
Pelo menos
coeva! Você é portanto mais fidalgo que o Rei! E
então, isso não é uma
situação muito superior á do Lucena?
Sem contar a intelligencia... Oh!
diabo!
―Que foi?
[203] ―A garganta... Uma picadita na garganta. Ainda não estou
consolidado.
E decidiu logo recolher, gargarejar, porque o Dr. Macedo prohibira as
noitadas festivas. Mas Gonçalo acompanhava até
á porta o amigo Gouveia.
E, conchegando o abafo de lã, o Administrador resumiu a sua
idéa:
―Pelo circulo de Villa-Clara, Gonçalinho, sahe quem o
Cavalleiro
mandar. Ora o Cavalleiro, creia você, tem immenso empenho de
o eleger,
de o lançar na Politica. Se você portanto estender
a mão ao Cavaleiro, o
circulo é seu. O Cavalleiro tem o maior, o maiorissimo
empenho,
Gonçalinho!
―Isso é que eu não sei, João
Gouveia...
―Sei eu!
E em confidencia, na solidão da Calçadinha,
João Gouveia revelou ao
Fidalgo que o Cavalleiro anciava pela occasião de reatar a
velha
fraternidade com o seu velho Gonçalo! Ainda na semana
passada o
Cavalleiro lhe affirmára (palavras
textuaes):―«Entre os rapazes d'esta
geração nenhum com mais seguro e mais largo
futuro na Politica que o
Gonçalo. Tem tudo! grande nome, grande talento, a
seducção, a
eloquencia... Tem tudo! E eu, que conservo pelo Gonçalo todo
o carinho
antigo, gostava ardentemente, ardentissimamente, de o levar
ás Camaras.»
[204] ―Palavras textuaes, meu amigo!... Ainda ha seis ou sete dias, em
Oliveira, depois do jantar, a tomarmos ambos café no quintal.
A face de Gonçalo ardia na sombra, devorando as
revelações do
Administrador. Depois, com lentidão, como descobrindo
candidamente todos
os recantos da sua alma:
―Eu, na realidade, tambem conservo a antiga sympathia pelo Cavalleiro.
E certas questões intimas adeus!... Envelheceram, caducaram,
tão
obsoletas hoje como os aggravos dos Horacios e dos Curiacios... Como
você lembrou ha pouco, com razão, nunca se ergueu
entre nós morte de
homem. Que diabo! Eu fui educado com o Cavalleiro, eramos como
irmãos...
E acredite você, Gouveia! Sempre que o vejo, sinto um
appetite doido,
mas doido, de correr para elle, de lhe gritar: «Oh!
André! nuvens
passadas não voltam, atira para cá esses
ossos!» Creia você, não o
faço
por timidez... É timidez... Oh! não,
lá por mim, estou prompto á
reconciliação, todo o
coração m'a pede! Mas elle?... Porque, emfim,
Gouveia, eu, nas minhas Correspondencias para a
Gazeta do
Porto, tenho
sido feroz com o Cavalleiro!
João Gouveia parou, de bengala ao hombro, considerando o
fidalgo com um
sorriso divertido:
―Nas Correspondencias? Que lhe tem você dito nas
Correspondencias? Que
o Snr. Governador
[205]Civil
é um despota, e um D. Juan?... Meu
caro amigo,
todo o homem gosta que, por opposição politica,
lhe chamem despota e D.
Juan. Você imagina que elle se affligiu? Ficou simplesmente
babádo!
O fidalgo murmurou, inquieto:
―Sim! Mas as allusões á bigodeira, á
guedelha...
―Oh! Gonçalinho! Bellos cabellos annellados, bellos bigodes
torcidos,
não são defeitos de que um macho se envergonhe...
Pelo contrario! Todas
as mulheres admiram. Você pensa que ridicularisou o
Cavalleiro? Não!
annunciou simplesmente ás madamas e meninas, que
lêem a
Gazeta do
Porto, a existencia d'um mocetão esplendido que
é Governador Civil
d'Oliveira.
E parando de novo (por que defronte, na esquina, luziam as duas
janellas
abertas da sua casa), o Administrador estendeu o dedo firme para um
conselho supremo:
―Gonçalo Mendes Ramires, você
ámanhã manda buscar a parelha do Torto,
salta para a sua caleche, corre á cidade, entra pelo Governo
Civil de
braços abertos, e grita sem outro
prologo:―«André, o que lá vae,
lá
vae, venham essas costellas! E como o circulo está vago,
venha tambem
esse circulo!»―E você, dentro de cinco ou seis
semanas, é o Snr.
Deputado
[206]por
Villa-Clara, com todos os sinos a repicar... Quer tomar
chá?
―Não, obrigado.
―Bem, então viva! Tipoia ámanhã e
Governo Civil. Está claro, é
necessario arranjar um pretexto...
O fidalgo acudiu, com alvoroço:
―Eu tenho um pretexto! Não!... Quero dizer, tenho
necessidade real,
absoluta, de fallar com o Cavalleiro ou com o Secretario Geral.
É uma
questão de caseiro... Até por causa d'essa
infeliz trapalhada o
procurava eu hoje a você, Gouveia!
E aldravou a aventura do Casco, com traços mais pesados que
a
ennegreciam. Durante semanas, afferradamente, esse fatal Casco o
torturára para lhe arrendar a Torre. Mas elle
tratára com o Pereira, o
Pereira Brazileiro, por uma renda explendidamente superior á
que o Casco
offerecia a gemer. Desde então o Casco rugia,
ameaçava, por todas as
tabernas da Freguezia. E, n'essa tarde, surde d'uma azinhaga, rompe
para
elle, de varapau erguido! Mercê de Deus, lá se
defendera, lá sacudira o
bruto, com a bengala. Mas agora, sobre o seu socego, sobre a sua vida,
pairava a affronta d'aquelle cajado. E, se o assalto se renovasse, elle
varava o Casco com uma bala, como um bicho montez... Urgia pois que o
amigo Gouveia chamasse o homem, o reprehendesse
[207]rijamente, o entaipasse
mesmo por algumas horas na cadeia...
O Administrador, que escutára palpando a garganta, atalhou
logo, com a
mão espalmada:
―Governo Civil, caro amigo, Governo Civil! Esses casos de
prisão
preventiva pertencem ao Governo Civil. Reprehensão
não basta, com tal
féra!... Só cadeia, um dia de cadeia, a meia
ração... O Governo Civil
que me mande um officio ou telegramma. Você realmente corre
perigo. Nem
um instante a perder!... Amanhã tipoia e Governo Civil.
Mesmo por amor
da Ordem Publica!
E Gonçalo, compenetrado, com os hombros vergados, cedeu ante
esta
soberana razão da Ordem Publica:
―Bem, João Gouveia, bem!... Com effeito é uma
questão de Ordem Publica.
Vou ámanhã ao Governo Civil.
―Perfeitamente, concluiu o Administrador puxando o cordão
da campainha.
Dê recados meus ao Cavalleiro. E só lhe digo que
havemos de arranjar uma
votação tremenda, e foguetorio, e vivas, e ceia
magna no Gago... Você
não quer tomar chá, não?
Então, boas noites... E olhe! D'aqui a dous
annos, quando você fôr ministro, Gonçalo
Mendes Ramires, recorde esta
nossa conversa, á noite, na Calçadinha de
Villa-Clara!
[208]
Gonçalo seguiu pensativamente por defronte do Correio;
torneou a branca
escadaria da Egreja de S. Bento; metteu, alheado e sem reparar, pela
estrada plantada de acacias que conduz ao Cemiterio. E, n'aquelle alto
da Villa, d'onde, ao desembocar da Calçadinha, se abrange a
largueza
rica dos campos desde Valverde a Craquêde―sentiu que tambem
na sua
vida, apertada e solitaria como a Calçadinha, se
alargára um arejado
espaço cheio d'interessante bulicio e de abundancia. Era o
muro, em que
sempre se imaginára irreparavelmente cerrado, que de repente
rachava.
Eis a fenda facilitadora! Para além reluziam todas as bellas
realidades
que desde Coimbra appetecera! Mas...―Mas no atravessar da fenda fragosa
de certo se rasgaria a sua dignidade ou se rasgaria o seu orgulho. Que
fazer?...
Sim! seguramente! Estendendo os braços ao animal do
Cavalleiro
conquistava a sua Eleição. O circulo, infeudado
aos Historicos, elegeria
submissamente o Deputado que o chefe Historico ordenasse com indolente
aceno. Mas essa reconciliação importava a entrada
triumphal do
Cavalleiro na quieta casa do Barrôlo... Elle vendia pois o
socego da
irmã por uma cadeira em S. Bento! Não!
não podia por amor de
Gracinha!―E Gonçalo suspirou, com ruidoso suspiro, no
luminoso silencio
da estrada.
Agora porém, durante tres, quatro annos, os Regeneradores
[209]não
trepavam
ao Governo. E elle, alli, atravez d'esses annos, no buraco rural,
jogando voltaretes somnolentos na Assembléa da Villa,
fumando cigarros
calaceiros nas varandas dos Cunhaes, sem carreira, parado e mudo na
vida, a ganhar musgo, como a sua caduca, inutil Torre! Caramba! era
faltar cobardemente a deveres muito santos para comsigo e para com o
seu
nome!... Em breve os seus camaradas de Coimbra penetrariam nos altos
Empregos, nas ricas Companhias; muitos nas Camaras por vacaturas
abençoadas como a do Sanches; um ou outro mesmo, mais audaz
ou servil,
no Ministerio. Só elle, com talentos superiores, um tal
brilho
historico, jazeria esquecido e resmungando como um côxo n'uma
estrada
quando passa a romaria. E por quê? Pelo receio pueril de
pôr a bigodeira
atrevida do Cavalleiro muito perto dos fracos labios de Gracinha... E
por fim esse receio constituia uma injuria, uma nojenta injuria,
á
seriedade da irmã. Porque Portugal não se honrava
com mulher mais
rigidamente seria, de mais grave e puro pensar! Aquelle corpinho
ligeiro, que o vento levava, continha uma alma heroica. O
Cavalleiro?...
Podia sua exc.
a sacudir a guedelha com
graça fatal, jorrar
dos olhos
pestanudos a languidez ás ondas―que Gracinha permaneceria
tão
inaccessivel e solida na sua virtude como se fosse insexual e de
marmore.
[210]Oh,
realmente, por Gracinha, elle abriria ao Cavalleiro todas
as portas dos Cunhaes―mesmo a porta do quarto d'ella, e bem larga, com
uma solidão bem preparada!... E depois não se
cuidava de uma donzella,
nem d'uma viuva. Na casa do Largo d'El-Rei governava, mercê
de Deus,
marido brioso, marido rijo. A esse, só a esse, competia
escolher as
intimidades do seu lar―e n'elle manter quietação
e recato. Não! esse
receio de uma imaginavel fragilidade de Gracinha, da sua honrada,
altiva
Gracinha―esse receio, perverso e louco, certamente o devia varrer, com
o coração desafogado e sorrindo.―E, na clara
solidão da estrada,
Gonçalo Mendes Ramires atirou um gesto decidido e terminante
que varria.
Restava porém a sua propria
humilhação. Desde annos, ruidosamente,
conversando e escrevendo, em Coimbra, em Villa-Clara, em Oliveira, na
Gazeta do Porto―elle demolira o
Cavalleiro! E
subiria agora, de
espinhaço vergado, as escadarias do Governo Civil,
murmurando o
seu―
peccavi, mea culpa, mea maxima culpa?... Que
escandalo na
cidade!―«O Fidalgo da Torre lá precisou e
lá veio...» Era o
transbordante triumpho do Cavalleiro. O unico homem que no Districto se
conservava erguido, pelejando, trovejando as verdades―desarmava,
emmudecia, e encolhidamente se enfileirava no sequito louvaminheiro de
Sua Exc.
a! Bem duro!... Mas,
[211]que diabo, havia
superiormente o interesse
do paiz!―E, tão admiravel lhe appareceu esta
razão, que a bradou com
ardôr na mudez da estrada:―«Ha o
paiz!...»
Sim, o paiz! Quantas reformas a proclamar, a realisar! Em Coimbra, no
quinto anno, já se occupára da
Instrucção Publica―d'uma
remodelação do
Ensino, todo industrial, todo colonial, sem latim, sem ociosas
bellas-lettras, creando um povo formigueiro de Productores e
d'Exploradores... E os camaradas, nos sonhos ondeantes de Futuro,
quando
repartiam os Ministerios, concordavam sempre:―«O
Gonçalo para a
Instrucção Publica!» Por essas ideas
poderosas, pelo saber accumulado,
todo elle se devia á Nação―como
outr'ora, pela força, os grandes
Ramires armados. E pela Nação cumpria que o seu
orgulho de homem cedesse
ante a sua tarefa de cidadão...
Depois, quem sabe? Entre o Cavalleiro e elle afogadamente se enroscava
todo um passado de camaradagem, apenas entorpecido―que talvez revivesse
n'esse encontro, os enlaçasse logo n'um abraço
penetrante, onde os
antigos aggravos se sumiriam como um pó sacudido... Mas para
que
imaginar, remoer? Uma necessidade se sobrepunha, inilludivel―a de
comparecer logo de manhã em Oliveira, no Governo Civil,
requerendo a
suppressão do Casco. D'essa pressa dependia o seu socego de
vida
[212]e
d'intelligencia. Nunca elle lograria trabalhar na Novella, trilhar
folgadamente a estrada de Villa-Clara, sabendo que em torno o outro,
pelas quélhas e sombras, rondava com a espingarda. E para
não regressar
aos costumes bravios dos seus avós, circulando atravez do
Concelho entre
as carabinas dos creados, necessitava o Casco domado, immobilisado. Era
pois inadiavel correr ao Governo Civil, para bem da Ordem. E depois,
quando elle se encontrasse no gabinete do Cavalleiro, deante da mesa do
Cavalleiro―a Providencia decidiria...―«A Providencia
decidirá!»
E ancorado n'esta resolução, o Fidalgo da Torre
parou, olhou. Levado
pela quente rajada de pensamentos, chegára á
grade do cemiterio da Villa
que o luar branqueava como um lençol estendido. Ao fundo da
alameda que
o divide, clara na claridade triste, o escarnado Christo chagado e
livido, sobre a sua alta cruz negra, pendia, mais dolorido e livido no
silencio e na solidão, com uma tristissima lampada aos
pés esmorecendo.
Em torno eram cyprestes, sombras de cyprestes, brancuras de lapides, as
cruzes rasteiras das campas pobres, uma paz morta pesando sobre os
mortos: e no alto a lua amarella e parada. Então o Fidalgo
sentiu um
arripiado mêdo do Christo, das lousas, dos defuntos, da lua,
da solidão.
E despedio n'uma carreira até avistar as casas
[213]da
Calçadinha, por onde
descambou como uma pedra solta. Quando se deteve no Largo do Chafariz,
um môcho piava na torre da Camara, melancolisando o repouso
de
Villa-Clara apagada e adormecida. Mais impressionado,
Gonçalo correu á
taberna da Serena, recolheu os creados que esperavam jogando a bisca
lambida. E com elles atravessou de novo a Villa até
á cocheira do
Torto―para recommendar que lhe mandassem á Torre,
ás nove horas da
manhã, a parelha russa.
Atravez do postigo, que se abrira com cautella no portão
chapeado, a
mulher do Torto gemeu, indecisa:
―Ai, meu Deus, não sei se poderá... Elle
ás nove tem um serviço... Pois
não faria mais conta ao Fidalgo ahi pela volta das onze?
―Ás nove! berrou Gonçalo.
Desejava apear cêdo ao portão do Governo Civil
para evitar a curiosidade
d'aquelles cavalheiros de Oliveira―que, depois do meio dia, se juntavam
na Praça, vadiando por debaixo da Arcada.
Mas ás nove e meia Gonçalo, que até ao
luzir da madrugada se agitára
pelo quarto n'um tumulto d'esperanças e receios―ainda se
barbeava, em
camisa, deante do vasto espelho de coluninas douradas. Depois
[214]aproveitou
a caleche para deixar na
Feitosa os seus bilhetes
de pezames
á bella
viuva, á D. Anna. Ao meio dia, esfaimado, almoçou
na Vendinha emquanto a
parelha resfolgava. E batia a meia depois das duas quando emfim se
apeou
em Oliveira deante do portão do antigo convento de S.
Domingos, ao fundo
da Praça, onde seu pae, quando Chefe do Districto,
installára
faustosamente as repartições do Governo Civil.
Áquella hora, já na frescura e sombra da Arcada
que orla um lado da
Praça (outr'ora
Praça da Prataria,
hoje
Praça da Liberdade) os
cavalheiros d'Oliveira mais desoccupados, os
«rapazes», preguiçavam, em
cadeiras de verga, á porta da Tabacaria Elegante e da loja
do Leão.
Gonçalo, cautelosamente, baixára as cortinas
verdes da caleche. Mas no
pateo do Governo Civil, ainda guarnecido de bancos monumentaes do tempo
dos frades, esbarrou com o primo José Mendonça,
que descia a escadaria,
fardado. Foi um assombro para o alegre capitão,
moço esvelto, de bigode
curto, picado levemente de bexigas.
―Tu por aqui, Gonçalinho! E de chapeu alto! Caramba, deve
ser coisa
gorda!
O Fidalgo da Torre confessou, corajosamente. Chegava n'esse instante de
Santa Ireneia para fallar ao André Cavalleiro...
―Está elle cá, esse illustre senhor?
[215]
O outro recuou, quasi aterrado:
―Ao Cavalleiro?! É ao Cavalleiro que vens fallar?!...
Santissima
Virgem! Então desabou Troia!
Gonçalo gracejou, corando. Não! não se
passára desgraça epica como a de
Troia... De resto podia revelar ao amigo Mendonça o caso que
o arrastava
á presença augusta de Sua Exc.
a
o Snr.
Governador Civil. Era um homem
dos Bravaes, um Casco, que, furioso por não conseguir o
arrendamento da
Torre, o ameaçára, rondava agora a estrada de
Villa-Clara de noite, á
espreita, com uma espingarda. E elle, não ousando
«fazer alta e boa
justiça» pelas mãos dos seus creados,
como os Ramires feudaes―reclamava
modestamente da Auctoridade Superior uma ordem para que o Gouveia
mantivesse dentro da legalidade e dos Mandamentos de Deus o
façanhudo
dos Bravaes...
―Só isto, uma pequenina questão de paz
publica... E então o grande
homem está lá em cima? Bem, até logo,
Zézinho... A prima, de saude? Eu
naturalmente janto nos Cunhaes. Apparece!
Mas o capitão não despegava do degrau de pedra,
abrindo pachorrentamente
a cigarreira de couro:
―E que me dizes tu á novidade? O pobre Sanches Lucena?...
Sim, Gonçalo soubera na Assembleia. Um ataque,
hein?―Mendonça accendeu,
chupou o cigarro:
[216] ―De repente, com um aneurisma, a ler o
Noticias!...
Pois ainda ha
tres dias a Maricas e eu jantamos na
Feitosa.
Até eu
toquei a duas
mãos, com a D. Anna, o quarteto do Rigoleto. E elle bem,
conversando,
tomando a sua aguardentesinha de canna...
Gonçalo esboçou um gesto de piedade e tristeza:
―Coitado... Tambem ha semanas o encontrei na Bica-Santa. Bom homem, bem
educado... E ahi temos agora a bella D. Anna vaga.
―E o circulo!
―Oh, o circulo! murmurou o Fidalgo da Torre com risonho desdem. A mim
antes me convinha a viuva. É Venus com duzentos contos!
Infelizmente tem
uma voz medonha...
O primo Mendonça accudiu, com interesse, uma
convicção dedicada:
―Não! não! na intimidade, perde aquelle tom
empapado... Não imaginas!
até um timbre natural, agradavel... E depois, menino, que
corpo! que
pelle!
―Deve ficar explendida agora com o luto! concluiu Gonçalo.
Bem,
adeusinho! Apparece nos Cunhaes... Eu corro ao Cavalleiro para que Sua
Exc.
a me salve com o seu braço forte!
Sacudiu a mão do Mendonça, galgou a escadaria de
pedra.
Mas o capitão, que mettera para a travessa de S. Domingos,
desconfiou
d'aquella historia d'ameaças,
[217]d'espingardas...
«Qual! Aqui anda
Politica!» E quando, passada uma hora lenta, repenetrou na
Praça e
avistou a caleche da Torre ainda encalhada á porta do
Governo
Civil―correu á Arcada, desabafou logo com os dois
Villa-Velhas, ambos
pensativamente encostados aos dois humbraes da Tabacaria Elegante:
―Vocês sabem quem está no Governo Civil?... O
Gonçalo Ramires!... Com o
Cavalleiro!
Todos em roda se mexeram, como acordando, nas gastas cadeiras de
verga―onde os estendera somnolentamente o silencio e a ociosidade da
arrastada tarde de verão. E o Mendonça, excitado,
contou que desde as
duas horas e meia Gonçalo Mendes Ramires, «em
carne e osso», se
conservava fechado com o Cavalleiro, no Governo Civil, n'uma
conferencia
magna! O espanto e a curiosidade foram tão ardentes que
todos se
ergueram, se arremessaram para fóra dos Arcos, a espiar a
bojuda varanda
do convento, sobre o portão―que era a do gabinete de Sua
Excellencia.
Precisamente, n'esse momento, José Barrôlo, a
cavallo, de calça branca,
de rosa branca na quinzena d'alpaca, dobrava a esquina da rua das
Vendas. E o interesse todo d'aquelles cavalheiros se precipitou para
elle, na esperança d'uma revelação:
―Oh Barrôlo!
[218] ―Oh Barrolinho, chega cá!
―Depressa, homem, que é caso rijo!
Barrôlo, ladeando, abeirou da Arcada: e os amigos
immediatamente lhe
atiraram a nova formidavel, apertados em volta da egoa. O
Gonçalo e o
Cavalleiro cochichando secretamente toda a manhã! A caleche
da Torre á
espera, com a parelha adormecida! E já começavam
a repicar os sinos da
Sé!
Barrôlo, n'um pulo, desmontou. E emquanto um garoto lhe
passeava a
egoa―estacou entre os amigos, com o chicote detraz das costas, pasmando
tambem para a varanda de pedra do Governo Civil.
―Pois eu não sei nada! O Gonçalo a mim
não me disse nada! affirmava
elle, assombrado. Tambem já ha dias não vem
á cidade... Mas não me disse
nada! E da ultima vez que cá esteve, nos annos da
Graça, ainda
destemperou contra o Cavalleiro!
A todos o caso parecia «d'estrondo!» E subitamente
um silencio esmagou a
Arcada, trespassada d'emoção. Na varanda, entre
as vidraças abertas
vagarosamente, apparecera o Cavalleiro com o Fidalgo da Torre,
conversando, risonhos, de charutos accesos. Os largos olhos do
Cavalleiro pousaram logo, com malicia, sobre os
«rapazes» apinhados em
pasmo á borda dos Arcos. Mas foi um lampejar de
visão. S. Ex.
a
remergulhára no gabinete―o Fidalgo tambem, depois de se
debruçar da
varanda, espreitar
[219]a
caleche da Torre. Entre os amigos rompeu um clamor:
―Viva! Reconciliação!
―Acabou a guerra das Rosas!
―E as correspondencias da
Gazeta do Porto?...
―É que houve peripecia tremenda!
―Temos o Gonçalinho administrador d'Oliveira!
―Upa, Ex.
mo Snr., upa!
Mas de novo emmudeceram. O Cavalleiro e o Fidalgo reappareciam, n'uma
enfronhada conversa, que os deteve um momento esquecidos, na evidencia
da varanda escancarada. Depois o Cavalleiro, com uma familiaridade
carinhosa, bateu nas costas do Gonçalo―como se publicasse a
sua
reconciliação diante da Praça
maravilhada. E outra vez se sumiram,
n'esse passear conversado e intimo, que os trazia da sombra do gabinete
para a claridade da janella, roçando as mangas, misturando o
fumo leve
dos charutos. Em baixo o bando crescia, mais excitado.
Passára o Mello
Alboim, o Barão das Marges, o Dr. Delegado: e, chamados com
ancia, cada
um correra, devorára esgazeadamente a novidade,
embasbacára para o velho
balcão de pedra que o sol dourava. Os grossos ponteiros do
relogio do
Governo Civil já se acercavam das quatro horas. Os dous
Villa-Velhas,
outros «rapazes», estafados, retrocederam
ás cadeiras de verga da
Tabacaria. O Dr. Delegado,
[220]que
jantava ás quatro e soffria
do estomago,
despegou desconsoladamente dos Arcos, supplicando ao Pestana seu
visinho
«que apparecesse ao café, para contar o
resto...» Mello Alboim, esse,
enfiára para casa, defronte do Governo Civil, na esquina do
Largo: e da
janella, disfarçado por traz da mulher e da cunhada, ambas
de chambres
brancos e de papelotes, sondava o gabinete de S. Ex.
a
com um binoculo.
Por fim bateram, com estendida pancada, as quatro horas.
Então o Barão
das Marges, na sua impaciencia borbulhante, decidiu subir ao Governo
Civil, «para farejar!...»
Mas n'esse momento André Cavalleiro assomava de novo
á varanda―sózinho,
com as mãos enterradas no jaquetão de flanella
azul. E quasi
immediatamente a caleche da Torre largou da porta do Governo Civil,
atravessou a Praça, com os stores verdes meio corridos,
descobrindo
apenas, áquelles cavalheiros avidos, as calças
claras do Fidalgo.
―Vae para os Cunhaes!
Lá o apanhava pois o Barrôlo! E todos apressaram o
bom Barrôlo a que
montasse, recolhesse, para ouvir do cunhado os motivos e os lances
d'aquella paz historica! O Barão das Marges até
lhe segurou o estribo.
Barrôlo, alvoroçadamente, trotou para o Largo
d'El-Rei.
[221]
Mas Gonçalo Mendes Ramires, sem parar nos Cunhaes, seguia
para a
Vendinha, onde decidira jantar, dando um descanço
á parelha esfalfada. E
logo depois das ultimas casas da cidade subiu as stores, respirou
deliciosamente, com o chapeo sobre os joelhos, a luminosa frescura da
tarde―mais fresca e de uma claridade mais consoladora que todas as
tardes da sua vida... Voltava d'Oliveira vencedor! Furára
emfim atravez
da fenda, atravez do muro! E sem que a sua honra ou o seu orgulho se
esgaçassem nas asperezas estreitas da fenda!...
Abençoado Gouveia,
esperto Gouveia! E abençoada a esperta conversa, na vespera,
pela
calçadinha de Villa-Clara!...
Sim, de certo, fôra custoso aquelle mudo momento em que se
sentára
seccamente, hirtamente, á borda da poltrona, junto da pesada
meza
administrativa de S. Ex.
a. Mas mantivera muita
dignidade e muita
simplicidade...―«Sou forçado (dissera) a
dirigir-me ao Governador
Civil, á Auctoridade, por um motivo de ordem
publica...» E a primeira
avença partira logo do Cavalleiro, que torcia a bigodeira,
pallido:―«
Sinto profundamente que não seja ao homem, ao velho amigo,
que Gonçalo
Mendes Ramires se dirija...» Elle ainda se
conservára retrahido,
resistente, murmurando com uma frieza triste:―«As culpas
não são
decerto minhas...» E então o Cavalleiro, depois de
um silencio em que
[222]
lhe tremera o beiço:―«Ao cabo de tantos annos,
Gonçalo, seria mais
caridoso não alludir a culpas, lembrar somente a antiga
amizade, que,
pelo menos em mim, se conservou a mesma, leal e
séria.» A esta
sensibilisada invocação, elle volvera, com
doçura, com indulgencia:―«Se
o meu antigo amigo André recorda a nossa antiga amizade, eu
não posso
negar que em mim tambem ella nunca inteiramente se apagou...»
Ambos
balbuciaram ainda alguns confusos lamentos sobre os desaccordos da
vida.
E quasi insensivelmente se trataram por
tu! Elle
contou ao Cavalleiro
a torpe ousadia do Casco. E o Cavalleiro, indignado como amigo, mais
como Auctoridade, telegraphára logo ao Gouveia um mandado
forte para
inutilisar o valentão dos Bravaes... Depois conversaram da
morte do
Sanches Lucena, que impressionava o Districto. Ambos louvaram a belleza
da viuva, os seus duzentos contos. O Cavalleiro recordou a
manhã, na
Feitosa, em que entrando pela porta pequena do
jardim, a
surprehendera, dentro d'um caramanchão de rosas, a apertar a
liga. Uma
perna divina! Ambos se recusaram, rindo, a casar com a D. Anna, apezar
dos duzentos contos e da divina perna...―Já entre elles se
restabelecera a antiga familiaridade de Coimbra. Era «tu
Gonçalo, tu
André, oh menino, oh filho!»
E fôra André, naturalmente, que alludira
á desapparição
[223]do Deputado do
Governo, á surpreza do circulo vago... Elle
então, com indifferença,
estirado na poltrona, rufando com os dedos na borda da mesa,
murmurára:
―Sim, com effeito... Vocês agora devem estar
embaraçados, assim de
repente...
Mais nada! apenas estas indolentes palavras, murmuradas
através do rufo.
E o Cavalleiro, logo, sem preparação,
apressadamente, empenhadamente,
lhe offerecera o Circulo!―Pousára os olhos n'elle com
lentidão, como
para o penetrar, o escutar... Depois, insinuante e grave:
―Se tu quizesses, Gonçalo, não estavamos
embaraçados...
Elle ainda exclamára, com surpreza e riso:
―Como, se eu quizesse?
E o André, sempre com os olhos n'elle cravados, os largos
olhos
lustrosos, tão persuasivos:
―Se tu quizesses servir o Paiz, ser deputado por Villa-Clara,
já não
estavamos embaraçados, Gonçalo!
Se tu quisesses... E perante esta insistencia que
rogava,
tão sincera
e commovida, em nome do Paiz, elle consentira, vergára os
hombros:
―Se te posso ser util, e ao Paiz, estou ás vossas ordens.
E eis a fenda transposta, a aspera fenda, sem rasgão
[224]no seu
orgulho ou
na sua dignidade! Depois conversaram desafogadamente, passeando pelo
gabinete, desde a estante carregada de papeis até
á varanda―que André
abrira, por causa d'um cheiro persistente de petroleo entornado na
vespera. André tencionava partir n'essa noite para
Lisboa―para
conferenciar com o Governo, depois d'aquella inesperada
desapparição do
Lucena. E, agora em Lisboa, imporia o querido Gonçalo como o
unico
Deputado, depois do Sanches de Lucena, seguro e substancial―pelo nome,
pelo talento, pela influencia, pela lealdade. E eis a
eleição
consummada! De resto (declarára o Cavalleiro, rindo) aquelle
Circulo de
Villa-Clara constituia uma propriedade sua―tão sua como
Corinde.
Livremente, poderia eleger o servente da
Repartição que era gago e
bebado. Prestava pois um serviço esplendido ao Governo,
á Nação,
apresentando um môço de tão alta origem
e de tão fina intelligencia...
Depois accrescentára:
―Não tens a pensar mais na eleição.
Vaes para a Torre. Não contas a
ninguem, a não ser ao Gouveia. Esperas lá, muito
quietinho, telegramma
meu de Lisboa. E, recebido elle, estás Deputado por
Villa-Clara,
annuncias a teu cunhado, aos amigos... Depois, no domingo, vens
almoçar
comigo a Corinde, ás onze.
Então ambos se apertaram n'um abraço que fundiu
[225]de novo, e para
sempre,
as duas almas apartadas. Depois, ao cimo da escadaria de pedra onde o
acompanhára, André, repenetrando timidamente no
Passado, murmurou com um
riso pensativo:―«Que tens tu feito ultimamente, n'essa
querida Torre?»
E, ao saber da Novella para os
Annaes,
suspirou com
saudade dos tempos
de Imaginação e d'Arte em Coimbra, quando elle
amorosamente lapidava o
primeiro canto d'um poema heroico, o
Fronteiro de Ceuta.
Emfim outro
abraço―e alli voltava deputado por Villa-Clara.
Todos esses campos, esses povoados que avistava da portinhola da
caleche, era elle que os representava em Côrtes, elle,
Gonçalo Mendes
Ramires... E superiormente os representaria, mercê de Deus!
Porque já as
idéas o invadiam, viçosas e ferteis. Na Vendinha,
emquanto esperava que
lhe frigissem um chouriço com ovos e duas postas de savel,
meditou, para
a Resposta ao Discurso da Corôa, um esboço sombrio
e áspero da nossa
Administração na Africa. E lançaria
então um brado á Nação, que
a
despertasse, lhe arrastasse as energias para essa Africa portentosa,
onde cumpria, como gloria suprema e suprema riqueza, edificar de costa
a
costa um Portugal maior!... A noite cerrára, ainda outras
idéas o
revolviam, vastas e vagas―quando o
[226]trote
esfalfado da parelha estacou
no portão da Torre.
Ao outro dia (terça feira) ás dez horas, o Bento
entrou no quarto do
Fidalgo com um telegramma, que chegara á Villa de madrugada.
Gonçalo
pensou com um deslumbrado pulo do
coração:―«É do
Governo!»―Era do
Pinheiro, gritando pela Novella. Gonçalo amarrotou o
telegramma. A
Novella! Como poderia labutar na Novella, agora, todo na impaciencia e
no esforço da sua Eleição?... Nem
almoçou socegadamente―retendo,
atravez dos pratos que arredava, um desejo desesperado de
«contar ao
Bento.» E, sorvido o café n'um sorvo impaciente,
atirou para
Villa-Clara, a desafogar com o Gouveia. O pobre administrador jazia de
novo no camapé de palhinha, com papas na garganta. E toda a
tarde, na
estreita sala forrada de papel verde-gaio, Gonçalo exaltou
os talentos
do André, «homem de governo e de idéas,
Gouveia!»―celebrou o Ministerio
Historico, «o unico capaz de salvar esta choldra,
Gouveia!»-―desenrolou
vistosos Projectos de Lei que meditava sobre a Africa, «a
nossa
esperança magnifica, Gouveia!»―Emquanto o
Gouveia, estirado, só rompia
a mudez e a immobilidade, para murmurar chôchamente,
apalpando o calor
das papas:
[227] ―E a quem deve vossê tudo isso, Gonçalinho?...
Cá ao meco!»
Na quarta-feira, ao accordar, tarde, o seu pensamento saltou logo
soffregamente para o André Cavalleiro, que a essa hora, em
Lisboa,
almoçava no Hotel Central (sempre, desde rapaz,
André se conservára fiel
ao Hotel Central). E todo o dia, fumando cigarros insaciavelmente
atravez do silencio da casa e da quinta, seguiu o Cavalleiro nos seus
giros de Chefe de Districto, pela Baixa, pela Arcada, pelos
Ministerios... Naturalmente jantaria com o tio Reis Gomes, Ministro da
Justiça. Outro convidado certamente seria o José
Ernesto, Ministro do
Reino, condiscipulo do Cavalleiro, seu confidente politico... N'essa
noite, pois, tudo se decidia!
―Ámanhã, pelas dez horas, tenho cá
telegramma do André.
Nenhuma noticia chegou á Torre:―e o Fidalgo passou a lenta
quinta feira
á janella, vigiando a estrada poeirenta por onde surdiria o
moço do
telegrapho, um rapaz gordo que elle conhecia pelo bonné
d'oleado e pela
perna manca. Á noitinha, intoleravelmente inquieto, mandou
um moço a
Villa-Clara. Talvez o telegramma arrastasse, esquecido, pela mesa
d'aquella «besta do Nunes do Telegrapho!»
Não havia telegramma para o
Fidalgo. Então ficou certo de surgirem em Lisboa
difficuldades! E toda a
[228]
noite, sem socego, n'uma indignação que rolava e
crescia, imaginou o
Cavalleiro cedendo mollemente a outras exigencias do
Ministro―acceitando com servilismo para Villa-Clara a candidatura
d'algum imbecil da Arcada, d'algum chulo escrevinhador do Partido!
Pela manhã injuriou o Bento por lhe trazer tão
tarde os jornaes e o chá:
―E não ha telegramma, nem carta?
―Não ha nada.
Bem, fôra trahido! Pois nunca, nunca, aquelle infame
Cavalleiro
transporia a porta dos Cunhaes! De resto, que lhe importava a burlesca
Eleição? Mercê de Deus que lhe sobravam
outros meios de provar
soberbamente o seu valor―e bem superiores a uma ensebada cadeira em S.
Bento! Que miseria, na verdade, curvar o seu espirito e o seu nome ao
rasteiro serviço do S. Fulgencio, o obeso e horrendo careca!
E resolveu
logo regressar aos cimos puros da Arte, occupar altivamente todo o dia
no nobre e elegante trabalho da sua Novella.
Depois de almoço ainda abancou, com esforço,
remexeu nervosamente as
tiras de papel. E de repente agarrou o chapéo, abalou para
Villa-Clara,
para o telegrapho. O Nunes não recebera nada para sua
exc.
a!―Correu,
coberto de suor e pó, á
Administração do Concelho. O snr. Aministrador
partira
[229]para
Oliveira!... Positivamente vencera outra
combinação―eis a
sua confiança burlada! E recolheu á Torre,
decidido a tomar um desforço
tremendo do Cavalleiro por tanta injuria amontoada sobre o seu nome,
sobre a sua dignidade! Toda a abafada e enevoada Sexta-feira a consumio
amargamente meditando esta vingança, que queria bem publica
e bem
sangrenta. A mais saborosa, mais simples, seria rasgar a bigodeira do
infame com chicotadas, na escadaria da Sé, um domingo,
á sahida da
missa! Ao escurecer, depois do jantar que mal debicára,
n'aquelle
despeito e humilhação que o pungiam, envergou o
casaco para voltar a
Villa-Clara. Não entraria no Telegrapho―já com
vergonha do Nunes. Mas
gastaria a noite na Assembléa, jogando o bilhar, tomando um
alegre chá,
lendo risonhamente os Jornaes Regeneradores, para que todos recordassem
a sua indifferença―se por acaso, mais tarde, conhecessem a
trama em que
resvalára.
Desceu ao páteo, onde as arvores adensavam a sombra do
crepusculo
carregado de fuscas nuvens. E abria o portão, quando
esbarrou com um
rapaz que s'esbaforia sobre a perna manca e
gritava:―«É um telegramma!»
Com que voracidade lh'o arrancou das mãos! Correu
á cozinha, ralhou
desabridamente á Rosa pela falta da luz tardia! E, com um
phosphoro a
arder nos dedos, devorou, n'um lampejo,
[230]as
linhas
bemditas:―«
Ministro
acceita, tudo arranjado...» O resto era o
Cavalleiro
lembrando que no
domingo o esperava em Corinde, ás onze, para
almoçarem e conversarem...
Gonçalo Mendes Ramires deu cinco tostões ao
moço do telegrapho―galgou
as escadas. Na livraria, á claridade mais segura do
candieiro, releu o
telegramma delicioso.
Ministro acceita, tudo arranjado!...
Na sua
transbordante gratidão pelo Cavalleiro, ideou logo um jantar
soberbo,
offerecido nos Cunhaes pelo Barrôlo, cimentando para sempre a
reconciliação das duas Casas. E recommendaria a
Gracinha que, para mais
honrar a doce festa, se decotasse, pozesse o seu collar magnifico de
brilhantes, a derradeira joia historica dos Ramires.
―Aquelle André! que flôr, que rapaz!
O relogio de charão, no corredor, rouquejou as nove horas. E
só então
Gonçalo percebeu a densa chuva que alagava a quinta, e a que
elle,
embebido na sua gloria, passeando pela livraria n'um luminoso rolo de
imaginações, não sentira o rumor sobre
a pedra da varanda, nem sobre a
folhagem dos limoeiros.
Para se calmar, occupar a noite encerrada, deliberou trabalhar na
Novella. E realmente agora convinha
[231]que
terminasse essa
Torre
de D.
Ramires antes do afan da Eleição―para
que em
Janeiro, ao abrir das
Côrtes, surgisse na Politica com o seu velho nome aureolado
pela
Erudição e pela Arte. Envergou o
roupão de flanella. E á banca, com o
costumado bule de chá inspirador, repassou lentamente o
começo do
Capitulo II―que o não contentava.
Era no castello de Santa Ireneia, n'aquelle dia de Agosto em que
Lourenço Ramires cahira no valle de Canta-Pedra, mal ferido
e captivo do
Bastardo de Bayão. Pelo Almocadem dos peões, que,
com o braço varado por
uma chuçada, voltára em desesperada carreira ao
Castello, já Tructezindo
Ramires conhecia o desventuroso desfecho da lide.―E n'este lance o tio
Duarte, no seu poemeto do
Bardo,
com um lyrismo molle, mostrava o
enorme
Rico-Homem gemendo derramadamente atravez da sala-d'armas, na saudade
d'esse filho, flôr dos Cavalleiros de Riba-Cavado, derrubado,
amarrado
n'umas andas, á mercê da gente de
Bayão...
Lagrimas irrepresas lhe rebentam,
Arfa o arnez c'o soluçar
ardente!...
Ora, levado no harmonioso sulco do tio Duarte, tambem elle, nas linhas
primeiras do Capitulo, esboçára o velho abatido
sobre um escanho, com
lagrimas
[232]relusentes
sobre as barbas brancas, as duras mãos
descahidas
como as de languida Dona―em quanto que nas lages, batendo a cauda, os
seus dois lebreus o contemplam n'uma sympathia anciada e quasi humana.
Mas, agora, este choroso desalento não lhe parecia coherente
com a alma
tão indomavelmente violenta do avô Tructezindo. O
tio Duarte, da casa
das Balsas, não era um Ramires, não sentia
hereditariamente a fortaleza
da raça:―e, romantico plangente de 1848,
inundára logo de prantos
romanticos a face ferrea de um lidador do seculo XII, d'um companheiro
de Sancho I! Elle porém devia restabelecer os espiritos do
Senhor de
Santa Ireneia dentro da realidade epica. E, riscando logo esse
descorado
e falso começo de Capitulo, retomou o lance mais
vigorosamente, enchendo
todo o castello de Santa-Ireneia d'uma irada e rija alarma. Na sua
lealdade sublime e simples Tructezindo não cuida do
filho―adia a
desforra do amargo ultraje. E o seu esforço todo se commette
a apressar
os aprestos da mesnada, para correr elle sobre Montemor, e levar
ás
Senhoras Infantas os soccorros de que as privára a embuscada
de
Canta-Pedra! Mas quando o impetuoso Rico-Homem com o Adail, na
sala-d'armas, regia a ordem da arrancada―eis que os esculcas, abrigados
do calor d'Agosto nos miradouros, enxergam ao longe, para
além do
arvoredo da Ribeira, coriscos d'armas, uma cavalgada
[233]subindo para
Santa-Ireneia. O Villico, o gordo e azafamado Ordonho, galga arquejando
aos eirados da torre albarrã―e reconhece o
pendão de Lopo de Bayão, o
seu toque de trompas á mourisca, arrastado e triste no
silencio dos
campos. Então arqueia as cabelludas mãos na
bôca, atira o alarido:
―Armas, armas! que é gente de Bayão!...
Besteiros, ás quadrellas!
Homens em chusma ás lavadiças da carcova!
E Gonçalo, coçando a testa com a rama da penna,
rebuscava ainda outros
veridicos brados, de bravo som Affonsino―quando a porta da livraria
abriu cautellosamente, atravez d'aquelle perro rangido que o
desesperava. Era o Bento, em mangas de camisa:
―O Snr. Dr. não poderia descer cá baixo
á cozinha?
Gonçalo embasbacou para o Bento, pestanejando, sem
comprehender:
―Á cozinha?...
―É que está lá a mulher do Casco a
levantar uma celeuma. Parece que lhe
prenderam o homem esta tarde... Appareceu ahi por baixo de agoa, com os
pequenos, até um de mama. Quer por força fallar
com o Snr. Dr. E não se
calla, lavada em lagrimas, de joelhos com os filhos, que é
mesmo uma
Ignez de Castro!
Gonçalo murmurou―«que massada!» E que
[234]contrariedade! A
mulher, n'uma
agonia, entre gritos, arrastando os filhos supplicantes até
ao portão da
Torre! E elle, nas vesperas da sua Eleição,
apparecendo a todas as
freguezias enternecidas como um fidalgo deshumano!...―Atirou a penna
furiosamente:
―Que massada! Dize á creatura que me deixe, que se
não afflija... O
Snr. Aministrador ámanhã manda soltar o Casco. Eu
mesmo vou a
Villa-Clara, antes d'almoço, para pedir. Que se
não afflija, que não
aterre os pequenos... Corre, dize, homem!
Mas o Bento não despegava da porta:
―Pois a Rosa e eu já lhe dissemos... Mas a mulherzinha
não acredita,
quer pedir ao Snr. Dr.! Veio por baixo d'agoa. Até um dos
pequenitos
está bem doentinho, ainda não fez
senão tremer...
Então Gonçalo, sensibilisado, atirou á
meza um murro que tresmalhou as
tiras da Novella:
―Ora se uma cousa d'estas se atura! Um homem que me quiz matar! E
agora, por cima, é sobre mim que desabam as lagrimas, e as
scenas, e a
creança doente! Não se pode viver n'esta terra!
Um dia vendo casa e
quinta, emigro para Moçambique, para o Transvaal, para onde
não haja
massadas... Bem, dize á mulher que já
desço.
O Bento approvou, com effusão:
―Pois se o Snr. Dr. lhe não custa... E como
[235]é
para dar uma boa nova...
Sempre consola a pobre mulherzinha!...
―Lá vou, homem, lá vou! Não me masses
tambem... Impossivel trabalhar
n'esta casa! Outra noite perdida!
Enfiou violentamente para o quarto, atirando as portas―com a ideia de
metter na algibeira do roupão duas notas de dez
tostões que consolariam
os pequenos. Mas, deante da gaveta, recuou, vexado. Que brutalidade,
compensar com dinheiro creancinhas―a quem elle arrancára o
pae,
algemado, para o trancar n'uma enxovia! Agarrou simplesmente n'uma
boceta de alperces seccos―dos famosos alperces do Convento de
Santa-Brigida de Oliveira, que na vespera lhe mandára
Gracinha. E,
cerrando lentamente o quarto, já se arrependia da sua
severidade, tão
estouvada, que assim desmanchava a quietação de
um casal. Depois no
corredor, ante a chuva clamorosa que dos telhados se despenhava nas
lages do pateo, ainda mais doridamente se impressionou, com a imagem da
pobre mulher, tresloucada pela negra estrada, puxando os filhinhos
encharcados, moídos, contra a tormenta solta. E ao penetrar
no corredor
da cozinha―tremia como um culpado.
Atravez da porta envidraçada sentiu logo a Rosa e o Bento
consolando a
mulher, com palradora confiança, quasi risonhos. Mas os
«ais» d'ella, os
ruidosos
[236]lamentos
pelo «seu rico homem», resoavam,
mais agudos, como a
rebater e a abafar toda a consolação. E apenas
Gonçalo empurrou
timidamente a porta―quasi acuou no espanto e medo d'aquella
afflicção
estridente que se arremessava para elle e para a sua misericordia! De
rojos nas lages, torcendo as magras mãos sobre a
cabeça, toda de negro,
parecendo mais negra e dolorosa contra a vermelhidão do
lençol estendido
que seccava ao lume forte da lareira―a creatura estalára
n'um tumulto
de supplicas e gritos:
―Ai, meu rico Senhor, tenha compaixão! Ai, que me prenderam
o meu
homem, que m'o vão mandar para a Africa degredado! Jesus,
meus filhinhos
da minha alma que ficam sem pae! Ai, pelas suas almas, meu senhor, e
por
toda a sua felicidade!... Eu sei que elle teve culpa! Aquillo foi
perdição que lhe deu! Mas tenha piedade d'estas
creancinhas! Ai, o meu
pobre homem que está a ferros! Ai, meu rico Senhor, por quem
é!
Com as palpebras humedecidas, agarrando desesperadamente, a boceta
d'alperces, Gonçalo balbuciava, atravez da
emoção que o estrangulára:
―Oh mulher, socegue, já o vão soltar! Socegue!
Já dei ordem! Já o vão
soltar!
E d'um lado a Rosa, debruçada sobre a escura creatura que
gemia,
recomeçava docemente:―«Pois
[237]foi o que lhe
dissemos, tia Maria! Logo
pela manhã, o vão soltar!»―E do outro
o Bento, batendo na coxa, com
impaciencia:―«Oh mulher, acabe com esse escarceu! Pois se o
Snr. Dr.
prometteu! Logo pela manhã o vão
soltar!»
Mas ella não se calmava, com o lenço da
cabeça desmanchado, uma trança
desprendida, soluçando e clamando atravez dos
soluços:
―Ai que eu morro, se o não vejo solto! Ai
perdão, meu rico Senhor da
minha alma!...
Então Gonçalo, que aquelle infindavel e obtuso
queixume torturava, como
um ferro cravado e recravado, bateu o chinello nas lages, berrou:
―Escute, mulher! E olhe para mim! Mas de pé, de
pé!... E olhe bem, olhe
direita!
Hirtamente erguida, atirando as mãos para as costas como a
escapar
d'algemas que tambem a ameaçassem―ella arregalou para o
Fidalgo os
olhos espavoridos, fundos olhos pretos, de fundas olheiras tristes, que
lhe enchiam a face rechupada e morena.
―Bem, perfeitamente! exclamava Gonçalo. E agora diga! Acha
que tenho
bojo de lhe mentir, quando vocemecê está n'essa
afflicção? Pois então
socegue, acabe com os gritos, que, sob minha palavra,
ámanhã cedo, o seu
homem está solto!
E a Rosa e o Bento, ambos triumphando:
―Pois que lhe dizia a gente, creatura de Deus?
[238]Se
o Snr. Dr. tinha
promettido... Ámanhã lá tem o homem!
Lentamente ella limpava as lagrimas, já silenciosas,
á ponta do avental
negro. Mas, ainda desconfiada, com os tenebrosos olhos mais
arregalados,
devorando Gonçalo. E o Fidalgo mandava com certeza a ordem,
cedinho, de
madrugada?...―Foi o Bento que a convenceu, com violencia:
―Oh mulher, vossê até parece atrevida! Ora essa!
Pois duvida da palavra
do Snr. Dr.?
Ella soltou o avental, baixou a cabeça, suspirou
simplesmente:
―Ai, então muito obrigada, seja pela felicidade de todos...
E agora a curiosidade de Gonçalo procurava os pequenos que
ella
acarretára desde os Bravaes atravez da chuva cerrada. A
pequenina de
mama dormia com beatitude sobre a tampa de uma arca, onde a boa Rosa a
aconchegára entre mantas e fronhas. Mas o pequeno, de sete
annos,
encolhido n'uma cadeira deante do lume, rente ao lençol que
seccava,
seccando tambem, com a carinha afogueada de febre, tossia
despedaçadamente, n'um cabecear de somno e
cançasso, a arquejar, a gemer
contra a tosse que o esfalfava. Gonçalo pousou a boceta de
alperces na
arca, palpou a mão com que elle, sem cessar, raspava pela
[239]abertura da
camisa encardida o peito ainda mais encardido.
―Mas esta creanca tem febre!... E vossê, com uma noite
d'estas, traz o
pequeno assim desde os Bravaes, mulher?
Da cadeirinha baixa, onde se sentára prostrada, ella
murmurou, sem
erguer a magra face, torcendo a ponta do avental:
―Ai! era para que elles tambem pedissem, que estavam sem pae,
coitadinhos!
―Vocemecê é doida, mulher! E pretende talvez
voltar para os Bravaes,
debaixo d'agoa, com as creanças?
Ella suspirou:
―Ai! volto, volto... Não posso deixar sózinha a
mãe do meu homem, que
tem oitenta annos e está entrevada.
Então o Fidalgo cruzou descorçoadamente os
braços―no embaraço d'aquella
aventura, em que, por culpa da sua ferocidade, se arriscavam duas
creanças. Mas a Rosa entendia que a pequenina, a de mama,
não soffreria
com a caminhada, bem achegadinha ao collo da mãe, debaixo de
uma manta
grossa. Agora o outro, com a tosse, com a febre...
―Esse fica cá! exclamou logo Gonçalo, decidido.
Como se chama elle?
Manoel... Bem! O Manoel fica cá. E vá
descançada, que a Sr.
a Rosa toma
cuidado.
[240]Precisa
uma boa gemada, depois um bom suadoiro. Um d'estes
dias
lá lhe apparece nos Bravaes, curado e mais gordo...
Vá socegada!
De novo a mulher suspirou, no cançasso immenso que a
invadira, a
amollecia. E sem resistir, no seu longo e abatido habito de
submissão:
―Pois sim senhor, se o Fidalgo manda, está muito bem...
O Bento, entreabrindo a porta do pateo, annunciava uma
«aberta», o
negrume a levantar. Gonçalo immediatamente apressou a volta
aos Bravaes:
―E não tenha medo, mulher. Vae um moço da quinta
com uma lanterna, e um
guarda chuva para abrigar a pequena... Escute! Vocemecê
até podia levar
uma capa de borracha!... Oh Bento, corre, desce a minha capa de
borracha. A nova, a que comprei em Lisboa...
E quando o Bento trouxe o «impermeavel» de longa
romeira, o lançou por
sobre os hombros da mulher, que o estofo rico intimidava, com o seu
ruge-ruge de seda―foi na cozinha uma divertida risada. O pranto
passára, como a chuva. Agora era uma visita amoravel,
findando n'um
arranjo alegre d'agasalhos. A Rosa apertava as mãos, banhada
de gosto:
―Assim é que vocemecê fica uma bonita Madama,
[241]hein!... Se fosse
de dia,
olhe que se juntava gente!
A mulher sorria emfim, descoradamente, sem interesse:
―Ai! nem sei que pareço... Que avantesma!
Atravez do pateo, onde as acacias gottejavam docemente,
Gonçalo
acompanhou o rancho até á porta do pomar,
gritando ainda―«Agasalhem bem
a pequena!»―quando já a lanterna do
moço se fundia na humida espessura
da noite acalmada. Depois, na cozinha, batendo contra as lages as solas
dos chinellos molhados, apalpou novamente o Manoelsinho, que adormecera
n'um somno rouquejado, torcido sobre as costas da cadeira.
―Tem pouca febre... Mas precisa um suadoiro forte. E, antes de o
cobrirem bem, um leite quente, quasi a ferver, com cognac... O que elle
precisava tambem era esfregado a côco... Que porcaria de
gente! Emfim
fica para mais tarde, quando se curar... E agora, oh Rosa, mande acima
alguma cousa para eu cear, cousa solida, que não jantei, e o
sarau foi
tremendo!
Na livraria, depois de mudar os chinellos, descançar,
Gonçalo escreveu
ao Gouveia uma carta reclamando com commovida urgencia a liberdade do
Casco. E accrescentava:―«É o primeiro pedido que
lhe faz o deputado por
Villa-Clara (comprimente!),
[242]porque
acabo de receber telegramma do nosso
André, annunciando que «
tudo feito,
ministro
concorda, etc.» De sorte
que precisamos communicar! Queira pois vossa mercê vir jantar
ámanhã a
esta sua Torre, á sombra do Titó e com
acompanhamento de Videirinha.
Estes dous benemeritos são indispensaveis para que haja
appetite e
harmonia. E rogo, Gouveia amigo, que os avise do festim, para me evitar
a remessa de circulares eloquentes...»
Lacrada a carta, retomou languidamente o manuscripto da Novella. E,
trincando a rama da penna, ainda procurou vozes, de bom sabor medieval,
para aquelle lance em que o Villico e as roldas enxergavam a cavalgada
do Bastardo, pela encosta da Ribeira, com refulgidos d'armas, sob o
rijo
sol d'Agosto...
Mas a sua imaginação, desde a carta escripta ao
Gouveia pelo «Deputado
de Villa-Clara» escapava desassocegadamente da velha Honra de
Santa
Ireneia―esvoaçava teimosamente para os lados de Lisboa, da
Lisboa do S.
Fulgencio. E o eirado da torre albarran, onde o gordo Ordonho gritava
esbaforido―incessantemente se desfazia como nevoa molle, para sobre
elle surgir, appetitoso e mais interessante, um quarto do Hotel
Bragança
com varanda sobre o Tejo... Foi um allivio quando o Bento o apressou
para a ceia. E á mesa espalhou livremente a
imaginação
[243]por
Lisboa, pelos
corredores de S. Carlos, por sob as arvores da Avenida, atravez dos
antiquados palacios dos seus parentes em S. Vicente e na
Graça, atravez
das salas mais modernas de cultos e alegres amigos―parando
ás vezes
deante de visões que considerava com um riso deleitado e
mudo. Alugaria
aos mezes, certamente, uma carruagem da Companhia. E para as
sessões de
S. Bento sempre luvas côr de perola, uma flor no peito. Por
commodidade
levava o Bento, bem apurado, com casaca nova...
O Bento entrou com a garrafa do cognac n'uma salva. Dera a carta ao
Joaquim da Horta com a recommendação de correr
logo ás seis horas a casa
do Snr. Administrador, de se demorar na Villa por deante da Cadeia
até
soltarem o Casco.
―E já deitamos o pequeno no quarto verde. Fica perto de
mim, que tenho
o somno leve, se elle berrar... Mas já dorme regaladamente.
―Está socegado, hein? acudiu Goncalo, sorvendo á
pressa o calice de
cognac. Vamos vêr esse cavalheiro!
E tomou um castiçal, subiu ao quarto verde com o Bento,
sorrindo,
abafando os passos pela estreita escada. No corredor, junto da poria,
n'um desbotado camapé de damasco verde, a Rosa
dobrára carinhosamente a
roupa trapalhona do pequeno, o collete esgaçado, as
calças enormes, só
com um
[244]botão.
Dentro o leito de pau preto, vasto leito de
ceremonia,
atravancava a parede forrada d'um velho papel avelludado de ramagens
verdes. Ao lado dos dous postes torneados, á cabeceira,
pendiam dous
paineis, retratos de antigos Ramires, um Bispo obeso folheando um
folio,
um formoso Cavalleiro de Malta, de barba ruiva, appoiado á
espada, com
um laçarote de rendas sobre a couraça polida. E
nos altos colchões o
Manoelzinho resonava, sem tosse, quieto, abafado pela grossura dos
cobertores, humedecido por um suor fresco e sereno.
Gonçalo, caminhando sempre de leve, repuxou cuidadosamente a
dobra do
lençol. Desconfiado das janellas decrepitas, experimentou
que não
entrasse traiçoeiro ar pelas gretas. Mandou pelo Bento
buscar uma
lamparina, que arranjou sobre o lavatorio, com a luz esbatida por traz
d'uma vazilha. Ainda attentamente relanceou os olhos lentos pelo
quarto,
para se assegurar do socego, do silencio, da penumbra, do conforto. E
sahiu, sempre na ponta dos pés, sorrindo, deixando o filho
do Casco
velado pelos dous nobres Ramires―o Bispo com o seu Tratado, o
Cavalleiro de Malta com a sua pura espada.
[245]
Recolhendo do Tanque-Velho, do fundo da quinta, onde passára
a calma,
depois do almoço, na frescura do arvoredo, entre susurros de
agoas
correntes, a folhear um volume do
Panorama―Gonçalo
encontrou sobre a
mesa da livraria, com o correio de Oliveira, uma carta que o
surprehendeu, enorme, em papel almaço, fechada por uma
obreia. E dentro
a assignatura, desenhada a tinta azul, era um
coração chammejante.
N'um relance devorou as linhas, pautadas a lapis, d'uma lettra gorda,
arredondada com esmero:―«Caro e Ex.
mo
Snr.
Gonçalo Ramires. O
galante Governador civil do Districto, o nosso atiradiço
André
Cavalleiro, passeiava agora coastantemente por deante dos Cunhaes,
olhando com ternura para as janellas e para o honrado brazão
dos
Barrôlos. Como não era natural que andasse a
estudar a architetura do
Palacete (que nada tem de notavel), concluiu a gente seria que o digno
Chefe do Districto esperava que V. Ex.
a
apparecesse a alguma das
janellas do Largo, ou das que deitam para a rua das Tecedeiras, ou
sobretudo
no mirante do Jardim, para reatar com
V. Ex.
a a antiga e
quebrada amizade. Por isso muito acertadamente procedeu V. Ex.
a
em
correr pessoalmente ao Governo Civil, e propor a
reconciliação, e abrir
os braços generosos
[246]ao
velho amigo, evitando assim que a
primeira
Auctoridade do Districto continuasse a esbanjar um tempo precioso
n'aquelles passeios, de olhos pregados no Palacete dos fidalguissimos
Barrôlos. Enviamos portanto a V. Ex.
a
os nossos sinceros
parabens por
esse acertado passo que deve calmar as impaciencias do fogoso
Cavalleiro
e redondar em beneficio dos serviços publicos!»
Revirando o papel nas mãos, Gonçalo pensou:
―É das Louzadas!
Ainda estudou a lettra, as expressões, descortinando que
redundar fora
escripto com um O,
architectura sem C. E rasgou
furiosamente a grossa
folha, rosnando no silencio da livraria:
―Aquellas bebadas!
Sim, era d'ellas, das odiosas Louzadas! E essa origem mais o
aterrava―porque maledicencia, lançada por tão
ardentes espalhadoras de
maledicencias, já certamente penetrára em todas
as casas d'Oliveira,
mesmo na Cadeia, mesmo no'Hospital! E agora a cidade divertida,
lambendo
o escandalo, relacionava perfidamente os rodeios do André
pelos Cunhaes
com essa sua visita ao Governo Civil que assombrára a
Arcada. Na ideia
pois d'Oliveira, e sob a inspiração das
Louzadas―fôra elle, elle,
Gonçalo Mendes Ramires, que arrancára o
Cavalleiro á sua Repartição, o
conduzira serviçalmente ao Largo d'El-Rei, lhe
[247]escancarára
as portas do
Palacete até ahi rondadas e miradas sem proveito, e com
sereno descaro
alcovitára os amores da irmã! Se taes
desavergonhadas não mereciam que
lhes arregaçassem as sujas saias no meio da
Praça, em manhã de Missa, e
lhes fustigassem as nadegas melladas, furiosamente, até que
o sangue
ensopasse as lages!...
E, para maior damno, as apparencias todas se combinavam contra elle,
traidoramente! Essa insistencia de André, cocando Gracinha,
estrondeando
a calçada em torno do Palacete, crescera, impressionava,
justamente
agora, n'este Agosto, nas vesperas d'essa sua
apparição á janella do
Governo Civil, que Oliveira commentava como um misterio historico. Que
inopportunamente morrera o animal do Sanches de Lucena! Mezes antes,
nem
mesmo a malicia das Louzadas ligaria a sua
reconciliação com André a um
cêrco amoroso que não
começára, ou não andava tão
murmurado. Tres ou
quatro mezes depois, André, sem esperança ante o
Palacete inaccessivel,
certamente findaria os seus giros pelo Largo, de rosa ao peito! Mas
não!
infelizmente quando esse André, com maior estrepito, ronda a
porta
almejada―é que elle acode, e abraça o rondador,
e lhe facilita a porta!
E assim a maledicencia das Louzadas encontrava uma base, a que todos na
cidade podiam palpar a substancia, e a solidez, e sobre ella se erigia
como Verdade Publica! Infames Louzadas!
[248]
Mas agora? O que? manter rigidamente as suas
relações com o Cavalleiro
dentro da Politica, evitando escorregadias intimidades que o tornassem
logo nos Cunhaes, como outr'ora na Torre, o conviva desejado? Como
poderia? Desde que elle se reconciliava com André, logo e
tão
naturalmente como a sombra segue a inclinação do
ramo, se reconciliava
tambem o Barrôlo, seu cunhado e sua sombra... Mas como
impôr ao Barrôlo
que a sua renovada familiaridade com o Cavalleiro se realisasse
unicamente dentro da Politica como dentro d'um Lazareto?―«Eu
sou outra
vez o velho amigo do André, tu, Barrôlo,
tambem―mas nunca o convides
para a tua mesa, nem lhe abras a tua
porta!»―Imposição desconcertada,
de dura impertinencia―e que, na pequena Oliveira, logo os faceis
encontros, a simplicidade hospitaleira do Barrôlo, quebrariam
como um
barbante poido... E depois que grotesca attitude a sua, hirto deante do
portão do Palacete, como um Archanjo S. Miguel, de bengala
de fogo na
mão, para sustar a intrusão de Satanaz, Chefe do
Districto! Mas tambem
que toda a cidade largasse a cochichar pelos cantos o nome de Gracinha
embrulhado ao nome de André, com o nome d'elle,
Gonçalo, emmaranhado
atravez como o fio favoravel que os atára―era horrivel.
E na impaciencia d'esta difficuldade, de malhas
[249]tão asperas,
que tanto o
feriam, terminou por esmurrar a meza, revoltado:
―Irra, que massada! São tudo massadas, n'estas terras
pequenas e
coscovilheiras...
Em Lisboa quem se importaria que o Snr. Governador civil passeasse n'um
certo Largo―e que certo Fidalgo da Torre se reconciliasse com o Snr.
Governador Civil?... Pois acabou! Romperia soberbamente para diante,
como se habitasse Lisboa, desafogado de mexericos e de malignos
olhinhos
a cocar. Era Gonçalo Mendes Ramires, da casa de Ramires! Mil
annos de
nome e de solar! Dominava bem acima de Oliveira, de todas as suas
Louzadas. E não só pelo nome, louvado Deus, mas
pelo espirito... O André
era seu amigo, entrava em casa de sua irmã―e Oliveira que
estoirasse!
E nem consentiu que a suja carta das Louzadas desmanchasse a quieta
manhã de trabalho para que se preparára desde o
almoço, relendo trechos
do Poemeto do Tio Duarte, folheando artigos do
Panorama
sobre as
guerras de muralhas no seculo XII. Com um esforço
d'attenção erudita
abancou, mergulhou a penna no tinteiro de latão que servira
a trez
gerações de Ramires. E emquanto repassava as
tiras trabalhadas, nunca o
Castello de Santa Ireneia lhe parecera tão heroico, de
tão soberana
estatura, sobre tamanha collina d'Historia, sobranceando o Reino,
[250]que
em
torno d'elle se alargava, se cobria de villas e messes, pelo
esforço dos
seus castellões!
Temerosa, com effeito, se erguia a antiga Honra de Santa Ireneia,
n'essa
Affonsina manhã d'Agosto e rijo sol, em que o
pendão do Bastardo
surgira, entre fulgidos d'armas, para além dos arvoredos da
Ribeira! Já
por todas as ameias se apinhavam os besteiros, espiando, encurvadas as
béstas. Das torres e adarves subia o fumo grosso do breu,
fervendo nas
cubas, para despejar sobre os homens de Bayão que tentassem
a escalada.
O Adail corria pelas quadrellas, relembrando as traças de
defeza,
revistando os feixes de virotões, os pedregulhos
d'arremesso. E no
immenso terreiro, por entre os alpendres colmados, surdiam velhos
solarengos, servos do forno, servos da abegoaria, que se benziam com
terror, puchavam pelo saião d'algum apressado homem de
rolda, para
saberem da hoste que avançava. No emtanto a cavalgada
passára a Ribeira
sobre a rude ponte de pau―já, por entre os alamos,
serenamente se
acercava do Cruzeiro de granito, outr'ora erguido nos confins da Honra
por Gonçalo Ramires, o
Cortador. E, no
socego da
manhã abrazada, mais
fundamente resoaram as buzinas do Bastardo, e o seu toque lento e
triste
á mourisca...
Mas quando Gonçalo, enlevado no trabalho, tentava
reproduzir, com termos
bem sonoros,
[251]avidamente
rebuscados no
Diccionario de
Synonimos, o toar
arrastado das buzinas de Bayão―sentiu realmente, do lado da
Torre, um
gemer de sons graves que crescia atravez dos limoeiros. Deteve a
penna―e eis que o
Fado dos Ramires s'eleva
offertadamente da horta,
em serenada, para a varanda florida de madresilva:
Ora, quem te vê solitaria,
Torre de Santa Ireneia...
O Videirinha!―Correu alvoroçadamente á janella.
Um chapeu côco tremulou
entre os ramos, um brado estrugio, acclamador:
―Viva o deputado por Villa-Clara! Viva o illustre deputado
Gonçalo
Ramires!
No violão rompera triumphalmente o Hymno da Carta.
Videirinha, alçado na
biqueira das botas gaspeadas de verniz, gritava―«Viva a
illustre casa
de Ramires!» E por baixo do chapeu côco, sacudido
com delirio, João
Gouveia, sem poupar a garganta, urrava―«Viva o illustre
deputado por
Villa-Clara! Viva!»
Magestosamente, Gonçalo, alagado de riso, estendeu da
varanda o braço
eloquente:
―Obrigado, meus queridos concidadãos! Obrigado!... A honra
que me
fazeis, vindo assim, n'esse
[252]formoso
grupo, o chefe glorioso da
Administração, o inspirado Pharmaceutico, o...
Mas reparou... E o Titó?
―O Titó não veio?... Oh João Gouveia,
você não avisou o Titó?
Repondo sobre a orelha o chapeu côco, o Administrador, que
arvorára uma
gravata de setim escarlate, declarou o Titó «um
animal»:
―Estava combinado virmos todos trez. Até elle devia trazer
uma duzia de
foguetes, para estalar aqui com o Hymno... A reunião era ao
pé da
Ponte... Mas o animal não appareceu. Em todo o caso ficou
avisado,
avisadissimo... E se não vier, é traidor.
―Bem, subam vocês! gritou Gonçalo. Eu n'um
instante me visto. E, para
aguçar o appetite, proponho um vermouth, depois uma volta
pela quinta
até ao pinhal!...
Immediatamente Videirinha, têso, empinando o
violão, metteu pela rua
larga da horta, recoberta de parreira; e atraz João Gouveia
atirava os
passos em cadencia nobre, alçando o guarda-sol como um
pendão. Quando
Gonçalo entrou no quarto, berrando pelo Bento e por agoa
quente―o
Fado
dos Ramires soava, em trinados heroicos, atravez do feijoal,
por sob a
janella aberta onde seccava o lençol do banho. E eram as
quadras
preferidas do Fidalgo, as quadras em que o grande avô Ruy
Ramires,
sulcando os mares
[253]de
Mascate n'uma urca, encontra trez fortes naus
inglezas, e, do alto do seu castello de prôa, vestido de
gran-vermelha,
com a mão no cinto d'anta tauxeado d'ouro e pedras,
soberbamente as
intima a que se rendam...
Todo alegre, e a mão no
cinto.
Junto da Signa Real,
Gritando ás
naus―«Amainae
Por El-Rei de Portugal!...»
Gonçalo abotoava á pressa os suspensorios,
retomára o canto
glorificador―
Todo alegre, a mão no cinto...
Junto da
Signa
Real...―E, atravez do esforço
esganiçado,
pensava que com tal linha
d'avós, bem podia desprezar Oliveira e as suas Louzadas
horrendas. Mas o
trovão lento de Titó retumbou no corredor:
―Então esse deputado de Villa-Clara?... Já
está a vestir a farda?
Gonçalo correu á porta do quarto, radiante:
―Entra, Titó! Os deputados já não
usam farda, homem! Mas se a tivesse,
c'os diabos, ia hoje farda, e espadim e chapeu armado, para honrar
hospedes tão illustres!
O outro avançára vagarosamente, com as
mãos nas algibeiras da rabona de
velludo côr d'azeitona, o
[254]vasto
chapeu braguez atirado para a
nuca,
desafogando a honesta face barbuda, vermelha de saude e sol:
―Eu, por farda, queria dizer libré... Libré de
lacaio.
―Ora essa!?
E o outro mais retumbante:
―Pois o que vaes tu ser, homem, senão um sujeito
ás ordens do S.
Fulgencio,
do horrendo careca? Não lhe
serves o
chá, quando elle te
mandar; mas, quando elle te mandar votar, votas! Alli, direitinho,
ás
ordens! «Oh Ramires, vote lá!» E
Ramires, zás, vota... É de escudeiro,
homem, é de escudeiro de libré...
Gonçalo sacudiu os hombros, impaciente:
―Tu és uma creatura das selvas, lacustre, quasi
prehistorica... Não
entendes nada das realidades sociaes!... Na sociedade não ha
principios
absolutos!...
Mas o Titó, imperturbavel:
―E esse Cavalleiro? Tambem já é rapaz de
talento? Tambem já governa bem
o Districto?
Então Gonçalo protestou, picado, com uma roseta
forte na face. E quando
negára elle ao André talento ou geito de
governar? Nunca! Só rira,
gracejando, da sua pompa, da bigodeira lustrosa... E de resto, o
serviço
do Paiz exigia que por vezes se alliassem homens que nem partilhavam os
mesmos gostos, nem procuravam os mesmos interesses!
[255] ―E emfim o Snr. Antonio Villalobos vem hoje um moralista muito
terrivel, um Catão com quem se não pode
jantar!... Ora foi sempre o
costume dos Philosophos muito rispidos fugir da sala do banquete onde
triumpha o devasso, e protestar comendo na cosinha!
Titó, serenamente, virou as costas magestosas.
―Onde vaes, ó Titó?
―Para a cosinha!
E, como Gonçalo ria, Titó, junto da porta,
girando como uma torre que
gira, encarou o seu amigo:
―Sério, sério, Gonçalo!
Eleição, reconciliação,
submissão, e tu em
Lisboa ás cortezias ao S. Fulgencio, e em Oliveira de
braço dado com o
André, tudo isso me parece que destoa... Mas emfim se a Rosa
hoje se
apurou, não alludamos mais a cousas tristes!
E Gonçalo bracejava, de novo protestava―quando o
violão resoou no
corredor, com as patadas bem marchadas do Gouveia, e o
Fado
recomeçou,
mais meigo, mais glorificador:
―Velha casa de Ramires,
Honra e flor de Portugal!
VI
A casa do Cavalleiro em Corinde era uma
edificação dos fins do seculo
XVIII, sem elegancia e sem arte, pintada d'amarello, lisa e vasta, com
quatorze janellas de frente, quasi ao meio d'uma quinta chã,
toda de
terras lavradas. Mas uma avenida de castanheiros conduzia, com alinhada
nobreza, ao pateo da frente, ornado por dois tanques de marmore. Os
jardins conservavam a abundancia esplendida de rosas que os
tornára
famosos―e lhes merecera em tempos do avô de
André, o Desembargador
Martinho, uma visita da Snr.
a D. Maria II. E
dentro todas as salas
reluziam d'asseio e ordem, pelos cuidados da velha governanta, uma
parenta pobre do Cavalleiro, a Snr.
a D. Jesuina
Rollim.
Quando Gonçalo, que viera da Torre na egoa, atravessou a
ante-sala,
ainda reconheceu um dos paineis da parede, fumarento combate de
galiões,
que
[258]elle uma
tarde rasgára jogando o espadão com
André. Sob esse painel,
á borda do canapé de palhinha, esperava
melancolicamente um amanuense do
Governo Civil, com a sua pasta vermelha sobre os joelhos. E d'uma porta
remota, ao fundo do corredor, André, avisado pelo creado, o
fiel
Matheus, gritou alegremente:
―Oh Gonçalo, entra para cá, para o quarto! Sahi
da tina... Ainda estou
em ceroulas!
E em ceroulas o abraçou, n'um generoso abraço de
parabens. Depois, em
quanto se vestia, por entre as cadeiras atravancadas com o recheio das
malas―gravatas, peugas de sêda, garrafas de
perfumes―conversaram do
calor, da jornada enfadonha, de Lisboa despovoada...
―Um horror! exclamava o Cavalleiro aquecendo um ferro de frisar
á
lampada d'alcool. Todas as ruas da Baixa em obras, cobertas de
caliça,
de poeirada. O Central enfestado de mosquitos. Muito mulato. Uma Tunis,
Lisboa!... Mas emfim, lá combatemos bravamente o bom combate!
Gonçalo sorria, do canto do divan onde se
accommodára, entre uma pilha
de camisas de côr e outra de ceroulas com monogramma
flammante:
―E então, Andrésinho, tudo arranjado, hein?
O Cavalleiro, deante do toucador, frisava com enlevado esmero as pontas
grossas do bigode. E só depois
[259]de
o ensopar em brilhantina,
d'acamar as
ondas da cabelleira rebelde, de se mirar, de se requebrar, assegurou a
Gonçalo, já inquieto, que a
eleição ficára solida...
―Mas imagina tu! Quando appareci em Lisboa, no Ministerio do Reino,
encontrei o circulo promettido ao Pitta, ao Theotonio Pitta, o grande
homem da
Verdade...
O Fidalgo pulou, despenhando a ruma de camisas:
―E então?...
E então elle mostrára muito asperamente ao
José Ernesto a inconveniencia
de dispôr do Circulo como d'um charuto, sem o consultar, a
elle,
Governador Civil―e dono do circulo... E como o José Ernesto
se
arrebitava, alludia á conveniencia superior do Governo, elle
logo,
estendendo o dedo firme:―«Pois Zésinho,
flôr, ou trago o Ramires por
Villa-Clara, ou me demitto, e arde Troia!...» Espantos,
escarceus,
berreiros―mas o José Ernesto cedêra, e tudo
findou jantando ambos em
Algés com o tio Reis Gomes, onde á noite, ao
«bluff», as senhoras lhe
arrancaram quatorze mil reis.
―Em resumo, Gonçalinho, precisamos conservar os olhos
attentos. O José
Ernesto é rapaz leal, meu velho amigo. E depois conhece o
meu genio...
Mas ha os compromissos, as pressões... E agora a novidade
[260]pittoresca.
Sabes quem se propõe contra ti, pelos Regeneradores?...
Adivinha... O
Julinho!
―Que Julinho?... O Julio das photographias?
―O Julio das photographias.
―Diabo!
O Cavalleiro encolheu os hombros, com piedade:
―Arranja dez votos á porta da quinta, tira o retrato a
todos os
taverneiros do circulo em mangas de camisa, e continua a ser o
Julinho... Não! só Lisboa me inquieta, a canalha
politica de Lisboa!
Gonçalo torcia o bigode, desconsolado:
―Imaginei tudo mais solido, mais inabalavel... Assim com todas essas
intrigas, ainda surde trapalhada... Ainda lá não
vou!
O Cavalleiro, ao espelho, esticava o fraque―que
experimentára abotoado,
depois repuxadamente aberto sobre o collete de fustão
côr de azeitona
onde, no trespasse largo, tufava a gravata de sedinha clara, prendida
por uma saphira. Por fim, encharcando o lenço com essencia
de fêno:
―Nós estamos bem alliados, bem consagrados, não
é verdade? Então, meu
caro Gonçalo, socega, e almocemos regaladamente!... Creio
que este
fraque do nosso Amieiro assenta com certa graça, hein?
―Magnifico! affirmou Gonçalo.
―Bem. Então agora descemos ao jardim, para tu
[261]reveres os
velhos poisos
e te florires com uma rosa de Corinde.
E logo no corredor, ornado de jarrões da India, de arcas de
charão,
enlaçando o braço de Gonçalo, do seu
recuperado Gonçalo:
―Pois, meu filho, aqui pisamos ambos de novo os nobres soalhos de
Corinde, como ha cinco annos... E nada mudou, nem um creado, nem uma
cortina! Agora, um d'estes dias, preciso visitar a Torre.
Gonçalo accudiu ingenuamente:
―Oh! a Torre está muito mudada... Muito mudada!
E um embaraçado silencio pesou―como se entre elles surgisse
a imagem
entristecida da antiga quinta, no tempo dos amores e das
esperanças,
quando André e Gracinha procuravam as ultimas violetas
d'Abril, sob o
sorriso tutelar de Miss Rhodes, rente aos humidos muros da
Mãe d'Agoa.
Ainda em silencio desceram a escada de caracol―por onde ambos outr'ora
se despenhavam cavalgando o corrimão. E em baixo, n'uma sala
abobadada,
rodeada de bancos de madeira com as armas dos Cavalleiros nas espaldas,
André quedou deante da porta envidraçada do
jardim, ondeou um gesto
desconsolado e languido:
―Eu tambem, agora, pouco appareço em Corinde. E,
comprehendes bem que
não me reteem em Oliveira os cuidados da
Administração... Mas este
[262]casarão
arrefeceu, alargou, desde a morte da
mamã. Ando aqui como
perdido. E acredita, quando cá me demoro, são uns
passeios tristonhos
por esses jardins, pela Rua Grande... Ainda te lembras da Rua
Grande?...
Vou envelhecendo muito solitariamente, meu Gonçalo!
Gonçalo murmurou, por concordancia, sympathia renovada:
―Eu tambem m'aborreço na Torre...
―Mas tens outro genio!... E eu realmente sou um elegiaco.
Correu, com um esforço, o fecho perro da porta
envidraçada. E limpando
os dedos ao lenço perfumado:
―Eu creio que Corinde, agora, só me encantava com grandes
cerros
escalvados, grandes rochedos agrestes... Ás vezes,
cá dentro d'alma,
necessito o ermo de S. Bruno...
Gonçalo sorria d'aquelle appetite ascetico, murmurado com
preciosidade,
atravez da bigodeira torcida a ferro, resplandecente de brilhantina. E
no terraço, junto á balaustrada de pedra enramada
d'hera, galhofou,
louvando o areado alinho, o relusente viço do jardim:
―Com effeito, para um discipulo de S. Bruno, que escandalo, todo este
asseio! Mas para um peccador como eu, que delicia!... O jardim da Torre
anda um chavascal.
[263] ―A prima Jesuina gosta de flôres. Tu não conheces
a prima Jesuina? Uma
velha parenta da mamã, que governa agora a casa. Coitada! e
com um
escrupulo, com um amor... Se não fosse a santa creatura, os
porcos
fossavam nos canteiros... Meu filho, onde não ha saia,
não ha ordem!
Desceram a escadaria redonda, por entre os vasos de louça
azul que
trasbordavam de geranios, de secias, de canas da India.
Gonçalo recordou
a vespera de S. João em que rolára por aquelles
degraus, n'um trambulhão
tremendo, com os braços carregados de foguetes. E
lentamente, atravez do
jardim, evocavam memorias da camaradagem antiga. Lá se
conservava o
trapezio, dos tempos em que ambos cultivavam a religião
heroica da
força, da gymnastica, do banho frio... N'aquelle banco, sob
a magnolia,
lera uma tarde André o primeiro canto do seu Poema, o
Fronteiro
d'Arzilla. E o alvo? O alvo onde se exerciam á
pistola,
para os futuros
duellos, inevitaveis na campanha que ambos meditavam contra o velho
Syndicato Constitucional?...―Oh! toda essa parte do muro, que pegava
com o lavadoiro, fôra derrubada depois da morte da
mamã, para alargar a
estufa...
―De resto o alvo era inutil! accrescentou o Cavalleiro. Eu logo por
esse tempo entrei tambem no
[264]Syndicato...
E agora entras tu, pela porta
que eu te abro!
Então Gonçalo, que colhêra e esmagava
entre os dedos, para lhe sorver o
perfume, folhas de lucia-lima―acudiu com uma franqueza, que aquelle
desenterrar de recordações tornava mais
penetrante e sentida:
―E eu desejo entrar, e ardentemente, bem sabes. Mas tu
afianças a
eleição, com segurança? Não
surgirá difficuldade, Andrésinho?... Esse
Pitta é um habil!
O Cavalleiro murmurou apenas, mergulhando os dedos nas cavas do collete:
―Da habilidade dos Pittas se ri a força dos Cavalleiros...
Por trez degraus de tijolo baixaram ao outro jardim, desafogado de
arvoredo e sombra, onde desabrochava desde Maio, com explendor, o
tão
celebrado bosque de roseiras, orgulho da quinta de Corinde, que
deleitára uma Rainha. Aquelle facil desdem pelo Pitta
confirmava a
segurança da Eleição.
Gonçalo, caminhando respeitosamente como n'um
Museu, regou de louvores deslumbrados as rosas do Cavalleiro:
―Uma belleza, André, uma maravilha! Tens aqui rosas
sublimes...
Aquellas repolhudas, além, que luxo! E estas amarellas?
deliciosas!...
Olha este encanto!
[265]o
ruborsinho a surdir, a raiar, do fundo das petalas
brancas... Oh, que escarlate! Oh, que divino escarlate!
O Cavalleiro cruzára os braços, com gracejadora
melancolia:
―Pois vê tu! Tal é a minha solidão
social e sentimental que, com todas
estas rosas abertas, não tenho a quem mandar um ramo!...
Estou reduzido
a florir as Louzadas!
Um escarlate, mais vivo do que as rosas que gabava, cobriu as faces do
Fidalgo:
―As Louzadas! Oh que desavergonhadas!
André atirou ao seu amigo os lustrosos olhos, n'um inquieto
reparo de
curiosidade:
―Por quê?... Desavergonhadas, por quê?
―Por quê? Por que o são! Pela sua natureza, e
pela vontade de Deus!...
São desavergonhadas como estas rosas são
vermelhas.
E o Cavalleiro, tranquillisado:
―Ah, genericamente... Com effeito têm immensa
peçonha. Por isso eu as
cubro de rosas. E em Oliveira, todas as semanas, meu filho, tomo com
ellas um chá respeitoso!
―Pois não as amansas, rosnou o Fidalgo.
Mas o Matheus apparecêra nos degraus de tijolo com o
guardanapo na mão,
a calva rebrilhando ao sol. Era o almoço. O Cavalleiro
colheu para
Gonçalo
[266]uma
«rosa triumphal»―e para si
um «botão innocente...» E,
enflorados, subiam para o terraço entre o brilho e o perfume
de outras
roseiras―quando o Cavalleiro parou com uma ideia:
―A que horas vaes tu para Oliveira, Gonçalinho?
O Fidalgo hesitou. Para Oliveira?... Não tencionava
apparecer em
Oliveira, toda essa semana...
―Por quê? É urgente que vá a Oliveira?
―Pois certamente, filho! Ámanhã mesmo precisamos
conversar com o
Barrôlo, combinarmos, por causa dos votos da Murtosa!... Meu
querido
Gonçalo, não podemos adormecer. Não
é pelo Julio, é pelo Pitta!
―Bem! bem! acudio logo Gonçalo, assustado. Parto para
Oliveira.
―Por que então, continuava André, vamos ambos
logo, a cavallo. É um
bonito passeio pelos Freixos, sempre com sombra... Tens talvez de
mandar
á Torre, por causa de roupa...
Não! Gonçalo, para evitar a importunidade de
malas, conservava nos
Cunhaes um bragal inteiro, desde a chinella até á
casaca. E entrava em
Oliveira como o Philosopho Bias em Athenas―com uma simples bengala e
paciencia infinita...
―Delicioso! declarou André. Fazemos então logo a
nossa entrada official
em Oliveira. É o começo da campanha.
[267]
O Fidalgo torcia o bigode, consternado, pensando nos risinhos perversos
das Louzadas, de toda a cidade, perante uma entrada tão
apparatosamente
fraternal. E, quando o Cavalleiro recommendou ao Matheus que mandasse
apromptar o
Rossilho e a egoa do Fidalgo para as
quatro horas e meia,
Gonçalo exagerou o seu receio do calor, da poeira. Antes
partissem ás
sete, pela fresca! (Assim esperava penetrar em Oliveira
desapercebidamente, esbatido no crepusculo). Mas André
protestou:
―Não, é uma secca, chegamos á noite.
Precisamos entrar com solemnidade,
á hora da musica no Terreiro... Ás cinco, hein?
E Gonçalo, vergando os hombros sob a Fatalidade:
―Pois sim, ás cinco.
Na sala de jantar, esteirada, com denegridos paineis de
flôres e fructas
sobre um papel vermelho imitando damasco, André occupou a
veneranda
cadeira de braços do avô Martinho. O brilho das
pratas, a frescura das
rosas n'uma floreira de Saxe, revelavam os desvelos da prima
Jesuina―que, com dôr d'entranhas n'essa manhã,
não se vestira, almoçava
no quarto... Gonçalo louvou aquella elegante ordem,
tão rara n'uma casa
de solteirão, lamentando a falta de uma prima Jesuina na
Torre... E
André sorria deliciadamente, desdobrando o guardanapo,
[268]com a
esperança
que Gonçalo contasse aos Barrôlos o confortavel
luxo de Corinde. Depois,
picando com o garfo uma azeitona:
―Pois é verdade, meu querido Gonçalo,
lá estive n'essa grande Capital,
depois um dia em Cintra...
O Matheus entre-abriu a porta para recordar a S. Ex.
a
o amanuense do
Governo Civil, que esperava.
―Pois que espere! gritou S. Ex.
a.
Gonçalo lembrou que talvez o digno homem se impacientasse,
com fome...
―Pois que almoce! gritou S. Ex.
a.
Aquelle secco desprezo de André pelo pobre empregado,
esquecido no banco
d'entrada, com a sua pasta sobre os joelhos―constrangia o Fidalgo. E
espetando tambem uma azeitona:
―Dizias então, Cintra...
―Semsabor, resumiu André. Poeirada horrenda,
femeaço mediocre... E já
me esquecia. Sabes quem lá encontrei, na estrada de
Collares? O
Castanheiro, o nosso Castanheiro, o dos
Annaes,
de chapéo
alto. Ergueu
logo os braços ao céo, desolado:―«E
então esse Gonçalo Mendes Ramires
não me manda o romance?» Parece que o primeiro
numero da Revista sae em
Dezembro, e elle precisa o original em começos d'Outubro...
Lá me
supplicou que te saccudisse, que te recordasse a gloria dos Ramires. E
tu
[269]devias acabar
a Novella... Até convem que, antes
d'entrares na
Camara, appareça um trabalho teu, um trabalho serio,
d'erudição forte,
bem portuguez...
―Pois convem! concordou vivamente Gonçalo. E á
Novella só falta o
Capitulo quarto. Mas esse justamente demanda mais
preparação, mais
pesquizas... Para o acabar precisava o espirito bem socegado, a certeza
d'esta infernal eleição... Não
é o animal do Julio que me inquieta. Mas
a canalha intrigante de Lisboa... Que te parece?
Cavalleiro riu, estendendo de novo o garfo para as azeitonas:
―Que me parece, Gonçalinho? Que estás como uma
creança pequena,
afflicta, com medo que te não chegue o prato de arroz doce.
Socega,
menino, apanhas o teu arroz doce!... Mas com effeito, encontrei o
José
Ernesto muito teimoso. Já existiam compromissos antigos com
o Pitta.
A
Verdade tem sido furiosamente ministerial... E esse Pitta,
agora quando
souber que lhe tapei Villa-Clara, arde em furor contra mim. O que me
é
soberanamente indifferente; colerasinhas ou piadinhas do Pitta
não me
tiram o appetite... Mas o José Ernesto admira o Pitta,
necessita do
Pitta, está empenhado em pagar ao Pitta com um circulo...
Ainda no
ultimo dia me disse na Secretaria, até lhe achei
graça:―«Eu vejo que os
[270]deputados por
Villa-Clara morrem; ora se, por esse bom costume, o teu
Ramires morrer em breve, então entra o Pitta.»
Gonçalo recuou a cadeira:
―Se eu morrer!... Que animal!
―Oh, se morreres para o Circulo! atalhou o Cavalleiro rindo. Por
exemplo, se nos zangassemos, se ámanhã entre
nós surgisse uma
dissidencia... Emfim o impossivel!
O Matheus entrava com a terrina de caldo de gallinha, que rescendia.
―A elle! exclamou André. E não se falle mais de
Circulos, nem de
Pittas, nem de Julios, nem da negregada Politica!... Conta antes o
enredo da tua Novella... Historica, hein?... Meia-idade? D.
João V?...
Eu, se tentasse agora um Romance, escolhia uma epocha deliciosa,
Portugal sob os Philippes...
Os tres quartos, depois das seis, batiam no relogio sempre adeantado da
Egreja de S. Christovão, em Oliveira, quando
André Cavalleiro e Gonçalo,
descendo da rua Velha, penetraram no Terreiro da Louça
(agora
Largo do
Conselheiro Costa Barroso).
Todos os Domingos, tocando n'um coreto que o Conselheiro, quando
Presidente da Camara, mandára construir sobre o velho
Pelourinho
demolido,
[271]a
charanga do Regimento ou a philarmonica
Lealdade
tornavam
aquelle Largo o centro mais sociavel da quieta e caseira cidade. N'essa
tarde, porém, como começára no
Convento de Santa Brigida o bazar
patrocinado pelo Bispo, as senhoras rareavam nos bancos de pedra e nas
cadeiras do Asylo espalhadas por sob as acacias. As Louzadas faltavam
no
seu pouso reservado, superiormente escolhido para espiarem todo o
Terreiro, as casas que o cerram do lado de S. Christovão e
do lado das
Trinas, a rua Velha e a rua das Vellas, a barraca da limonada, e
até
outro retiro pudicamente disfarçado por uma
canniçada de heras. E o
unico rancho conhecido, D. Maria Mendonça, a Baroneza das
Marges, as
duas Alboins, conversavam com as costas para o Terreiro, junto da grade
de ferro que o limita sobre a antiga muralha―d'onde se dominam campos,
a cêrca do Seminario Novo, todo o pinhal da Estevinha e as
voltas
lustrosas da ribeira de Crêde.
Mas entre os cavalheiros que trilhavam vagarosamente a alêa
do Largo
denominada o «Picadeiro», gosando a
Marcha
do
Propheta, o espanto
reviveu (apezar de todos conhecerem a
reconciliação famosa do Governo
Civil) quando os dous amigos appareceram, ambos de chapéos
de palha,
ambos de polainas altas, ao passo solemne das duas egoas―a de
[272]Gonçalo
airosa e baia de cauda curta á ingleza, a do Cavalleiro
pesada e preta,
de pescoço arqueado, a cauda farta rojando as lages. Mello
Alboim, o
Barão das Marges, o Dr. Delegado, pararam n'uma fila
pasmada, a que se
juntou um dos Villa-Velhas, depois o morgado Pestana, depois o gordo
major Ribas com a farda desabotoada, rebolando e galhofando sobre
«aquella amigação...» O
tabellião Guedes, o Guedes
pôpa,
derrubou a
cadeira no alvoroço com que se ergueu, indignado mas
respeitoso,
descobrindo a calva n'uma cortesia immensa em que o chapeu branco lhe
tremia. E o velho Cerqueira, o advogado, que sahia do retiro
encanniçado
d'hera e se abotoava, embasbacou, com os oculos na ponta do nariz
alçado, os dedos esquecidos nos botões das
calças.
No emtanto os dous amigos, gravemente, seguiam pela correnteza de casas
que o palacete de D. Arminda Villegas domina, com o pesado
brazão dos
Villegas na cimalha, as suas dez nobres varandas de ferro opulentadas
por cortinas de damasco amarello. Na varanda d'esquina, o
Barrôlo e José
Mendonça fumavam, sentados em mochos de palhinha. E ao
sentir as patas
lentas das egoas, ao avistar tão inesperadamente o
cunhado―o bom
Barrôlo quasi se despenhou da varanda:
[273] ―Oh Gonçalo! Oh Gonçalo!... Vaes lá
para casa?
E nem esperou uma certeza, berrou de novo, bracejando:
―Nós já vamos! Jantámos cá
esta tarde... A Gracinha está lá em cima,
com a tia Arminda. Vamos já tambem! É um momento!
O Cavalleiro acenou risonhamente ao capitão
Mendonça. Já Barrôlo
mergulhára com enthusiasmo para dentro dos damascos
amarellos. E os dois
amigos, deixando pelo Terreiro aquelle sulco de espanto, penetraram na
rua das Vellas onde um Policia se perfilou com a mão no
bonet―o que foi
agradavel ao Fidalgo da Torre.
O Cavalleiro acompanhou Gonçalo ao Largo d'El-Rei. Deante do
Palacete um
homem de boina vermelha remoía no seu realejo o
côro nupcial da
Lucia,
espiando as janellas desertas. O Joaquim da Porta correu do pateo a
segurar a egoa do Fidalgo. Com um mudo sorriso o tocador estendera a
boina. E depois de lhe atirar um punhado de cobre―Gonçalo
hesitou,
murmurou emfim, com embaraço e corando:
―Não queres entrar e descançar,
André?...
―Não, obrigado... Então
ámanhã ás duas, no Governo Civil, com
o
Barrôlo, para combinarmos sobre os votos da Murtosa... Adeus,
minha
flôr! Démos um bello passeio e espantamos os povos!
[274]
E S. Ex.
a, envolvendo o Palacete n'um demorado
olhar, desceu pela rua
das Tecedeiras.
No seu quarto (sempre preparado, com a cama feita) Gonçalo
acabava de se
lavar, de se escovar, quando Barrôlo se precipitou pelo
corredor,
esbofado, soffrego―e atraz d'elle Gracinha, offegante tambem,
desapertando nervosamente as fitas escarlates do chapeu. Desde a tarde
em que Barrôlo «presenceára com os olhos
bem acordados!» a palestra de
Gonçalo e de André na varanda do Governo
Civil―fervera n'elle e em
Gracinha uma impaciencia desesperada por penetrar os motivos, a
encoberta historia d'aquella reconciliação
surprehendente. Depois a fuga
de Gonçalo na caleche para a Torre, sem parar nos Cunhaes; a
repentina
jornada do Cavalleiro a Lisboa; o silencio que sobre aquelle caso se
abatera mais pesado que uma tampa de ferro―quasi os aterrou. Gracinha
á
noite, no Oratorio, murmurava atravez das resas
distrahidas:―«Oh, minha
rica Nossa Senhora, que será?»―Barrôlo
não ousára correr á Torre; mas
até sonhava com a varanda do Governo Civil, que lhe
apparecia enorme,
crescendo, atravancando Oliveira, roçando já as
janellas dos Cunhaes
d'onde elle a repellia com o cabo d'uma vassoura... E eis agora
Gonçalo
e André que entram na cidade a cavallo, muito serenamente,
[275]ambos de
chapeus de palha, como companheiros constantes recolhendo d'um passeio!
Logo á porta do quarto, Barrôlo atirou os
braços, rompeu aos brados:
―Então que tem sido tudo isto?... Não se falla
n'outra coisa!... Tu com
o André!
Gracinha, arfando, tão vermelha como as fitas do chapeu,
só balbuciava:
―E nem vens, nem escreves... Nós com tanto cuidado...
E mesmo rente da porta aberta, sem se sentarem, o Fidalgo aclarou o
«Mysterio», com a toalha ainda nas mãos:
―Uma cousa muito inesperada, mas muito natural. O Sanches Lucena
morreu, como vocês sabem. Ficou vago o circulo de
Villa-Clara. É um
circulo por onde só póde sahir um homem da terra,
com propriedade, com
influencia. O governo immediatamente me mandou perguntar, pelo
telegrapho, se eu me desejava propôr... Ora eu, no fundo,
estou de bem
com os Historicos, sou amigo do José Ernesto... Estimava
entrar na
Camara... Acceitei.
O Barrôlo esmagou a coxa com uma palmada triumphal:
―Então era certo, caramba!
O Fidalgo continuava, enxugando interminavelmente as mãos:
[276] ―Acceitei, está claro, com condições;
e muito fortes. Mas acceitei...
N'este caso, como vocês sabem, convem que o candidato se
entenda com o
Governador Civil. Eu, ao principio, não queria renovar
relações. Instado
porém, muito instado de Lisboa, e por
considerações superiores de
Politica, consenti n'esse sacrificio. Nas difficuldades em que se
encontra o paiz todos devem fazer sacrificios. Eu fiz esse... O
André,
de resto, foi muito amavel, muito affectuoso. De sorte que estamos
outra
vez amigos. Amigos politicos: mas muito bem, muito lealmente... Almocei
hoje com elle em Corinde, viemos juntos pelos Freixos. Uma tarde
linda!... Emfim renasceu a antiga harmonia. E a
eleição está segura.
―Venham de lá esses ossos! berrou o Barrôlo,
transportado.
Gracinha terminára por se sentar á borda do
leito, com o chapeu no
regaço, enlevada para o irmão, n'um silencioso
enternecimento em que os
seus doces olhos se humedeciam e riam. O Fidalgo, que se desprendera do
abraço do Barrôlo, dobrava a toalha com um vagar
distrahido:
―A eleição está segura, mas
precisamos trabalhar. Tu, Barrôlo, tens de
conversar tambem com o Cavalleiro. Já combinei.
Ámanhã no Governo Civil,
[277]ás duas
horas. É necessario que vocês
se entendam por causa dos votos da
Murtosa...
―Prompto, menino! o que vocês quizerem! Votos, dinheiro...
E Gonçalo, borrifando vagamente o jaquetão com
agua de Colonia que
pingava no soalho:
―Desde o momento em que eu me reconciliei com o André, tudo
acabou. Tu,
Barrôlo, immediatamente te reconcilias tambem...
Barrôlo quasi pulou, no seu deslumbramento:
―Pois está claro! E ainda bem, que eu gosto immensamente do
Cavalleiro!
Até sempre teimava com Gracinha... «Oh senhores,
esta tolice, por causa
da Politica!...»
―Bem! concluiu o Fidalgo. A Politica nos separou, a Politica nos
reune... É o que se chama a inconstancia dos Tempos e dos
Imperios.
E agarrou Gracinha pelos hombros, com um beijo brincalhão,
estalado em
cada face:
―A tia Arminda? Boa, da escaldadella? Já voltou
ás façanhas de
Leandro
o Bello?
Gracinha resplandecia, com o lento sorriso que se não
desfizera, a
envolvia toda em claridade e doçura:
―A tia Arminda está melhor, já anda. Perguntou
por ti... Mas, oh
Gonçalo, tu de certo queres jantar!
―Não, almocei tremendamente em Corinde...
[278]Vocês,
como jantaram á hora
antiga da tia Arminda, ceiam, hein? Então logo ceio... Agora
apenas uma
chavena de chá, muito forte!
Gracinha correu, no alvoroço de servir o heroe querido. E
pela escada,
descendo com Barrôlo que o contemplava, o Fidalgo da Torre
lamentou os
seus sacrificios:
―É verdade, menino, é uma massada... Mas que
diabo! todos devemos
concorrer para tirar o paiz do atoleiro!
Barrôlo, maravilhado, murmurava:
―E sem dizeres nada... Assim á capucha! Assim á
capucha!...
―E agora outra cousa, Barrôlo. Ámanhã,
no Governo Civil, deves convidar
o André a jantar...
―Com certeza! gritou o Barrôlo. Jantar d'estrondo?
-―Não, homem! Jantar muito quieto, muito intimo. Unicamente
o André e o
João Gouveia. Telegraphas ao João Gouveia. Tambem
pódes convidar os
Mendonças... Mas jantar muito discreto, só para
conversarmos, para
firmar a reconciliação d'um modo mais sociavel,
mais elegante.
Ao outro dia, no Governo Civil, Barrôlo e o Cavalleiro
apertaram as mãos
com tanta singelleza, como se ambos, ainda na vespera, andassem jogando
o bilhar e caturrando no club da rua das Pêgas.
[279]De resto
conversaram
summariamente sobre a Eleição. Apenas o
Cavalleiro alludira com
indolencia aos votos de Murtosa―o bom Barrôlo quasi se
engasgou, na
ancia de os offerecer:
―E o que vocês quizerem... Votos, dinheiro, o que
vocês quizerem!...
Vocês digam! Eu vou para a Murtosa, e é comezaina,
e pipa de vinho
aberta, e a freguezia inteira a votar no meio de foguetorio...
O Cavalleiro, rindo, amansou aquelle fervor faustoso:
―Não, meu caro Barrôlo, não!
Nós preparamos uma eleição muito
sobria,
muito socegada. Villa Clara elege Gonçalo Mendes Ramires
deputado,
naturalmente, como o seu melhor homem. Não ha combate, o
Julinho é uma
sombra. Portanto...
O Barrôlo persistia, radiante, gingando:
―Perdão, André, perdão! Lá
isso vinhaça, e vivorio, e foguetorio, e
festança magna...
Mas Gonçalo, embaraçado, ancioso por suster a
garrulice do Barrôlo, as
palmadas carinhosas com que elle se atufava na intimidade do
Cavalleiro,
apontou para a mesa de S. Ex.
a:
―Tu tens que fazer, André. Vejo ahi uma papelada
pavorosa... Não
roubemos mais tempo ao chefe illustre do Districto! Ao trabalho!
Trabalhar, meu irmão, que o
trabalho
É André,
é virtude, é valor!...
[280]
Agarrára o chapeu, acenando ao cunhado. Então
Barrôlo, com as bochechas
a estalar de gosto, balbuciou o convite que firmaria a
reconciliação
d'um modo sociavel e elegante:
―Cavalleiro, para conversarmos melhor, se você nos quizer
dar o gosto
de vir jantar... Quinta feira, ás seis e meia...
Nós, quando cá está o
Gonçalo, jantámos sempre mais tarde.
O Cavalleiro, que corára, agradeceu com discreta ceremonia:
―É para mim um immenso prazer, uma immensa honra...
E á porta da antesala onde os acompanhára,
segurando o pesado reposteiro
de baeta escarlate com as Armas Reaes bordadas―supplicou ao
Barrôlo que
pozesse os seus respeitos aos pés da snr.
a
D.
Graça...
Barrôlo, descendo a larga escadaria de pedra, limpava a
testa, o
pescoço, humedecidos pela emoção. E no
páteo desabafou:
―Muito sympathico este André! Rapaz franco, de quem sempre
gostei...
Realmente estava morto que acabassem estas historias... E mesmo
lá para
os Cunhaes, para a companhia, para o cavaco, que bella
acquisição!
[281]
Quinta feira de manhã depois do almoço, no
terraço do jardim onde
tomavam café, Gonçalo recommendou ao
Barrôlo que «para accentuar mais
completamente a intimidade simples do jantar não pozesse
casaca...»
―E tu, Gracinha, vestido afogado. Mas vestidinho claro, alegre...
Gracinha sorriu, indecisamente, continuando a folhear um
Almanach
de
Lembranças estendida n'uma cadeira de verga, com
um gatinho
branco no
regaço.
Depois do alvoroço e pasmo de Domingo, ella apparentava
agora um
desinteresse silencioso pela reconciliação que
ainda abalava Oliveira,
pela Eleição, pelo jantar. Mas n'esses dias
não socegára―tão impaciente
e sensivel que o bom Barrôlo incessantemente lhe aconselhava
o grande
remedio da Mamã contra os nervos,
«flôres d'alecrim, cosidas em vinho
branco.»
Gonçalo percebia claramente a
perturbação em que a lançava aquella
entrada triumphal de André, do antigo André, na
sua casa de casada, nos
Cunhaes. E para se tranquillisar evocava (como na estrada do cemiterio
em Villa-Clara) a seriedade de Gracinha, o seu rigido e puro pensar, a
altivez da sua almasinha heroica. N'essa manhã mesmo,
[282]todo
no fresco e
soffrego cuidado da sua Eleição, só
receava que Gracinha, por embaraço
ou cautella, acolhesse seccamente o Cavalleiro, o esfriasse no seu
renovado fervor pela casa de Ramires, no seu patrocinato Politico. E
insistiu, gracejando:
―Ouviste, Gracinha? Um vestido branco. Um vestidinho alegre, que sorria
aos hospedes...
Ella murmurou, mergulhada no seu
Almanach:
―Sim, realmente, com este calor...
Mas Barrôlo bateu uma palmada na côxa. Que pena!
que pena não ter em
Oliveira, «para o brinde de
reconciliação», um famoso vinho do
Porto, da
garrafeira da Mamã, preciosissimo, velhissimo, do tempo de
D. João II...
―D. João II? rosnou Gonçalo. Está
estragado!
Barrôlo hesitou:
―D. João II ou D. João VI... Um d'esses Reis.
Emfim um vinho unico, do
seculo passado! Só restam á mamã oito
ou dez garrafas... E hoje, era dia
para uma, hein?
O Fidalgo deu um sorvo lento ao café:
―O André, antigamente, tambem gostava muito d'ovos
queimados...
Bruscamente Gracinha fechou o
Almanach―e, com
uma fuga e um silencio
que emmudeceram Gonçalo, sacudiu do collo o gato dorminhoco,
atravessou
[283]o
terraço, desappareceu entre os teixos altos do jardim.
Mas á tarde, quando o Fidalgo occupou o seu logar na mesa
oval, junto da
prima Maria Mendonça―logo notou, entre duas compoteiras,
uma travessa
d'ovos queimados. Apesar de jantar tão intimo serviam, com a
louça da
China, os famosos talheres dourados da baixella do tio Melchior. E duas
jarras de Saxe transbordavam de cravos brancos e amarellos,
côres
heraldicas dos Ramires.
D. Maria, que não encontrára o querido primo
desde os annos de Gracinha,
murmurou com um sorriso, uma grave cortezia, n'aquelle cerimonioso
silencio em que se desdobravam os guardanapos:
―Ainda lhe não dei os parabens, primo Gonçalo...
Elle acudiu, mechendo nervosamente nos copos:
―Chut! prima, chut! Hoje aqui, já está decidido,
não se allude sequer a
Politica... Está muito calor para Politica.
Ella suspirou de leve, como desfallecida: Ai, o calor... Que horrivel
calor! Desde que entrára nos Cunhaes com aquelle vestido
preto que «era
o seu pallio rico»―ainda não cessára
de invejar a frescura do vestido
branco de Gracinha...
―Que bem que lhe fica! Está hoje linda!
Era um vestido liso de crepon branco, que
[284]aclarava,
remoçava
a sua graça
quasi virginal. E nunca realmente tanto prendera, assim clara e fina,
com os verdes olhos refulgindo como esmeraldas lavadas, uma
ondulação
mais lustrosa nos pesados cabellos, um macio rubor transparente, todo
um
fresco brilho de flôr regada, de flôr revivida,
apesar do acanhamento
que lhe immobilisava os dedos ao erguer a colhér de prata
dourada. E ao
lado, superiormente robusto e largo, com o peitilho arqueado como uma
couraça e cravejado de duas saphiras, uma rosa branca
desabrochada na
lapella, André Cavalleiro, que recusára a sopa
(oh, no verão nunca comia
sopa!) dominava a mesa, levemente commovido tambem, passando sobre o
reluzente bigode um lenço tão perfumado que
afogava o perfume dos
cravos. Mas foi elle que encadeou a animação com
risonhos queixumes
sobre o calor―o escandaloso calor d'Oliveira... Ah! que Purgatorio
abrasado―depois dos seus dois dias de Paraiso, na frescura deliciosa de
Cintra!
D. Maria Mendonça adoçou os espertos olhos para o
Snr. Governador
Civil.―E então Cintra? Animada? Muitos ranchos á
tarde, em Setiaes?
Encontrára a Condessa de Chellas―a prima Chellas?...
Sim, na Pena, na sua visita á Rainha, Cavalleiro
conversára durante um
momento com a Snr.
a Condessa de Chellas...
[285] ―Ah! e a Rainha?...
―Oh, sempre encantadora...
A Snr.
a Condessa de Chellas, essa, um pouco
magra. Mas tão
amavel, tão
intelligente, tão verdadeiramente
grande
dame―não é verdade? E, como
se inclinára para Gracinha, com uma doçura
infinita no simples mover da
cabeça―ella, perturbada, mais vermelha, balbuciou que
não conhecia a
Condessa de Chellas...―D. Maria Mendonça accusou logo a
inercia dos
primos Barrôlos, sempre encafurnados nos Cunhaes, sem nunca
se
aventurarem a Lisboa no inverno, para conviver, para conhecer os
parentes...
―E a culpa é do primo José, que detesta Lisboa...
Oh não! Barrôlo não detestava Lisboa!
Se podesse acarretar para Lisboa
as suas commodidades, o seu quarto, a sua cocheira, a boa agua do
pomar,
a rica varanda sobre o jardim―até se regalava!
―Mas entalado n'aquelles quartinhos do Bragança... E depois
a má
comida, o barulho... A Gracinha em Lisboa nunca dorme... E a massada
das
manhãs?... Não ha nada que fazer em Lisboa, de
manhã!
O Cavalleiro sorria para o Barrôlo, como enlevado
[286]na sua
graça e razão.
Depois confessou que elle, apesar de habitar tambem (mercê do
Estado!)
um palacete confortavel, e gozar tambem uma agua excellente, a
finissima
agua do Poço de S. Domingos, lamentava que os deveres de
Politica, a
disciplina de Partido o amarrassem a Oliveira. E toda a sua
esperança
era a queda do Ministerio, para se libertar, passar tres mezes divinos
em Italia...
Do outro lado de Gracinha, João Gouveia (sempre acanhado e
mudo deante
de senhoras) exclamou, n'um impulso d'amisade, de
convicção:
―Pois, Andrésinho, vae perdendo a esperança! O
S. Fulgencio não arreia!
Ainda cá te apanhamos uns tres ou quatro annos!
E insistiu, debruçado sobre Gracinha, n'um
esforço d'amabilidade que o
esbraseava:
―O S. Fulgencio não arreia. Ainda cá temos o
nosso André mais tres ou
quatro annos.
André protestava, com um requebro, as espessas pestanas
quasi cerradas:
―Oh meu João! não me queiras mal, não
me queiras mal!...
E teimava. Ah, com certeza! ainda que desertasse o seu partido (e que
importa em hoste poderosa uma lança ferrugenta?) esses mezes
d'Italia no
inverno já os sonhára, já os
preparava...―E a
[287]Snr.
a
D. Graça
não
permittia que elle a servisse d'um pouco de vinho branco?
Barrôlo estendeu o braço, com effusão:
―Oh Cavalleiro! eu tenho empenho em que você prove esse
vinho com
cuidado... É da minha propriedade do Corvello...
Faço muito gosto
n'elle. Mas prove com attenção!
S. Ex.
a provou com
devoção, como se commungasse.
E com uma cortezia
compenetrada para Barrôlo que reluzia de gosto:
―Uma delicia! uma verdadeira delicia!
―Hein? Não é verdade? Eu, para mim, prefiro este
vinho do Corvello a
todos os vinhos francezes, os mais finos... Até alli o nosso
amigo Padre
Sueiro, que é um Santo, o aprecia!
Silencioso, esbatido por traz d'uma das altas jarras de cravos, Padre
Sueiro corou, sorriu:
―Com muita agua, infelizmente, Snr. José
Barrôlo... O gosto pede, mas o
rheumatismo não consente.
Pois José Mendonça, que não temia
rheumatismos, atacava sempre
bravamente aquelle bemdito Corvello...
―Que lhe parece a você, João Gouveia?
Oh! João Gouveia já o conhecia, louvado Deus! E
certamente nunca
encontrára em Portugal, como
[288]vinho
branco, nenhum comparavel
pela
frescura, pelo aroma, pela seiva...
―E cá lhe vou atiçando com fervor,
Barrôlo amigo! Esta bella garrafa de
crystal vae de vencida!
Barrôlo exultava. O seu desgosto era que Gonçalo
nunca honrasse «aquelle
nectar.»―Não! Gonçalo não
tolerava vinhos brancos...
―E então hoje estou com uma d'estas sêdes que
só me satisfaz vinho
verde, assim um pouco espumante, e com gelo... Que este de Vidainhos
tambem é do Barrôlo. Oh, eu não
desprezo os vinhos da familia... Este
Vidainhos sinceramente o considero sublime.
Então Cavalleiro desejou provar esse sublime vinho verde da
quinta de
Vidainhos, em Amarante. O escudeiro, a um aceno enthusiasmado do
Barrôlo, apresentou a Sua Ex.
a um copo
esguio, especial para
aquelle
vinho que espumava. Mas o Cavalleiro, acariciando o fresco copo sem o
erguer, repisou a idéa de ferias, de viagens, como
accentuando o seu
cançasso e fastio d'Oliveira.―E sabia a Snr.
a
D.
Graça para onde elle
seguiria, depois da Italia, n'esse Inverno, se por caridade de Deus o
Ministerio cahisse?... Para a Asia Menor.
―E era uma viagem para que eu, com certesa, tentava o nosso
Gonçalo...
Tão facil, agora, com os
[289]caminhos
de ferro!... De Veneza a
Constantinopla um mero passeio. Depois, de Constantinopla a Smyrna, um
dia, dous dias, n'um vapor excellente. E d'ahi n'uma bôa
caravana, por
Tripoli, pela antiga Sidonia, penetravamos em Galiléa...
Galiléa! Hein
Gonçalo? Que belleza!
Padre Sueiro, suspendendo o garfo, lembrou timidamente―que em
Galiléa o
Snr. Gonçalo Ramires pisaria terra que outr'ora, por pouco,
pertencera á
sua Casa:
―Um dos antepassados de V. Ex.
a, Gutierres
Ramires, companheiro de
Tancredo na primeira Cruzada, recuzou o ducado de Galiléa e
de
Além-Jordão...
―Fez pessimamente! gritou Gonçalo, rindo. Oh, esse
avô Gutierres andou
pessimamente! Por que não existia agora, n'este mundo,
disparate mais
divertido do que eu Duque de Galiléa! O Snr.
Gonçalo Mendes Ramires,
Duque de Galiléa e d'Além-Jordão!...
Era simplesmente de rebentar!
Cavalleiro protestou, com sympathia:
―Ora essa! Por que?
―Não acredite! acudiu, com os olhos coruscantes, D. Maria
Mendonça. O
primo Gonçalo, com todas estas graças, no fundo,
é muitissimo
aristocrata... Mas terrivelmente aristocrata!
O Fidalgo da Torre pousou o copo de Vidainhos, depois d'um trago
saboreado e fundo:
[290] ―Aristocrata... Está claro que sou aristocrata. Sentiria
com effeito
certo desgosto em ter nascido, como uma herva, d'outras hervas vagas.
Gósto de saber que nasci de meu pae Vicente, que nasceu de
seu pae
Damião, que nasceu de seu pae Ignacio, e assim sempre
até não sei que
Rei Suevo...
―Recesvinto! informou respeitosamente Padre Sueiro.
―Pois até esse Recesvinto. O peor é que o sangue
de todos esses paes
não differe realmente do sangue dos paes do Joaquim da
Porta. E que
depois do Recesvinto, para traz, até Adão,
não tenho mais paes!
E, emquanto todos riam, D. Maria Mendonça,
debruçada para elle, por traz
do leque largamente aberto, murmurou:
―O Primo está com esses deprezos... Pois eu sei d'uma
senhora que tem a
maior admiração pela casa de Ramires e pelo seu
representante.
Gonçalo enchia de novo o copo, com amor, attento
á espuma:
―Bravo! Mas «convém distinguir», como
diz o Manoel Duarte. Por quem tem
ella a verdadeira admiração, por mim ou pelo
Suevo, pelo Recesvinto?
―Por ambos.
―Diabo!
[291]
Depois, pousando a garrafa, mais sério:
―Quem é?
Oh! ella não podia confessar. Não era ainda
bastante velha para andar
com recadinhos de sentimento. Mas Gonçalo dispensava o
nome―só desejava
as qualidades... Nova? Bonita?
―Bonita? exclamou D. Maria. É uma das mulheres mais
formosas de
Portugal!
Espantado, Gonçalo lançou o nome:
―A D. Anna Lucena!
―Por quê?
―Por que mulher assim tão formosa, e vivendo n'estes
sitios, e tão
conhecida da prima que lhe faz confidencias, só a D. Anna.
D. Maria, ageitando as duas rosas que lhe alegravam o corpete de
sêda
preta, sorria:
―Talvez seja, talvez seja...
―Pois estou immensamente lisongeado. Mas ainda distingo, como o Manoel
Duarte. Se, da parte d'ella, essa sympathia toda é para o
bom fim, não!
Não, santo Deus, não!... Mas se é para
o mau fim, então, prima,
cumprirei honradamente o meu dever dentro das minhas
forças...
D. Maria escondeu a face no leque, escandalisada. Depois, espreitando,
com os agudos olhos a faiscar:
―Oh primo, mas o bom fim é que convinha,
[292]por que a cousa
é a mesma e
são duzentos contos a mais!
Gonçalo gritou d'admiração:
―Oh! esta prima Maria! Não ha em toda a Europa ninguem mais
esperto!
Todos curiosamente anciaram por saber a nova graça da Snr.
a
D. Maria.
Mas Gonçalo deteve as curiosidades:
―Não se póde contar. É casamento.
Então José Mendonça recordou a
novidade picante que desde a vespera
remexia Oliveira:
―Por casamento!... Que me dizem ao casamento da D. Rosa Alcoforado?
Barrôlo, depois o Gouveia, até Gracinha, todos o
proclamaram «um
horror.» Aquella perfeita rapariga, de pelle tão
côr de rosa, de cabello
tão côr d'ouro, amarrada ao Teixeira de Carredes,
um patriarcha
carregado de netos... Que desastre!
Pois ao Cavalleiro o casamento não parecia assim
«desastrado.» O
Teixeira de Carredes, além de muito fino, de muito
intelligente, era um
velho verdejante, quasi sem rugas―até bonito com aquelle
contraste do
bigode escuro e da grenha riçada e branca. E na Snr.
a
D.
Rosa, com
todas as rosas da sua pelle e todo o ouro dos seus cabellos, dominava
«um não sei quê» de
amollentado e de sorvado... Depois
[293]pouco
esperta. E
pouco cuidadosa―sempre mal penteada, sempre mal pregada...
―Emfim, V. Ex.
as perdoem... Mas quem faz um
casamento muito
desenxabido é o pobre Teixeira de Carredes.
D. Maria Mendonça considerava o Governador Civil com um
espanto amavel:
―Pois se o Snr. Cavalleiro não admira a Rosinha Alcoforado,
não sei
então que rapariga admire dentro do seu Districto...
Elle, logo, com galante rasgo:
―Mas, além de V. Ex.
as,
não admiro ninguem!
Realmente eu governo, em
Portugal, o Districto mais daprovido de belleza...
Todos protestaram. E a Maria Marges? E a pequena Reriz, da Riosa? E a
Mellosinho Alboim, com aquelles olhos?... Mas o Cavalleiro
não
consentia, a todas demolia com um sarcasmo leve, ou pela pelle sem
frescura, ou pelo pisar desairoso, ou pelo provincianismo de gosto e
modos, sempre pela carencia das bellezas e graças que
ornavam
Gracinha―lançando assim disfarçadamente, aos
pés de Gracinha, um rôlo
de senhoras vencidas e amarfanhadas. Ella percebera a subtil
adulação,
os seus olhos allumiaram com um fulgor mais enternecido o rubor que a
afogueava. Desejou repartir incenso
[294]tão
accumulado―lembrou
timidamente
outra belleza de que se orgulhava o Districto:
―A filha do Visconde de Rio-Manso, a Rosinha Rio-Manso... É
linda!
O Cavalleiro triumphou com facilidade:
―Mas tem doze annos, minha senhora! Nem é rosinha,
é botãosinho de
rosa!...
Quasi humildemente, Gracinha recordou a Luiza Moreira, filha d'um
lojista, muito admirada aos domingos na missa da Sé e no
Terreiro da
Louça:
―É uma bella rapariga... Sobretudo a figura...
Cavalleiro triumphou ainda, com requebrada segurança:
―Sim, mas os dentes tortos, Snr.
a D.
Graça! Os dentes
acavallados! V.
Ex.
a nunca reparou... Oh! uma bôca
muito desagradavel! E,
além dos
dentes, o irmão, o Evaristo, com aquella cara mais chata que
a alma, e a
caspa, e a porcaria, e o jacobinismo... Não ha mulher bonita
com irmão
tão feio!
Mendonça estendera o braço, com outra curiosidade
que occupava Oliveira:
―E por Evaristo!... Elle sempre funda o novo jornal republicano, o
Rebate?
O Snr. Governador Civil encolheu os hombros com uma ignorancia superior
e risonha. Mas João Gouveia, vermelho e luzidio depois da
sua garrafa de
Corvello e da sua garrafa de Douro, affiançou
[295]que o
Rebate
apparecia
em Novembro. Até elle conhecia o patriota que esportulava a
«massa.» E a
campanha do
Rebate começava com cinco
artigos esmagadores
sobre a
Tomada da Bastilha.
O espanto de Gonçalo era como o Republicanismo
alastrára em
Portugal―até na velhota, na devota Oliveira...
―Quando eu andava em preparatorios existiam simplesmente dois
republicanos em Oliveira, o velho Salema, lente de Rhetorica, e eu.
Agora ha partido, ha comité, ha dous jornaes... E ha mesmo o
Barão das
Marges com a
Voz Publica na mão,
debaixo da Arcada...
Mendonça não receava a Republica, gracejava:
―Ainda vem longe, muito longe... Ainda nos dá tempo de
comermos estes
bellos ovos queimados.
―Deliciosos, murmurou o Cavalleiro.
―Sim, concordou Gonçalo, ainda temos tempo para os ovos...
Mas que
rebente uma revolução em Hespanha, ou que morra o
Reisinho na sua
menoridade, que naturalmente morre...
―Credo! Coitadinho! Pobre mãe! murmurou Gracinha
sensibilisada.
Immediatamente o Cavalleiro a tranquillisou. Porquê, morrer o
Reisinho
d'Hespanha? Os republicanos espalhavam boatos sombrios sobre os males
da
excellente creança. Mas elle conhecia a
realidade―assegurava
[296]á
Snr.
a
D. Graça que, felizmente para a Hespanha, ainda reinaria um
Affonso XIII
e mesmo um Affonso XIV. Em quanto aos nossos republicanos, esses... Meu
Deus! mera questão de guarda municipal! Portugal, nas suas
massas
profundas, permanecia monarchico, de raiz. Apenas ao de cima, na
burguezia e nas escolas, fluctuava uma escuma ligeira, e bastante suja,
que se limpava facilmente com um sabre...
―V. Ex.
a, Snr.
a D.
Graça, que é uma dona de
casa perfeita, conhece
esta operação que se faz á panella do
caldo... Escumar a panella. É com
uma colher. Aqui é com um sabre. Pois assim, com toda a
simplicidade, se
clarifica Portugal. E foi isto que ainda ultimamente eu declarei a
El-rei.
Alteára a cabeça―o seu peitilho resplandecia,
mais largo, como couraça
bastante rija para defender toda a Monarchia. E, no compenetrado
silencio que se alargou, duas rolhas de Champagne estalaram, por traz
do
biombo, na copa.
Apenas o escudeiro, apressado, enchêra as taças―o
Fidalgo da Torre com
uma gravidade que o sorriso adoçava:
―André, á tua saude. Não é
ao Governador Civil, é ao amigo!
Todos os copos se ergueram n'um susuro acariciador. João
Gouveia agitou
o seu, com especial
[297]effusão,
gritando:―«Andrésinho, meu velho!» S.
Ex.
a apenas tocou de leve no calice de Gracinha.
Padre Sueiro murmurou
as «graças.» E Barrôlo,
atirando o guardanapo:
―Café aqui ou na sala?... Na sala estamos mais frescos.
Na sala grande, a sala dos velludos vermelhos, o lustre rebrilhava
solitariamente; pelas tres janellas abertas penetrava a serenidade da
noite quente, o recolhido silencio d'Oliveira; e em baixo, no Largo,
alguns sujeitos, mesmo duas senhoras de manta de lã branca
pela cabeça,
pasmavam para aquella claridade de festa que jorrava dos Cunhaes. O
Cavalleiro e Gonçalo accenderam os charutos na varanda,
respirando a
frescura escassa. E o Cavalleiro, com beatitude:
―Pois sempre te digo, Gonçalinho, que se janta sublimemente
em casa de
teu cunhado!...
Gonçalo desejou que, no domingo, elle jantasse na Torre.
Ainda restavam
umas garrafas de Madeira do tempo do avô Damião―a
que se daria, com
soccorro do Gouveia e do Titó, um assalto heroico.
O Cavalleiro prometteu, já deliciado―tomando da pesada
bandeja de
prata, que derreava o escudeiro, a sua chavena de café, sem
assucar.
―E tu, com effeito, Gonçalo, agora não deves
arredar da Torre. O teu
papel é todo de presença na localidade. O Fidalgo
da Torre está no meio
das
[298]suas terras,
por onde vae ser eleito para as Côrtes.
É o teu
papel...
O Barrôlo com um riso enlevado, surdiu entre os dous amigos
que enlaçou
ternamente pela cinta:
―E nós cá ficamos, ambos a trabalhar, o
Cavalleiro e eu!...
Mas D. Maria, do canapé onde se enterrára,
reclamou o primo Gonçalo
«para negocios.» Junto d'uma console,
João Gouveia e Padre Sueiro,
remexendo o seu café, concordavam na necessidade d'um
Governo forte. E
Gracinha, com o primo Mendonça, revolvia as musicas sobre a
tampa do
piano, procurando o
Fado dos Ramires.
Mendonça tocava com
corredio
brilho, composera valsas, um hymno ao Coronel Trancoso, o heroe de
Machumba―e mesmo o primeiro acto d'uma opera,
A Pegureira.
E como
não
descortinavam o
Fado com as quadras do
Videirinha―foi justamente uma
das suas valsas, a
Perola, d'uma cadencia amorosa
e
cançada lembrando
a valsa do Fausto, que elle atacou, sem largar o charuto.
Então André Cavalleiro, que
repenetrára vagarosamente na sala, repuxou o
collete, afagou o bigode, e avançando para Gracinha, com um
modo meio
grave, meio folgazão:
―Se V. Ex.
a me quer dar a grande honra?...
Offerecia, abria os braços. E Gracinha, toda escarlate,
[299]cedeu, levada
logo nos largos passos deslisados que o Cavalleiro lançou
sobre o
tapete. Barrôlo e João Gouveia correram a afastar
as poltronas,
clareando um espaço, onde a valsa se desenrolou com o suave
sulco branco
do vestido de Gracinha. Pequenina e leve, toda ella se perdia, como se
fundia, na força mascula do Cavalleiro, que a arrebatava em
giros
lentos, com a face pendida, respirando os seus cabellos magnificos.
Da borda do canapé, com os finos olhos a fusilar, D. Maria
Mendonça
pasmava:
―Mas que bem que valsa, que bem que valsa o Snr. Governador Civil!...
Ao lado Gonçalo torcia nervosamente o bigode, na surpreza
d'aquella
familiaridade, assim renovada pelo Cavalleiro com tão serena
confiança,
por Gracinha com tanto abandono... Elles torneavam,
enlaçados. Dos
labios do Cavalleiro escorregava um sorriso, um murmurio. Gracinha
arfava, os seus sapatos de verniz reluziam sob a saia que se enrolava
nas calças do Cavalleiro. E Barrôlo, em extasi,
quando elles o roçavam,
atirava palmas carinhosas, bradava:
―Bravo! Bravo! Lindamente!... Bravissimo!
VII
Gonçalo recolhia para o almoço depois d'um
passeio no pomar percorrendo
a
Gazeta do Porto, quando avistou no banco de
pedra, rente
á porta da
cosinha, onde a Rosa mudava o painço na gaiola do seu
canario, o Casco,
o José Casco dos Bravaes, que esperava, pensativo e abatido,
com o
chapeu sobre os joelhos. Vivamente, para se esquivar, remergulhou no
jornal. Mas percebeu a esgalgada magreza do homem, que surdia da sombra
da latada, avançava na claridade faiscante do pateo,
hesitando, como
assustada... E, animado pela visinhança da Rosa, parou,
forçando um
sorriso―em quanto o Casco enrolava nas mãos tremulas a aba
dura do
chapeu, balbuciava:
―Se o Fidalgo me fizesse a esmola de uma palavra...
[302] ―Ah! é vossê, Casco! Homem, não o
conheci... E então?
Dobrou o jornal, tranquillisado―gozando mesmo a submissão
d'aquelle
valente que tanto o apavorára, erguido e negro como um
pinheiro, na
solidão do pinheiral. E o Casco, engasgado, repuchava,
esticava o
pescoço de dentro dos grossos collarinhos
bordados―até que atirou toda
a alma n'uma supplica soluçada, retendo as lagrimas que
marejavam:
―Ai, meu Fidalgo, perdôe por quem é!
Perdôe, que eu nem lhe sei pedir
perdão!...
Gonçalo atalhou o homem, com generosidade e
doçura. Elle bem o avisára!
Nada se emenda, a gritar, com o pau alçado...
―E olhe, Casco! Quando vossê me sahiu ao pinhal eu levava um
revólver
na algibeira... Trago sempre um revólver. Desde que uma
noite em
Coimbra, no Choupal, dous bebados me assaltaram, ando sempre
á cautella
com o revólver... Pense você agora que
desgraça se tiro o revólver, se
desfecho!... Que desgraça, hein?... Felizmente, n'um
relance, pensei que
me perdia, que o matava, e fugi. Foi por isso que fugi, para
não
desfechar o revólver... Emfim tudo passou. E eu
não sou homem de
rancores, já esqueci. Comtanto que vossê, agora
socegado e no seu juizo,
esqueça tambem.
O Casco amassava as abas do chapeu, com a cabeça
[303]derrubada.
E sem a
erguer, sem ousar, rouco dos soluços que o entalavam:
―Pois agora é que eu me lembro, meu Fidalgo! Agora
é que me ralo por
aquella doidice! Agora! depois do que o Fidalgo fez pela mulher e pelo
pequeno!...
Gonçalo sorriu, encolheu os hombros:
―Que tolice, Casco!... Pois a sua mulher apparece ahi n'uma noite
d'agua... E o pequenito doente, coitadito, com febre... Como vae elle,
o
Manelsinho?
O Casco murmurou do fundo da sua humildade:
―Louvado seja Deus, meu senhor, muito sãosinho, muito
rijinho.
―Ainda bem... Ponha o chapeu. Ponha o chapeu, homem! E adeus!...
Vossê
não tem que agradecer, Casco... E olhe! Traga cá
um dia o pequeno. Eu
gostei do pequeno. É espertinho.
Mas o Casco não se arredava, pregado ás lages.
Por fim, n'um soluço que
rebentou:
―É que eu não sei como hei-de dizer, meu
Fidalgo... Lá o dia de cadeia,
acabou! Tenho genio, fiz a asneira, com o corpo a paguei. E pouco
paguei, graças ao Fidalgo... Mas depois quando sahi, quando
soube que a
mulher viera de noite á Torre, e que o Fidalgo
até a embrulhára n'uma
capa, e que não deixára sahir o pequeno...
Estacou, afogado pela emoção. E como
Gonçalo,
[304]tambem
commovido, lhe
batia risonhamente no hombro, «para acabar, não se
fallar mais n'essas
bagatellas...»―o Casco rompeu, n'uma grande voz dolorosa e
quebrada:
―Mas é que o Fidalgo não sabe o que é
para mim aquelle pequeno!...
Desde que Deus m'o mandou tem sido uma paixão cá
por dentro que até
parece mentira!... Olhe que na noite que passei na cadeia da villa
não
dormi... E Deus me perdôe, não pensei na mulher,
nem na pobre da velha,
nem na pouquita terra que amanho, tudo ao desamparo. Toda a noite se
foi
a gemer:―«ai o meu querido filhinho! ai o meu querido
filhinho!...»
Depois quando a mulher, logo pela estrada, me diz que o Fidalgo
ficára
com elle na Torre, e o deitára na melhor cama, e
mandára recado ao
medico... E depois quando soube pelo snr. Bento que o Fidalgo de noite
subia a vêr se elle estava bem coberto, e lhe entalava a
roupa,
coitadinho...
E arrebatadamente, n'um choro solto, gritando:―«Ai meu
Fidalgo! meu
Fidalgo!...»―o Casco agarrou as mãos de
Gonçalo, que beijava,
rebeijava, alagava de grossas lagrimas.
―Então, Casco! Que tolice!... Deixe homem!
Pallido, Gonçalo saccudia aquella gratidão
furiosa―até que ambos se
encararam, o Fidalgo com as pestanas molhadas e tremulas, o lavrador
dos
Bravaes
[305]soluçando,
n'uma confusão. E foi elle por
fim que, recalcando um
derradeiro soluço, se recobrou, desafogou da idéa
que o trouxera, que de
certo fundamente o trabalhára, e que agora lhe enrijava a
face e o gesto
n'uma determinação que nunca vergaria:
―Meu Fidalgo, eu não sei fallar, não sei
dizer... Mas se d'hoje em
deante, seja para que fôr, o Fidalgo necessitar da vida d'um
homem, tem
aqui a minha!
Gonçalo estendeu a mão ao lavrador, muito
simplesmente―como um Ramires
d'outr'ora recebendo a preitezia d'um vassallo:
―Obrigado, José Casco.
―Entendido, meu Fidalgo, e que Deus nosso Senhor o
abençôe!
Gonçalo, perturbado, galgou pela escadinha da
varanda―emquanto o Casco
atravessava o páteo vagarosamente, com a cabeça
bem erguida, como homem
que devêra e que pagára.
E em cima, na livraria, Gonçalo pensava com
espanto:―«Ahi está como
n'este mundo sentimental se ganham dedicações
gratuitamente!...» Por que
emfim! quem não impediria que uma criancinha com febre
affrontasse de
noite uma estrada negra, sob a chuva e o vendaval? Quem a
não deitaria,
não lhe adoçaria um grog, não lhe
entalaria os cobertores para a
conservar bem abafada? E por esse grog e por essa cama―corre o pae,
tremendo e chorando,
[306]a
offerecer a sua vida! Ah! como era facil ser
Rei―e ser Rei popular!
E esta certeza mais o animava a obedecer ás
recommendacões do
Cavalleiro―a começar immediatamente as suas visitas aos
Influentes
eleitoraes, essas aduladoras visitas que assegurariam á
Eleição uma
unanimidade arrogante. Logo ao fim do almoço, mesmo sobre a
toalha,
arredando os pratos, copiou a lista d'esses Magnates―por um rascunho
annotado que lhe fornecera o João Gouveia. Era o Dr.
Alexandrino; o
velho Gramilde, de Ramilde; o Padre José Vicente, da Finta;
outros
menores:―e o Gouveia marcára com uma cruz, como o mais
poderoso e mais
difficil, o Visconde de Rio-Manso, que dispunha da immensa freguezia de
Canta-Pedra. Gonçalo conhecia esses senhores, homens de
propriedade e de
dinheiro (com todos outr'ora o papá andára
endividado)―mas nunca
encontrára o Visconde de Rio-Manso, um velho brazileiro,
dono da quinta
da
Varandinha, onde vivia solitariamente com uma
neta de onze annos,
essa linda Rosinha que chamavam «o botão de
Rosa», a herdeira mais rica
de toda a Provincia. E logo n'essa tarde, em Villa-Clara, reclamou ao
João Gouveia uma carta d'apresentação
para o Rio-Manso:
O Administrador hesitou:
―Vossê não precisa carta... Que diabo!
Vossê
[307]é
o Fidalgo da Torre!
Chega, entra, conversa... Além d'isso na
Eleição passada o Rio-Manso
ajudou os Regeneradores; de modo que estamos um pouco sêccos.
O
Rio-Manso é um casmurro... Mas com effeito,
Gonçalinho, convem começar
essa caça á popularidade!
N'essa noite, na Assembleia, o Fidalgo, encetando a
«caça á
popularidade», acceitou um convite do Commendador
Romão Barros (do
massador, do burlesco Barros) para o brodio faustoso com que elle
celebrava, na sua quinta da
Roqueira, a festa de
S. Romão.
E essa
semana inteira, depois outra, as gastou assim por Villa-Clara, amimando
eleitores―a ponto de comprar horrendas camisas de chita na loja do
Ramos, de encommendar um sacco de café na mercearia do
Tello, de
offerecer o braço no largo do Chafariz á nojenta
mulher do bebedissimo
Marques Rosendo, e de frequentar, de chapeu para a nuca, o bilhar da
rua
das Pretas. João Gouveia não approvava estes
excessos―aconselhando
antes «boas visitas, com todo o
chic,
aos influentes
sérios.» Mas
Gonçalo bocejava, adiava, na insuperavel preguiça
de affrontar a
maledicencia rabujenta do velho Gramilde ou a solemnidade forense do
Dr.
Alexandrino.
Agosto findava:―e por vezes, na livraria, Gonçalo,
coçando
desconsoladamente a cabeça, considerava as brancas tiras
d'almaço, o
Capitulo III da
[308]Torre
de D. Ramires encalhado...
Mas quê!
não podia,
com aquelle calor, com o afan da Eleição,
remergulhar nas eras
Affonsinas!
Quando refrescavam as tardes lentas montava, alongava o passeio pelas
freguezias, não se descuidando das
recommendações do
Cavalleiro―enchendo sempre o bolso de rebuçados d'avenca
para atirar ás
creanças. Mas, n'uma carta ao querido André,
já confessára que «a sua
popularidade não crescia, não
enfunava...»―«Não! positivamente, velho
amigo, não tenho o dom! Sei apenas palestrar familiarmente
com os
homens, comprimentar pelo seu nome as velhas ás soleiras das
portas,
gracejar com a pequenada, e se encontro uma boeirinha de saiasita rota
dar cinco tostões á boeirinha para uma saiasita
nova... Ora todas estas
cousas tão naturaes sempre as fiz naturalmente, desde rapaz,
sem que me
conquistassem influencia sensivel... Necessito portanto que essa
querida
Authoridade m'empurre com o seu braço possante e
destro...»
Todavia já uma tarde, encontrando junto da Torre o velho
Cosme de
Nacejas, e depois, n'um domingo, crusando ás
Ave-Marias
na
Bica-Santa
o Adrião Pinto do logar da Levada, ambos lavradores
considerados e
remexedores d'eleições―lhes pedira os votos,
desprendidamente e rindo.
E quasi se assombrára da promptidão, do fervor,
com que ambos se
[309]offereceram.―«Para
o Fidalgo? Pois isso está
entendido! Ainda que se
votasse contra o Governo, que é pae!»―E em
Villa-Clara, com o Gouveia,
Gonçalo deduzia d'estas offertas tão acaloradas
«a intelligencia
politica da gente do campo»:
―Está claro que não é pelos meus
lindos olhos! Mas sabem que eu sou
homem para fallar, para luctar pelos interesses da terra... O Sanches
Lucena não passava d'um Conselheiro muito rico e muito mudo!
Esta gente
quer deputado que grite, que lide, que imponha... Votam por mim por que
sou uma intelligencia.
E o Gouveia volvia, contemplando pensativamente o Fidalgo:
―Homem! quem sabe? Vossê nunca experimentou,
Gonçalo Mendes Ramires.
Talvez seja realmente pelos seus lindos olhos!
N'um d'esses passeios, n'uma abrazada sexta-feira, com o sol ainda
alto,
Gonçalo atravessava o logarejo da Velleda, no caminho de
Canta-Pedra. Ao
fim dos casebres que se apertam á orla da estrada alveja,
muito caiada,
n'um terreiro defronte da Egreja, a taverna famosa "do Pintainho", onde
os caramanchões do quintal e a nomeada do coelho guizado
attrahem vasto
povo nos dias da feira da
[310]Velleda.
N'essa manhã o
Titó, depois d'uma
madrugada ás perdizes, em Valverde, apparecera na Torre para
almoçar,
urrando, d'esfomeado. Era sexta-feira―a Rosa preparára uma
pescada com
tomates, depois um bacalhau assado, formidaveis. E Gonçalo,
toda a tarde
torturado com sêde, mais resequido pela poeira da estrada,
parou
avidamente deante do portão da venda, gritou pelo Pintainho.
―Oh meu Fidalgo!...
―Oh Pintainho! depressa! Uma sangria! Uma grande sangria bem fresca,
que morro...
O Pintainho, velhote roliço de cabello amarello,
não tardou com o copo
appetitoso e fundo onde boiava, na espumasinha do assucar, uma rodella
de limão. E Gonçalo saboreava a sangria com
ineffavel delicia―quando da
janella terrea da venda partiu um assobio lento, fino e trinado, como
os
dos arrieiros que animam as bestas a beber nos riachos.
Gonçalo deteve o
copo, varado. Á janella assomára um
latagão airoso, de face clara e
suissas louras, que, com os punhos sobre o peitoril e a
cabeça
levantada, n'um descarado modo de pimponice e desafio, o fitava
atrevidamente. E n'um lampejo o Fidalgo reconheceu aquelle
caçador que
já uma tarde, no logar de Nacejas, ao pé da
Fabrica de vidros, o mirára
com arrogancia, lhe raspára a espingarda pela perna, e ainda
depois,
parado sob a varanda d'uma rapariga
[311]de
jaqué azul, lhe
acenára
chasqueando emquanto elle descia a ladeira... Era esse! Como se
não
percebesse o ultraje―Gonçalo bebeu apressadamente a
sangria, atirou uma
placa ao pobre Pintainho enfiado, e picou a fina egoa. Mas
então da
janella rolou uma risadinha, cacarejada e troçante, que o
colheu pelas
costas como o estalo d'uma vergasta. Gonçalo soltou a
galope. E adiante,
sopeando a egoa no refugio d'uma azinhaga, pensava, ainda
tremulo:―«Quem será o desavergonhado?... E que
lhe fiz eu, Santo Deus?
que lhe fiz eu?...» Ao mesmo tempo todo o seu ser se
desesperava contra
aquelle desgraçado
mêdo,
encolhimento da carne,
arrepio da pelle, que
sempre, ante um perigo, uma ameaça, um vulto surdindo d'uma
sombra, o
estonteava, o impellia furiosamente a abalar, a escapar! Por que
á sua
alma, Deus louvado, não faltava arrojo! Mas era o corpo, o
traiçoeiro
corpo, que n'um arrepio, n'um espanto, fugia, se safava, arrastando a
alma―emquanto dentro a alma bravejava!
Entrou na Torre, mortificado, invejando a afouteza dos seus
moços da
quinta, remoendo um rancor soturno contra aquelle bruto de suissas
louras, que certamente denunciaria ao Cavalleiro e enterraria n'uma
enxovia!―Mas, logo no corredor, o Bento lhe debandou os pensamentos,
apparecendo
[312]com
uma carta «que trouxera um moço da
Feitosa...»
―Da
Feitosa?
―Sim senhor, da quinta do snr. Sanches Lucena, que Deus haja. Diz que
vinha de mandado das senhoras...
―Das senhoras!... Que senhoras?
Sem tarja de luto, a carta não era da bella D. Anna... Mas
era de D.
Maria Mendonça, que assignava―«prima muito amiga,
Maria Severim.» N'um
relance a leu, colhido logo por esta surpreza nova, distrahido da venda
do Pintainho e da affronta:―«Meu querido Primo. Estou ha
tres dias aqui
com a minha amiga Annica, e como passou o mez inteiro do nojo e ella
já
póde sahir (e até precisa porque tem andado
fraca) eu aproveito a
occasião para percorrer estes arredores que dizem
tão bonitos, e pouco
conheço. Tencionamos no Domingo visitar Santa Maria de
Craquêde, onde
estão os tumulos dos antigos tios Ramires. Que
impressão me vae
fazer!... Mas, ao que parece, além dos tumulos do claustro,
ha outros,
ainda mais antigos, que foram arrombados no tempo dos Francezes, e que
ficam n'um subterraneo, onde se não póde entrar
sem licença e sem que
tragam a chave. Peço pois, querido Primo, que dê
as suas ordens para que
no Domingo possamos descer ao subterraneo, que
[313]todos
affiançam muito
interessante, por que ainda lá restam ossos e armas. Se na
Torre
houvesse uma senhora, eu mesma iria, para lhe fazer este pedido... Mas
não se póde visitar um solteirão
tão perigoso. Case depressa!...
D'Oliveira boas noticias. Creia-me sempre, etc.»
Gonçalo encarou o Bento―que esperava, interessado com
aquelle assombro
do Snr. Doutor:
―Tu sabes se em Santa Maria de Craquêde ha outros tumulos,
n'um
subterraneo?
O assombro então saltou para o Bento:
―N'um subterraneo?... Tumulos?
―Sim, homem! Além dos que estão no claustro
parece que ha outros, mais
antigos, debaixo da terra... Eu nunca vi, não me lembro.
Tambem ha que
annos não entro em Santa Maria de Craquêde! Desde
pequeno!... Tu não
sabes?
O Bento encolheu os hombros.
―E a Rosa não saberá?
O Bento abanou a cabeça, duvidando.
―Tambem vossês nunca sabem nada! Bem! Amanhã
cêdo corre a Santa Maria
de Craquêde e pergunta na Egreja, ao sachristão,
se existe esse
subterraneo. Se existir que o mostre no Domingo a umas senhoras,
á
snr.
a D. Anna Lucena, e á snr.
a
D. Maria
Mendonça, minha prima
Maria... E que tenha tudo varrido, tudo decente!
[314]
Mas, repassando a carta, reparou n'um
Post-Scriptum
em lettra mais
miudinha, ao canto da folha:―«No Domingo, não se
esqueça, a visita será
entre as cinco e cinco e meia da tarde!»
Gonçalo pensou:―«Será uma
entrevista?» E na livraria, atirando para uma
cadeira o chapeu e o chicote, assentou que era uma entrevista, bem
clara, bem marcada! E talvez nem existisse esse subterraneo―e Maria
Mendonça, com a sua tortuosa esperteza, o inventasse, como
natural
motivo de lhe escrever, de lhe annunciar que no Domingo, ás
cinco e
meia, a bella D. Anna e os seus duzentos contos o esperavam em Santa
Maria de Craquêde. Mas então a prima Maria
não gracejára, em Oliveira?
Gostava d'elle, realmente, essa D. Anna?... E uma
emoção, uma
curiosidade voluptuosa atravessaram Gonçalo á
idéa de que tão formosa
mulher o desejava.―Ah! mas certamente o desejava para marido, por que
se o appetecesse para amante não se soccorria dos
serviços da D. Maria
Mendonça―nem a prima Maria, apesar de tão sabuja
com as amigas ricas,
os prestaria assim descaradamente como uma alcoviteira de Comedia! E
caramba! casar com a D. Anna―não!
E subitamente anciou por conhecer a vida da D. Anna! Aturára
ella tantos
annos, em severa fidelidade, o velho Sanches? Sim, talvez, na
Feitosa,
na solidão
[315]dos
grandes muros da
Feitosa―por
que nunca
sobre ella
esvoaçára um rumor, em terriolas tão
gulosas de rumores malignos. Mas em
Lisboa?... Esses «amigos estimabilissimos» de que
se ufanava o pobre
Sanches, o D. João não sei quê, o
pomposo Arronches Manrique, o Philippe
Lourençal com o seu cornetim?... Algum de certo a
attacára―talvez o D.
João, por dever tradicional do nome. E ella?... Quem o
informaria sobre
a historia sentimental da D. Anna?
Depois, ao jantar, de repente pensou no Gouveia. Uma irmã do
Gouveia,
casada em Lisboa com certo Cerqueira (arranjador de Magicas e empregado
na Misericordia) costumava mandar ao mano Administrador relatorios
intimos sobre todas as pessoas conhecidas d'Oliveira, de Villa-Clara,
que se demoravam em Lisboa―e que interessavam o mano ou por Politica,
ou por mexeriquice. E de certo, pela irmã Cerqueira, o
querido Gouveia
conhecia miudamente os annaes da D. Anna, durante os seus invernos de
Lisboa, nas delicias da sua «roda fina».
N'essa noite, porém, o Administrador não
apparecera na Assembleia. E
Gonçalo, desconsolado, recolhia á Torre―quando
no Largo do Chafariz o
encontrou com o Videirinha, ambos sentados n'um banco, sob as olaias
escuras.
―Chegou lindamente! exclamou o Gouveia. Estavamos
[316]mesmo a marchar para
minha casa, tomar chá. Quer vossê, tambem?...
Vossê costuma gostar das
minhas torradinhas.
O Fidalgo acceitou―apezar de cançado. E logo pela
Calçadinha, enlaçando
o braço do Administrador, contou que recebera uma carta de
Lisboa, d'um
amigo, com uma nova estupenda... O que?―O casamento da D. Anna Lucena.
O Gouveia parou, assombrado, atirando o côco para a nuca:
―Com quem?!
Gonçalo que inventára a carta―inventou o noivo:
―Com um vago parente meu, ao que parece, um D. João Pedroso
ou da
Pedrosa. Muitas vezes o Sanches Lucena me fallou n'elle... Conviviam
muito em Lisboa...
Gouveia bateu com a ponta da bengala nas pedras:
―Não póde ser!... Que disparate! A D. Anna
não ajustava casamento sete
semanas depois de lhe morrer o marido... Olhe que o Lucena morreu no
meado de Julho, homem! Ainda nem teve tempo de se acostumar
á sepultura!
―Sim, com effeito! murmurou Gonçalo.
E sorria, sob uma doce baforada de vaidade―pensando que, sete semanas
depois de viuva, ella,
[317]sem
resistir, calcando decencia e luto, lhe
offerecia a elle uma entrevista nas ruinas de Craquêde.
A mentira de resto, apesar de disparatada,
aproveitára―porque, depois
de subirem á saleta verde do Administrador, o espanto
recomeçou.
Videirinha esfregava as mãos, divertido:
―Oh snr. Dr., olhe que tinha graça!... Se a snr.
a
D. Anna,
depois
d'apanhar os duzentos contos do velhote, logo passadas semanas,
zás, se
engancha com um rapazote novo...
Não, não!... Gonçalo agora, reparando,
tambem considerava despropositada
a noticia do casamento, assim com o pobre Sanches ainda
môrno...
―Naturalmente entre ella e esse D. João havia namorico,
olhadella...
Por isso imaginaram. Com effeito, alguem me contou, ha tempos, que o
tal
D. João se atirava valentemente, como cumpre a um D.
João, e que ella...
―Mentira! atalhou o Administrador, debruçado sobre a
chaminé do
candieiro para accender o cigarro. Mentira! Sei perfeitamente, e por
excellente canal... Em fim, sei por minha irmã! Nunca, em
Lisboa, a D.
Anna deu azo a que se rosnasse. Muito séria, muitissimo
séria. Está
claro, não faltou por lá maganão que
lhe arrastasse a aza languida...
Talvez esse D. João, ou outro amigo do marido, segundo a boa
lei
natural. Mas ella, nada! Nem ôlho de lado!
[318]Esposa romana, meu
amigo, e
dos bons tempos romanos!
Gonçalo, enterrado no camapé, torcia lentamente o
bigode, regalado,
recolhendo as revelações. E o Gouveia, no meio da
sala, com um gesto
convencido e superior:
―Nem admira! Estas mulheres muito formosas são insensiveis.
Bellos
marmores, mas frios marmores... Não, Gonçalinho,
lá para o sentimento, e
para a alma, e mesmo para o resto, venham as mulheres pequeninas,
magrinhas, escurinhas! Essas sim!... Mas os grandes
mulherões brancos,
do genero Venus, só para vista, só para museo.
Videirinha arriscou uma duvida:
―Uma senhora tão bonita como a snr.
a
D. Anna, e com
aquelle sangue,
assim casada com um velhote...
―Ha mulheres que gostam de velhotes por que ellas mesmas teem
sentimentos velhotes!―declarou o Gouveia, de dedo erguido, com immensa
auctoridade e immensa philosophia.
Mas a curiosidade de Gonçalo não se contentava. E
na
Feitosa? Nunca se
rosnára d'alguma aventura escondida? Parece que com o Dr.
Julio...
De novo o Fidalgo inventava. De novo Gouveia, repelliu a
«mentira»:
―Nem na
Feitosa, nem em Oliveira, nem em
[319]Lisboa... De
resto,
é o que
lhe digo, Gonçalo Mendes. Mulher de marmore!
Depois, saudando, em submissa admiração:
―Mas, como marmore... Vossês, meninos, não
imaginam a belleza d'aquella
mulher decotada!
Gonçalo pasmou:
―E onde a viu vossê decotada?
―Onde a vi decotada? Em Lisboa, n'um baile do Paço...
Até foi
justamente o Lucena que me arranjou o convite para o Paço.
Lá me
espanejei, de calção... Uma semsaboria. E mesmo
uma vergonha, toda
aquella turba acavallada por cima dos buffetes, aos berros, a agarrar
furiosamente pedaços de perú...
―Mas então, a D. Anna?
―Pois a D. Anna uma belleza! Vossês não
imaginam!... Santo nome de
Deus! que hombros! que braços! que peito! E a brancura, a
perfeição...
De endoidecer! Ao principio, como havia muita gente, e ella estava para
um canto, acanhadota, não fez
sensação. Mas depois lá a descobriram.
E
eram correrias, magotes embasbacados... E «quem
será?» E «que encanto!»
Todo o mundo perdidinho, até o Rei!
E um momento os tres homens emmudeceram na impressão do
formoso corpo
evocado, que entre elles surgia, quasi despido, inundando com o
explendor da sua brancura a modesta sala mal alumiada.
[320]Por fim
Videirinha acercou a cadeira, em confidencia, para fornecer tambem a
sua
informação:
―Pois, por mim, o que posso affirmar é que a snr.
a
D. Anna
é uma
mulher muito aceada, muito lavada...
E como os outros s'espantavam, rindo, de uma certeza tão
intima―Videirinha contou que todas as semanas apparecia um
moço da
Feitosa, na botica do Pires, a comprar tres e
quatro garrafas de agua
de Colonia portugueza, da receita do Pires.
―Até o Pires dizia sempre, a esfregar as mãos,
que na Feitosa regavam
as terras com agua de Colonia. Depois é que soubemos pela
creada... A
snr.
a D. Anna toma todos os dias um grande
banho, que não
é só para
lavar, mas para prazer. Fica uma hora dentro da tina. Até
lê o jornal
dentro da tina. E em cada banho, zás, meia garrafa d'agua de
Colonia...
Já é luxo!
Então Gonçalo sentiu como um aborrecimento de
todas aquellas revelações
do Administrador, do ajudante da Pharmacia, sobre os decotes e as
lavagens da linda mulher que o esperava entre os tumulos dos Ramires
seculares. Saccudiu o jornal com que se abanava, exclamou:
―Bem! E passando a cantiga mais séria... Oh
[321]Gouveia,
vossê que tem
sabido do Dr. Julio? O homem trabalha na eleição?
A creada entrára com a bandeja do chá. E em torno
da mesa, trincando as
torradas famosas, conversaram sobre a Eleição,
sobre os informes dos
Regedores, sobre a reserva do Rio-Manso―e sobre o Dr. Julio, que
Videirinha encontrára nos Bravaes pedinchando votos pelas
portas,
acompanhado por um môço com a machina
photographica ás costas.
Depois do chá Gonçalo, cançado e
já provido «de
revelações», accendeu o
charuto para recolher á Torre.
―Vossê não acompanha, Videirinha?
―Hoje, Snr. Dr., não posso. Parto de madrugada para
Oliveira, na
diligencia.
―Que diabo vae vossê fazer a Oliveira?
―Por causa d'uns sapatos de praia e d'um fato de banho lá
da minha
patrôa, da D. Josepha Pires... Tenho de os trocar nos
Emilios, levar as
medidas.
Gonçalo ergueu os braços, desolado:
―Ora vejam este paiz! Um grande artista, como o Videirinha, a carregar
para Oliveira com os sapatos de banho da patrôa Pires!... Oh
Gouveia!
quando eu fôr deputado precisamos arranjar um bom logar para
o
Videirinha, no Governo Civil. Um logar facil e com vagares, para elle
não esquecer o violão!
[322]
Videirinha córou de gôsto e de
esperança―correndo a despendurar do
cabide o chapéo do Fidalgo.
Pela estrada da Torre, os pensamentos de Gonçalo
esvoaçaram logo, com
irresistida tentação, para D. Anna―para os seus
decotes, para os
languidos banhos em que se esquecia lendo o jornal. Por fim, que
diabo!... Essa D. Anna assim tão honesta, tão
perfumada, tão
explendidamente bella, só apresentava, mesmo como esposa, um
feio
senão―o papá carniceiro. E
a voz tambem―a voz
que tanto o arripiára
na Bica-Santa... Mas o Mendonça assegurava que aquelle
timbre rolante e
gordo, na intimidade, se abatia, liso e quasi doce... Depois, mezes de
convivencia habituam ás vozes mais desagradaveis―e elle
mesmo, agora,
nem percebia quanto o Manoel Duarte era fanhoso! Não! mancha
teimosa,
realmente, só o pae carniceiro. Mas n'esta Humanidade
nascida toda d'um
só homem, quem, entre os seus milhares d'avós
até Adão, não tem algum
avô carniceiro? Elle, bom fidalgo, d'uma casa de Reis d'onde
Dynastias
irradiavam, certamente, escarafunchando o Passado, toparia com o
Ramires
carniceiro. E que o carniceiro avultasse logo na primeira
geração, n'um
talho ainda afreguezado, ou que apenas s'esfumasse, atravez d'espessos
seculos, entre os trigesimos avós―lá estava, com
a faca, e o cepo, e as
postas de carne, e as nodoas de sangue no braço suado!...
[323]
E este pensamento não o abandonou até
á Torre―nem ainda depois, á
janella do quarto, acabando o charuto, escutando o cantar dos ralos.
Já
mesmo se deitára, e as pestanas lhe adormeciam, e ainda
sentia que os
seus passos impacientes se embrenhavam para traz, para o escuro passado
da sua Casa, por entre a emmaranhada Historia, procurando o
carniceiro... Era já para além dos confins do
Imperio Visigodo, onde
reinava com um globo d'ouro na mão o seu barbudo
avô Recesvinto.
Esfalfado, arquejando, transpozera as cidades cultas, povoadas de
homens
cultos―penetrára nas florestas que o mastodonte ainda
sulcava. Entre a
humida espessura já crusára vagos Ramires, que
carregavam, grunhindo,
rezes mortas, molhos de lenha. Outros surdiam de tocas fumarentas,
arreganhando agudos dentes esverdeados para sorrir ao neto que passava.
Depois por tristes ermos, sob tristes silencios, chegára a
uma lagôa
ennevoada. E á beira da agoa limosa, entre os canaviaes, um
homem
monstruoso, pelludo como uma féra, agachado no lodo, partia
a rijos
golpes, com um machado de pedra, postas de carne humana. Era um
Ramires.
No ceu cinzento voava o Açor negro. E logo, d'entre a
neblina da lagôa,
elle acenava para Santa Maria de Craquêde, para a formosa e
perfumada D.
Anna, bradando por cima dos Imperios e dos Tempos:―«Achei o
meu avô
carniceiro!»
[324]
No Domingo, Gonçalo acordou com uma «esperta
ideia!» Não correria a
Santa Maria de Craquêde com uma pontualidade sofrega,
ás cinco horas (as
cinco horas marcadas no
Post-Scriptum da prima
Maria)―mostrando o seu
alvoroço em encontrar a tão bella e
tão rica D. Anna Lucena! Mas ás seis
horas, quando findasse a romaria das senhoras aos tumulos, appareceria
elle indolentemente, como se, recolhendo d'um passeio pelas frescas
cercanias, se recordasse, parasse nas ruinas para conversar com a prima
Maria.
Logo ás quatro horas porém se começou
a vestir com tantos esmeros, que o
Bento, cançado das gravatas que o Snr. Dr. experimentava e
arremessava
amarfanhadas para o divan, não se conteve:
―Ponha a de sedinha branca, Snr. Dr.! Ponha a branca, que lhe fica
melhor! E refresca mais, com este calor.
Na escolha d'um ramo para o casaco ainda requintou, juntando as
côres
heraldicas dos Ramires, um cravo amarello com um cravo branco. Ao
portão, apenas montára na egoa, temeu que as
senhoras (não o encontrando
no Claustro) encurtassem a visita, estugou o trote pelo atalho da
Portella. Depois adiante, ao desembocar na antiga estrada real,
[325]soltou
n'um galope impaciente que o branqueou de poeira.
Só retomou um passo indifferente, ao acercar da linha do
Caminho de
Ferro, onde um carro de lenha e dois homens esperavam deante da
cancella, que se fechára para a lenta passagem d'um trem
carregado de
pipas. Um d'esses homens, d'alforge aos hombros, era o Mendigo―o
vistoso Mendigo que passeava por aquellas aldeias a rendosa magestade
das suas barbaças de Deus fluvial. Erguendo gravemente o
chapéo de
vastas abas, desejou ao Fidalgo a companhia de Nosso Senhor.
―Então hoje a ganhar a rica vida por Craquêde?...
―Cá me arrasto ás vezes para a passagem do
comboio d'Oliveira, meu
Fidalgo. Os passageiros gostam de me vêr de pé no
talude, correm sempre
ás janellas...
Gonçalo, rindo, recordou que o encontro d'aquelle
ancião precedia sempre
um encontro seu com a bella D. Anna.―«Quem sabe? pensou.
É talvez o
Destino! Os antigos pintavam assim o Destino, com longas barbas e
longas
guedelhas, e o alforge ás costas contendo as sortes
humanas...»―E com
effeito ao cabo do pinheiral silencioso, que estiradas resteas de sol
docemente douravam―avistou a caleche da
[326]Feitosa,
parada sob uma
carvalha, com o cocheiro fardado de negro dormitando na almofada. A
estrada real de Oliveira costeia ahi o antigo adro do mosteiro de
Craquêde, queimado pelo fogo do céo, n'aquella
irada tempestade que
chamam
de S. Sebastião, e que aterrou
Portugal em 1616.
Uma herva
agora alfombra o chão, crescida e verde, entre os poderosos
troncos dos
castanheiros velhissimos. A Egrejinha nova alveja, bem caiada, ao fundo
da ramaria: e, ligada a ella por um muro esbrechado que densa hera
veste, tomando todo o lado nascente do Terreiro―sobe, enche ainda
magnificamente o céo lustroso, a fachada da Egreja do
vetusto Mosteiro,
suavemente amarellecida e brunida pelos tempos, com o seu immenso
portal
sem portas, a rosacea desmantelada, e esvasiados os nichos
d'enterramento onde outr'ora se estiraçavam as imagens dos
fundadores,
Froylas Ramires e sua mulher Estevaninha, condessa d'Orgaz, por alcunha
a
Queixa-perra. Duas casas terreas povoam o lado
fronteiro do
adro―uma limpa, com as hombreiras das janellas pintadas d'azul
estridente, a outra deserta, quasi sem telhado, afogada na verdura d'um
quinteiro bravo onde gira-soes resplandecem. Um pensativo silencio
envolvia o arvoredo, as altivas ruinas. E nem o quebrava, antes
serenamente o emballava, o susurro d'uma fonte, que a estiagem
adelgaçára
[327]em
fio lento, e mal enchia o seu
tanque de pedra, toldado
pela pallida e rala folhagem d'um chorão muito alto.
O trintanario da
Feitosa, ao enxergar o Fidalgo,
saltou risonhamente
da borda do tanque onde picava tabaco, para segurar a egoa. E
Gonçalo,
que desde pequeno não penetrava nas ruinas de
Craquêde, seguia por um
carreirinho cortado na relva, attentamente, encantado com aquella
romantica solidão de lenda e verso, quando, sob o arco do
portal,
appareceram as duas senhoras voltando do velho Claustro. D. Maria
Mendonça, com a sua sacudida vivacidade, agitou logo o
guarda-sol de
xadrezinho, semelhante ao vestido, cujas mangas, tufando desmedidamente
nos hombros, lhe vincavam mais a elegancia esgalgada. E ao lado, na
claridade, D. Anna era uma silenciosa e esvelta fórma negra,
de lã negra
e d'escumilha negra, onde apenas transparecia, suavisada sob o
véo
negro, a brancura explendida da sua face sensual e séria.
Gonçalo correra, erguendo o chapéo de palha,
balbuciando o seu «prazer
por aquelle encontro...» Mas já D. Maria o
reprehendia, sem lhe
consentir a fabula do «encontro»:
―O primo não é nada amavel, nada amavel...
―Oh prima!...
―Pois sabia que vinhamos, pela minha carta!
[328]E
nem está
á hora aprazada,
para fazer as honras, como devia...
Elle, rindo, com o seu desembaraço airoso, negou esse dever!
Aquella
casa não era sua, mas do Bom Deus! Ao Bom Deus competia
«fazer as
honras»―acolher tão doces romeiras com algum
milagre amavel...
―E então, gostaram? V. Ex.
a, Snr.
a
D. Anna, gostou das
ruinas?...
Muito interessantes, não é verdade?
Através do véo, com uma lentidão que a
espessa renda negra tornava mais
grave, ella murmurou:
―Eu já conhecia... Vim cá uma tarde, com o pobre
Sanches que Deus haja.
―Ah...
Áquella evocação do pobre morto,
Gonçalo sumira todo o sorriso, com
polida tristeza. Mas D. Maria Mendonça acudio, atirando um
dos seus
magros gestos, como para arredar a sombra importuna:
―Ai! não imagina o que gostei, primo! É
d'appetite todo o claustro...
Logo aquella espada enferrujada, chumbada por cima do tumulo...
Não ha
nada que impressione como estas cousas antigas... Oh primo, e pensar
que
estão alli antepassados nossos!
O sorriso de Gonçalo de novo lampejou, alegre e acolhedor,
como sempre
que D. Maria se empurrava com desesperada gula para dentro da Casa de
Ramires.
[329]E
gracejou, affavelmente. Oh, antepassados... Simples punhados
de cinsa vã!―Pois não era verdade, Snr.
a
D.
Anna?... Realmente! quem
conceberia que a prima Maria, tão viva, tão
sociavel, tão engraçada,
descendesse d'uma poeira tristonha guardada dentro d'uma pia de pedra?
Não! não se podia ligar tanto
ser
a tanto
não-ser...―E como D. Anna
sorria, n'uma vaga concordancia, encostando as duas mãos
fortes e muito
apertadas na pellica negra ao alto cabo d'aljofar da sombrinha, elle
atalhou com interesse:
―V. Ex.
a está talvez
cançada, Snr.
a D. Anna?
―Não, não estou cançada... Ainda
vamos mesmo entrar na capella, um
bocadinho... Eu nunca me canço.
E pareceu a Gonçalo que a voz da formosa creatura
não rolava do papo,
tão grossa e gorda―mas que se afinára,
adoçada e velada pelo luto
d'escomilha e lã, como esses grossos e rolantes rumores que
a noite e o
arvoredo adelgaçam. Mas D. Maria confessou o seu immenso
cançasso! Nada
a esfalfava como visitar curiosidades... E além d'isso a
emoção, a ideia
de heroes tão antigos!
―Se nos sentassemos n'aquelle banco, hein? É muito cedo para
recolhermos, não é verdade, Annica? E
está tão agradavel n'este socego,
n'esta frescura...
[330]
Era um banco de pedra, rente ao muro esbrechado que a hera afogava. Em
torno a relva crescia, mais silvestre e florida com os derradeiros
malmequeres e botões d'ouro que o sol d'Agosto
poupára. Um aromasinho
fino, d'algum jasmineiro emmaranhado na hera, errava, adocicava a
serena
tarde. E na rama d'um alamo, defronte do portão da Capella,
duas vezes
um melro cantára. Gonçalo sacudiu todo o banco
cuidadosamente, com o
lenço. E sentado na ponta, junto de D. Maria, louvou tambem
a frescura,
o recolhimento d'aquelle cantinho de Craquêde... E elle que
nunca se
aproveitára de refugio tão santo, e quasi seu,
nem mesmo para um almoço
bucolico! Pois agora certamente voltaria fumar um charuto, revolver
ideias de paz sob a paz das carvalheiras, na visinhança dos
vovós
mortos... Depois, com uma curiosidade:
―É verdade, prima! E o subterraneo?
Oh! não existia subterraneo!... Sim, existia―mas entulhado,
sem
sepulturas, sem antiguidades. E o sachristão logo lhes
affiançára que
«não valia a pena sujarem as saias...»
―É verdade, oh Annica, déste alguma cousa ao
sachristão?
―Oh filha, dei cinco tostões... Não sei se foi
bastante.
Gonçalo assegurou que se pagára sumptuosamente
[331]ao
sachristão. E, se
prevesse tamanha generosidade da Snr.
a D. Anna,
agarrava elle um
mólho
de chaves, até enfiava uma opa preta, para mostrar―e para
embolsar...
―Pois é o que devia ter feito! exclamou D. Maria, com um
corisco nos
espertos olhos. E decerto se lhe davam os cinco tostões!
Porque sempre
sería mais instructivo que o homemsinho, que mascava,
não sabia nada!...
Semelhante morcão! E eu com tanta curiosidade por aquelle
tumulo aberto,
com a tampa rachada... O môno só soube resmungar
que «eram historias
muito antigas lá do Fidalgo da Torre...»
Gonçalo ria:
―Pois essa historia por acaso sei eu, prima Maria! Sei agora pelo
Fado
dos Ramires, o fado do Videirinha...
D. Maria Mendonça levantou as compridas mãos aos
céos, revoltada com
aquella indifferença pelas tradições
heroicas da Casa. Conhecer sómente
os seus Annaes desde que elles andavam repicados n'um fado!... O primo
Gonçalo não se envergonhava?
―Mas por quê, prima, porquê? O fado do Videirinha
está fundado em
documentos authenticos que o Padre Sueiro estudou. Todo o recheio
historico foi fornecido pelo Padre Sueiro. O Videirinha só
poz as rimas.
Além d'isso antigamente, prima, a
[332]Historia
era perpetuada em
verso e
cantada ao som da lyra... Em fim quer saber esse caso do tumulo aberto,
segundo as quadras do Videirinha? Eu sempre conto! Mas só
para a Snr.
a
D. Anna, que não soffre d'esses escrupulos...
―Não! acudiu D. Maria. Se o Videirinha tem essa auctoridade
historica
então conte tambem para mim, que sou da Casa!
Gonçalo, por gracejo, tossio, passou o lenço
pelos beiços:
―Pois eis o caso! N'esse tumulo habitava, naturalmente morto, um dos
meus avós... Não me lembro o nome, Gutierres ou
Lopo. Creio que
Gutierres... Emfim, lá jazia quando foi da batalha das Navas
de
Tolosa... A prima Maria conhece a batalha das Navas, os cinco reis
mouros, etc... Como o tal Gutierres soube da batalha não
contam os
versos do Videirinha. Mas, apenas lá dentro lhe cheirou a
carnificina,
arromba o tumulo, sahe por este pateo como um desesperado, desenterra o
seu cavallo que fôra enterrado no adro onde agora crescem
estes
carvalhos, monta n'elle todo armado, e, Cavalleiro morto sobre cavallo
morto, larga a galope através da Hespanha, chega
ás Navas, arranca a
espada, e destroça os mouros... Que lhe parece, Snr.
a
D.
Anna?
Dedicára a historia a D. Anna, procurando nos
[333]seus bellos
olhos a
attenção e o interesse. E ella, que a furto,
através do decôro
melancolico a que se esforçava,
adoçára o sorriso, attrahida e levada,
murmurou apenas:―«Tem graça!»―D.
Maria, porém, quasi esvoaçou sobre o
banco de pedra, n'um extasis:―«Lindo! Lindo! Que poesia!...
Oh! uma
lenda de todo o appetite!»―E, para que Gonçalo
desenrolasse ainda a
graça do seu dizer, outras maravilhas da sua Chronica:
―Conte, primo, conte... E voltou para Craquêde esse tio
Ramires?
―Quem, prima, o Gutierres?... Ou fosse elle tolo! Apenas se apanhou
livre da massada da sepultura não appareceu mais em Santa
Maria de
Craquêde. O tumulo vasio, como está, e elle por
Hespanha n'uma pandega
heroica!... Imagine! um defunto que por milagre se safa do seu jazigo,
d'aquella postura eterna, tão apertada, tão
esticada!...
Subitamente emmudeceu, lembrando o Sanches Lucena, tambem esticado no
seu caixote de chumbo, sob o seu vistoso jazigo d'Oliveira...―D. Anna
baixára a face, mais sumida no véo, esfuracando a
herva com a ponta da
sombrinha. E a esperta D. Maria, para desfazer a sombra impertinente
que
de novo os roçára, rompeu n'outra curiosidade,
que ainda se encadeava na
nobreza dos Ramires:
―É verdade! Sempre me esquece de lhe perguntar.
[334]O primo
ainda tem
muitos parentes em França... Talvez tambem não
saiba?
Sim! Gonçalo, casualmente, conhecia essa historia dos seus
parentes de
França―apezar de que o Videirinha os não
cantára no Fado!
―Então conte! Mas que seja historia alegre!
Oh, não era prodigiosamente divertida! Um avô
Ramires, Garcia Ramires,
acompanhára nas suas famosas jornadas o Infante D. Pedro, o
filho
d'El-Rei D. João I... A Prima Maria sabia―o Infante D.
Pedro, o que
correu as Sete Partidas do mundo... Pois o Infante D. Pedro e os seus
fidalgos, de volta da Palestina, pousaram um anno inteiro na Flandres,
com o Duque de Borgonha. Até se celebraram então
festas maravilhosas,
com um banquete que durou sete dias, e que anda nos compendios da
Historia de França. Onde ha danças ha amores. A
avô Ramires sobejava
imaginação e arrojo... Fôra elle que
deante de Jerusalem, no Valle de
Josaphat, lembrára que se erguesse um
signal
para que o
Infante e os
seus companheiros de romagem se reconhecessem no grande Dia de Juizo.
Depois, naturalmente, bello mocetão, de barba negra e
cerrada á
Portugueza... Emfim casára com uma irmã do Duque
de Clèves, uma tremenda
Senhora, sobrinha do Duque de Borgonha e Brabante. Mais tarde,
através
d'essas ligações, uma avó Ramires,
já viuva, casou tambem em França
[335]com
o conde de Tancarville. Esses Tancarvilles, Gran-Mestres de
França,
possuiam o mais formidavel castello da Europa, e...
D. Maria bateu as palmas, rindo:
―Bravo! lindamente! Sim, senhor!... Então o primo que se
gaba de não
saber nada de fidalguias... Olhe como conhece pelo miudo a historia
d'esses grandes casamentos! Hein, Annica?... É uma Chronica
viva!
Gonçalo vergou os hombros, confessou que se
occupára de toda essa
heraldica historia por um motivo bem rasteiro―por miseria!...
―Por miseria?
―Sim, prima Maria, por penúria de moeda, de cobres...
―Conte! conte! Olhe, a Annica está anciosa...
―Quer saber, Snr.
a D. Anna?... Pois foi em
Coimbra, no meu segundo
anno de Coimbra. Os companheiros e eu chegamos a não juntar
entre todos
um vintem. Nem para cigarros! Nem para o sagrado decilitro de
carrascão
e as tres azeitonas do dever... Um d'elles então, rapaz
muito engraçado,
de Melgaço, surdiu com a idéa estupenda de que eu
escrevesse aos meus
parentes de França, a esses Clèves, a esses
Tancarvilles, senhores de
certo immensamente ricos, e sollicitasse, com desembaraço,
um
emprestimosinho de trezentos francos.
[336]
D. Anna não conteve um riso, sinceramente divertido:
―Ai! tem muita graça!
―Mas não teve resultado, minha senhora... Já
não existem Clèves, nem
Tancarvilles! Todas essas grandes familias feudaes findaram, se
fundiram
n'outras casas, até na Casa de França. E o meu
padre Sueiro, apezar de
todo o seu saber genealogico, nunca conseguiu descobrir quem as
representava com bastante affinidade para me emprestar, a mim parente
pobre de Portugal, esses trezentos francos.
Aquella penuria de Gonçalo, de tamanho fidalgo, quasi
enternecera D.
Anna:
―Ora estarem assim sem vintem! Quem soubesse... Mas tem
graça! Essas
historias de Coimbra teem sempre muita graça. O D.
João de Pedrosa, em
Lisboa, tambem contava muitas...
D. Maria Mendonça, porém, através
d'essa facecia d'estudantes,
descortinára outra prova inesperada da grandeza dos Ramires.
E
immediatamente a estendeu deante de D. Anna com habilidade:
―Ora vejam!... Todas essas grandes casas de França,
tão ricas, tão
poderosas, acabaram, desappareceram. E cá no nosso
Portugalsinho ainda
dura a casa de Ramires!
Gonçalo acudiu:
[337] ―Acaba agora, prima!... Não olhe para mim assim espantada.
Acaba
agora... Pois se eu não caso!
Então D. Maria recuou o magro peito―como se esse casamento
do primo
dependesse de doces influencias, que convinha se trocassem bem
chegadamente, sem Marias Mendonças de permeio no estreito
banco com
grandes mangas bufantes tolhendo as correntes de effluvio. E sorria,
quasi languidamente:
―Ora não casa... Mas por quê, primo, por
quê?
―Por que não tenho geito, prima. O casamento é
uma arte muito delicada
que necessita vocação, genio especial. As Fadas
não me concederam esse
genio. E se me dedicasse a semelhante obra, ai de mim! com certeza a
estragava.
D. Anna, como se outra idéa a occupasse, puxára
lentamente do cinto o
relogio preso por uma fita de cabello. E D. Maria insistia, recusava os
motivos do Fidalgo:
―São tolices. O primo que gosta tanto de
creanças...
―Gosto, gosto muito de creancas, até de creancinhas de
mama. As
creanças são os unicos seres divinos que a nossa
pobre humanidade
conhece. Os outros anjos, os d'azas, nunca apparecem. Os santos, depois
de santos, ficam na Bemaventurança a
[338]preguiçar,
ninguem mais os enxerga.
E, para concebermos uma ideia das cousas do céo,
só temos realmente as
creancinhas... Sim, com effeito, prima, gosto muito de
creanças. Mas
tambem gosto de flôres, e não sou jardineiro, nem
tenho geito para a
jardinagem.
E D. Maria com uma faisca no olhar promettedor:
―Socegue, que ainda vem a aprender!
Depois, para D. Anna que se esquecera na
contemplação do relogio:
―Achas que vão sendo horas? Então, se queres,
entramos na Capella... Oh
primo, veja se está aberta.
Gonçalo correu, empurrou a porta da Capella. Depois
acompanhou as duas
senhoras pela pequenina nave soalhada, entre delgados pilares
recobertos
de uma cal aspera e crua―que recamava tambem as paredes lisas, apenas
guarnecidas, na sua rigida nudez, por lithographias de Santos dentro de
caixilhos de pinho. Deante do altar as senhoras ajoelharam―a prima
Maria enterrando a face nas mãos juntas como n'um vaso de
Piedade.
Gonçalo dobrou o joelho de leve, engrolou uma Ave-Maria.
Depois voltou para o adro, accendeu um cigarro. E, pisando lentamente a
relva, considerava quanto a viuvez melhorára D. Anna. Sob o
negrume do
luto, como n'uma penumbra que esfuma a grosseira deselegancia
[339]das
cousas, todos os seus defeitos se fundiam―os defeitos que tanto o
horripilavam na tarde da Bica Santa, o rolar gordo da voz, o peito
empinado, a ostentação de burgueza ricassa
pinguemente repimpada na
vida. Até já nem dizia―«o
cavalheiro!» E alli, no adro melancolico de
Craquêde, certamente parecia interessante e desejavel.
As senhoras desciam os dois degraus da Capella. Um melro
esvoaçou na
ramagem dos alamos. E Gonçalo encontrou o lampejo dos olhos
serios de D.
Anna que o procuravam.
―Peço perdão de não lhes ter
offerecido agua benta á sahida, mas a
concha está secca...
―Jesus, primo, que Egreja tão feia!
D. Anna arriscou, com timidez:
―Depois das ruinas e dos tumulos, até parece pouco
religiosa.
A observação impressionou Gonçalo,
como muito fina. E junto d'ella,
demorando os passos com agrado, sentia, esparzido pelos seus
movimentos,
pelo roçar do vestido, um aroma tambem fino, que
não era o da horrenda
agua de Colonia da botica do Pires. Em silencio, sob a ramagem das
carvalhas, caminharam para a caleche, onde o cocheiro se
aprumára, bem
estilado, tirando o chapeu. Gonçalo notou que elle
rapára o bigode. E a
parelha reluzia, atrelada com esmero.
[340]―E
então, prima Maria, ainda se demora pelos nossos sitios?
―Sim, primo, mais uns quinze dias... A Annica é
tão amavel, quiz que eu
trouxesse os pequenos. O que elles se têm divertido na
quinta, não
imagina!
D. Anna murmurou, sempre séria:
―São muito engraçados, fazem muita companhia...
Eu tambem gosto muito
de creanças.
―Ai, a Annica adora creanças! accudiu D. Maria com fervor.
O que ella
atura os pequenos! Até joga com elles o mafarrico.
Perto da caleche, Gonçalo pensou que outra volta pelo adro,
mais lenta,
com a D. Anna e o seu fino aroma, seria doce, n'aquelle socego da tarde
que findava, tingida de tão lindas côres de rosa
sobre os pinheiraes
escurecidos. Mas já o trintanario se acercava segurando a
sua egoa. E D.
Maria, depois de admirar e acariciar a egoa, chamou o primo
discretamente―para saber a distancia da
Feitosa
a Treixedo, a outra
quinta historica dos Ramires.
―A Treixedo, prima?... Cinco legoas fartas, com maus caminhos.
E immediatamente se arrependeu, antevendo um passeio, um novo encontro:
―Mas na estrada ultimamente andaram obras. E é muito bonito
sitio, n'um
alto, com um resto
[341]de
muralhas... Treixedo era um castello enorme... Na
quinta ha uma lagôa entre arvoredo antigo... Oh! sitio
delicioso para um
pic-nic!
D. Maria hesitou:
―É um pouco longe, veremos, talvez.
E como D. Anna esperava em silencio―Gonçalo abriu a
portinhola, tomou
ao trintanario as rédeas da egoa. D. Maria
Mendonça, no seu
contentamento por tão proveitosa tarde, sacudiu ardentemente
a mão do
primo jurando «que ia apaixonada por
Craquêde!» D. Anna mal roçou os
dedos de Gonçalo, acanhada e córando.
Sózinho, com a rédea da egoa enfiada no
braço, Gonçalo sorria. Na
verdade, n'essa tarde, D. Anna não lhe
desagradára. Outros modos, outra
singeleza grave, outra doçura na sua possante belleza de
Venus rural...
E aquella observação sobre a Capella,
«pouco religiosa» depois das
ruinas seculares do claustro, era uma observação
fina. Quem sabe? Talvez
sob carne tão sensual se escondesse uma natureza delicada.
Talvez a
influencia d'outro homem, que não o estupidissimo Sanches,
desenvolvesse
na filha explendida do carniceiro qualidades de muito encanto... Oh,
evidentemente, a observação sobre os tumulos e a
sua religiosidade
emanando da Lenda e da Historia―era fina.
[342]
E então tambem o tomou a curiosidade de visitar esse
claustro onde não
entrára desde pequeno―quando ainda a Torre conservava as
suas
carruagens montadas e a romantica Miss Rhodes escolhia sempre o passeio
de Craquêde para as tardes pensativas d'outomno. Puxou a
egoa, transpoz
o portal, atravessou o espaço descoberto que fôra
a nave―atulhado de
caliça, de cacos, de pedras despegadas da abobada e afogadas
nas hervas
bravas. E pela brecha d'um muro a que ainda se amparava um
pedaço
d'altar―penetrou na silenciosa crasta Affonsina. Só d'ella
restam duas
arcadas em angulo, atarracadas sobre rudes pilares, lageadas de
poderosas lages poidas que n'essa manhã o
sachristão cuidadosamente
varrera. E contra o muro, onde rijas nervuras desenham outros arcos,
avultam os sete immensos tumulos dos antiquissimos Ramires, denegridos,
lisos, sem um lavor, como toscas arcas de granito, alguns pesadamente
encravados no lagedo, outros pousando sobre bolas que os seculos
lascaram. Gonçalo seguia um carreiro de tijolo, rente aos
arcos,
recordando quando elle outr'ora e Gracinha pulavam ruidosamente por
sobre essas campas, em quanto no pateo do claustro, entre as pilastras
tombadas e a verdura das ruinas, a boa Miss Rhodes agachada procurava
florinhas silvestres. Na abobada, sobre o
[343]mais
vasto tumulo,
lá
negrejava chumbada a espada, a famosa espada, com a sua corrente de
ferro pendendo do punho, a folha roida pela ferrugem das longas idades.
Sobre outro lá ardia a lampada, a estranha lampada mourisca,
que não se
apagára desde a tarde remota em que algum monge, com uma
tocha de
sahimento, silenciosamente a accendera... Quando se accendera ella, a
eterna lampada? Que Ramires jazeriam n'esses cofres de granito, a que o
tempo raspára as inscripções e as
datas, para que n'ellas toda a
Historia se sumisse, e mais escuramente se volvessem em leve
pó sem nome
aquelles homens de orgulho e de força?... Depois na ponta do
claustro
era o tumulo aberto, e ao lado, derrubada em dous pedaços, a
tampa que o
esqueleto de Lopo Ramires arrombára para correr
ás Navas de Tolosa e
bater os cinco Reis mouros. Gonçalo espreitou para dentro,
curiosamente.
A um canto da funda arca alvejava um montão d'ossos, limpos
e bem
arrumados! Esquecera o velho Lopo, na sua pressa heroica, esses poucos
ossos, já despegados do seu esqueleto?... O crepusculo
cerrára, e com
elle uma melancolica sombra que se adensava sob as abobadas da crasta,
cobria de tristeza morta aquella jazida de mortos. Então
Gonçalo sentiu
a desolada solidão que o envolvia, o separava da vida, alli
desgarrado,
e sem soccorro
[344]entre
a poeira e a alma errante dos seus avós
temerosos!
E de repente estremeceu, no arripiado mêdo de que outra tampa
estalasse
com fragor e atravez da fenda surdissem lividos dedos sem carne!
Repuxou
desesperadamente a egoa pelo muro desmantelado, nas ruinas da nave
pulou
para o selim, e varou n'um trote o portal, galgou o adro com
ancia―só
socegou ao avistar, ao fim do pinhal, a cancella do Caminho de Ferro
aberta, e uma velha que a passava tangendo o seu burro carregado
d'herva.
VIII
Ao fim da semana Gonçalo, que desde a visita a Santa Maria
de Craquêde
arrastava o remorso incommodo da sua preguiça, do
tão longo abandono da
Novella―recebeu de manhã, ao sahir do banho, uma carta do
Castanheiro.
Era curta:―e declarava ao amigo Gonçalo que, se em meado de
Outubro não
chegassem a Lisboa tres Capitulos do original, elle, com pezar seu e da
Arte, publicaria no primeiro numero dos
Annaes,
em vez da
Torre
de D.
Ramires, um drama do Nuno Carreira n'um acto, intitulado
Em
Casa do
Temerario... «Apezar de drama e de phantasia
(accrescentava)
convem á
indole erudita dos
Annaes
por que este
Temerario
é Carlos
o Temerario,
e a acção toda, fortemente tecida, se passa no
Castello de Peronne, onde
se encontram nada menos que Luiz XI de França, e o nosso
pobre
[346]Affonso
V, e Pero da Covilhan que o acompanhava, e outros figurões
de rija
estatura historica. Imagine!... Está claro, o
chic
supremo
seria
Tructezindo Mendes Ramires contado pelo nosso
Gonçalo
Mendes Ramires!
Mas, pelo que vejo, esse
chic supremo
está impedido por
uma indolencia
suprema.
Sunt Lacrymae Revistarum!»
Gonçalo atirou a carta, gritou pelo Bento:
―Leva para a livraria chá verde, forte, com torradas. Hoje
só almoço
tarde, ás duas... Talvez nem almoce!
E, enfiando o roupão de trabalho, decidiu amarrar
á banca, como um
captivo ao remo, até que rematasse esse difficil Capitulo
III, onde
resaltava o barbaro e sublime rasgo do avô Tructezindo.
Não, que diabo!
não lhe convinha perder a apparição da
Novella em tão proveitoso
momento, nas vesperas da sua chegada a Lisboa, quando para a influencia
Politica e para o prestigio social necessitava d'esse brilho que,
segundo o velho Vigny, «uma penna de aço
accrescenta a um elmo dourado
de Fidalgo...» Felizmente, n'essa luminosa manhã
em que as agoas da
horta fartamente cantavam, elle sentia tambem a veia borbulhando,
contente em se soltar e correr. Depois da visita á crasta de
Craquêde a
sua imaginação concebia menos ennevoadamente os
seus avós Affonsinos:―e
como que os palpava emfim no seu viver e pensar
[347]desde que
contemplára os
grandes tumulos onde se desfaziam as suas grandes ossadas.
Na Livraria retomou com appetite, depois de lhes sacudir a poeira, as
tiras da Novella sobre que emperrára, n'aquelle atarantado
lance de
susto e alarme―quando o Villico, o velho Ordonho, reconhecia o
pendão
do Bastardo surgindo á borda da Ribeira do Coice entre o
coriscar de
lanças empinadas, passando a antiga ponte de madeira, e, um
momento
sumido na verdura dos alamos, de novo avançando, alto e
tendido, até ao
rude Cruzeiro de pedra de Gonçalo Ramires o
Cortador...
O
gordo
Ordonho então, atirando o brado de―«Prestes,
prestes! que é gente de
Bayão!»―descambava pelo escalão da
muralha como um fardo que rola.
No emtanto Tructezindo Ramires, no empenho d'aprestar a sua mesnada e
abalar sobre Montemór, regera já com o Adail a
ordem da arrancada,
mandando que as buzinas soassem mal o sol batesse na margella do
Poço
grande. E agora, na sala alta da Alcaçova, conversava com o
seu primo de
Riba-Cavado e costumado camarada d'armas, D. Garcia Viegas―ambos
sentados nos poiaes de pedra d'uma funda janella, onde uma bilha d'agoa
com o seu pucaro refrescava entre vasos de manjaricão. D.
Garcia Viegas
era um velho esgalgado e agil, d'escuro carão
[348]rapado, com
uns miudos
olhos coruscantes―que merecêra a alcunha de
Sabedor
pela
viveza e
succulencia do seu dizer, as suas infinitas manhas de guerra, e a
prenda
de fallar latim mais doutamente que um Clerigo da Curia. Convocado por
Tructezindo, como os outros parentes de solar, para engrossar a mesnada
dos Ramires em serviço das infantas, corrêra logo
a Santa Ireneia
fielmente com o seu pequeno poder de dez
lanças―começando por saquear
no caminho a herdade de Palha-Cã, dos de Severosa, que
andavam com
pendão alto na Hoste Real contra as Donas opprimidas.
Tão rijamente se
apressára que, desde a madrugada, apenas comêra
sobre a sella, em
Palha-Cã, duas rodelas dos chouriços roubados. E
com a sêde da afogueada
correria, ainda na emoção de tão
amarga nova, a derrota de Lourenço
Ramires seu afilhado, novamente enchia d'agoa o pucaro de barro―quando
pela porta da sala de armas, que tres cabeças de javali
dominavam,
rompeu o velho Ordonho esbaforido:
―Snr. Tructezindo! Snr. Tructezindo Ramires! o Bastardo de
Bayão passou
a Ribeira, vem sobre nós com grande troço de
lanças!
O velho Rico-Homem saltou do poial. E arremessando a mão
cabelluda,
cerrada com sanha, como se já pela gorja empolgasse o
Bastardo:
[349] ―Pelo Sangue de Christo! em boa hora vem que nos poupa caminho! Hein,
Garcia Viegas? A cavallo e sobre elle...?
Mas, rente aos tropegos calcanhares de Ordonho, correra um Coudel de
Besteiros, que gritou dos humbraes, saccudindo o capello de couro:
―Senhor! Senhor! A gente de Bayão parou ao Cruzeiro! E um
cavalleiro
moço, com um ramo verde, está deante das
barbacans, como trazendo
mensagem...
Tructesindo bateu o sapato de ferro sobre as lages, indignado com tal
embaixada mandada por tal villão...―Mas Garcia Viegas, que
d'um sorvo
enxugára o pucaro, recordou serenamente e lealmente os
preceitos:
―Tende, tende, primo e amigo! Que, por uso e lei d'aquem e
d'além
serras, sempre mensageiro com ramo se deve escutar...
―Seja pois! bradou Tructesindo. Ide vós fóra
ás barreiras com duas
lanças, Ordonho, e sabei do recado!
O Villico rebolou pela denegrida escada de caracol até ao
patim da
Alcaçova. Dous accostados, de lança ao hombro,
recolhendo d'alguma
rolda, conversavam com o armeiro, que sarapintára de
amarello e
escarlate cabos d'ascumas novas e as enfileirava contra o muro para
seccarem.
[350] ―Por ordem do Senhor! gritou Ordonho. Lança direita, e
commigo ás
barbacans, a receber mensagem!...
Ladeado pelos dous homens que se aprumaram, atravessou as barreiras; e
pelo postigo da barbacan, que uma quadrilha de besteiros guardava,
sahiu
ao terreiro da Honra, largueza de terra calcada, sem relva ou arvore,
onde se erguiam ainda as traves carcomidas d'uma antiga forca, e se
amontoavam agora, para os concertos da Alcaçova, ripas de
madeira, e
grossas cantarias lavradas. Depois, sem arredar do humbral, empinando o
ventre entre os dous accostados, bradou ao moço Cavalleiro,
que esperava
sob o rijo sol, sacudindo os moscardos com o seu ramo d'amoreira:
―Dizei de que gente sois! e a que vindes! e que credencia trazeis!...
E como arqueára logo a mão inquieta sobre a
orelha―o Cavalleiro,
serenamente, entalando o ramo entre o coxote e o
arção, arqueou tambem
os dous guantes relusentes d'escamas na abertura do casco, bradou:
―Cavalleiro do solar de Bayão!... Credencia não
trago que não trago
embaixada... Mas o Snr. D. Lopo ficou além ao Cruzeiro, e
deseja que o
nobre senhor da Honra, o Snr. Tructezindo Ramires, o escute do eirado
da
barbacan...
[351]
O Villico saudou―recolheu pela poterna abobadada da torre albarran,
murmurando para os dous accostados:
―O Bastardo vem a tratar o resgate do Snr. Lourenço
Ramires...
Ambos rosnaram:
―Feio feito.
Mas, quando Ordonho offegante se apressava para a Alcaçova,
encontrou no
pateo Tructezindo Ramires―que, na irada impaciencia d'aquellas delongas
do Bastardo, descera, todo armado. Sobre o comprido brial de
lã
verde-negra, que recobria a vestidura de malha, as suas barbas
rebrilhavam, mais brancas, atadas n'um grosso nó como a
cauda d'um
corcel. Do cinturão tauxeado de prata pendia a um lado o
punhal recurvo,
a bozina de marfim―ao outro uma espada gôda, de folha larga,
com alto
punho dourado onde scintillava uma pedra rara trazida outr'ora da
Palestina por Gutierres Ramires, o
d'Ultramar. Um
sergente conduzia
sobre uma almofada de couro os seus guantes, o seu capello redondo, de
vizeira gradada, como usára El-Rei D. Sancho: outro
carregava o immenso
broquel, da fórma d'um coração,
revestido de couro escarlate, com o Açôr
negro rudemente pintado, esgalhando as garras furiosas. E o Alferes,
Affonso Gomes, seguia com o guião enrolado na funda de lona.
[352]
Com o velho Rico-Homem descêra D. Garcia Viegas, e os outros
parentes do
Solar―o decrepito Ramiro Ramires, um veterano da tomada de Santarem,
torcido pelos rheumatismos como a raiz de um roble, e arrimando os
passos tremulos, não a um bastão, mas a um
chusso; o formoso Leonel, o
mais moço dos Samoras de Cendufe, o que matára os
dois ursos nos brejos
de Cachamúz e que tão bem trovava; Mendo de
Briteiros, o das barbas
vermelhas, grande queimador de bruxas, lêdo arranjador de
folgares e
danças; e o agigantado Senhor dos Paços de
Avellim, todo coberto, como
um peixe fabuloso, de escamas que reluziam. Como o sol se acercava da
margella do Poço grande, marcando a hora da arrancada sobre
Monte-mór―já, dos fundos alpendres que escondiam
os campos do tavolado,
os cavallariços puxavam os ginetes de guerra, com as suas
altas sellas
pregueadas de prata, as ancas e os peitos resguardados por coberturas
de
couro franjado que rojavam nas lagens. Por todo o Castello se
espalhára
que o Bastardo, depois da lide fatal aos Ramires, correra de
Canta-Pedra, ameaçava a Honra:―e debruçados dos
passadiços que ligavam
a muralha aos contrafortes da Alcaçova, ou mettidos por
entre os
engenhos d'arremesso que atulhavam as corredoiras, os moços
da ucharia,
os servos das hortas, os villões acolhidos para dentro das
barbacans,
espreitavam o
[353]Senhor
de Santa Ireneia e aquelles Cavalleiros fortes,
com
anciedade, tremendo do assalto dos de Bayão e d'essas
horrendas bolas de
ferro, cheias de fogo, que agora as mesnadas Christãs
arrojavam tão
destramente como as hordas Sarracenas.―No emtanto com a sua gorra
esmagada contra o peito, Ordonho, arfando, apresentava a Tructesindo o
recado do Bastardo:
―É cavalleiro moço, não traz
credencia... O Snr. Bastardo espera ao
Cruzeiro... E pede que o attendaes da quadrella das barbacans...
―Que se acerque pois! gritou o velho. E com quantos queira dos
villões
que o seguem!
Mas Garcia Viegas, o
Sabedor, sempre avisado, com
a sua esperta
mansidão:
―Tende, primo e amigo, tende! Não subaes vós
á tranqueira antes que eu
me assegure se Bayão nos vem com arteirice ou falsura.
E entregando a sua pesada lança de faia a um donzel, enfiou
pela escada
soturna da Torre albarran. Em cima no eirado, sussurrando um
chuta!
chuta! á fila de besteiros que guarnecia as
ameias, attenta
e com a
bésta encurvada―penetrou no miradouro, espiou pela
setteira. O arauto
de Bayão galopára para o Cruzeiro, que uma selva
movediça de lanças
rodeava coriscando. E curto recado lançou―porque logo, no
seu fouveiro
acobertado por uma rêde
[354]de
malha acairellada d'ouro, Lopo de
Bayão
despegou do denso troço de cavalleiros, com a viseira
erguida, sem lança
ou ascuma de monte, e ociosas sobre o arção da
sella mourisca as mãos
onde se enrodilhavam as bridas de couro escarlate. Depois, a um toque
arrastado de buzina, avançou para as barbacans da Honra,
vagarosamente,
como se acompanhasse um sahimento. Não movera o seu
pendão amarello e
negro. Apenas seis infanções o escoltavam, tambem
sem lança ou broquel,
com sobrevestes de panno rôxo sobre os saios de malha. Atraz
quatro
alentados besteiros carregavam aos hombros umas andas, toscamente
armadas com troncos de arvores, onde um homem jazia estirado, como
morto, coberto, contra o calor e os moscardos, por leves folhagens de
acacia. E um monge seguia n'uma mula branca, segurando misturadamente
com as rédeas um crucifixo de ferro, sobre que pendia a orla
do seu
capuz e uma ponta de barba negra.
Da setteira, mesmo sem descortinar por entre a camada de ramagens a
face
do homem estendido nas andas, o
Sabedor adivinhou
Lourenço
Ramires, o
doce afilhado que tanto amára, que tão bem
ensinára a terçar lanças e a
treinar falcões. E cerrando os punhos, gritando
surdamente―«Bem
prestos! bésteiros, bem prestos!»―desceu a escura
escadaria, tão
arremessado pela colera e pela magoa que
[355]o
seu elmo cavamente bateu
contra o arco da porta, onde o esperava Tructesindo com os Cavalleiros
parentes.
―Senhor primo! bradou. Vosso filho Lourenço está
deante das barreiras
da Honra deitado sobre umas andas!
Com um rosnar d'espanto, um atropelo dos sapatos de ferro sobre as
lages
sonoras, todos seguiram pela poterna da albarran o Rico
Homem―até ao
escadão de madeira que se empurrava contra a quadrella das
barbacans. E,
quando o enorme velho surdio no eirado, um silencio pesou,
tão ancioso,
que se sentia para além do vergel o chiar triste e lento da
nora e o
latir dos mastins.
No terreiro, em frente á cancella gateada, o Bastardo
esperava, immovel
sobre o seu ginete, com a formosa face bem levantada, a face de
Claro-sol, onde as barbas anelladas, cahindo nas
solhas do arnez,
rebrilhavam como ouro novo. Vergando o capello d'ouropel, saudou
Tructesindo com gravidade e preito. Depois alçou a
mão, que descalçára
do guante. E n'um considerado e sereno fallar:
―Senhor Tructesindo Ramires, n'estas andas vos trago vosso filho
Lourenço, que em lide leal, no valle de Canta-Pedra, colhi
prisioneiro e
me pertence pelo foro dos Ricos-Homens d'Hespanha. E de Canta-Pedra
caminhei com elle para vos pedir que
[356]entre
nós findem estes
homizios e
estas feias brigas que malbaratam sangue de bons
Christãos... Senhor
Tructesindo Ramires, como vós venho de Reis. De D. Affonso
de Portugal
recebi a pranchada de Cavalleiro. Toda a nobre raça de
Bayão se honra em
mim... Consenti em me dar a mão de vossa filha D. Violante,
que eu quero
e que me quer, e mandae erguer a levadiça para que
Lourenço ferido entre
no seu solar e eu vos beije a mão de pae.
Das andas, que estremeceram sobre os hombros dos besteiros, um
desesperado brado partio:
―Não, meu pae!
E hirto na borda do eirado, sem descrusar os braços, o velho
Tructesindo
retomou o brado―que por todo o terreiro da Honra rolou, mais arrogante
e mais cavo:
―Meu filho, antes de mim, te respondeu, villão!
Como se uma pontoada de lança lhe topasse o peito, o
Bastardo vacillou
na alta sella: e, colhido pelo repuxão das
rédeas, o seu fouveiro recuou
alteando a testeira dourada. Mas, a um novo arremesso, repulou contra a
cancella. E Lopo de Bayão erguido sobre os estribos, gritava
com ancia,
com furor:
―Snr. Tructesindo Ramires, não me tenteis!...
―Arreda, villão e filho de villôa,
arreda!―clamou soberbamente o
velho, sem desprender os braços de sobre o levantado peito,
na sua rija
immobilidade
[357]e
teima, como se todo o corpo e alma fossem de rijo ferro.
Então o Bastardo, arrojando o guante contra o muro da
barbacan, rugio,
chammejante e rouco:
―Pois pelo sangue de Christo e pela alma de todos os meus te juro, que
se me não dás n'este instante essa mulher que eu
quero e que me quer,
sem filho ficas, que por minhas mãos, deante de ti e nem que
todo o Céo
accuda, lhe acabo o resto da vida!
Já na mão lhe lampejava um punhal. Mas n'um
impeto de sublime orgulho,
um impeto sobrehumano, em que cresceu como outra escura torre entre as
torres da Honra, Tructesindo arrancára a espada:
―Com esta, covarde! com esta! Para que seja puro, não vil
como o teu, o
ferro que atravessar o coração de meu filho!
Furiosamente, com as duas possantes mãos, arremessou a
espada, que
rodopiou silvando e faiscando, se cravou no duro chão, onde
tremia,
ainda faiscava, como se uma colera heroica tambem a animasse. E no
mesmo
relance, com um urro, um salto do ginete, o Bastardo,
debruçado do
arção, enterrára o punhal na garganta
de Lourenço―em golpe tão cravado
que o esguicho do sangue lhe salpicou a clara face, as barbas d'ouro.
[358]
Depois foi uma bruta abalada. Os quatro besteiros sacudiram para o
chão
as andas, o corpo morto enrodilhado nos ramos―e atiraram pelo terreiro,
como lebres em clareira, atraz do monge que se agachava agarrado
ás
crinas da mula. N'uma curta desfilada o Bastardo, os seis cavalleiros,
gritando o alarme, mergulharam no arraial que estacára ao
Cruzeiro. Um
tumulto remoinhou em torno ao devoto pilar. E em rodilhado tropel a
mesnada desenfreou para a Ribeira, varou a velha ponte, logo ennublada
em pó e sumida para além do arvoredo, n'um
fugidio coriscar de
capellinas e de lanças apinhadas.
Uma alta grita, no emtanto, atroára as muralhas de Santa
Ireneia!
Virotes, flechas, balas de fundas assobiavam, despedidas no mesmo
furioso repente, sobre o bando de Bayão:―mas apenas um dos
besteiros
que carregára as andas tombou, estrebuchando, com uma flecha
na ilharga.
Pela cancella das barreiras já Cavalleiros e donzeis d'armas
se
empurravam desesperadamente para recolher o corpo de
Lourenço Ramires. E
Garcia Viegas, os outros parentes, galgaram ao eirado da barbacan,
d'onde Tructesindo se não arredára, rigido e
mudo, fitando as andas e
seu filho estatelado com ellas sobre o terreiro da sua Honra. Quando,
ao
rumor, elle pesadamente se voltou―todos emmudeceram ante a serenidade
da sua face,
[359]mais
branca que as brancas barbas, d'uma morta brancura de
lapide, com os olhos resequidos e côr de braza, a latejar, a
refulgir,
como os dous buracos d'um forno. Com a mesma sinistra serenidade, tocou
no hombro do velho Ramiro, que tremia arrimado ao seu chusso. E n'uma
vagarosa e vasta voz:
―Amigo! cuida tu do corpo de meu filho, que a alma ainda hoje, por
Deus! lh'a vou eu socegar!...
Afastou aquelles senhores emmudecidos d'assombro e
d'emoção―e baixou
pela gasta escada de madeira, que rangia sob o peso do enorme
Rico-Homem
carregado de ira e dôr.
N'esse momento, entre besteiros e serviçaes que se
atropellavam―o corpo
de Lourenço Ramires transpunha o portello das barbacans,
segurado pelo
formoso Leonel e por Mendo de Briteiros, ambos affogueados de lagrimas
e
rouquejando ameaças furiosas contra a raça de
Bayão. Atraz o tropego
Ordonho gemia, abraçado á espada de Tructesindo,
que apanhára no chão do
Terreiro e que beijava como para a consolar. Á borda do
fosso uma
aveleira espalhava a sombra leve n'um bronco taboão pregado
sobre
toros―d'onde, aos domingos, com o adanel dos besteiros,
Lourenço
dirigia os jogos de bésta e frecha, distribuindo fartamente
as
recompensas de bolos de mel e de vinho em picheis. Sobre essas taboas o
estiraram―recuando todos depois, em quanto
[360]aterradamente
se benziam. Um
cavalleiro de Briteiros, temendo por aquella alma desamparada e sem
confissão, correra á capella da
Alcaçova procurar Frei Muncio. Outros,
rodeando toda a muralha até ao Baluarte-Velho, gritavam, com
desesperados acenos, para o torreão escalavrado, onde, como
um môcho,
habitava o Physico. Mas o certeiro punhal do Bastardo
acabára o denodado
Lourenço, flor e regra de cavalleiros por toda a terra de
Riba-Cavado...
E que lastimoso e desfeito―com suja terra na face, a garganta empastada
de sangue negro, as malhas do saio rotas sobre os hombros e embebidas
nas carnes retalhadas, e nua, sem grêva, toda inchada e
rôxa, a perna
ferida em Canta-Pedra, onde mais sangue e lama se empastavam!
Tructesindo descia, lento e rigido. E as seccas brazas dos seus olhos
mais se incendiam, em quanto, atravez do dorido silencio, se acercava
do
corpo de seu filho. Deante do banco ajoelhou, agarrou a arrefecida
mão
que pendia; e, junto á face manchada de sangue e terra,
segredou, de
alma para alma, n'um abafado murmurio, que não era de
despedida mas
d'alguma suprema promessa, e que findou n'um beijo demorado sobre a
testa, onde uma restea de sol rebrilhou, dardejada d'entre as folhas da
aveleira. Depois erguido n'um arrebate, atirando o braço
como para
n'elle recolher toda a força da sua raça, gritou:
[361] ―E agora, senhores, a cavallo, e vingança brava!
Já pelos páteos, em torno da Alcaçova,
corria um precipitado fragor
d'armas. Aos asperos commandos dos almocadens as filas de besteiros,
d'archeiros, de fundibularios, rolavam dos adarves dos muros para
cerrar
as quadrilhas. Rapidamente, os cavallariços da carga
amarravam sobre o
dorso das mulas os caixotes do almazem, os alforges da trebalha. Pelas
portas baixas da cosinha, peões e sergentes, antes de
largar, bebiam á
pressa uma conca de cerveja. E no campo das barreiras os cavalleiros,
chapeados de ferro, carregadamente se içavam, com a ajuda
dos donzeis,
para as altas sellas dos ginetes―logo ladeados pelos seus
infanções e
acostados, que aprumavam a lança sobre o coxote assobiando
aos lebreus.
Emfim o Alferes, Affonso Gomes, saccou da funda e desfraldou o
pendão
n'um embalanço largo em que as azas do Açor
negrejaram, abertas, como
soltando o vôo enfurecido. O grito agudo do Adail
resoára por toda a
cerca―
ala! ala! De cima de um marco de pedra,
junto ao postigo do
barbacan, Frei Muncio estendia as magras mãos ainda
tremulas, abençoava
a hoste. Então Tructesindo, sobre o seu murzello, recebeu do
velho
Ordonho a espada, de que tão terrivelmente se
apartára. E estendendo a
reluzente folha para as torres da sua Honra como para um altar, bradou:
[362] ―Muros de Santa Ireneia, não vos torne eu a vêr,
se em tres dias, de
sol a sol, ainda restar sangue maldito nas veias do traidor de
Bayão!
E, escancaradas as barreiras, a cavalgada tropeou em torno ao
pendão
solto,―em quanto, na torre d'Almenara, sob o parado explendor da
sésta
d'Agosto, o sino grande começava a tanger a finados.
Quando Gonçalo á tarde, enterrado na poltrona
á varanda, releu este
Capitulo de sangue e furor sobre que se esfalfára durante a
semana,
pensou «que o lance impressionaria.»
Sentiu então o appetite de recolher sem demora os louvores
merecidos―e
de mostrar a Gracinha e ao Padre Sueiro os tres Capitulos completos
antes de remetter o manuscripto para os
Annaes.
E
mesmo lhe
convinha―porque a erudição archeologica do Padre
Sueiro forneceria
talvez algum traço novo, bem Affonsino, que mais avivasse
aquella
resurreição da Honra de Santa-Ireneia e dos seus
senhores formidaveis.
Immediatamente resolveu partir de manhã para Oliveira com o
seu
trabalho―que, depois de esmiuçado pelo Padre Sueiro,
confiaria ao
procurador de D. Arminda Viegas para elle o copiar n'aquella sua
formosa
lettra, tão celebrada em todo o
[363]Districto,
e apenas egualada
(nas
maiusculas) pela do Escrivão da Camara Ecclesiastica.
Sacudia já da poeira uma antiga pasta de marroquim para
transportar a
Obra amada―quando o Bento empurrou a porta, ajoujado com uma cesta de
vime que uma toalha de rendas cobria.
―Um presente.
―Um presente... De quem?
―Da
Feitosa, das senhoras.
―Bravo!
―E com uma carta, que vem pregada na toalha.
Com que curiosidade Gonçalo despedaçou o
sobrescripto! Mas, apezar de
lacrado com um pomposo sello d'Armas, apenas continha linhas a lapis
n'um bilhete de visita da prima Maria
Mendonça:―«Hontem ao jantar
contei quanto o primo Gonçalo gosta de pêcegos
sobretudo aboborados em
vinho, e a Annica toma por isso a liberdade de lhe mandar esse cestinho
de pêcegos da
Feitosa, que como sabe
são
fallados em todo o
Portugal... Mil saudades.»―Gonçalo imaginou logo
no fundo da cesta,
debaixo dos pêcegos, docemente escondida, uma cartinha da D.
Anna!
―Bem! São pêcegos... Deixa ahi sobre uma
cadeira...
[364] ―Era melhor que os levasse já para a copa, Snr. Dr., para
os arrumar na
prateleira...
―Deixa sobre a cadeira!
Apenas o Bento cerrára a porta, estendeu no chão
a toalha, entornou
cuidadosamente por cima os pêcegos formosos que perfumavam a
livraria.
No fundo da cesta encontrou apenas folhas de parra. Levemente
desconsolado, cheirou um pêcego. Depois considerou que os
pêcegos,
arranjados por ella, com parra que ella apanhára na latada,
sob toalha
que ella escolhera no armario, formavam na sua mudez cheirosa um
recadinho sentimental. Ainda agachado na esteira, comeu o
pêcego:―e
recollocou os outros na cesta para os levar a Gracinha.
Mas, ao outro dia, ás duas horas, já com a
parelha do Torto engatada á
caleche, já com as luvas calçadas para a jornada
d'Oliveira, recebeu uma
inesperada visita―a visita do Snr. Visconde de Rio-Manso.
Descalçando
as luvas o Fidalgo pensava:―«O Rio-Manso! Que me
quererá esse
casmurro?»―Na sala, pousado á beira do
canapé de velludo verde e
esfregando os joelhos, o Visconde contou que de volta de Villa Clara e
deante do portão da Torre vencera o seu teimoso acanhamento
para
apresentar os seus respeitos ao Snr. Gonçalo Ramires. E
não só para esse
gostoso dever―mas tambem (como
[365]soubera
que S. Ex.
a
se propunha
Deputado pelo Circulo) para lhe offerecer na freguezia de Canta-Pedra o
seu prestimo e os seus votos...
Gonçalo, risonho e pasmado, saudava, torcia
embaraçadamente o bigode. E
o Visconde de Rio-Manso não estranhava aquelle pasmo por que
de certo o
Snr. Gonçalo Ramires o conhecêra sempre como
ferrenho Regenerador... Mas
então! Elle pertencia á
geração, agora bem rareada, que antepunha aos
deveres da Politica os deveres da gratidão:―e
além da sympathia que lhe
merecia o Snr. Gonçalo Ramires (pelo que constava em todo o
Districto do
seu talento, da sua affabilidade, da sua caridade) tambem conservava
para com S. Ex.
a uma divida de
gratidão, ainda aberta,
não por
indifferença, mas por timidez...
―V. Ex.
a não adivinha, Snr.
Gonçalo Mendes
Ramires?... Não se lembra?
―Não, realmente, Snr. Visconde, não me...
Pois uma tarde o Snr. Gonçalo Mendes Ramires passava a
cavallo pela
quinta da
Varandinha, quando a sua neta,
brincando no
terraço (aquelle
terraço gradeado d'onde se curva uma magnolia), deixou
escapar uma péla
para a estrada. O Snr. Gonçalo Mendes Ramires, rindo, apeou
immediatamente, apanhou a péla, e, para a restituir
á menina debruçada
[366]da grade, abeirou
a egoa do muro depois de montar―e com que ligeiresa e
garbo!...
―V. Ex.
a não se lembrava?
―Sim, sim, agora...
Pois no ladrilho do terraço, rente da grade, pousava um
jarro cheio de
cravos. O Snr. Gonçalo Mendes, depois de gracejar com a
menina (que,
louvado Deus, não era acanhada!) pediu um cravo, que ella
escolheu―e
que lhe deu, toda séria, como uma senhora. E elle, que
observára da
janella do seu quarto, pensava:―«Ora ahi está!
Este Fidalgo da Torre,
um tão grande Fidalgo, que amavel!»―Oh S. Ex.
a
não tinha que rir e
corar... A gentileza fôra grande―e a elle, avô,
parecêra immensa! Mas
não ficára sómente na péla
apanhada...
―O Snr. Gonçalo Mendes Ramires não se recorda?...
―Sim, Snr. Visconde, com effeito, agora...
Pois, logo no outro dia, o Snr. Gonçalo Mendes Ramires
mandára da Torre
um precioso cesto de rosas, com o seu bilhete, e n'uma linha este
gracejo:―«Em agradecimento d'um cravo, rosas á
Snr.
a D. Rosa.»
Gonçalo quasi pulou na cadeira, divertido:
―Sim, sim, Snr. Visconde, perfeitamente!.. Agora me recordo!
[367]
Pois desde essa tarde elle sempre almejára por uma
opportunidade de
mostrar ao Snr. Gonçalo Mendes Ramires o seu reconhecimento,
a sua
sympathia. Mas que! era timido, vivia muito retirado... N'essa
manhã
porém, em Villa Clara, soubera pelo Gouveia que S. Ex.
a
se
apresentava
deputado pelo Circulo. Apezar de ser eleição
tão segura, já pela
influencia do Snr. Ramires, já pela influencia do Governo,
logo
pensára―«Bem, ahi está a
occasião!» E, agora offerecia a S. Ex.
a,
na
freguezia de Canta-Pedra, o seu prestimo e os seus votos.
Gonçalo murmurou, enternecido:
―Realmente, Snr. Visconde, nada me podia sensibilisar mais do que uma
offerta tão espontanea, tão...
―Sou eu que me sensibiliso por V. Ex.
a
acceitar. E agora
não fallemos
mais n'esse meu pobre prestimo e n'esses meus pobres votos... Pois V.
Ex.
a tem aqui uma veneravel vivenda.
E como o Visconde alludia ao desejo, já n'elle antigo, de
admirar de
perto a famosa torre, mais velha que Portugal―ambos desceram ao pomar.
O Visconde, com o guarda-sol ao hombro, pasmou em silencio para a
torre;
reconheceu (apezar de liberal) o prestigio que resulta d'uma
tão alta
linhagem como a dos Ramires; e gabou sinceramente o laranjal. Depois,
sabendo que o Pereira da Riosa arrendára a
[368]quinta, invejou
ao Snr.
Ramires tão cuidadoso e honrado rendeiro...―Deante do
portão, o
char-à-bancs do Visconde esperava,
atrelado de duas mulas
lustrosas e
nedias. Gonçalo admirou as mulas. E, abrindo a portinhola,
supplicou ao
Snr. Visconde que beijasse por elle a mãosinha da Snr.
a
D.
Rosa.
Commovido, o Visconde confessou uma ousadia, uma
esperança―e era que S.
Ex.
a um dia, á sua escolha, parasse
em Canta-Pedra,
jantasse na quinta,
para conhecer mais intimamente a menina da péla e do cravo...
―Mas com immensa honra!... E desde já me proponho a ensinar
á Snr.
a D.
Rosa, se ella o não sabe, o jogo da péla
á antiga portugueza.
O Snr. Visconde saudou, banhado de gosto e riso, com a mão
sobre o
coração.
Gonçalo, trepando as escadas, murmurava:―«Oh
senhores, que sympathico
homem! E que generoso homem, que paga rosas com votos! Ora vejam como
ás
vezes, por uma pequenina attenção, se ganha um
amigo! Com certeza, para
a semana vou a Canta-Pedra jantar!... Homem encantador!»
E foi n'um ditoso estado d'alma que accommodou na caleche a pasta de
marroquim com o manuscripto, o cesto sentimental dos pêcegos
da D.
Anna―e accendeu um charuto, e saltou á almofada, e tomou as
redeas para
lançar, n'um trote alegre até Oliveira, a parelha
branca do Russo.
[369]
No largo d'El-Rey, antes d'apear, perguntou logo ao Joaquim da Porta
noticias dos senhores. Os senhores todos muito bem, graças a
Deus... O
Snr. José Barrôlo partira de manhã a
cavallo para a quinta do Snr. Barão
das Marges, só recolhia á noite...
―E o Snr. Padre Sueiro?
―O Snr. Padre Sueiro, creio que está para casa da Snr.
a
D.
Arminda...
―E a Snr.
a D. Graça?
―A Snr.
a D. Graça desceu ha um
bocadinho grande para o
Mirante, de
chapeu... Naturalmente ia á Egreja das Monicas.
―Bem. Leva esse cesto de pêcegos e dize ao Joaquim da Copa
que o ponha
na mesa, assim mesmo no cesto, com as folhas... E que me subam ao
quarto
agoa quente.
O relogio de parede, na sala de espera, gemia
preguiçosamente as cinco
horas. O palacete repousava n'um claro silencio. E depois da poeira e
dos solavancos da estrada, pareceu mais doce a Gonçalo a
frescura do seu
quarto com as quatro janellas abertas sobre o jardim regado e sobre a
cerca das Monicas. Cuidadosamente, guardou logo n'uma gaveta da commoda
a pasta preciosa de marroquim. Uma creada de olhos repolhudos
entrára
com o jarrão d'agua quente:―e o Fidalgo, como sempre,
[370]chasqueou a
moça
sobre os lindos sargentos de Cavallaria, cujo quartel tentador dominava
o lavadouro da quinta, e retinha as raparigas da casa ensaboando todo o
dia com paixão. Depois ainda se demorou, mudando o fato
empoeirado,
assobiando vagamente, encostado á varanda sobre a callada
rua das
Tecedeiras. O sino das Monicas lançou um lindo repique... E
Gonçalo,
enfastiado da sua solidão, decidiu descer pelo
terraço do jardim, e
surprehender Gracinha nas suas devoções, na
Egrejinha.
Em baixo, no corredor, crusou o Joaquim da Copa:
―Então o Snr. Barrôlo hoje não janta?
―O Snr. Barrôlo foi jantar com o Snr. Barão das
Marges, na quinta...
São os annos da menina. Naturalmente só recolhe
á noite.
Gonçalo, no jardim, ainda tardou por entre os alegretes,
compondo para o
casaco um ramo de flôres ligeiras. Depois rodeou a estufa,
sorrindo da
porta com que o Barrôlo a enriquecera, uma porta
envidraçada, arqueada
em ferradura, com um monogramma de côres rutilantes: e metteu
pela rua
que conduzia ao repuxo, coberta de silencio e penumbra pela rama
enlaçada dos seus altos loureiros. Adiante, circumdado de
bancos de
pedra, d'arvores de aroma e flôr, cantava dormentemente o
fino repuxo
n'um tanque redondo, de borda larga, onde
[371]s'espaçavam
grossos vasos de
louça branca com o brazão ramalhudo dos
Sás. Certamente na véspera ou de
manhã se lavára o tanque, por que na agoa muito
transparente, sobre as
lages muito claras, nadavam com redobrada vivacidade, em lampejos
rosados, os peixes que Gonçalo assustou mergulhando e
agitando a
bengala. E d'aquella borda do tanque já elle avistava ao
fundo de outra
rua, debruada de dhalias abertas, o Mirante―uma
construcção do seculo
XVIII, simulando um Templosinho grego, côr de rosa desbotada,
com um
gordo Cupido sobre a cupula, e janellinhas de rocalha entre o meio
relevo das columnas canelladas por onde trepavam jasmineiros.
Gonçalo arrancou, como costumava, folhas d'um ramo de
lucia-lima, para
esmagar e perfumar as mãos: e continuou para o Mirante,
vagarosamente,
por entre as dhalias apinhadas. Na allea, novamente ensaibrada, os
sapatos finos de verniz que calçára pousavam sem
rumor no saibro molle.
E assim, n'um silencio de sombra indolente, se acercou do Mirante―e
d'uma das janellinhas que, mal cerrada, conservava corrida por dentro a
persiana de taboinhas verdes. Rente d'essa janella era a escada de
pedra, que, do elevado e comprido terraço sobre que se
estendia o
jardim, communicava com a encovada rua das Tecedeiras, quasi em frente
á
Capella
[372]das
Monicas. E Gonçalo, sem pressa, descia―quando,
atravez da
persiana rala, sentiu dentro do Mirante um susurro, um cochichar
perturbado. Sorrindo, pensou que alguma das creadas da casa se
refugiára
n'esse Templosinho de Amor com um dos sargentos terriveis de
Cavallaria... Mas, não! impossivel! Pois se, momentos antes,
Gracinha
roçára aquella janella e pisára
aquella escada, no seu caminho para as
Monicas! E então outra idéa o varou como uma
espada―e tão dolorosa que
recuou com terror da beira do Mirante d'onde ella perversamente o
assaltára. Já porém uma desesperada
curiosidade a agarrára, o
empurrava―e collou a face á persiana com a cautella d'um
espião. O
Mirante recahira em silencio―Gonçalo temia que o trahissem
as pancadas
do seu coração... Santo Deus! De novo o murmurio
recomeçára, mais
apressado, mais turbado. Alguem supplicava,
balbuciava:―«Não, não, que
loucura!»―Alguem urgia, impaciente e
ardente:―«Sim, meu amor! sim, meu
amor!» E a ambos os reconheceu―tão claramente
como se a persiana se
erguesse e por ella entrasse toda a vasta claridade do jardim. Era
Gracinha! Era o Cavalleiro!
Colhido por uma immensa vergonha, no atarantado pavor de que o
surprehendessem junto do Mirante e da torpeza escondida―enfiou pela rua
das
[373]dhalias,
encolhido, com os sapatos leves no saibro molle, costeou o
repuxo por sob a ramaria dos arbustos, remergulhou na
escuridão dos
loureiros, deslisou surrateiramente por traz da estufa―penetrou no
socego do Palacete. Mas o murmurio do Mirante ainda o envolvia, mais
desfallecido, mais rendido―«Não, não,
que loucura!... Sim, sim, meu
amor!...»
Abalou atravez das salas desertas como uma sombra acossada; escorregou
abafadamente pela escadaria de pedra, varou o portão n'uma
carreira,
espreitando, com medo do Joaquim da Porta. No Largo parou, deante da
grade do relogio do sol. Mas o susuro do Mirante errava por todo o
Largo
como um vento enroscado, raspando as lages, batendo as barbas dos
Santos
sobre o portal da Egreja de S. Matheus, redemoinhando nos telhados
musgosos da Cordoaria...―«Não, não,
que loucura! Sim, sim! meu amor!»
Então Gonçalo sentiu a anciedade desesperada
d'escapar para longe, para
immensamente longe do Largo, do Palacete, da cidade, de toda aquella
vergonha que o trespassava. Mas uma carruagem?... Pensou na alquilaria
do Maciel, a mais retirada, para além das ultimas casas, na
estrada do
Seminario. E cosido com os muros baixos d'essas ruas pobres, correu,
mandou engatar uma caleche fechada.
Emquanto esperava á porta, n'um banco, passou pela estrada
uma lenta
carroça com moveis, panellas
[374]de
cosinha, um grande
colxão onde se
alastrava uma nodoa. Bruscamente Gonçalo recordou o divan
que guarnecia
o Mirante. Era enorme, de mogno, todo coberto de riscadinho, com mollas
lassas que rangiam. E de repente o murmurio recomeçou,
cresceu, rolando
com fragor de trovão por sobre os casebres visinhos, por
sobre a cerca
do Seminario, por sobre Oliveira espantada:―«Não,
não, que loucura!
Sim, sim, meu amor!»
Com um salto, Gonçalo gritou para dentro, para a
cavallariça escura:
―Então, que inferno! não acaba, essa carroagem?
―Já a largar, meu Fidalgo.
No relogio da Piedade sete horas batiam―quando elle se atirou para a
caleche, e fechou as
stores pêrras, e
se enterrou no fundo,
bem
sumido, esmagado, com a sensação que o Mundo
tremera, e as mais fortes
almas se abatiam, e a sua Torre, velha como o Reino, rachava, mostrando
dentro um montão ignorado de lixo e de saias sujas.
IX
Á porta da cosinha, saccudindo um sobrescripto já
amarrotado, Gonçalo
ralhava com a Rosa cosinheira:
―Oh Rosa! pois tanto lhe recommendei que não escrevesse
á mana
Graça?... Que teimosa! Então não
arranjavamos a pequena, sem essas
lamurias para Oliveira? Graças a Deus, a Torre é
larga bastante para
mais uma creancinha!
É que morrera a Crispola―a desgraçada viuva,
visinha da Torre, que com
um rancho miudo de dous pequenos, tres raparigas, definhava no catre
desde a Paschoa. E agora Gonçalo, que mantivera o casebre em
fartura,
andava accommodando as pobres creanças―já por
cuidado d'elle muito
aceadamente vestidas de luto. A rapariga mais velha (tambem Crispola),
sempre encafuada na cosinha da Torre, passava
[376]regularmente
a
«ajudanta
da Rosa», com soldada. Um dos rapazes, de doze annos,
espigado e
esperto, tambem Gonçalo o empregava na Torre como andarilho,
para os
recados, com fardeta de botões amarellos. O outro, molle e
ranhoso, mas
com o geito e o amor de carpinteirar, já Gonçalo,
sob o patrocinio da
tia Louredo, o collocára em Lisboa, na Officina de S.
José. D'uma das
outras raparigas se encarregava a mãe de Manoel Duarte,
amoravel senhora
que habitava uma quinta formosa junto a Treixedo, e adorava
Gonçalo de
quem se considerava «
vassalla».
Mas para a mais
novinha e a mais
fraquinha não se arranjava amparo solido. A Rosa
lembrára então―«que
certamente a Snr.
a D. Maria da Graça
recolheria a
creaturinha...»
Gonçalo rosnára com seccura:―«Oh! por
uma côdea mais de pão não se
necessita encommodar a
cidade d'Oliveira!»
Rosa,
porém, enlevada na
obra, desejando para pequerrucha tão franzina e loira o
agasalho d'uma
senhora, escrevera a Gracinha, pela esmerada lettra do Bento, uma
verbosa carta com o pedido, e toda a historia lamentosa da Crispola, e
louvores devotos á caridade do Snr. Doutor. E era a resposta
de
Gracinha, demorada mas enternecida, com a
recommendação «de lhe mandarem
logo a pobre creança»―que impacientava o Fidalgo.
Por que, desde a tarde abominavel do Mirante,
[377]estranhamente
se
apoderára
d'elle uma repugnancia quasi pudica em communicar com os Cunhaes! Era
como se esse Mirante e a torpeza abrigada dentro das suas paredes
côr de
rosa empestassem o jardim, o palacete, o Largo d'El-Rei, toda a cidade
d'Oliveira, e elle agora, por aceio moral, recuasse ante essa
região
empestada onde o seu coração e o seu orgulho
suffocavam... Logo depois
da sua fuga recebera do bom Barrôlo uma carta
espantada:―«Que têlha foi
essa? Porque não esperaste? Eu, quando voltei á
noite da quinta do
Marges, até fiquei com cuidado. E não imaginas
como a Gracinha anda
nervosa! Soubemos da partida, por acaso, por um cocheiro do Maciel.
Já
hoje comemos os pêcegos, mas não
comprehendemos!...»―Gonçalo respondeu
seccamente n'um bilhete:―«Negocios». Depois
recordou que deixára na
gaveta do seu quarto o manuscripto da Novella: e mandou um
moço da
quinta, de madrugada, com um recado quasi secreto ao Padre Sueiro,
«para
que entregasse a pasta ao portador, bem embrulhada, sem contar aos
senhores...» Entre a Torre e os Cunhaes só
desejava separação e
silencio.
E nos encerrados dias que passou na Torre (sem se arriscar a
Villa-Clara, no terror de que a vergonha do seu nome já
andasse rosnada
pelo estanco do Simões ou pelo armazem do Ramos)
não cessou de vibrar
n'uma colera espalhada que a todos
[378]varava...
Colera contra a
irmã que,
calcando pudor, altivez de raça, receio dos escarneos
d'Oliveira, tão
facil e estouvadamente como se calcam as flôres desbotadas
d'um tapete,
correra ao Mirante, ao macho da bigodeira, apenas elle lhe
acenára com o
lenço almiscarado! Colera contra o Barrôlo, o
bochechudo bacôco, que
empregava os seus bacôcos dias celebrando o Cavalleiro,
arrastando o
Cavalleiro para o Largo d'El-Rei, escolhendo na adega os vinhos mais
finos para que o Cavalleiro aquecesse o sangue, ageitando as almofadas
de todos os camapés para que o Cavalleiro saboreasse
estiradamente o seu
charuto e a graça presente de Gracinha! Emfim colera contra
si, que,
pela baixa cubiça de uma cadeira em S. Bento, abatera a
unica muralha
segura entre a irmã e o homem da marrafa lusente―que era a
sua
inimizade, aquella escarpada inimizade, sempre, desde Coimbra,
tão
rijamente reforçada e recaiada!... Ah! todos tres
horrendamente
culpados!
Depois uma tarde, enfastiado da solidão, ousou um passeio
por
Villa-Clara. E reconheceu que na Assembleia, no estanco do
Simões, na
loja do Ramos, os amores de Gracinha eram certamente tão
ignorados como
se passassem nas profundidades da Tartaria. Immediatamente a sua alma
doce, agora socegada, se abandonou á doçura de
tecer desculpas subtis
para todos os culpados d'aquella queda
[379]triste...
Gracinha, coitada, sem
filhos, com tão mollengo e ensosso marido, alheia a todos os
interesses
da intelligencia, indolente mesmo para uma costura ou
bordado―cedêra,
que mulher não cederia? á credula e primitiva
paixão que lhe brotára na
alma, n'ella se enraizára, lhe déra as suas
unicas alegrias do mundo e
(influencia ainda mais poderosa!) lhe arrancára as suas
unicas lagrimas!
O Barrôlo, coitado, era o Bacôco―e como o
«pilriteiro» da cantiga,
incapaz de mais nobres fructos, só produzia os
«pilritos» da sua
Bacoquice. E elle, coitado d'elle, pobre, ignorado, irresistivelmente
se
rendera á fatal Lei d'Accrescentamento, que o
levára, como a todos leva
na ancia de fama e fortuna, a furar precipitadamente pela porta casual
que se abre, sem reparar na estrumeira que atravanca os humbraes... Ah
realmente todos bem pouco culpados deante de Deus que nos creou
tão
variaveis, tão frageis, tão dependentes de
forças por nós ainda menos
governadas do que o Vento ou do que o Sol!
Não, irremissivelmente culpado,―só o outro, o
malandro da grenha
ondeada! Esse, em toda a sua conducta com Gracinha, desde estudante,
mostrára sempre um egoismo atrevido, só punivel
como puniam os antigos
Ramires, com a morte depois dos tormentos, e a carcassa posta aos
corvos. Em quanto lhe agradou, na ociosidade dos longos estios, um
namoro
[380]bocolico
sob os arvoredos da Torre―namorára. Quando
considerou
que uma mulher e filhos lhe atravancariam a vida ligeira―trahira. Logo
que a antiga bem amada pertenceu a outro
homem―recomeçára o cerco
languido para colher, sem os encargos da paternidade, as
emoções do
sentimento. E apenas esse marido lhe entreabre a sua
porta―não se
demora, fende brutamente sobre a preza! Ah como o avô
Tructesindo
trataria villão de tal villania! Certamente o assava n'uma
rugidora
fogueira deante das barbacans―ou, nas masmoras da Alcaçova,
lhe entupia
as guellas falsas com bom chumbo derretido...
Pois elle, neto de Tructesindo, nem sequer podia, quando encontrasse o
Cavalleiro nas ruas d'Oliveira, carregar o chapeu sobre a testa e
passar! A menor diminuição n'essa intimidade
tão desastradamente
reatada―seria como a revelação da torpeza ainda
abafada nas paredes do
Mirante! Toda Oliveira cochicharia, riria.―«Olha o Fidalgo
da Torre!
Mette o Cavalleiro nos Cunhaes com a irmã, e logo, passadas
semanas,
rompe de novo com o Cavalleiro! Houve escandalo, e
gordo!»―Que delicia
para as Lousadas! Não, ao contrario! agora devia ostentar
pelo
Cavalleiro uma fraternidade tão larga e tão
ruidosa―que, pela sua
largueza e o seu ruido, inteiramente tapasse e abafasse o sujo enredo
que por
[381]traz
latejava. Fingimento torturante―e imposto pela honra do
nome! O sujo enredo bem guardado entre os mais densos arvoredos do
jardim, na mais cerrada penumbra do Mirante!―e por fóra, ao
sol, nas
praças d'Oliveira elle sempre com o braço
carinhosamente enlaçado no
braço do Cavalleiro!
Os dias rolavam―e no espirito de Gonçalo não se
estabelecia serenidade.
E sobretudo o amargurava sentir que era forçado a essa
intimidade
vistosa com o Cavalleiro―tanto pelo cuidado do seu nome, como pela
conveniencia da sua Eleição. Toda a sua altivez
por vezes se
revoltava:―«Que me importa a Eleição!
Que valor tem uma encardida
cadeira em S. Bento?...» Mas logo a secca Realidade o
emmudecia. A
Eleição era a unica fenda por onde elle lograria
escapar do seu buraco
rural; e, se rompesse com o Cavalleiro, esse villão, vezeiro
a
villanias, immediatamente, com o appoio da horda intrigante de Lisboa,
improvisaria outro Candidato por Villa-Clara...
Desgraçadamente elle era
um d'esses seres vergados que
dependem. E a
triste dependencia d'onde
provinha? Da pobreza―d'essa escassa renda de duas quintas,
abastança
para um simples, mas pobreza para elle, com a sua
educação, os seus
gostos, os seus deveres de fidalguia, o seu espirito de sociabilidade.
E estes pensamentos lenta e capciosamente o
[382]empurraram
a outro
pensamento―á D. Anna Lucena, aos seus duzentos contos...
Até que uma
manhã encarou corajosamente uma possibilidade
perturbadora:―casar com a
D. Anna!―Por que não? Ella claramente lhe
mostrára inclinação, quasi
consentimento... Por que não casaria com a D. Anna?
Sim! o pae carniceiro, o irmão assassino... Mas tambem elle,
entre
tantos avós até aos Suevos ferozes, descortinaria
algum avô carniceiro;
e a occupação dos Ramires, atravez dos seculos
heroicos, consistira
realmente em assassinar. De resto o carniceiro e o assassino, ambos
mortos, sombras remotas, pertenciam a uma Lenda que se apagava. D.
Anna,
pelo casamento, subira da Populaça para a Burguesia. Elle
não a
encontrava no talho do pae, nem no velhacouto do irmão―mas
na quinta da
Feitosa, já Rica-Dona, com procurador,
com
capellão, com lacaios, como
uma antiga Ramires. Ah! sinceramente, toda a
hesitação era pueril―desde
que esses duzentos contos, de dinheiro muito limpo, de bom dinheiro
rural, os trazia com o seu corpo, mulher tão formosa e
séria. Com esse
puro ouro, e o seu nome, e o seu talento, não necessitaria
para dominar
na Politica a refalsada mão do Cavalleiro... E depois que
vida nobre e
completa! A sua velha Torre restituida ao esplendor sobrio d'outras
eras; uma lavoura de luxo no historico torrão de Treixedo;
as
[383]viagens
fecundas ás terras que educam!... E a mulher que fornecia
estes regalos
não lhes amargava o goso, como em tantos casamentos ricos,
com a sua
fealdade, os seus agudos ossos, ou a sua pelle relentada...
Não! Depois
do brilho social do dia não o esperava na alcova um
mostrengo―mas
Venus.
E assim, lentamente trabalhado por estas
tentações, mandou uma tarde um
bilhete á prima Maria, á
Feitosa,
pedindo―«para se encontrarem, sós,
n'algum passeio dos arredores, por que desejava ter com ella uma
conversasinha séria e
intima...» Mas tres
immensos dias se
arrastaram―e não appareceu a almejada carta da
Feitosa.
Gonçalo
concluiu que a prima Maria, tão esperta, farejando a
natureza da
conversasinha e sem uma certeza para o alegrar,
retardava, se
recusava. Atravessou então uma desolada semana, remoendo a
melancolia
d'uma vida que sentia ôca e toda feita d'incertezas. O
orgulho, um pudor
complicado, não lhe consentiam voltar a Oliveira, ao quarto
d'onde
implacavelmente avistaria, por sobre o arvoredo, a cupula do Mirante
com
o seu gordo Cupido:―e quasi o arrepiava a idéa de beijar a
irmã na face
que o outro babujára! Sobre a Eleição
descera um silencio de abobada―e
outra repugnancia, mais acerba, lhe vedava escrever ao Cavalleiro.
João
Gouveia gozava as suas férias na Costa, de sapatos brancos,
apanhando
conchinhas
[384]na
praia. E Villa-Clara não se tolerava n'esse
meado ardente
de Septembro―com o Titó no Alemtejo onde o
levára uma doença do velho
Morgado de Cidadelhe, o Manoel Duarte na quinta da mãe
dirigindo as
vindimas, e a Assembleia deserta e adormecida sob o innumeravel susurro
das moscas...
Para se occupar e atulhar as horas, mais que por dever ou gosto d'Arte,
retomou a sua Novella. Mas sem fervor, sem veia agil. Agora era a
sanhuda arrancada de Tructesindo e dos seus cavalleiros, correndo sobre
o Bastardo de Bayão. Lance difficultoso―reclamando fragor,
um
rebrilhante colorido Medieval. E elle tão molle e
tão apagado!...
Felizmente, no seu Poemeto, o Tio Duarte recheára esse
violento trecho
de bem apinceladas paisagens, d'interessantes rasgos de guerra.
Logo na Ribeira do Coice, Tructesindo encontrava cortada a machado a
decrepita ponte, cujos rotos barrotes e taboões carcomidos
entulhavam no
fundo a corrente escassa. Na sua fuga o Bastardo acautelladamente a
desmantelára para deter a cavalgada vingadora.
Então a pesada hoste de
Santa Ireneia avançou pela esguia ourela, ladeando os
renques de choupos
em demanda do vau do Espigal... Mas que tardança! Quando as
derradeiras
[385]mulas de carga
choutaram na terra d'além-ribeira
já a tarde se adoçava,
e nas poças d'agua, entre as poldras, o brilho esmorecia,
umas ainda
d'ouro pallido, outras apenas rosadas. Immediatamente Dom Garcia
Viegas,
o
Sabedor, aconselhou que a mesnada se
dividisse:―a peonagem e a
carga avançando para Montemor, esgueirada e callada, para
esquivar
recontros; os senhores de lança e os besteiros de cavallo
arrancando em
dura carreira para colher o Bastardo. Todos louvaram o ardil do
Sabedor: e a cavalgada, aligeirada das filas
tardas
de archeiros e
fundibularios, largou, soltas as rédeas, atravez de terras
ermas, depois
por entre barrocaes, até aos
Tres-Caminhos,
desolada chan
onde se
ergue solitariamente aquelle carvalho velhissimo que outr'ora, antes
d'exorcisado por S. Froalengo, abrigava no sabbado mais negro de
Janeiro, ao clarão d'archotes enxofrados, a Grande Ronda de
todas as
bruchas de Portugal. Junto do carvalho Tructesindo sopeou a arrancada:
e, alçado nos estribos, farejava as tres sendas que se
trifurcam e se
encovam entre asperos, lobregos cerros de bravio e de tojo.
Passára ahi
o Bastardo malvado?... Ah! por certo passára e toda a sua
maldade―porque no respaldo d'uma fraga, junto a tres cabras magras
retouçando o matto, jazia, com os braços abertos,
um pobre pastorinho
morto, varado por uma frecha! Para que o
[386]triste
cabreiro não
soprasse
novas da gente de Bayão―uma bruta setta lhe
atravessára o peito
escarnado de fome, mal coberto de trapos. Mas por qual das sendas se
embrenhára o malvado? Na terra solta, raspada pelo vento
suão que rolava
d'entre-montes, não appareciam pegadas revoltas de tropel
fugindo. E, em
tal solidão, nem choça ou palhoça
d'onde villão ou velha alapada
espreitassem a levada do bando... Então, ao mando do Alferes
Affonso
Gomes, tres almogavres despediram pelos tres caminhos á
descoberta―em
quanto os Cavalleiros, sem desmontar, desafivelavam os
morriões para
limpar nas faces barbudas o suor que os alagava, ou abeiravam os
ginetes
d'um sumido fio d'agua que á orla da chan se arrastava entre
ralo
caniçal. Tructesindo não se arredou de sob a
ramada do carvalho de S.
Froalengo, immovel sobre o murzello immovel, todo cerrado no ferro da
sua negra armadura, as mãos juntas sobre a sella e o elmo
pesadamente
inclinado como em magua e oração. E ao lado, com
as colleiras errissadas
de prégos, as sangrentas linguas penduradas, arquejavam,
estirados, os
seus dous mastins.
Já no emtanto a espera se alongava, inquieta,
enfadonha―quando o
almogavre que mettera pela senda de Nascente reappareceu n'um rolo de
poeira, atirando logo o alarde de longe, com a ascuma
[387]alta. A hora
escassa de carreira avistára num cabeço uma hoste
acampada, em arraial
seguro, rodeado d'estaca e valla!...
―Que pendão?
―As treze arruellas.
―Deus louvado! gritou Tructesindo, que estremeceu como acordando.
É D.
Pedro de Castro,
o Castellão, que
entrou com os Leonezes e
vem pelas
senhoras Infantas!
Por esse caminho pois não se atrevera o Bastardo!... Mas
já pela senda
de Poente recolhia outro almogavre contando que entre-cerros, n'um
pinhal, topára um bando de bufarinheiros genovezes,
retardados desde
alva, por que um d'elles esmorecera com mal de febres. E
então?...―Então, pela borda do pinheiral apenas
passára em todo o dia
(no jurar dos genovezes) uma companhia de truões voltando da
feira de
Grajelos. Só restava pois o trilho do meio, pedregoso e
esbarrancado
como o leito enxuto d'uma torrente. E por elle, a um brado de
Tructesindo, tropeou a cavalgada. Mas já o crepusculo
tristissimo
descia―e sempre o caminho se estirava, agreste, soturno, infindavel,
entre os cerros de urze e rocha, sem uma cabana, um muro, uma sebe,
rasto de rez ou homem. Ao longe, mais ao longe, emfim, enchergaram a
campina arida, coberta de solidão e penumbra, dilatada
[388]na
sua mudez até
a um ceu remoto, onde já se apagava uma derradeira tira de
poente côr de
cobre e côr de sangue. Então Tructesindo deteve a
abalada, rente
d'espinheiros que se torciam nas lufadas mais rijas do suão:
―Por Deus, senhores, que corremos em pressa vã e sem
esperança!... Que
pensaes, Garcia Viegas?
Todo o bando se apinhára: e uma fumarada subia dos ginetes
arquejantes
sob as coberturas de malha. O
Sabedor estendeu o
braço:
―Senhores! O Bastardo, antes de nós, galgou d'escapada essa
campina
além, e metteu a Valle-Murtinho para pernoitar na Honra de
Agredel, que
é bem afortalezada e parenta de Bayão...
―E nós, pois, D. Garcia?
―Nós, senhores e amigos, só nos resta tambem
pernoitar. Voltemos aos
Tres-Caminhos. E de lá, em boa
avença, ao
arraial do Snr. D. Pedro de
Castro, a pedir agasalho... A par de tamanho senhor encontraremos mais
fartamente que nos nossos alforges o que todos, christãos e
brutos,
vamos necessitando, cevada, um naco de vianda, e de vinhos tres golpes
rijos...
Todos bradaram com alvoroço:―«Bem
traçado! bem traçado!...»―E de novo,
pelo barranco pedregoso, a cavalgada trotou pezadamente para os
Tres-Caminhos―onde já dous corvos se
encarniçavam sobre o corpo do
pastorinho morto.
[389]
Em breve, ao cabo do caminho do Nascente, no cabeço alto,
alvejaram as
tendas do arraial, ao clarão das fogueiras que por todo elle
fumegavam.
O Adail de Santa Ireneia arrancou da bosina tres sons lentos
annunciando
Filho-d'Algo. Logo de dentro da estacada outras businas soaram, claras
e
acolhedoras. Então o Adail galopou até ao
vallado, a annunciar ás
atalaias postadas nas barreiras, entre luzentes fogos d'almenara, a
mesnada amiga dos Ramires. Tructesindo parára no corrego
escuro, que o
pinheiral cerrado mais escurecia movendo e gemendo no vento. Dous
cavalleiros, de sobreveste negra e capuz, logo correram pelo pendor do
outeiro―bradando que o Snr. D. Pedro de Castro esperava o nobre senhor
de Santa Ireneia e muito se prazia para todo seu regalo e
serviço!
Silenciosamente Tructesindo desmontou; e com D. Garcia Viegas, e Leonel
de Çamora e Mendo de Briteiros e outros parentes de solar,
todos sem
lança ou broquel, descalçados os guantes,
galgaram o cabeço até á
estacada, cujas cancellas se escancararam, mostrando na claridade
incerta dos fogareus sombrios magotes de peões―onde, por
entre os
bassinetes de ferro, surdiam toucas amarellas de mancebas e gorros
enguisalhados de jograes. Apenas o velho assomou aos barrotes dous
infanções, sacudindo a espada, bradaram:
[390] ―Honra! honra! aos Ricos-Homens de Portugal!
As trompas misturavam o clangor rispido aos rufos lassos dos tambores.
E
por entre a turba, que calladamente recuára em alas lentas,
avançou,
precedido por quatro cavalleiros que erguiam archotes accesos, o velho
D. Pedro de Castro,
o Castellão, o
homem das longas
guerras e dos
vastos senhorios. Um corselete d'anta com lavores de prata cinjia o seu
peito já curvado, como consumido por tamanhas fadigas de
pelejar e
tamanhas cubiças de reinar. Sem elmo, sem armas, appoiava a
mão
cabelluda de rijas veias a um bastão de marfim. E os olhos
encovados
faiscavam, com affavel curiosidade, na requeimada magreza da face, de
nariz mais recurvo que o bico d'um falcão, repuxada a um
lado por um
fundo gilvaz que se sumia na barba crespa, aguda e quasi branca.
Deante do senhor de Santa Ireneia alargou vagarosamente os
braços. E com
um grave riso que mais lhe recurvou, sobre a barba espetada, o nariz de
rapina:
―Viva Deus! Grande é a noite que vos traz, primo e amigo!
Que não a
esperava eu de tanta honra, nem sequer de tanto gosto!...
[391]Ao rematar este
duro Capitulo, depois de tres manhãs de
trabalho,
Gonçalo arrojou a penna com um suspiro de
cansaço. Ah! já lhe entrava a
fartura d'essa interminavel Novella, desenrolada como um novello
solto―sem que elle lhe podesse encurtar os fios, tão
cerradamente os
emmaranhára no seu denso Poema o Tio Duarte que elle seguia
gemendo! E
depois nem o consolava a certeza de construir obra forte. Esses
Tructesindos, esses Bastardos, esses Castros, esses
Sabedores,
eram
realmente varões Affonsinos, de solida substancia
historica?... Talvez
apenas oucos titeres, mal engonçados em erradas armaduras,
povoando
inveridicos arraiaes e castellos, sem um gesto ou dizer que datassem
das
velhas edades!
E ao outro dia não reuniu em todo o seu ser coragem para
retomar aquella
sofrega correria dos de Santa Ireneia sobre o bando
escapadiço de Bayão.
De resto já remettera tres Capitulos da
Novella―já calmára as ancias do
Castanheiro. Mas a ociosidade mais lhe pesou n'essa semana, arrastada
pelos canapés ou por entre os buxos do jardim, fumando e
tristemente
sentindo que a Vida lhe fugia em fumo. Para o enervar accrescia um
aborrecimento de dinheiro―uma lettra de seiscentos mil
réis, do
derradeiro anno de Coimbra, sempre reformada, sempre
[392]avolumada, e que
agora o emprestador, um certo Leite, d'Oliveira, reclamava com dureza.
O
seu alfaiate de Lisboa tambem o importunava com uma conta pavorosa,
atulhando duas laudas. Mas sobretudo o desolava a solidão da
Torre.
Todos os alegres amigos dispersos pela beira-mar ou nas quintas. A
Eleição encalhada como uma barca no lodo. A
irmã de certo com o
outro
no Mirante. Até a prima Maria desattendendo ingratamente o
seu timido
pedido d'uma «conversasinha.» E elle no seu quente
casarão, sem energia,
immobilisado n'uma inercia crescente, como se cordas o travassem, cada
dia mais apertadas―e d'homem se volvesse em fardo.
Uma tarde no seu quarto, vagaroso e sombrio, sem mesmo parolar com o
Bento, acabava de se vestir para montar a cavallo, espairecer n'um
galope pelos caminhos de Valverde―quando o pequeno da Crispola
(já
estabelecido na Torre como pagem, de fardeta de botões
amarellos) bateu
esbaforidamente á porta.―Era uma senhora que
parára ao portão, dentro
d'uma carruagem, pedia ao Fidalgo para descer...
―Não disse o nome?
―Não, senhor. É uma senhora magra, puxada a dous
cavallos, com redes...
A prima Maria! Com que alvoroço correu, agarrando no cabide
do corredor
um velho chapeu de
[393]palha!
E em baixo foi como se contemplasse a Deusa
da
Fortuna na sua roda ligeira.
―Oh prima Maria, que surpreza!... Que felicidade!
Debruçada da portinhola da carruagem (a caleche azul da
Feitosa), D.
Maria Mendonça, com um chapeu novo enramalhetado de lilazes,
desculpou
atrapalhadamente e rindo o seu silencio. Recebera a carta do primo
muito
atrasada... Sempre o fatal carteiro, tropego e bebedo... Depois uns
dias
muito atarefados em Oliveira com a Annica, que preparava para o inverno
a casa da rua das Vellas.
―E finalmente, como devia uma visita em Villa-Clara á pobre
Venancia
Rios, que tem estado doente, achei mais simples e mais completo parar
na
Torre... E então?
Gonçalo sorria, embaraçado:
―Então, nada de grave, mas... É que desejava
conversar comsigo... Por
que não entra?
Abrira a portinhola. Ella preferia passear na estrada. E ambos
s'encaminharam para o velho banco de pedra que os alamos abrigavam em
frente ao portão da Torre. Gonçalo sacudiu com o
lenço a ponta do banco.
―Pois, prima Maria, eu desejava conversar... Mas é
difficil, tão
difficil!... Talvez o melhor seja atacar a questão
brutalmente.
[394] ―Ataque.
―Então lá vae!... A prima acha que eu perco o
meu tempo se me dedicar á
sua amiga D. Anna?
Pousada de leve á borda do banco, enrolando attentamente a
seda preta do
guardasolinho, Maria Mendonça tardou, murmurou:
―Não, acho que o primo não perde o seu tempo...
―Ah! acha?
Ella considerava Gonçalo, gozando a sua
perturbação e anciedade.
―Jesus, prima!... Diga alguma cousa mais!
―Mas que quer que lhe diga mais? Já lhe declarei em
Oliveira. Ainda sou
muito nova para andar com recadinhos de sentimento. Mas acho que a
Annica é bonita, é rica, é viuva...
Gonçalo arrancou do banco, erguendo os braços, em
desolação. E, como D.
Maria tambem se erguera, ambos seguiram pela tira de relva que orla os
alamos. Elle quasi gemia, desconsolado:
―Ora bonita, viuva, rica... Para conhecer esses grandes segredos
não a
incommodava eu, prima!... Que diabo! seja boa rapariga, seja franca! A
prima sabe, de certo já ambas conversaram... Seja franca.
Ella tem por
mim alguma sympathia?
D. Maria parou, murmurou, riscando com a ponta do guardasolinho o
trilho
amarellado da relva:
―Pois está claro que tem...
[395] ―Bravo! Então, se d'aqui a um tempo, passados estes
primeiros mezes de
luto, eu me declarasse, me...
Ella dardejou a Gonçalo os espertos olhos:
―Santo Deus, como o primo por ahi vae, a galope... Então
é uma paixão?
Gonçalo tirou o seu velho chapeu de palha, passou lentamente
os dedos
pelos cabellos. E n'um immenso e triste desabafo:
―Olhe, prima! É sobretudo a necessidade de me accommodar na
vida! Pois
não lhe parece?
―Tanto me parece que lhe indiquei o bom poizo... E agora adeus, passa
das cinco horas. Não me quero demorar por causa dos creados.
Gonçalo protestou, supplicou:
―Mais um bocadinho!... É tão cedo! Só
outra cousa, com franqueza. Ella
é boa rapariga?
D. Maria voltára, ao cabo do renque d'alamos, recolhendo
á caleche:
―Uma pontinha de genio, para animar a existencia. Mas muito boa
rapariga... E uma dona de casa admiravel! O primo não
imagina como anda
a
Feitosa. A ordem, o acceio, a regularidade, a
disciplina... Ella
olha por tudo, até pela adega, até pela cocheira!
Gonçalo esfregou radiantemente as mãos:
―Pois se d'aqui a um anno se realisar o grande
[396]acontecimento
hei de
gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa de
Ramires!
―Por isso eu trabalho, para servir o brazão e o nome!
exclamou ella,
saltando ligeiramente para a caleche, como se fugisse, arremessada
aquella clara confissão.
O trintanario trepára á almofada. E em quanto os
cavallos folgados
largavam, aos corcovos, D. Maria ainda gritou:
―Sabe quem encontrei em Villa Clara? O Titó!
―O Titó?...
―Chegou do Alemtejo, vem jantar comsigo. Eu não o trouxe na
carruagem
por decencia, para o não comprometter...
E a caleche rolou―entre os risos e os doces acenos com que ambos se
afagavam, n'aquella nova concordancia mais calorosa d'uma
conspiração
sentimental.
Gonçalo largou logo alegremente para Villa-Clara, ao
encontro do Titó. E
já o alvoroçava a idéa de colher do
Titó, intimo da
Feitosa,
informações sobre a D. Anna, o seu genio, os seus
modos. A prima Maria,
por amor dos Ramires (sobretudo, coitada, para proveito dos
Mendonças!),
idealisava a noiva. Mas o Titó, o homem mais veridico do
Reino, amando a
Verdade com a antiga devoção de Epaminondas,
apresentaria D. Anna sem um
enfeite nem um desenfeite.
[397]E
o Titó... Ah! sob o seu
vozeirão troante, a
sua indolencia bovina, o Titó possuia um espirito muito
attento, muito
penetrante.
Logo á Portella os dous amigos s'encontraram. E, apesar de
separação tão
curta, o abraço foi estrondoso.
―Oh sô Gonçalão!...
―Oh Titósinho querido! tens feito cá uma falta
enorme!... E teu irmão?
O mano melhor, mas arrasado. Muito cartapacio e muito fêmea
para velho
de sessenta annos. E elle lá o
avisára:―«Mano João, mano
João! olhe que
assim sempre agarrado aos papeis velhos e ás cachopas novas,
o mano
rebenta!»
―E por cá? Essa eleição?
―A eleição agora para outubro, nos
começos d'outubro... De resto,
semsaboria universal. Gouveia na Costa, Manoel Duarte na vindima... Eu
seccadote, murchote, sem veia, até sem appetite.
―Olha que eu venho jantar e convidei o Videirinha.
―Bem sei, já me disse a prima Maria, que parou um bocado na
Torre...
Ella está na
Feitosa com a D. Anna.
Durante um momento repisou sobre a intimidade da prima Maria na
Feitosa, com a tentação de
desabafar, logo alli
na estrada, sobre o
inesperado
[398]romance
que desabrochára. Mas não
ousou! Era um angustiado
acanhamento, como a vergonha de cubiçar assim todos os
restos do pobre
Lucena―o Circulo e a viuva.
Então, conversando do Alemtejo e do mano João
(que contára muitas
antigualhas massadoras sobre a genealogia dos Ramires), desceram da
Portella á Torre, com tenção de
estirar o passeio até aos Bravaes. Mas,
na Torre, Gonçalo desejou avisar a Rosa dos dous convivas
inesperados,
senhores de tão poderoso garfo. Entraram pela porta do pomar
onde um fio
lento d'agoa s'atardava nos regueiros. Aos brados galhofeiros do
Fidalgo
a Rosa accudio, limpando as mãos ao avental. O que! dous
convidados!
Mesmo quatro, e mais valentes, que graças a Deus nosso
Senhor o
jantarinho sobrava! Ainda de tarde comprára a uma mulher da
Costa um
cesto de sardinhas, graudas e gordas que regalavam!... O
Titó reclamou
logo uma fritada tremenda de sardinha e ovos. E os dois amigos
atravessavam o pateo―quando Gonçalo reparou no Bento,
escarranchado no
banco da latada, deante d'uma tigella, e areando com enthusiasmo um
castão de prata lavrada, que emergia de dentro d'uma toalha
enrolada
como d'uma bainha.
―Que castão é esse, Bento? assim embrulhado?
O Bento lentamente saccou da toalha torcida
[399]um
chicote, escuro e
comprido, com tres arestas afiadas como as d'um florete.
―Nem o Snr. Dr. sabia! Estava no sotão. Agora de tarde
andava lá a
escarafunchar por causa d'uma ninhada de gatos, e detraz d'um bahu dou
com umas esporas de prateleira e com este arrôcho...
Gonçalo estudou o macisso castão de prata,
sacudio a fina vara que
zinia:
―Explendido chicote... Oh Titó, hein?... Afiado como um
cutello. E
antigo, muito antigo, com as minhas armas... De que diabo é
feito?
baleia?
―De cavallo-marinho... Uma arma terrivel. Mata um homem... O mano
João
tem um, mas com castão de metal... Mata um homem!
―Bem, rematou Gonçalo. Limpa e põe no meu
quarto, Bento! Passa a ser o
meu chicote de guerra!
Á porta do pomar ainda encontraram o Pereira da Riosa, de
quinzena de
cutim deitada aos hombros. Em breve, no dia de S. Miguel, o Pereira
tomava emfim a lavra da Torre. E Gonçalo gracejou, mostrando
ao Titó o
lavrador famoso. Eis o homem! eis o grande homem que se preparava a
tornar a Torre uma fallada maravilha de ceára, vinha e
horta! O Pereira
coçava a barba rala:
―E tambem a enterrar bom dinheiro! Emfim um gosto sempre valeu mais que
um vintem! E o Fidalgo, como patrão, merece terra em que os
olhos se
esqueçam de regalados!...
[400] ―Oh, Snr. Pereira! rebombou o Titó. Então
não se esqueça de cuidar dos
melões. É uma vergonha! Nunca na Torre se comeu
um bom melão!
―Pois para o anno, assim Deus nos conserve, já V. Ex.
a
comerá na Torre
um bom melão!
Gonçalo abraçou ainda o esperto lavrador―e
apressou para a estrada,
decidido a desenrolar toda a confidencia ao Titó, na
solidão favoravel
do arvoredo dos Bravaes. Mas, apenas recomeçaram a
caminhada, o mesmo
enleio o travou―quasi temendo agora as
informações do Titó, homem
tão
sevéro, de Moral tão escarpada. E todo o demorado
giro pelos Bravaes o
findaram sem que Gonçalo desafogasse. O crepusculo descera,
molle e
quente, quando recolheram―conversando sobre a pesca do savel no
Guadiana.
Defronte do portão da Torre Videirinha esperava, dedilhando
o violão na
penumbra dos alamos. Como a noite se conservava abafada, sem uma
aragem,
jantaram na varanda, com dous candieiros accesos. Logo ao desdobrar o
guardanapo o Titó, vermelho e espraiado sobre a cadeira,
declarou «que
graças ao Senhor da Saude, a sede era boa!» Elle e
Gonçalo praticaram as
usadas façanhas de garfo e de copo. Quando o Bento servio o
café uma
immensa e lustrosa lua nova surgia, ao fundo da quinta escura, por traz
dos outeiros de Valverde. Gonçalo, enterrado n'uma cadeira
de vime,
accendeu
[401]o
charuto com beatitude. Todos os tedios e incertezas d'essas
semanas se despegavam da sua alma como cinza apagada, brevemente
varrida. E foi sentindo menos a doçura da noite, que um
sabor melhor á
vida desanuviada, que exclamou:
―Pois, senhores, agora, está uma delicia!...
Videirinha, depois d'um curto cigarro, retomára o
violão. Atravez da
quinta, pedaços de muros caiados, algum trilho de rua mais
descoberto, a
agua do Tanque-Grande, rebrilhavam ao luar que resvalava dos cerros; e
a
quietação do arvoredo, da claridade, da noite,
penetravam n'alma com
adormecedora caricia. Titó e Gonçalo saboreavam o
famoso cognac de
Moscatel, preciosa antigualha da Torre, silenciosamente enlevados no
Videirinha―que recuára para o fundo da varanda, se
envolvera em sombra.
Nunca o bom cantador ferira as cordas com
inspiração mais enternecida.
Até os campos, o ceu inclinado, a lua cheia sobre as
collinas, escutavam
os queixumes do
fado da Ariosa. E no escuro, sob
a varanda, o pigarro
da Rosa, os passos abafados dos creados, algum sumido riso de rapariga,
o bater das orelhas d'um perdigueiro―eram como a presença
d'um povo
suavemente attrahido pelo descante formoso.
Assim a noite se alongou, a lua subio com solitario
[402]fulgor.
Titó, pesado
do brodio, adormecêra. E como sempre, para findar, Videirinha
atacou
ardentemente o
Fado dos Ramires:
Quem te verá sem que
estremeça,
Torre de Santa Ireneia,
Assim tão negra e callada
Por noites de lua cheia...
E lançou então uma quadra nova, que
trabalhára n'essa semana com amor
sobre uma erudita nota do bom Padre Sueiro. Era a gloria magnifica de
Paio Ramires, Mestre do Templo―a quem o Papa Innocencio, e a Rainha
Branca de Castella, e todos os Principes da Christandade supplicam que
se arme, e corra em dura pressa, e liberte S. Luiz Rei de
França,
captivo nas terras de Egypto...
Que só em Paio Ramires
Põe agora o mundo a
esperança...
Que junte os seus Cavalleiros
E que salve o Rei de França!
E por este avô e tal façanha até
Gonçalo se interessou―acompanhando o
canto, n'um tremulo esganiçado, de braço erguido:
Ai, que junte os seus cavalleiros
E que salve o Rei de
França!...
[403]
Ao rolar mais forte do côro Titó descerrou as
palpebras, arrancou do
canapé o corpansil immenso―e declarou que marchava para
Villa Clara:
―Estou derreado! Sempre em jornada e sem dormir, desde hontem
ás quatro
da manhã que larguei de Cidadelhe... Caramba, dava agora,
como aquelle
rei grego, um crusado por um burro!
Então Gonçalo, animado pelo cognac, tambem se
ergueu com uma resolução
quasi alegre:
―Oh Titó, antes de sahires anda cá dentro que
quero fallar comtigo a
respeito d'um caso!
Agarrára um dos candieiros, penetrou na sala de jantar onde
errava o
cheiro de magnolias morrendo n'um vaso. E ahi, sem
preparação, com os
olhos bem decididos, bem cravados no Titó―que o seguira
arrastadamente,
ainda se espreguiçava:
―Oh Titó, ouve lá e sê franco. Tu ias
muito á
Feitosa... Que te
parece aquella D. Anna?
Titó, que despertára como ao rebentar d'um
morteiro, considerou Gonçalo
com assombro:
―Ora essa! Mas a que proposito?...
Gonçalo atalhou, na pressa de colher rapidamente uma certeza:
―Olha! Eu para ti não tenho segredos. N'estas ultimas
semanas houveram
ahi umas conversas, uns encontros... Emfim, para resumir, se d'aqui a
[404]tempos eu pensasse
em casar com a D. Anna, creio que ella, por seu
lado,
não recusava. Tu ias á
Feitosa.
Tu sabes... Que
tal rapariga é ella?
Titó crusára os braços violentamente:
―Pois tu vaes casar com a D. Anna?
―Homem, não vou casar. Não sigo esta noite para
a Egreja. Por ora quero
só informações... E de quem as posso
ter, mais francas e mais seguras,
do que de ti, que és meu amigo e que a conheces?
Titó não descrusára os
braços―levantando para o Fidalgo da Torre a face
honesta e sevéra:
―Pois tu pensas em casar com a D. Anna, tu, Gonçalo Mendes
Ramires?...
Gonçalo atirou um gesto de impaciencia e fartura:
―Oh! se me vens com a fidalguia e com o Paio Ramires...
O Titó quasi berrou, na sua indignação:
―Qual fidalguia! É que um homem de bem, como tu,
não pensa em casar com
uma creatura como ella!... Fidalguia?... Sim! Mas fidalguia d'alma e de
coração!
Gonçalo emmudeceu, trespassado. Depois, com uma serenidade a
que se
forçára, argumentou, deduzio:
―Bem! tu então sabes outras cousas... Eu por
[405]mim sei que
ella é bonita
e rica: sei tambem que é séria, por que nunca
sobre ella se rosnou nem
aqui nem em Lisboa: são qualidades para se casar com uma
mulher... Tu
agora affianças que se não pode casar com ella.
Portanto sabes outras
cousas... Dize.
Foi então o Titó que emmudeceu, immovel deante do
Fidalgo como se o laço
d'uma corda o colhesse e o travasse. Por fim, soprando, com um
esforço
enorme:
―Tu não me chamaste para eu depôr como
testemunha... Em principio, sem
explicações, perguntas se podes casar com essa
mulher. E eu, sem
explicações, em principio, declaro que
não... Que diabo queres mais?
Gonçalo exclamou, revoltado:
―Que quero? Pelo amor de Deus, Titó!... Suppõe
tu que estou doidamente
apaixonado pela D. Anna, ou que tenho um interesse immenso em casar com
ella... Que não estou, nem tenho: mas suppõe!
N'esse caso não se desvia
um amigo d'um acto em que elle está tão
fundamente empenhado, sem lhe
apresentar uma razão, uma prova...
Assim apertado Titó baixou a cabeça, que
coçou com desespero. Depois
acobardadamente, para escapar, adiou a contenda:
―Olha, Gonçalo, eu estou muito estafado. Tu não
[406]vaes a esta hora
para a
Egreja: e ella menos, que o outro marido ainda não arrefeceu
na cova.
Então ámanhã conversamos.
Atirou duas passadas enormes, empurrou a porta da varanda, berrando
pelo
Videirinha:
―São que horas, Videira! Toca a abalar, que não
dormi desde Cidadelhe.
Videirinha, que preparava com esmero um grog frio, esvasiou
atabalhoadamente o copo, recolheu o violão precioso. E
Gonçalo não os
deteve, esfregando silenciosamente as mãos, amuado com
aquella recusa do
Titó tão desamiga e teimosa. Como sombras
atravessaram uma sala onde
dormia, esquecida desde os Ramires do seculo XVIII, uma espineta de
charão. No patamar da escada que conduzia á
portinha verde, Gonçalo,
para os allumiar, erguera um castiçal. Titó
accendeu um cigarro á vela.
A sua mão cabelluda tremia.
―Então, entendido... Appareço
ámanhã, Gonçalo.
―Quando quizeres, Titó.
E no secco assentimento do Fidalgo transparecia tanto despeito―que
Titó
hesitou nos estreitos degraus que atulhava. Por fim desceu pesadamente.
Videirinha, já na estrada, considerava o ceu, a luminosa
serenidade:
―Que linda noite, snr. Doutor!
[407] ―Linda, Videirinha... E obrigado. Vossê hoje tocou
divinamente!
Gonçalo entrára na sala dos retratos,
pousára apenas o castiçal―quando,
por baixo da varanda aberta, o vozeirão do Titó
retumbou:
―Oh Gonçalo, desce cá abaixo.
O Fidalgo rolou pelos degraus com soffreguidão. Para
além dos alamos, no
luar da estrada, Videirinha afinava o violão. E apenas a
face do Fidalgo
surdio na claridade da porta o Titó, que esperava com o
chapéo para a
nuca, desabafou:
―Oh Gonçalo, tu ficaste amuado... É tolice! E
entre nós não quero
sombras. Então lá vae! Tu não podes
casar com essa mulher por que ella
teve um amante. Não sei se antes ou depois d'esse teve
outro. Não ha
creatura mais manhosa, nem mais disfarçada. Não
me venhas agora com
perguntas. Mas fica certo que ella teve um amante. Sou eu que t'o
affirmo: e tu sabes que eu nunca minto!
Bruscamente metteu á estrada, com os possantes hombros
vergados. Gonçalo
não se movera de sobre os degraus de pedra, deante dos mudos
alamos,
como elle immoveis. Uma palavra passára, irreparavel, no
macio silencio
da noite e da lua―e eis o alto sonho que elle construira sobre a D.
Anna e a sua belleza e os seus duzentos contos despenhado no lodo!
Lentamente subio, repenetrou
[408]na
sala. Por cima da chamma alta da vela,
n'um painel fusco, uma face acordára, uma secca, amarellada
face, de
altivos bigodes negros, que se inclinava, attenta como reparando. E
longe, Videirinha espalhava pelos campos adormecidos os ingenuos versos
celebrando a gloria tamanha da Casa illustre:
Que só em Paio Ramires
Põe agora o mundo
esperança...
Que junte os seus cavalleiros
E que salve o Rei de
França!...
X
Até noite alta Gonçalo, passeando pelo quarto,
remoeu a amarga certeza
de que sempre, atravez de toda a sua vida (quasi desde o collegio de S.
Fiel!), não cessára de padecer
humilhações. E todas lhe resultavam de
intentos muito simples, tão seguros para qualquer homem como
o vôo para
qualquer ave―só para elle constantemente rematados por
dôr, vergonha ou
perda! Á entrada da vida escolhe com enthusiasmo um
confidente, um
irmão, que traz para a quieta intimidade da Torre―e logo
esse homem se
apodéra ligeiramente do coração de
Gracinha e ultrajosamente a abandona!
Depois concebe o desejo tão corrente de penetrar na Vida
Politica―e
logo o Acaso o fórça a que se renda e se acolha
á influencia d'esse
mesmo homem, agora Auctoridade poderosa, por elle durante todos esses
annos de despeito tão detestada e chasqueada! Depois abre ao
amigo,
agora restabelecido na sua convivencia,
[410]a
porta dos Cunhaes, confiado
na
seriedade, no rigido orgulho da irmã―e logo a
irmã s'abandona ao antigo
enganador, sem lucta, na primeira tarde em que se encontra com elle na
sombra favoravel d'um caramanchão! Agora pensa em casar com
uma mulher
que lhe offerecia com uma grande belleza uma grande fortuna―e
immediatamente um companheiro de Villa-Clara passa e
segreda:―«A mulher
que escolheste, Gonçalinho, é uma marafona cheia
d'amantes!» De certo
essa mulher não a amava com um amor nobre e forte! Mas
decidira
accommodar nos formosos braços d'ella, muito
confortavelmente, a sua
sorte insegura―e eis que logo desaba, com esmagadora pontualidade, a
humilhação costumada. Realmente o Destino malhava
sobre elle com rancor
desmedido!
―E por quê? murmurava Gonçalo, despindo
melancolicamente o casaco. Em
vida tão curta, tanta decepção...
Porquê? Pobre de mim!
Cahio no vasto leito como n'uma sepultura―enterrou a face no
travesseiro com um suspiro, um enternecido suspiro de piedade por
aquella sua sorte tão contrariada, tão sem
soccorro. E recordava o
presumpçoso verso do Videirinha, ainda n'essa noite
proclamado ao
violão:
Velha casa de Ramires
Honra e flor de Portugal!
[411]
Como a flor murchára! Que mesquinha honra! E que contraste o
do
derradeiro Gonçalo, encolhido no seu buraco de Santa
Ireneia, com esses
grandes avós Ramires cantados pelo Videirinha―todos elles,
se Historia
e Lenda não mentiam, de vidas tão triumphaes e
sonoras! Não! nem sequer
d'elles herdára a qualidade por todos herdada atravez dos
tempos―a
valentia facil. Seu pae ainda fora o bom Ramires destemido―que na
fallada desordem da romaria da Riosa avançava com um
guardasol contra
tres clavinas engatilhadas. Mas elle... Alli, no segredo do quarto
apagado, bem o podia livremente gemer―elle nascera com a
falha,
a
falha de peor desdouro, essa irremediavel fraqueza da carne que,
irremediavelmente, deante de um perigo, uma ameaça, uma
sombra, o
forçava a recuar, a fugir... A fugir d'um Casco. A fugir
d'um malandro
de suissas louras que, n'uma estrada e depois n'uma venda o insulta sem
motivo, para meramente ostentar pimponice e arreganho. Ah vergonhosa
carne, tão espantadiça!
E a Alma... N'essa calada treva do quarto bem o podia reconhecer
tambem,
gemendo. A mesma fraqueza lhe tolhia a Alma! Era essa fraqueza que o
abandonava a qualquer influencia, logo por ella levado como folha secca
por qualquer sopro. Por que a prima Maria uma tarde adoça os
espertos
olhos
[412]e lhe
aconselha por traz do leque que se interesse pela D.
Anna―logo elle, fumegando d'esperança, ergue sobre o
dinheiro e a
belleza de D. Anna uma presumpçosa torre de ventura e luxo.
E a Eleição?
essa desgraçada Eleição? Quem o
empurrára para a Eleição, e para a
reconciliação indecente com o Cavalleiro, e para
os desgostos d'ahi
manados? O Gouveia, só com leves argucias, murmuradas por
cima do
cache-nez desde a loja do Ramos até á esquina do
Correio! Mas que! mesmo
dentro da sua Torre era governado pelo Bento, que superiormente lhe
impunha gostos, dietas, passeios, e opiniões e
gravatas!―Homem de tal
natureza, por mais bem dotado na Intelligencia, é massa
inerte a que o
Mundo constantemente imprime fórmas varias e contrarias. O
João Gouveia
fizera d'elle um candidato servil. O Manuel Duarte poderia fazer d'elle
um beberrão immundo. O Bento facilmente o levaria a atar ao
pescoço, em
vez d'uma gravata de seda, uma colleira de couro! Que miseria! E
todavia
o Homem só vale pela Vontade―só no exercicio da
Vontade reside o goso
da Vida. Por que se a Vontade bem exercida encontra em torno
submissão―então é a delicia do
dominio sereno: se encontra em torno
resistencia―então é a delicia maior da lucta
interessante. Só não sahe
goso forte e viril da inercia que se deixa arrastar mudamente, n'um
silencio e macieza
[413]de
cera... Mas elle, elle, descendendo de tantos
varões famosos pelo Querer―não conservaria,
escondida algures no seu
Ser, dormente e quente como uma braza sob cinza, uma parcella d'essa
energia hereditaria?... Talvez! nunca porém n'esse
pêco e encafuado
viver de Santa Ireneia a fagulha despertaria, resaltaria em chamma
intensa e util. Não! pobre d'elle! Mesmo nos movimentos da
Alma onde
todo o homem realisa a liberdade pura―elle soffreria sempre a
oppressão
da Sorte inimiga!
Com outro suspiro mais se enterrou, s'escondeu sob a roupa.
Não
adormecia, a noite findava―já o relogio de
charão, no corredor, batera
cavamente as quatro horas. E então, atravez das palpebras
cerradas, no
confuso cançasso de tantas tristezas revolvidas,
Gonçalo percebeu,
atravez da treva do quarto, destacando pallidamente da treva, faces
lentas que passavam...
Eram faces muito antigas, com desusadas barbas ancestraes, com
cicatrizes de ferozes ferros, umas ainda flammejando como no fragor de
uma batalha, outras sorrindo magestosamente como na pompa d'uma
gala―todas dilatadas pelo uso soberbo de mandar e vencer. E
Gonçalo,
espreitando por sobre a borda do lençol, reconhecia n'essas
faces as
veridicas feições de velhos Ramires, ou
já assim comtempladas em
denegridos retratos, ou por elle assim
[414]concebidas,
como concebera as de
Tructesindo, em concordancia com a rijeza e explendor dos seus feitos.
Vagarosas, mais vivas, ellas cresciam d'entre a sombra que latejava
espessa e como povoada. E agora os corpos emergiam tambem,
robustissimos
corpos cobertos de saios de malha ferrugenta, apertados por arnezes
d'aço lampejante, embuçados em fuscos mantos de
revoltas prégas,
cingidos por faustosos gibões de brocado onde scintillavam
as pedrarias
de collares e cintos;―e armados todos, com as armas todas da Historia,
desde e clava gôda de raiz de roble errissada de puas,
até ao espadim de
sarau enlaçarotado de seda e ouro.
Sem temor, erguido sobre o travesseiro, Gonçalo
não duvidava da
realidade maravilhosa! Sim! eram os seus avós Ramires, os
seus
formidaveis avós historicos, que, das suas tumbas dispersas
corriam, se
juntavam na velha casa de Santa Ireneia nove vezes secular―e formavam
em torno do seu leito, do leito em que elle nascera, como a Assembleia
magestosa da sua raça resurgida. E até mesmo
reconhecia alguns dos mais
esforçados, que agora, com o repassar constante do Poemeto
do tio Duarte
e o Videirinha gemendo fielmente o seu «fado», lhe
andavam sempre na
imaginação...
Aquelle além, com o brial branco a que a cruz
[415]vermelha
enchia o
peitoral, era certamente Gutierres Ramires o
d'Ultramar,
como quando
corria da sua tenda para a escalada de Jerusalem. No outro,
tão velho e
formoso, que estendia o braço, elle adivinhava Egas Ramires,
negando
acolhida no seu puro solar a El-Rei D. Fernando e á adultera
Leonor!
Esse, de crespa barba ruiva, que cantava sacudindo o pendão
real de
Castella, quem, senão Diogo Ramires,
o Trovador,
ainda na
alegria da
radiosa manhã d'Aljubarrota? Deante da incerta claridade do
espelho
tremiam as fôfas plumas escarlates do morrião de
Paio Ramires, que
s'armava para salvar S. Luiz Rei de França. Levemente
balançado, como
pelas ondas humildes d'um mar vencido, Ruy Ramires sorria ás
naus
inglezas que ante a prôa da sua Capitanea submissamente
amainavam por
Portugal. E, encostado ao poste do leito, Paulo Ramires, pagem do
Guião
d'El-Rey nos campos fataes de Alcacer, sem elmo, rota a
couraça,
inclinava para elle a sua face de donzel, com a doçura grave
d'um avó
enternecido...
Então, por aquella ternura attenta do mais poetico dos
Ramires, Gonçalo
sentio que a sua Ascendencia toda o amava―e da escuridão
das tumbas
dispersas accudira para o velar e soccorrer na sua fraqueza. Com um
longo gemido, arrojando a roupa, desafogou, dolorosamente contou aos
seus avós resurgidos a arrenegada Sorte que o combatia e que
[416]sobre a sua
vida, sem descanço, amontoava tristeza, vergonha e perda! E
eis que
subitamente um ferro faiscou na treva, com um abafado
brado:―«Neto,
doce neto, toma a minha lança nunca partida!...» E
logo o punho d'uma
clara espada lhe roçou o peito, com outra grave voz que o
animava:―«Neto, doce neto, toma espada pura que lidou em
Ourique!...» E
depois uma acha de coriscante gume bateu no travesseiro, offertada com
altiva certeza:―«Que não derribará
essa acha, que derribou as portas
d'Arzilla?...»
Como sombras levadas n'um vento transcendente todos os avós
formidaveis
perpassavam―e arrebatadamente lhe estendiam as suas armas, rijas e
provadas armas, todas, atravez de toda a Historia, ennobrecidas nas
arrancadas contra a Moirama, nos trabalhados cercos de Castellos e
Villas, nas batalhas formosas com o Castelhano soberbo... Era, em torno
do leito, um heroico reluzir e retinir de ferros. E todos soberbamente
gritavam:―«Oh neto, toma as nossas armas e vence a Sorte
inimiga!...»
Mas Gonçalo, espalhando os olhos tristes pelas sombras
ondeantes,
volveu:―«Oh Avós, de que me servem as vossas
armas―se me falta a vossa
alma?...»
Acordou, muito cedo, com a enredada lembrança d'um pesadello
em que
fallára a mortos:―e, sem a preguiça, que sempre
o amollecia nos
colchões, enfiou um roupão, escancarou as
vidraças. Que formosa
[417]manhã!
uma manhã dos fins de Septembro, macia, lustrosa e fina; nem
uma nuvem
lhe desmanchava o vasto, o immaculado azul; e o sol já
pousava nos
arvoredos, nos outeiros distantes, com uma doçura outomnal.
Mas, apesar
de lhe respirar allentamente o brilho e a pureza, Gonçalo
permaneceu
toldado de sombras, das sombras da véspera, retardadas no
seu espirito
opprimido, como nevoas em valle muito fundo. E foi ainda com um
suspiro,
arrastando tristonhamente as chinellas, que puxou o cordão
da campainha.
O Bento não tardou com a infusa da agoa quente para a barba.
E
acostumado ao alegre acordar do Fidalgo tanto estranhou aquelle
silencioso e enrugado mover pelo quarto, que desejou saber se o Snr.
Doutor passára mal a noite...
―Pessimamente!
Bento declarou logo, com vivacidade e
reprovação―que certamente fizera
mal ao Snr. Doutor tanto cognac de moscatel. Cognac muito adocicado,
muito excitante... Bom para o Snr. D. Antonio, homemzarrão
pesado. Mas o
Snr. Doutor, assim nervoso, nunca devia tocar n'aquelle cognac. Ou
então, meio calice escasso.
Gonçalo ergueu a cabeça, na surpreza de encontrar
logo ao começo do seu
dia e tão flagrante, aquelle dominio que todos sobre elle se
arrogavam―e de que tanto se lastimava, atravez de toda a amarga noite!
[418]
Eis ahi o Bento mandando―marcando a sua ração de
cognac! E justamente o
Bento insistia:
―O Snr. Doutor bebeu mais de tres calices. Assim não
convém... Eu
tambem tive culpa em não tirar a garrafa...
Então, perante despotismo tão declarado, o
Fidalgo da Torre teve uma
brusca revolta:
―Homem, não dês tantas leis. Bebo o cognac que
preciso e que quero!
Ao mesmo tempo, com a ponta dos dedos, experimentava a agua na infusa:
―Esta agua está morna! exclamou logo. Já me
tenho fartado de dizer!
Para a barba, preciso sempre agua a ferver.
O Bento, gravemente, mergulhou tambem o dedo na agua:
―Pois esta agua está quasi a ferver... Nem para a barba se
necessita
agua mais quente.
Gonçalo encarou o Bento com furor. O que! mais
objecções, mais leis!
―Pois vá immediatamente buscar outra agua! Quando eu
peço agua quente,
pretendo que venha em cachão. Irra! tanta
sentença!... Eu não quero
moral, quero obediencia!
O Bento considerou Gonçalo atravez d'um espanto que lhe
inchára a face.
Depois, lentamente, com magoada dignidade, empurrou a porta, levando
[419]a
infusa. E já Gonçalo se arrependia da sua
violencia. Coitado, não era
culpa do Bento se a vida lhe andava a elle tão estragada e
sacudida!
Depois, em casa tão antiga, não destoava a
tradição dos antigos aios. E
o Bento com perfeito rigor lhes reproduzia a rabugice e a lealdade! Mas
ascendencia, e livre fallar bem lhe cabiam―bem os merecia por
tão
longa, tão provada dedicação...
O Bento, ainda vermelho e inchado, voltava com a infusa fumegante. E
Gonçalo logo docemente, para o adoçar:
―Dia muito bonito, hein, Bento?
O velho rosnou, ainda amuado:
―Muito bonito.
Gonçalo ensaboava a face, rapidamente, na impaciencia de
reatar com o
Bento, de lhe restabelecer a supremacia amoravel. E por fim mais doce,
quasi humilde:
―Pois se achas o dia assim bonito, dou um passeio a cavallo antes
d'almoço. Que te parece? Talvez me faça bem aos
nervos... Com effeito,
aquelle cognac não me convém... Então,
Bento, faze o favor, grita ahi ao
Joaquim que me tenha a egoa prompta immediatamente. Com certeza me
acalma, uma galopada... E no banho agora a agua bem esperta, bem
quente.
Tambem me acalma a agua quente. Por isso necessito sempre agua bem
quente, a ferver.
[420]Mas
tu, com essas tuas velhas idéas...
Pois todos os
medicos o declaram. Para a saude agua quente, bem quente, a sessenta
graus!
E depois do rapido banho, em quanto se vestia, abriu mais familiarmente
ao velho aio a intimidade das suas tristezas:
―Ah! Bento, Bento, o que eu verdadeiramente precisava para me calmar,
não era um passeio, era uma jornada... Trago a alma muito
carregada,
homem! Depois estou farto d'esta eterna Villa-Clara, da eterna
Oliveira.
Muito mexerico, muita deslealdade. Precisava terra grande,
distracção
grande.
O Bento, já reconciliado, enternecido, lembrou que o Snr.
Doutor
brevemente, em Lisboa, encontraria uma linda
distracção, nas Côrtes.
―Eu sei lá se vou ás Côrtes, homem!
Não sei nada, tudo falha... Qual
Lisboa!... O que eu necessito é uma viagem immensa,
á Hungria, á Russia,
a terras onde haja aventuras.
O Bento sorriu superiormente d'aquella
imaginação. E apresentando ao
Fidalgo o jaquetão de velvetina cinzenta:
―Com effeito, na Russia parece que não faltam aventuras.
Anda tudo a
chicote, diz o
Seculo... Mas aventuras, Snr.
Doutor, até a
gente as
encontra na estrada... Olhe! o paesinho de V. Ex.
a,
que Deus haja, foi
lá em baixo deante do portão que
[421]teve a bulha com
o Dr. Avelino da
Riosa, e que lhe atirou a chicotada, e que levou com o punhal no
braço...
Gonçalo calçava as luvas d'anta, mirando o
espelho:
―Pobre papá, coitado, tambem teve pouca sorte... E por
chicote, ó
Bento, dá cá aquelle chicote de cavallo marinho
que tu hontem areaste.
Parece que é uma boa arma.
Ao sahir o portão, o Fidalgo da Torre metteu a egoa, sem
destino, n'um
passo indolente, pela estrada costumada dos Bravaes. Mas no Casal Novo,
onde dous pequenos jogavam á bola debaixo das carvalheiras,
pensou em
visitar o Visconde de Rio-Manso. Certamente lhe concertaria os nervos a
companhia de tão sereno e generoso velho. E, se elle o
convidasse a
almoçar, gastaria os seus cuidados visitando essa fallada
quinta da
Varandinha e cortejando «o
botão de
Rosa».
Gonçalo recordava apenas confusamente que o
terraço da
Varandinha
dominava uma estrada plantada de choupos, algures, entre o logar da
Cerda e a espalhada aldêa de Canta-Pedra, E tomou o caminho
velho que
desce das carvalheiras do Casal Novo,
[422]e
penetra no valle, entre o
cabeço
d'Avellan e as ruinas do Mosteiro de Ribadaes, no solo historico onde
Lopo de Bayão derrotára a mesnada de
Lourenço Ramires... Ora enterrada
entre vallados, ora entre toscos muros de pedra solta, a vereda seguia
sem belleza, e cansativa: mas as madresilvas nas sebes, por entre as
amoras maduras, rescendiam: o fresco silencio recebia mais frescura e
graça dos fremitos d'aza que o roçavam; e tanto
era o radiante azul nos
ceus serenos que um pouco do seu rebrilho e serenidade s'instillava
n'alma. Gonçalo, mais desannuviado, não se
apressava: na Egreja dos
Bravaes, quando elle passára ao Casal Novo, batiam apenas as
nove horas:
e depois de costear um lameiro d'herva magra parou a accender
pachorrentamente um charuto, rente da velha ponte de pedra que galga o
riacho das Donas. Quasi secca pela estiagem, a agoa escura mal corria,
sob as folhas largas dos nenufares, por entre os juncaes que a
atulhavam. Adiante, á orla d'um hervaçal, no
abrigo d'uma moita
d'alamos, relusiam as pedras d'um lavadouro. Na outra margem, dentro
d'um velho bote encalhado, um rapazito, uma rapariguinha conversavam
profundamente, com dous molhos d'alfazema esquecidos nos
regaços.
Gonçalo sorriu do idyllio―depois teve uma surpreza
descobrindo, no
cunhal da ponte, rudemente entalhado, o seu Brazão-d'Armas,
[423]um Açor
enorme, que alargava as garras ferozes. Talvez aquellas terras outr'ora
pertencessem á Casa:―ou algum dos seus avós
beneficos construira a
ponte, sobre torrente então mais funda, para
segurança dos homens e dos
gados. Quem sabe se o avô Tructesindo, em memoria piedosa de
Lourenço
Ramires, vencido e captivo nas margens d'aquella Ribeira!
O caminho, para além da ponte, alteava entre campos
ceifados. As mêdas
lourejavam, pesadas e cheias, por aquelle anno de fartura. Ao longe,
dos
telhados baixos d'um logarejo, vagarosos fumos subiam, logo desfeitos
no
radiante ceu. E lentamente, como aquelles fumos distantes, Gonçalo
sentia que todas as suas melancolias lhe escapavam da alma, se perdiam
tambem no azul lustroso... Uma revoada de perdizes ergueu o
vôo d'entre
o restolho. Gonçalo galopou sobre ellas, gritando, sacudindo
o seu forte
chicote de cavallo-marinho, que zenia como uma fina lamina.
Em breve o caminho torceu, costeando um souto de sobreiros, depois
cavado entre silvados com largos pedregulhos aflorando na poeira;―e ao
fundo o sol faiscava sobre a cal fresca d'uma parede. Era uma casa
terrea, com porta baixa entre duas janellas envidraçadas,
remendos novos
no telhado e um quinteiro que uma escura e immensa figueira
assombreava.
[424]N'uma esquina
pegava um muro baixo de pedra solta, continuado por uma
sebe, onde adiante uma velha cancella abria para a sombra d'uma ramada.
Defronte, no vasto terreiro que se alargava, jaziam cantarias, uma
pilha
de traves; passava uma estrada, lisa e cuidada, que pareceu a
Gonçalo a
de Ramilde. Para além, até a um distante
pinheiral, desciam chãs e
lameiros.
Sentado n'um banco, junto da porta, com uma espingarda encostada ao
muro, um rapaz grosso, de barrete de lã verde, acariciava
pensativamente
o focinho d'um perdigueiro. Gonçalo parou:
―Tem a bondade... Sabe por acaso qual é o bom caminho para
a quinta do
Snr. Visconde de Rio-Manso, a
Varandinha?
O rapasote ergueu a face morena, de buço leve, remechendo
vagamente no
carapuço.
―Para a quinta do Rio-Manso... Siga pela estrada até
á pedreira, depois
á esquerda a seguir, sempre rente da varzea...
Mas n'esse instante assomava á porta um latagão
de suissas louras em
mangas de camisa, a cinta enfaixada em seda. E Gonçalo, com
um
sobresalto, reconheceu logo o caçador que o
injuriára na estrada de
Nacejas, o assobiára na venda do Pintainho. O homem
relanceou
superiormente o Fidalgo. Depois,
[425]com
a mão encostada
á humbreira,
chasqueou o rapasote:
―Oh Manoel, que estás tu ahi a ensinar o caminho, homem!
Este caminho
por aqui não é para asnos!
Gonçalo sentiu a pallidez que o cobriu―e todo o sangue no
coração, n'um
tumulto confuso, que era de medo e de raiva. Um novo ultrage, do mesmo
homem, sem provocação! Apertou os joelhos no
sellim para galopar. E a
tremer, n'um esforço que o engasgava:
―Vossê é muito atrevido! É
já pela terceira vez! Eu não sou homem para
levantar desordens n'uma estrada... Mas fique certo que o
conheço, e que
não escapa sem lição.
Immediatamente, o outro agarrou a um cajado curto e saltou á
estrada,
affrontando a egoa, com as suissas erguidas, um riso de immenso desafio:
―Então cá estou! Venha agora a
lição... E para diante é que
Vossê já
não passa, seu Ramires de merd...
Uma nevoa turvou os olhos esgaseados do Fidalgo. E de repente, n'um
inconsciente arranque, como levado por uma furiosa rajada de orgulho e
força, que se desencadeava do fundo do seu ser, gritou,
atirou a fina
egoa n'um galão terrivel! E nem comprehendeu! O cajado
sarilhára! A egoa
empinava,
[426]n'uma
cabeçada furiosa! E Gonçalo
entreviu a mão do homem,
escura, immensa, que empolgava a camba do freio.
Então, erguido nos estribos, por sobre a immensa
mão, despediu uma
vergastada do chicote silvante de cavallo-marinho, colhendo o
latagão na
face, de lado, n'um golpe tão vivo da aresta aguda que a
orelha pendeu,
despegada, n'um borbutar de sangue. Com um berro o homem recuou,
cambaleando. Gonçalo galgou sobre elle, n'outro arremesso,
com outra
fulgurante chicotada, que o apanhou pela bôca, lhe rasgou a
bôca,
decerto lhe espedaçou dentes, o atirou, urrando, para o
chão. As patas
da egoa machucavam as grossas coxas estendidas,―e,
debruçado, Gonçalo
ainda vergastou, cortou desesperadamente face, pescoço,
até que o corpo
jazeu molle e como morto, com jorros de sangue escuro ensopando a
camisa.
Um tiro atroou o terreiro! E Gonçalo, com um salto no selim,
avistou o
rapasote moreno ainda com a espingarda erguida, a fumegar, mas
já
hesitando aterrado.
―Ah, cão!
Lançou a egoa, com o chicote alto:―o rapaz, espavorido,
corria
lentamente através do terreiro, para saltar o vallado,
escapar para as
varzeas ceifadas!
―Ah cão, ah cão! berrava Gonçalo.
Estonteado,
[427]o
rapaz tropeçára n'uma
viga solta. Mas já se endireitava, largava, quando o Fidalgo
o alcançou
com uma cutilada do chicote no pescoço, logo alagado de
sangue.
Estendendo as mãos incertas, ainda cambaleou, abateu,
estalou contra a
aresta d'um pilar, a cabeça mais sangue jorrou.
Então Gonçalo, a
arquejar, deteve a egoa. Ambos os homens jaziam immoveis! Santo Deus!
Mortos? D'ambos corria o sangue sobre a terra secca. O Fidalgo da Torre
sentia uma alegria brutal. Mas um grito espantado soou do lado do
quinteiro.
―Ai que mataram o meu rapaz!
Era um velho que corria da cancella, n'uma carreira agachada, rente com
a sebe, para a porta da casa. Tão certeiramente o Fidalgo
arremessou a
egoa, para o deter―que o velho esbarrou contra o peitoril que arfava
coberto de suor e d'espuma. E ante o inquieto animal escarvando, e
Gonçalo alçado nos estribos, com a face
chammejante, o chicote a
descer―o velho, n'um terror, desabou sobre os joelhos, gritou
anciadamente:
―Ai, não me faça mal, meu Fidalgo, por alma de
seu pae Ramires.
Gonçalo ainda o manteve assim um momento, supplicante, a
tremer, sob o
justiceiro faiscar dos seus olhos:―e gosava soberbamente aquellas
callosas mãos que se erguiam para a sua misericordia,
[428]invocavam o nome
de Ramires, de novo temido, repossuido do seu prestigio heroico.
Depois,
recuando a egoa:
―Esse malandro do rapazola desfechou a caçadeira!...
Vossê tambem não
tem boa cara! Que ia vossê correndo para casa? Buscar outra
espingarda?
O velho alargou desesperadamente os braços, offerecia o
peito, em
testemunho da sua verdade:
―Oh meu Fidalgo, não tenho em casa nem um cajado!... Assim
Deus me
ajude e me salve o rapaz!
Mas Gonçalo desconfiava. Quando descesse agora pela estrada
de Ramilde,
bem poderia o velho correr ao casebre, agarrar outra
caçadeira,
desfechar traiçoeiramente. E então com a presteza
d'espirito que a lucta
afiára concebeu contra qualquer emboscada, um ardil seguro.
E até n'um
relance sorrio recordando «traças de
guerra», de D. Garcia Viegas, o
Sabedor.
―Marche lá deante de mim, sempre a direito, pela estrada!
O velho tardou, sem se erguer, aterrado. E batia com as grossas
mãos nas
coxas, n'uma ancia que o engasgava:
―Oh meu Fidalgo, oh meu fidalgo! mas deixar assim o rapaz sem
acordo?...
[429] ―O rapaz está só atordoado, já se
mecheu... E o outro malandro
tambem... Marche vossê!
E ao irresistivel mando de Gonçalo, o velho, depois de
sacudir
demoradamente as joalheiras, começou a avançar
pela estrada, vergado
deante da egoa, como um captivo, com os longos braços a
bambolear,
rosnando, n'um rouco assombro:―Ai como ellas se armam! Ai Santo nome de
Deus, que desgraça! A espaços estacava,
esgaseando para Gonçalo um olhar
torvo onde negrejava medo e odio... Mas logo o commando forte o
empurrava: «Marche!...» E marchava. Adiante, onde
se erguia um cruseiro
em memoria do Abbade Paguim, assassinado, Gonçalo reconheceu
um largo
atalho para a estrada dos Bravaes que chamavam o
Caminho da
Moleira. E
para ahi enfiou o velho, que no pavor d'aquella asinhaga solitaria,
pensando que Gonçalo o afastava de caminhos trilhados para o
matar
commodamente, rompeu a gemer. «Ai que isto é o fim
da minha vida! Ai
Nossa Senhora, que é o fim da minha vida!» E
não cessou de gemer,
emmaranhando os passos tropegos, até que desembocaram na
estrada alta
entre taludes escarpados, revestidos de giesta brava. Então
de repente,
com outro terror, o homem bruscamente revirou, atirando as
mãos ao
barrete:
―Oh meu senhor, o Fidalgo não me leva preso?...
[430] ―Marche! Corra! Que agora a egoa trota!
A egoa trotou―o velho correu, desengonçado, arquejando como
um folle de
forja. Uma milha galgada, Gonçalo parou, farto do captivo,
da lenta
marcha. De resto antes que o homem agora corresse a casa, e agarrasse
uma arma, e virasse para o alcançar, se desforrar―entraria
elle, n'um
galope solto, o portão da Torre! Então bradou,
com o sobr'olho duro:
―Alto! Agora pode voltar para traz... Mas, antes: Como se chama aquelle
seu logar?
―A Grainha, meu fidalgo.
―E vossê como se chama, e o rapaz?
O velho com a boca aberta, esperou, hesitou:
―Eu sou João, o meu rapaz Manoel... Manoel Domingues, meu
Fidalgo.
―Vossê naturalmente mente. E o outro malandro, de suissas
louras?
D'um folego, o velho gritou:
―Esse é o Ernesto de Nacejas, o valentão de
Nacejas, que chamam o
Caça-abraços, e que tanto me
desencaminhou o
rapaz...
―Bem! Pois diga lá a esses dous marotos que me atacaram a
pau e a tiro,
que não ficam quites sómente com a sova, e que
agora têm de se entender
com a Justiça... Ella lá irá! Largue!
Do meio da estrada, Gonçalo ainda vigiou o velho
[431]que
abalára, forçando
as passadas derreadas, limpando o suor que lhe pingava. Depois, pela
conhecida estrada, galopou para a Torre.
E ia levado, galopando n'uma alegria tão fumegante, que o
lançava em
sonho e devaneio. Era como a sensação sublime de
galopar pelas alturas,
n'um corcel de lenda, crescido magnificamente, roçando as
nuvens
lustrosas... E por baixo, nas cidades, os homens reconheciam n'elle um
verdadeiro Ramires, dos antigos na Historia, dos que derrubavam torres,
dos que mudavam a configuração dos Reinos,―e
erguiam esse maravilhado
murmurio que é o sulco dos fortes passando! Com
razão! com razão! Que
ainda de manhã, ao sahir da Torre, não ousaria
marchar para um rapazola
decidido que brandisse um varapau... E depois, de repente, na
solidão
d'aquella casa terrea, quando o bruto das suissas louras lhe atira a
suja injuria―eis um
não sei quê
que se
desprende dentro do seu ser, e
transborda, e lhe enche cada veia de sangue ardido e lhe enrija cada
nervo de força destra, e lhe espalha na pelle o desprezo e a
dôr, e lhe
repassa fundamente a alma de fortaleza indomavel... E agora alli
voltava, como um varão novo, soberbamente virilisado,
liberto emfim da
sombra que tão dolorosamente assombreára a sua
vida, a sombra molle e
torpe do seu mêdo! Por que sentia que, agora se todos os
[432]valentões
de
Nacejas o affrontassem n'um rijo erguer de cajados―esse
não sei quê,
lá dentro, no seu ser, de novo se soltaria, e o
arremessaria, com cada
veia inchada, cada nervo retesado, para o delicioso fragor da briga!
Emfim era
um homem! Quando em Villa Clara o
Manuel Duarte, o
Titó com
o peito alto, contassem façanhas, já elle
não enrolaria encolhidamente o
cigarro―encolhido, mudo não sómente pela
ausencia desconsoladora das
valentias, mas sobretudo pela humilhante
recordação das fraquezas. E
galopava, galopava apertando furiosamente o cabo do chicote, como para
investidas mais bellas. Para além dos Bravaes, mais galopou,
ao avistar
a Torre. E singularmente lhe pareceu, de repente, que a sua Torre,
agora
mais sua, e que uma affinidade nova fundada em
gloria e
força, o
tornava mais senhor da sua Torre!
Como para acolher Gonçalo mais dignamente, o
portão grande, sempre
cerrado, offerecia uma entrada triumphal com os dous pesados batentes
escancarados. Elle atirou a egoa para o meio do pateo, bradando:
―Oh Joaquim! Oh Manoel! Eh lá! um de vossês!
O Joaquim surdiu da cavallariça, de mangas
arregaçadas, com uma esponja
na mão.
[433] ―Oh Joaquim, depressa! Apparelha o Rocilho, corre a um sitio na estrada
de Ramilde, a que chamam a Grainha... Tive agora lá uma
grande desordem!
Creio que dei cabo de dous homens... Ficaram n'uma poça de
sangue! Não
digas que vaes da Torre, que te podem atacar! Mas sabe o que succedeu,
se estão mortos... Depressa, depressa!
O Joaquim, estonteado, remergulhou na cavallariça escura. E
de cima
d'uma das varandas do corredor, partiram
exclamações assombradas:
―Oh Gonçalo, o que foi?! santo Deus! o que foi?!
Era o Barrôlo. Sem desmontar, sem surpresa ante a
apparição do Barrôlo,
Gonçalo atirou logo para a varanda a historia da bulha,
tumultuosamente.
Um malandro que o insultára... Depois outro, que desfechou a
caçadeira... E ambos derribados sob as patas da egoa, n'uma
poça de
sangue...
O Barrôlo despegou da varanda―e n'outro relance, investia
pelo pateo,
com os curtos braços a boiar, enfiado. Mas então?
mas então?... E
Gonçalo, desmontando, tremulo agora do cançasso e
da emoção, esmiuçou
mais lances... Na estrada de Ramilde! Um valentão que o
injuriou! A esse
rasgára a bôca, decepára a orelha...
Depois o outro, um rapasola,
desfecha uma carabina... Elle corre, tão vivamente o colhe
com uma
cutilada que o estira, para cima d'uma pedra, como morto...
[434] ―Uma cutilada?
―Com este chicote, Barrôlo! Arma terrivel!... Bem dizia o
Titó!...
Estou perdido se não levo este chicote.
Esgaseado, Barrôlo remirava o chicote. Sim, com effeito ainda
manchado
de sangue.―Então Gonçalo attentou no chicote, no
sangue... Sangue de
gente! sangue fresco, que elle arrancára!... E por entre o
seu orgulho,
uma piedade passou que o empallideceu:
―Que desgraça, vejam que desgraça!
Esquadrinhou vivamente o fato, as botas, no horror de nodoas de sangue,
que o salpicassem. Sim, santo Deus! sangue na polaina!... E
immediatamente anciou por se despir, se lavar,―galgou a escada, com o
Barrôlo que enxugava o suor, balbuciava:―«Ora uma
d'essas! E de
repente! Assim na estrada!...» Mas no corredor, subindo n'uma
carreira
da cosinha, appareceu Gracinha, pallida, com a Rosa atraz, que
enterrava
os dedos entre o lenço e o cabello n'um pavor mudo.
―Que foi, Gonçalo? Jesus, que foi?!
Então, encontrando Gracinha junto d'elle, na Torre, n'esse
momento
magnifico do seu orgulho, depois de tão rijo perigo vencido,
Gonçalo
esqueceu o André, o Mirante, as sombrias
humilhações, e no abraço em que
a colheu, nos fortes beijos que atirou
[435]á
face querida, todo
o seu amuo
se fundio em ternura. Com ella ainda chegada ao
coração, suspirou de
leve, como uma creança cançada. Depois apertando
as duas pobres mãos
tremulas, com um lento, enternecido sorriso, em quanto os olhos se lhe
humedeciam de confusa emoção, de confusa alegria:
―Pois foi o diabo, filha! Uma desordem horrivel, eu que sou
tão pacato!
imagina tu...
E pelo corredor recomeçou para Gracinha, que arfava, e para
a Rosa,
estarrecida, a historia do encontro, e o sujo ultrage, o tiro que
falhára e os malandros lacerados a chicote, e o velho
marchando como um
captivo, a gemer pela estrada de Ramilde. Apertando o peito, n'um
desmaio, Gracinha murmurou:
―Ai, Gonçalo! E se um dos homens estivesse morto!
O Barrôlo, mais vermelho que uma pionia, berrou logo que taes
malandros
mereciam ricamente a morte! E mesmo feridos, ainda necessitavam castigo
tremendo d'Africa! O Gouveia! era necessario mandar a Villa-Clara,
avisar o Gouveia!... Mas largas passadas ávidas abalaram o
soalho―e foi
o Bento, que se ergueu deante de Gonçalo, bracejando n'uma
ancia:
―Então, Snr. Doutor?... Diz que uma grande desordem!...
[436]
E á porta do escriptorio, onde todos pararam, novamente
attentos, a
historia recomeçou, especialmente para o Bento, que a bebia,
n'um lento
riso de gosto, crescendo, inchando, com os olhinhos humidos a reluzir,
como se tambem triumphasse. Por fim, triumphou, com estrondo:
―Foi o chicote, Snr. Doutor! O que serviu ao Snr. Doutor, foi o chicote
que eu lhe dei!
Era verdade. E Gonçalo, commovido, abraçou o
velho aio, que n'uma
excitação, gritava para a Rosa, para Gracinha,
para o Barrôlo:
―O Snr. Doutor deu cabo d'elles!... Aquelle chicote mata um homem!...
Os malvados estão mortos!... E foi o chicote! Foi o chicote
que eu dei
ao Snr. Doutor!
Mas Gonçalo reclamava agua quente para se lavar da poeira,
do suor, do
sangue... E o Bento correu, berrando ainda pelo corredor! depois pelas
escadas da cosinha―«que fôra o chicote! o chicote,
que elle déra ao
Snr. Doutor!» Gonçalo entrára no
quarto, acompanhado pelo Barrôlo. E
pousou o chapeu sobre o marmore da commoda, com um immenso
ah
consolado! Era o consolo immenso de se encontrar, depois de
tão violenta
manhã, entre as doces cousas costumadas, pisando o seu velho
tapete
azul, roçando o leito de pau preto em que nascera,
respirando pelas
vidraças abertas, onde as ramagens familiares
[437]das faias
s'empurravam na
aragem para o saudar. Com que gosto se acercou do espelho de columnas
douradas, se mirou e se remirou, como a um Gonçalo novo e
tão melhorado,
que nos hombros reconhecia mais largueza, e até no bigode um
arquear
mais crespo.
E foi ao arredar do espelho, topando com o Barrôlo, que
subitamente
despertou n'uma curiosidade immensa:
―Mas, oh Barrôlo, como é que vos encontro esta
manhã na Torre?
Resolução da vespera, ao chá.
Gonçalo não apparecia, não escrevia...
Gracinha a matutar, inquieta. Elle tambem espantado d'aquelle
sumiço
depois do cesto dos pêcegos. De modo que ao chá,
pensando tambem que a
parelha necessitava uma trotada, lembrára a
Gracinha:―«Vamos nós amanhã
á Torre? no phaeton?»
―Além disso precisava fallar comtigo, Gonçalo...
Tenho andado
aborrecido.
O Fidalgo juntou duas almofadas no divan, onde se enterrou:
―Como aborrecido?... Aborrecido por que?...
Barrôlo, com as mãos nos bolsos da rabona de
flanella, que lhe cingia as
ancas gordas, considerou as flôres do tapete,
melancolicamente:
[438] ―É uma grande secca! A gente não póde
confiar em ninguem... Nem ter
familiaridades!...
N'um lampejo Gonçalo imaginou o Cavalleiro e Gracinha
mostrando
estouvadamente nos Cunhaes, como outr'ora entre os arvoredos da Torre,
o
sentimento que os dominava. E presentiu um desabafo, alguma queixa
triste do pobre Barrôlo, amargurado por suspeitas, talvez por
intimidades que espreitára. Mas a
emoção suprema da sua batalha, sumira
para uma sombra inferior os cuidados que, ainda na vespera, o
opprimiam:
todas as difficuldades da vida lhe appareciam agora, de repente,
n'aquelle frescor da sua coragem nova, tão faceis d'abater
como os
desafios dos valentões; e não se assustou com as
confidencias do
cunhado, bem seguro d'impôr áquella alma submissa
de bacôco a confiança
e a quietação. Até sorriu, com
indolencia:
―Então, Barrolinho? Succedeu alguma peripecia?
―Recebi uma carta.
―Ah!
Gravemente Barrôlo desabotoou o jaquetão, puxou do
bolso interior uma
larga carteira, de couro verde e lustroso, com monogramma d'ouro. E foi
a carteira que elle mostrou a Gonçalo, com
satisfação.
―Bonita, hein? Presente do André, coitado...
[439]Creio que
até a mandou vir
de Paris. O monogramma tem muito chic.
Gonçalo esperava, espantado. Emfim o bom Barrôlo
tirou da carteira uma
carta―já amarrotada, depois alisada. Era, n'um papel
pautado, uma
lettra miudinha que o Fidalgo apenas relanceou, declarando logo com
segurança:
―É das Louzadas.
E leu, vagarosamente, serenamente, com o cotovello enterrado na
almofada: «Ex.
mo Snr. José
Barrôlo.―V. Ex.
a apesar de todos os
seus
amigos o alcunharem de
Zé bacôco,
mostrou agora
muita espertesa,
chamando de novo para a sua intimidade e de sua digna esposa o gentil
André Cavalleiro, nosso Governador Civil. Com effeito a
esposa de V.
Ex.
a, a linda Gracinha, que n'estes ultimos
tempos andava
tão murcha e
até desbotada (o que a todos nos inquietava) immediatamente
reflorio, e
ganhou côres, desde que possue a valiosa companhia da
primeira
auctoridade do districto. Portou-se pois V. Ex.
a
como marido zeloso, e
desejoso da felicidade e boa saude de sua interessante esposa. Nem
parece rasgo d'aquelle que toda a Oliveira considera como o seu mais
illustre pateta! Os nossos sinceros parabens!»
Gonçalo guardou muito socegadamente na algibeira
[440]aquella
carta que, dias
antes, o lançaria em infinita amargura e furia:
―É das Louzadas... E tu déste importancia a
semelhante babuseira?
O Barrôlo repontou, com as bochechas abrazadas:
―Se te parece! Sempre embirrei com bilhetinhos anonymos... E depois
essa insolencia a respeito dos amigos me chamarem
Bacôco...
Grande
infamia, hein? Tu acreditas?... Eu não acredito! mas
lança sizania entre
mim e os rapazes... Nem voltei ao Club... Bacôco!
Porquê? Por que eu sou
simples, sempre franco, disposto a arranchar... Não! se os
rapazes no
Club me chamam bacôco pelas costas, caramba, mostram
ingratidão! Mas eu
não acredito! Rebolou pelo quarto, desconsoladamente, as
mãos cruzadas
sobre as gordas nadegas. Depois, estacando deante do divan, d'onde
Gonçalo o considerava, com piedade:
―Em quanto ao resto da carta é tão estupido,
tão atrapalhado que ao
principio nem comprehendi. Agora percebo... Querem dizer que a Gracinha
e o Cavalleiro teem namoro... É o que me parece que querem
dizer! Ora vê
tu que disparate! Até a intimidade do Cavalleiro
é mentira. O pobre
rapaz, desde que lá jantou, só appareceu tres ou
quatro vezes, á
[441]noite,
para a manilha, com o Mendonça... E agora abalou para Lisboa.
Então o Fidalgo pulou, de surpresa.
―O quê! o Cavalleiro foi para Lisboa?
―Pois partiu ha tres dias!
―Com demora?
―Com demora, com grande demora... Só volta no meado
d'outubro para a
Eleição.
―Ah!
Mas o Bento rompeu pelo quarto, com o jarro d'agua quente, duas toalhas
de rendas, ainda n'uma excitação que o azafamava.
Deante do espelho,
lentamente Barrôlo reabotoava o jaquetão:
―Bem, até logo, Gonçalinho. Eu desço
á cavallariça, visitar a parelha.
Não imaginas! desde Oliveira, sem descanso, uma trotada
explendida. E
nem um pello suado! Tu guardas a carta?
―Guardo, para estudar a lettra.
Apenas Barrôlo cerrára a porta―o Fidalgo
recomeçou com o Bento a
deliciosa historia da briga, revivendo as surprezas e os rasgos,
simulando os arremessos da egoa, arrebatando o chicote para representar
as cutiladas silvantes, que arrancavam febra e sangue... E de repente,
em ceroulas:
―Oh Bento, traze o meu chapeu... Estou desconfiado que a bala
roçou
pelo chapeu.
Ambos remiraram, esquadrinharam o chapeu. O
[442]Bento,
no seu encarecimento
da façanha, achava a copa amolgada―até
chamuscada.
―A bala passou de raspão, Snr. Doutor!
O Fidalgo negou, com a modestia grave d'um forte:
―Não! Nem de raspão!... Quando o malandro
desfechou já o braço lhe
tremia... Devemos agradecer a Deus, Bento. Mas eu realmente
não corri
grande perigo!
Depois de vestido, Gonçalo, passeando no quarto, releu a
carta. Sim,
certamente das Lousadas. Mas agora essa maledicencia, soprada com
tão
sordida maldade sobre as pobres bochechas do Barrôlo,
não causava
damno―antes servia, quasi beneficamente, como a braza d'um ferro, para
sarar um damno. O pobre Barrôlo apenas se
impressionára com a revelação
da sua bacoquice, essa ingrata alcunha posta pelos rapazes amigos, em
galhofas ingratas do Club e debaixo dos Arcos. A outra
insinuação
terrivel, Gracinha reverdecendo ao calor amoroso do Cavalleiro, essa
mal
a comprehendera, escassamente a attendera n'um desdem distrahido e
candido. Mas a carta que assim silvava por sobre o bom
Barrôlo como
flecha errada―acertava em Gracinha, feriria Gracinha no seu orgulho, no
seu impressional pudor, mostrando á pobre tonta como o seu
nome e mesmo
o seu coração, já arrastavam
enxovalhadamente,
[443]pela
rasteira mexeriquice
das Lousadas!... Certesa tão humilhadora não
apagaria um sentimento―que
se não apagava com humilhações mais
intimas, tanto mais dolorosas. Mas
estimularia a sua reserva e o seu desconfiado recato:―e agora que
André
se afastára para Lisboa, operaria n'ella, surdamente,
solitariamente,
sem que a presença tentadora lhe desmanchasse a influencia
socegadora e
salutar. Assim o torpe papel aproveitava a Gracinha como um aviso
temeroso pregado na parede. E rancorosamente preparada pelas duas
femeas
para desencadear nos Cunhaes escandalo e dôr―talvez
restabelecesse, na
ameaçada casa, quietação e
gravidade.―Gonçalo esfregou as mãos
pensando―que em tão ditosa manhã talvez
até esse mal redundasse em bem!
―Oh Bento, onde está a Snr.
a D.
Graça?
―A menina subiu agora ha pouco para o seu quarto, Snr. Doutor.
Era o seu quarto de solteira, claro e fresco sobre o pomar, onde ainda
se conservava o seu leito de linda madeira embutida, um toucador
illustre que pertencera á Rainha D. Maria Francisca de
Saboya, e o
sophá, as cadeiras de casimira clara em que Gracinha
bordára, n'um
arrastado labor d'annos, o Açor negro dos Ramires. E sempre
que voltava
á Torre Gracinha gostava de reviver no seu quarto, as horas
de solteira,
remexendo as gavetas,
[444]folheando
velhos romances inglezes na
estantesinha
envidraçada, ou simplesmente da varanda contemplando a
querida quinta
estendida até aos outeiros de Valverde, a verde quinta,
tão misturada á
sua vida que cada arvore lhe susurrava, cada recanto de verdura era
como
um recanto do seu pensamento.
Gonçalo subiu―bateu á porta cerrada com o antigo
aviso:―«Licença para
o mano!» Ella correu da varanda, onde regava nos seus antigos
vasos
vidrados plantas sempre renovadas e cuidadas pela Rosa com carinho. E
desabafando logo do pensamento que a enchia:
―Oh Gonçalo! mas que felicidade nós virmos
á Torre, justamente hoje,
que te succedeu cousa tamanha!
―É verdade, Gracinha, grande sorte! E não me
admirei nada de te vêr...
Era como se ainda vivesses na Torre e te encontrasse no corredor...
Quem
estranhei foi o Barrôlo! E no primeiro momento depois de
desmontar,
pensava assim, vagamente: «mas que diabo faz aqui o
Barrôlo? como diabo
se acha aqui o Barrôlo?...» Curioso, hein? Foi
talvez que, depois da
desordem, me senti remoçado, com um sangue novo, e me
julguei no tempo
em que desejavamos uma guerra em Portugal, e nós cercados na
Torre, sob
o nosso pendão, o
nosso terço
atirando
bombardas aos hespanhoes...
[445]
Ella ria, lembrada dessas imaginações heroicas. E
com o vestido entalado
entre os joelhos recomeçou a lenta rega dos seus vasos―em
quanto
Gonçalo, encostado á varanda, considerando a
Torre, retomado pela ideia
d'uma concordancia mais intima, que desde essa manhã se
estabelecera
entre elle e aquelle heroico resto da Honra de Santa Ireneia, como se a
sua força, tanto tempo quebrada, se soldasse emfim
firmemente á força
secular da sua raça.
―Oh Gonçalo! tu deves estar muito cançado!
Depois d'essa verdadeira
batalha...
―Não, cançado não... Mas com fome.
Com fome, e com uma sêde explendida!
Ella pousou logo o regador, sacudindo as mãos alegremente:
―Pois o almoço não tarda!... Já andei
a trabalhar na cosinha, com a
Rosa, n'uma pescada á hespanhola... É uma receita
nova do Barão das
Marges.
―Então insonsa, como elle.
―Não! até picante: foi o Snr. Vigario Geral que
lh'a ensinou.
E como, deante do toucador da Rainha Maria Francisca, ella arranjava
á
pressa os ganchos do cabello, para aproveitar a solidão
favoravel,
apressou com um esforço, a confidencia que o commovia:
―E em Oliveira? Lá por Oliveira!
[446] ―Em Oliveira, nada... Muito calor!
Gonçalo, movendo os dedos lentos pela moldura do espelho,
fino
entrelaçamento de açucenas e louros, murmurou:
―Eu sei apenas das Lousadas, das tuas amigas Lousadas. Continuam em
plena actividade...
Gracinha negou candidamente:
―As Lousadas? Não! Nem teem apparecido.
―Mas teem tecido!
E como os verdes olhos de Gracinha se alargaram, sem comprehender,
Gonçalo arrancou vivamente da algibeira a carta que
guardára, que agora
lhe pesava, como uma chapa de ferro:
―Olha, Gracinha! Mais vale desabafarmos! Ahi tens o que ellas ha dias
escreveram a teu marido...
N'um relance, Gracinha devorou as linhas terriveis. E com ondas de
sangue nas faces, apertando as mãos n'uma
afflicção, um desespero, em
que o papel amarfanhou:
―Oh Gonçalo! pois...
Gonçalo accudio:
―Não! o Barrôlo não se importou!
Até se rio! E eu tambem, quando elle
me entregou esse papelucho... E a prova que ambos o consideramos uma
mexeriquice insensata, é que eu t'o mostro tão
francamente.
Ella esmagava a carta nas mãos juntas e tremulas,
[447]pallida
agora e
emmudecida pelo espanto, retendo grandes lagrimas que rebrilhavam. E
Gonçalo commovido, com gravidade, com ternura:
―Mas tu, Gracinha, sabes o que são terras pequenas. Sobre
tudo
Oliveira! Precisas muito cuidado, muita reserva... Ai de mim! De mim
vem
a culpa. Reatei relações que nunca se deviam
reatar... Bem me tenho
arrependido! E acredita! por causa d'essa
situação tão falsa e tão
perigosa, que eu creei, levianamente, por ambição
tola, passei aqui na
Torre dias amargurados... Até nem m'atrevia voltar a
Oliveira. Hoje, não
sei porquê, depois d'esta aventura, parece que tudo se
esbateu,
s'afundou para uma grande sombra... Emfim já não
me arde tão em braza no
coração... Por isso desabafo assim, serenamente.
Ella desatou n'um solto, doloroso choro em que a sua fraca alma se
desfazia. Com redobrada ternura Gonçalo abraçou
os pobres hombros
vergados que os soluços espedaçavam. E foi com
ella toda refugiada no
seu peito, que ainda a aconselhou, docemente:
―Gracinha, o passado morreu, e todos precisamos, para honra de todos,
que continue morto. Pelo menos que por fóra, em cada gesto
teu, pareça
bem morto! Sou eu que t'o peço, pelo nosso nome!...
D'entre os braços do irmão, ella gemeu com
infinita humildade:
[448] ―Mas elle até foi embora!... Nem quiz estar mais em
Oliveira!
Gonçalo acariciou a acabrunhada cabeça que de
novo se escondera contra o
seu peito, contra elle se apertava, como procurando a fresca
misericordiosa que dentro sentia brotar:
―Bem sei. E isso me mostra que tens sido forte... Mas precisas muita
reserva, muita vigilancia, Gracinha!... E agora socega. Não
fallemos
mais, nunca mais, n'este incidente... Por que foi apenas um
incidente.
E que eu provoquei, ai de mim, por leviandade, por illusão.
Passou, está
esquecido! Socega, descança. E quando desceres traze os
olhos bem
seccos.
Lentamente a desprendera dos braços, onde ella se arraigava
como ao
abrigo mais certo e á consolação mais
desejada. E sahia, engasgado pela
emoção, recalcando tambem as lagrimas... Um
gemido timido, supplicante,
ainda o reteve.
―Gonçalo! mas tu pensas...
Elle voltou, de novo a abraçou, a beijou na testa lentamente:
―Eu penso que tu, agora bem avisada, bem aconselhada, vaes mostrar
muita dignidade, muita firmeza.
Rapidamente abalou, cerrou a porta. E na escada estreita, escassamente
allumiada por uma
[449]claraboia
baça, limpava as palpebras,
quando esbarrou
com o Barrôlo, que procurava Gracinha, para apressar o
almoço.
―A Gracinha já desce! atabalhoou o Fidalgo. Está
a lavar as mãos! Já
desce!... Mas antes do almoço vamos á
cavallariça. Devemos uma visita á
egoa, a essa querida egoa que me salvou!
―É verdade, caramba! concordou logo Barrôlo
revirando nos degraus, com
enthusiasmo. Precisamos visitar a egoa... Grande, briosa, hein! Mas
aposto que ficou mais suada que as minhas... Imagina! uma trotada
d'aquellas, desde Oliveira, e nem um pello molhado! Grandes egoas!
Tambem, o que eu as ólho, o que as trato!
Na cavallariça, ambos affagaram a egoa. Barrôlo
lembrou que se
mimoseasse com uma ração larga de cenoura.
Depois―para que Gracinha,
com vagar se calmasse,―o Fidalgo arrastou o Barrôlo ao pomar
e á
horta...
―Tu não vens á Torre ha perto de seis mezes,
Barrolinho! Precisas vêr,
admirar progressos. Anda agora por aqui a mão forte do
Pereira da
Riosa...
―Imagino! grande homem, o Pereira! Mas eu tenho uma fome,
Gonçalinho!
―Tambem eu!
[450]
Uma hora batia quando entraram na varanda onde a mesa esperava, florida
e em festa―e Gracinha, á beira do divan, percorria
pensativamente a
velha
Gazeta do Porto. Apesar de muito banhados,
os seus bellos olhos
conservavam um ardor: e para o justificar, e o seu modo abatido, logo
se
lastimou, córando, d'uma enxaqueca. Eram as
emoções, o perigo de
Gonçalo...
―Tambem eu tenho dôr de cabeça! declarou o
Barrôlo, rondando a mesa.
Mas a minha vem da fome... Oh filhos, é que estou desde as
sete da manhã
com uma chavena de café e um ovo quente!
Gonçalo repicou a campainha. Mas quem rompeu pela porta
envidraçada,
esbaforido, escancarando a bocca n'um riso immenso, foi o Joaquim, o
moço da cavallariça que voltava da Grainha.
Gonçalo atirou os braços, soffrego:
―Então?! então?!
―Pois lá estive, meu Fidalgo! exclamou o Joaquim com o
peito a estalar
d'importancia. E vae por lá um povoleu, todos já
sabem! Uma rapariga dos
Bravaes espreitou tudo, de dentro do quinteiro... Depois correu,
badalou... Mas o velho, o tal Domingues que mora na casa, e o filho,
abalaram ambos. E o rapaz, ao que dizem, pouco ferido. Se cahio, sem
sentidos, foi com o susto. O Ernesto de
[451]Nacejas,
esse sim, santo nome
de
Deus, apanhou. Lá o levaram em braços para casa
d'um compadre alli ao
pé, na Arribada. Parece que fica sem orelha, e que fica sem
bocca!...
Pois por todos aquelles sitios era o ai-jesus das moças!...
E logo lá o
carregam para o Hospital de Villa Clara, que na casa do Compadre
não
pode sarar. Um povoleu, e todos dão a rasão ao
Fidalgo. O tal Domingues
era malandro. E o Ernesto, esse ninguem o podia enxergar! Mas todos lhe
tinham medo... O Fidalgo fez uma limpeza!
Gonçalo resplandecia. Ah! Ainda bem! que não
passára damno mais forte,
que belleza perdida do D. Juan de Nacejas!
―E então o povo por lá, a fallar, a olhar para o
sitio?
―Pois o povo não se arreda! E a mostrar o sangue, no
chão, e as pedras
por onde se atirou a egoa do Fidalgo... E agora até contam
que foi uma
espera, e que desfecharam tres tiros ao Fidalgo, e que depois adiante
no
pinhal ainda saltaram tres homens mascarados que o Fidalgo
escangalhou...
―Eis a lenda que se forma! declarou Gonçalo.
O Bento apparecera com uma larga travessa fumegante. O Fidalgo affagou
risonhamente o hombro do Joaquim. E em baixo a Rosa que abrisse, para o
almoço da familia, duas garrafas de vinho do
[452]Porto, velho.
Depois com a
mão nas costas da cadeira murmurou gravemente:―Pensemos um
momento em
Deus, que me tirou hoje d'um grande perigo!
Barrôlo pendeu a cabeça, reverente. Gracinha,
atravez d'um leve suspiro,
pensou uma leve oração. E desdobravam os
guardanapos; Gonçalo acclamava
a travessa de pescada á hespanhola―quando o pequeno da
Crispola
empurrou ainda a porta envidraçada «com um
telegramma, que viera da
Villa!» Uma inquietação deteve os
garfos. A manhã correra com tantas
agitações e espantos! Mas já um
sorriso de gosto, de triumpho, se
espalhára na fina face de Gonçalo:
―Não é nada... É do Castanheiro, por
causa dos capitulos do Romance que
eu lhe mandei... Coitado! Bom rapaz!
E, recostado na cadeira, recitou vagarosamente o telegramma, que os
seus
olhos affagavam:―«Capitulos romance recebidos. Leitura feita
amigos.
Enthusiasmo! Verdadeira obra prima! Abraço!...»
Barrôlo, com a bocca cheia, bateu as palmas. E
Gonçalo, sem reparar na
travessa da pescada que Bento lhe apresentava, mas enchendo o copo de
vinho verde, com uma vaga tremura, um sorriso ditoso que não
se
dissipava:
―Emfim, boa manhã... Grande manhã!
[453]
Gonçalo, apesar das insistencias de Gracinha e do
Barrôlo, não os
acompanhou para Oliveira―no desejo de acabar, durante essa semana, o
derradeiro Capitulo da Novella, e depois cerrar o preguiçoso
giro de
visitas aos influentes Eleitoraes do Circulo. Assim rematava a Obra
d'Arte e a obra de Politica,―e cumpria, Deus louvado, a tarefa d'esse
verão fecundo!
Logo n'essa noite retomou o manuscripto da Novella―e na margem larga
lançou a data, uma nota:―«
Hoje, na
freguesia da
Grainha, tive uma
briga terrivel com dous homens que me assaltaram a pau e tiro, e que
castiguei severamente...» Depois, com facilidade
atacou o
lance de
tanto sabor medieval, em que Tructesindo Ramires, correndo no rasto do
Bastardo, penetrava, ao espalhado e fumarento clarão dos
archotes, no
arraial de D. Pedro de Castro.
Com grave amisade acolhia o velho homem de guerra aquelle seu primo de
Portugal, que lhe trouxera a sua forte mesnada, de Santa Ireneia,
quando
os Castros combateram um grande poder de Mouros em Enxarez de
Sandornin.
Depois, na vasta tenda, reluzente d'armas, tapizada de pelles de
leão e
d'urso, Tructesindo contava, ainda a arfar de dôr represa, a
morte de
seu filho Lourenço, ferido na lide de Canta-Pedra, acabado
á punhalada
pelo Bastardo de
[454]Bayão,
deante das muralhas de Santa
Ireneia, com o sol
no ceu alto a olhar a traição! Indignado, o velho
Castro esmurraçou a
mesa, onde um rosario d'ouro se misturava a grossas peças de
xadrez;
jurou pela vida de Christo, que, em sessenta annos d'armas e surpresas
nunca soubera de feito mais vil! E agarrando a mão do senhor
de Santa
Ireneia, ardentemente lhe offereceu, para a empreza da santa
vingança, a
sua hoste inteira―tresentas e trinta lanças, vasta e rija
peonagem.
―Por Santa Maria! Formosa arrancada! bradou Mendo de Briteiros com as
vermelhas barbas a flammejar de gosto.
Mas D. Garcia Viegas, o
Sabedor, entendia que
para colherem o Bastardo
vivo, como convinha a uma vingança vagarosa e bem gosada,
mais utilmente
serviria uma calada e curta fila de cavalleiros, com alguns homens de
pé...
―Porquê, D. Garcia?
―Porque o Bastardo, depois de se aligeirar, junto da Ribeira, da
pionada e carriagem correra, com a mira em Coimbra, para se acolher
á
força da Hoste Real. N'essa noite, com o seu esfalfado bando
de lanças,
pernoitára certamente no solar de Landim. E com o luzir da
alva, para
encurtar, certamente retomava a galopada pelo velho caminho de
Miradães,
que trepa e foge atravez das lombas do Caramulo.
[455]Ora elle, Garcia
Viegas, conhecia para deante do
Poço da Esquecida,
certo
passo, onde
poucos cavalleiros, e alguns bésteiros, bem postados por
entre o bravio,
apanhariam Lopo de Bayão como lobo em fojo...
Tructesindo, incerto e pensativo, mettia os dedos lentos pelos fios da
barba. O velho Castro duvidava, preferindo que se pozessse batalha ao
Bastardo em campo bem liso onde se avantajassem tantas
lanças já
aprestadas, que depois correriam em alegre levada a assolar as terras
de
Bayão. Então Garcia Viegas rogou aos seus primos
d'Hespanha e de
Portugal que sahissem ao terreiro, deante da tenda, com fartura de
tochas para bem se allumiarem. E ahi, no meio dos cavalleiros curiosos,
á claridade dos lumes inclinados, D. Garcia vergou o joelho,
riscou
sobre a terra, com a ponta d'uma adaga, o roteiro da
sua
caçada para
lhe comprovar a belleza... D'além castello Landim, largaria
com a alva o
Bastardo. Por aqui, quando a lua nascesse, abalariam elles, com vinte
cavalleiros dos Ramires e dos Castros, para que lidadores d'ambas as
mesnadas gosassem a lide. Além, se postariam, alapados no
mattagal,
besteiros e peões de frecha. Por traz, d'este lado, para
entaipar o
Bastardo, o senhor D. Pedro de Castro, se com tão gostosa
ajuda elle
honrasse o Senhor de Santa Ireneia. Adiante, acolá, para
colher pela
gorja
[456]o
villão, o Snr. D. Tructesindo que era o pae e Deus
mandava fosse
o vingador. E alli, na estreitura o derrubariam e o sangrariam como um
porco―e como o sangue era vil, a um tiro de bésta
encontrariam agua
farta para lavar as mãos, a agoa do
pégo
das
Bichas!...
―Famosa traça! murmurou Tructesindo convencido.
E D. Pedro de Castro bradou atirando um faiscante olhar aos Cavalleiros
d'Hespanha:
―Vida de Christo, que se meu tio-avô Gutierres tivera por
Coudel aqui o
snr. D. Garcia, não lhe escapavam os de Lara quando levaram
o Rei
Menino, na grande carreira, para Santo Estevam de Gurivaz!... Entendido
pois, primo e amigo! E a cavallo, para a monteria, mal reponte a lua!
E recolheram as tendas―que já nas fogueiras lourejavam os
cabritos da
ceia, e os uchões acarretavam, d'entre os carros da sarga,
os pesados
odres de vinho de Tordesillas.
Com a ceia no arraial (grave e sem ruido, por que um luto velava o
coração dos hospedes) Gonçalo
terminou, n'essa noute, o seu capitulo IV,
lançando á margem outra nota:―«Meia
noite... Dia cheio. Batalhei,
trabalhei.―». Depois no seu quarto, em quanto se despia,
traçou todo o
alvoroto da briga curta em que o Bastardo como lobo em fojo quedaria
[457]captivo,
á mercê vingadora dos de Santa Ireneia...
Mas de manhã, antes
d'almoço, ao abancar com gosto para o trabalho―recebeu dous
telegrammas, que o desviaram deliciosamente da correria contra o
Bastardo de Bayão.
Eram dois telegrammas d'Oliveira, um do Barão das Marges,
outro do
capitão Mendonça―ambos com parabens ao Fidalgo
«por assim escapar de
tão terrivel espera, destroçando os
valentões de Nacejas.» O Barão das
Marges accrescentava:―«
Bravissimo! É
d'heroe!»
Gonçalo, enternecido, mostrou os telegrammas ao Bento. A
nova da sua
façanha, pois, já se espalhára,
impressionára Oliveira,
―Foi o Snr. José Barrôlo que contou! acudiu o
Bento. E o Snr. Dr. verá!
o Snr. Dr. verá... Até no Porto se vão
assombrar!
Ao bater meio dia, rompeu pelo corredor, com estrondo, o immenso
Titó,
acompanhado pelo João Gouveia que chegára na
vespera á tarde da Costa,
soubera da aventura na Assembleia, corria á Torre, como
amigo para o
abraço, antes de comparecer, como Auctoridade, para o auto.
Então
Gonçalo, ainda nos braços do Gouveia, pediu
generosamente, «que se não
procedesse contra os bandidos...» O Administrador recusou,
decidido e
secco, proclamando o principio da Ordem, e necessidade d'um escarmento
[458]rijo, para que
Portugal não recuasse aos tempos barbaros do
João Brandão
de Midões. Elle e Titó almoçaram na
torre:―e Titó, á sobremesa, lembrou
galhofeiramente a conveniencia d'um brinde, e bramou elle o brinde,
comparando Gonçalo ao elefante, «sempre bom, que
tanto aguenta, e de
repente, zás, esmaga o mundo!»
Depois João Gouveia accendendo um grande charuto reclamou a
representação veridica da desordem, com os pulos,
os gritos, para elle
se compenetrar como auctoridade. Então atravez da varanda,
reviveu a
historia heroica, simulando com o chicote sobre o divan (que terminou
por esgaçar) os golpes que arremessára imitando
os tombos meio
desmaiados do valentão de Nacejas, quando já o
sangue o alagava. O
Administrador e o Titó visitaram na cavallariça a
egoa historica; e no
pateo, Gonçalo ainda lhes mostrou as duas polainas de couro
seccando ao
sol, lavadas do sangue que as salpicára.
Deante do portão João Gouveia bateu gravemente no
hombro do Fidalgo:
―Gonçalo, vossê deve apparecer esta noite na
Assembleia...
Appareceu―e foi acolhido como o vencedor d'uma batalha illustre. No
bilhar, por proposta do velho Ribas, flammejou um grande punche-―e o
Commendador Barros, afogueado, teimava que no domingo
[459]se celebrasse em
S. Francisco um Te-Deum de graças, de que elle costearia as
despezas,
com orgulho, caramba! Á sahida, acompanhado pelo
Titó, pelo Gouveia,
pelo Manoel Duarte, por outros socios, encontraram o Videirinha―que
não
pertencia á Assembleia, mas rondava, esperando o Fidalgo
para lhe lançar
duas trovas do
Fado, improvisadas n'essa tarde,
em que o exaltava
acima dos outros Ramires, da Historia e da Lenda!
O rancho quedou no chafariz. O violão gemeu, com amor. E o
cantar do
Videirinha, elevado da alma, varou a muda ramagem das olaias:
Os Ramires d'outras eras
Venciam com grandes lanças,
Este vence com um chicote,
Vêde que estranhas
mudanças!
É que os Ramires famosos,
Da passada
geração,
Tinham a força nas armas
E este a tem no
coração!
A tão requebrado conceito―os amigos romperam em vivas a
Gonçalo, á Casa
de Ramires. E o Fidalgo recolhendo á Torre, commovido,
pensava:
―É curioso! Esta gente toda parece gostar de mim!...
Mas que emoção quando, de manhã cedo,
o Bento o acordou com um
telegramma de Lisboa!
[460]Era
do Cavalleiro―que «soubera pelos
jornaes
attentado, lhe mandava enthusiastico abraço pela felicidade
e pela
valentia!» Gonçalo berrou, sentado na cama:
―Caramba! então os jornaes em Lisboa já fallam,
Bento! o caso anda
celebrado!
Certamente celebrado!―por que durante o delicioso dia, o
moço do
Telegrapho, esbaforido sobre a perna manca, não cessou
d'empurrar o
portão da Torre, com outros telegrammas, todos de Lisboa, da
Condessa de
Chellas; de Duarte Lourençal; dos Marquezes de
Cója
felicitando; da
tia Louredo com «parabens ao destemido sobrinho»;
da marqueza
d'Esposende «esperando que o caro primo tivesse agradecido a
Deus!»... E
o ultimo do Castanheiro, com
exclamações:―
Magnifico! Digno de
Tructesindo!―Gonçalo, pela livraria, erguia os
braços, estonteado:
―Santo nome de Deus! mas que terão dito os jornaes?
E, por entre os Telegrammas, accudiam os cavalheiros dos arredores, os
influentes,―o Dr. Alexandrino, aterrado, antevendo um regresso ao
Cabralismo; o velho Pacheco Valladares de Sá, que
não se espantára do
seu nobre primo, por que sangue de Ramires, como sangue de
Sás, sempre
ferve; o padre Vicente da Finta, que com os seus parabens, offereceu um
cestinho de cachos do seu famoso moscatel
[461]tinto;
e por fim o Visconde
de
Rio-Manso, que agarrado a Gonçalo, soluçou, no
enternecimento quasi
ufano de que a briga assim rompesse, na estrada, quando «o
querido
amigo, o amigo da sua Rosa» se encaminhava para a
Varandinha. Gonçalo,
afogueado, banhado de riso, abraçava, recontava
pacientemente a façanha,
acompanhava até ao portão aquelles cavalheiros,
que ao montar as egoas,
ao entrar nas caleches, sorriam para a velha Torre, escura e rigida, na
doce claridade da tarde de Setembro, como saudando, depois do heroe, o
secular fundamento do seu heroismo.
E o Fidalgo, galgando as escadas para a livraria, de novo murmurava,
estonteado:
―Que terão dito os jornaes de Lisboa?
Nem dormiu, na anciedade de os devorar. Quando o Bento, em
alvoroço,
rompeu pelo quarto com o correio―Gonçalo saltou, arrojou o
lençol, como
se abafasse. E logo no
Seculo, soffregamente
percorrido, encontrou o
telegramma d'Oliveira, contando o assalto! os tiros disparados! a
immensa coragem do Fidalgo da Torre, que com um simples chicote... O
Bento quasi arrebatou o
Seculo das
mãos tremulas do
Fidalgo, para
correr á cosinha, bramar á Rosa a noticia
gloriosa!
De tarde, Gonçalo correu a Villa-Clara, á
Assembleia, para devorar os
outros jornaes de Lisboa,
[462]os
do Porto. Todos contavam, todos
celebravam!
A
Gazeta do Porto, attribuindo o attentado a
Politica, ultrajava
furiosamente o Governo. O
Liberal Portuense,
porém,
relacionava «com
certas vinganças dos republicanos d'Oliveira, o pavoroso
attentado que
quasi causára a morte d'um dos maiores fidalgos de Portugal
e d'Hespanha
e d'um dos mais pujantes talentos da nova
geração!» Os jornaes de
Lisboa, glorificavam sobre tudo «a coragem explendida do Snr.
Gonçalo
Ramires.» E o mais ardente era a
Manhã,
n'um
verboso artigo (de certo
escripto pelo Castanheiro), recordando as heroicas
tradições da Casa
illustre, esboçando as bellezas do Castello de Santa Ireneia
e
terminando por affirmar que «agora, se esperava com redobrada
anciedade
a apparição da novella de Gonçalo
Ramires, fundada sobre um feito de seu
avô Tructesindo no seculo XII, e promettida para o primeiro
numero dos
Annaes de Litteratura e de Historia,
a nova Revista
do nosso querido
amigo Lucio Castanheiro, esse benemerito restaurador da Consciencia
heroica de Portugal!»―As mãos de
Gonçalo, ao desdobrar os jornaes,
tremiam. E o João Gouveia, tambem soffrego, devorando tambem
os artigos,
por sobre o hombro do Fidalgo, murmurava, impressionado:
―Vossê, Gonçalinho, vae ter uma
votação tremenda!
[463]
Depois n'essa noute, recolhendo á Torre, Gonçalo
encontrou uma carta que
o perturbou. Era de Maria de Mendonça, n'um papel perfumado,
com o mesmo
perfume que tão docemente espalhava D. Anna, pelo adro de
Santa Maria de
Craquêde:―«Só esta manhã
soubemos o grande perigo que passou, e ficamos
ambas muito commovidas. Mas ao mesmo tempo eu (e
não
só eu) muito
vaidosa da magnifica coragem do primo. É d'um verdadeiro
Ramires! Eu não
vou ahi abraçal-o (com risco de me comprometter e
fazer
invejas) por
que um dos meus pequenos, o Neco, anda muito constipado. Felizmente
não
é cousa de cuidado... Mas aqui todos, até os
pequenos, anciamos por vêr
o heroe, e não creio que houvesse nada d'extraordinario, nem
d'um lado
nem
d'outro, em que o primo por aqui apparecesse
além
d'amanhã (quinta
feira) pelas tres horas. Davamos um passeio na quinta, e até
se
merendava, á boa e velha moda dos nossos avós.
Está dito? Muitos
comprimentos,
muitos, da Annica, e o primo
creia-me,
etc.»―Gonçalo
sorriu, pensativamente, considerando a carta, recebendo o aroma. Nunca
a
prima Maria lhe empurrára, tão claramente, a D.
Anna para os braços... E
como D. Anna se deixava empurrar, prompta, e d'olhos cerrados... Ah, se
fosse somente para a alcova! Mas ai! era tambem para a Egreja. E de
novo
sentia aquelle vozeirão do
[464]Titó,
nos degraus da
portinha verde com a lua
cheia por cima dos olmos negros: «Essa creatura teve um
amante, e tu
sabes que eu nunca minto?»
Então tomou lentamente a penna, respondeu a D. Maria
Mendonça:―«Querida
prima―Fiquei muito enternecido com o seu cuidado, e os seus
enthusiasmos. Não exaggeremos! Eu não fiz mais
que correr a chicote uns
valentões que me assaltaram a tiro. É
façanha facil para quem tenha,
como eu, um chicote excellente. Emquanto á visita
á
Feitosa, que me
seria tão agradavel, não a posso realisar com
fundo pezar meu, nem na
quinta-feira, nem mesmo por todo este mez... Ando occupadissimo com o
meu livro, a minha Eleição, a minha
mudança para Lisboa. A era dos
cuidados sérios soou severamente para mim,―cerrando a doce
era dos
passeios e dos sonhos. Peço que apresente á
Snr.
a D. Anna os meus
profundos respeitos. E com muitas amisades para si, e bons desejos pelo
restabelecimento d'esse querido Neco, espero me creia sempre seu
dedicado e grato primo, etc.»
Fechou vagarosamente a carta. E batendo o seu sinete d'armas sobre o
lacre verde, pensava:
―Assim aquelle maroto do Titó me rouba dusentos contos!...
[465]Durante toda essa
macia semana dos fins de Setembro, Gonçalo
trabalhou
no Capitulo final da sua Novella.
Era emfim a madrugada vingadora em que os Cavalleiros de Santa Ireneia,
reforçados pelas mais nobres lanças da mesnada
dos Castros,
surprehendiam, no bravio desfiladeiro marcado por Garcia Viegas, o
Sabedor, o bando de Bayão, na sua
açodada
corrida sobre Coimbra...
Briga curta e falsa, sem destro e brioso terçar d'armas,
mais semelhante
a montaria contra um lobo do que a arremettida contra um Filho-de-Algo.
E assim a desejára Tructesindo, com ruidosa
approvação de D. Pedro de
Castro, por que não se cuidava de combater um inimigo, mas
de colher um
matador.
Antes do luzir d'alva, o Bastardo abalára do castello de
Landim, em dura
pressa e com tão descuidada segurança, que nem
almogavar nem coudel lhe
atalayavam os trilhos. As cotovias cantavam quando elle, em aspero
trote, penetrou por essa brecha, entalada entre escarpas de penedia e
urze, que chamam a
Racha do Moiro, desde que
Mafoma a fendeu para que
escapassem as adagas christans de El-Rei Fernando, o
Magno,
o Alcaide
moiro de Coimbra e a monja que elle arrebatára á
garupa. E apenas pela
esguia greta enfiára a derradeira lança da
fila―eis
[466]que da
outra
embocadura do valle surde o cerrado troço dos cavalleiros de
Santa
Ireneia, que Tructesindo guia, com a viseira erguida, sem broquel,
sacudindo apenas uma ascuma de monte como se folgadamente andasse em
caçada. Da selva arredada que os encobria, rompem por traz
as lanças dos
Castros, ristadas e cerrando a brecha mais densamente que as puas d'uma
levadiça. Do recosto dos cerros róla, como
reprêsa solta, uma rude e
escura peonagem! Colhido, perdido, o Bastardo terrivel! Ainda arranca
furiosamente a espada, que redomoinhando o corôa de coriscos.
Ainda com
um fero grito arremette contra Tructesindo... Mas bruscamente, d'entre
um escuro magote de fundeiros baleares, parte ondeando uma corda de
canave, que o laça pela gargalheira, o arranca n'um brusco
sacão da sela
mourisca, o derriba, sobre pedregulhos em que a sua larga espada se
entala e se parte rente ao punho dourado. E emquanto os cavalleiros de
Bayão aguentam assombradamente o denso cerco de
lanças, que os
envolvera―um rôlo de peões, em dura grita, como
mastins sobre um cerdo,
arrastam o Bastardo para a lomba do outeiro, onde lhe arrancam broquel
e
adaga, lhe despedaçam o brial de lã
rôxa, lhe quebram os fechos do elmo,
para lhe cuspirem na face, nas barbas côr de ouro,
tão bellas e de tanto
orgulho!
Depois a mesma bruta matula o iça, amarrado,
[467]para sobre o
dorso d'uma
possante mula de carga, o estende entre dous esguios caixotes de
virotões, como rez apanhada ao recolher da montaria. E
servos da
carriagem ficam guardando o Cavalleiro soberbo, o
Claro-Sol
que
allumiava a casa de Bayão, agora entaipado entre dois
caixotes de pau,
com cordas nos pés, e cordas nas mãos, e n'ellas
espetado um triste ramo
de cardo―emblema da sua traição.
No emtanto os seus quinze Cavalleiros juncavam o chão,
esmagados sob o
furioso cerco de lanças que os investira―uns hirtos, como
adormecidos,
dentro das negras armaduras, outros torcidos, desfeitos, com as carnes
retalhadas, pendendo horrendamente entre malhas rotas dos lorigaes. Os
escudeiros, colhidos, empurrados a pontoada de chuço para a
boca d'uma
barroca, sem resgate ou mercê, como alcateia immunda de
roubadores de
gado, acabaram, decepados a macheta pelos barbudos estafeiros leonezes.
Todo o valle cheirava a sangue como um pateo de magarefes. Para
reconhecer os companheiros do Bastardo, uma turma de cavalleiros
desafivelava os gorjaes, as viseiras, arrancando furtivamente as
medalhas de prata, os bentos, saquinhos de reliquias, que todos traziam
como bem-tementes. N'uma face, de fina barba negra, que uma espuma
sangrenta manchava, Mendo de Briteiros reconheceu seu primo Sueiro
[468]de
Lugilde com quem, pela fogueira de S. João,
folgára tão docemente e
bailára no castello de Unhello,―e vergado sobre a alta
sella rezou,
pela pobre alma sem confissão, uma devota Ave-Maria. Fuscas,
tristonhas
nuvens, abafavam a manhã d'Agosto. E afastados á
entrada do valle, sob a
ramagem d'um velho azinheiro, Tructesindo, D. Pedro de Castro, e Garcia
Viegas, o
Sabedor, decidiam que morte lenta, e
bem dorida e viltosa,
se daria ao Bastardo, villão de tão negra vilta.
Contando assim a sombria emboscada com o gemente esforço de
quem empurra
um arado por terra pedreira―gastára Gonçalo essa
doce semana de
Setembro. E no sabbado, cedo, na livraria, com os cabellos ainda
molhados do banho de chuva, esfregava as mãos deante da
banca―porque
certamente com duas horas de attento trabalho, findaria antes
d'almoço a
sua Novella, a sua Obra! E todavia esse final, quasi o repellia, com o
seu sujo horror. O tio Duarte no seu Poemeto apenas o
esboçára, com
esquiva indecisão, como nobre Lyrico que ante uma
visão de bruta
ferocidade solta um lamento, resguarda a Lyra, e desvia para sendas
mais
doces. E, ao tomar a penna, Gonçalo tambem, realmente
lamentava que seu
avô Tructesindo não matasse outr'ora o Bastardo,
no fragor da briga, com
uma d'essas
[469]
cutiladas maravilhosas, e tão doces de celebrar,
que racham
o cavalleiro e depois racham o ginete, e para sempre retinem na
Historia.
Mas não! Sob a folhagem do azinheiro, os tres cavalleiros
combinavam com
lentidão uma vingança terrifica. Tructesindo
desejára logo recolher a
Santa Ireneia, alçar uma forca deante das barbacans, no
chão em que seu
filho rolára morto, e n'ella enforcar, depois de bem
açoitado, como
villão, o villão que o matára. O velho
D. Pedro de Castro, porém,
aconselhava despacho mais curto, e tambem gostoso. Para que rodear por
Santa-Ireneia, desbaratar esse dia d'Agosto na arrancada que os levava
a
Montemór, a soccorro das Infantas de Portugal? Que se
estendesse o
Bastardo amarrado sobre uma trave, aos pés de D.
Tructesindo, como porco
pelo Natal, e que um cavallariço lhe chamuscasse as barbas,
e depois
outro, com facalhão de ucharia, o sangrasse no
pescoço,
pachorrentamente.
―Que vos parece, Snr. D. Garcia?
O
Sabedor desafivelára o casco de
ferro, limpava nas rugas
o suor e a
poeira da lide:
―Senhores e amigos! Temos melhor, e perto tambem, sem delongas de
cavalgada, logo adiante destes cerros, no
Pego das Bichas...
E nem
torcemos caminho, que de lá, por Tordezello e Santa Maria da
Varge,
endireitamos a Montemór, tão direitos
[470]como
vôa o corvo... Confiae em
mim, Tructesindo! Confiae em mim, que eu arranjarei ao Bastardo tal
morte e tão vil, que d'outra egual se não possa
contar desde que
Portugal foi condado.
―Mais vil que forca, para cavalleiro, meu velho Garcia?
―Lá vereis, senhores e amigos, lá vereis!
―Seja! Mandae dar ás bozinas.
Ao commando d'Affonso Gomes, o Alferes, as bozinas soaram. Um
troço de
besteiros e de estafeiros Leoneses rodearam a mula que carregava o
Bastardo amarrado e entalado entre dois caixotes. E acaudilhada por D.
Garcia, a curta hoste metteu para o
Pego das Bichas,
em desbando, com
os senhores de lança espalhados, como em marcha de
folgança e paz, (?) e
todos n'uma rija fallada recordando, entre gabos e risos, as proezas da
lide.
A duas leguas de Tordezello e do seu castello formoso, se escondia
entre
os cerros o
Pego das Bichas. Era um lugar de
eterno silencio e de
eterna tristeza. Em esmerados versos lhe marcára o tio
Duarte a desolada
asperidão:
Nem trillo d'ave em
balançado
ramo!
Nem fresca flôr junto de
fresco arroio!
Só rocha, mattagal, ribas
soturnas,
E em meio o Pego,
tenebroso e morto!...
[471]
E quando os primeiros cavalleiros, galgada a lomba d'um cerro, o
avistaram, na melancholia da manhã nevoenta, emmudeceram da
larga
fallada, repucharam os freios, assustados ante tão aspero
ermo, tão
propicio a Bruxas, a Avantesmas e a Almas penadas. Deante do
escalavrado
barranco, por onde os ginetes escorregavam, ondulava uma ribanceira,
aberta com charcos lamacentos, quasi chupados pela estiagem, luzindo
pardamente, por entre grossos pedregulhos e o tojo rasteiro. Ao fundo,
a
meio tiro de bésta, negrejava o
Pego,
lagoa estreita,
lisa, sem uma
ruga n'agua, duramente negra, com manchas mais negras, como lamina
d'estanho onde alastrasse a ferrugem do tempo e do abandono. Em torno
subiam os cerros, eriçados de matto bravio e alto, sulcados
por trilhos
de saibro vermelho como por fios de sangue que escoresse, e rasgados no
alto por penedias lustrosas, mais brancas que ossadas. Tão
pesado era o
silencio, tão pesada a soledade, que o velho D. Pedro de
Castro, homem
de tanta jornada, se espantou:
―Feia paragem! E voto a Christo, a Santa Maria, que nunca antes de
nós,
n'ella entrou homem remido pelo baptismo.
―Pois, Snr. D. Pedro de Castro! accudiu o
Sabedor,
já por
aqui se
moveu muita lança, e luzida, e ainda em tempos do Conde D.
Sueiro, e de
vosso
[472]rei D.
Fernando, se erguia n'aquella beira d'agua, uma
castellania
famosa! Vêde além!―E mostrava na ponta do pego,
fronteira ao barranco,
dous rijos pilares de pedra, que emergiam da agua negra, e que chuva e
vento polira como marmores finos. Um passadiço de traves,
sobre estacas
limosas e meio apodrecidas, atava a margem ao mais grosso dos pilares.
E
a meio d'esse rude esteio pendia uma argola de ferro.
No emtanto já o tropel da peonagem se espalhára
pela ribanceira. D.
Garcia Viegas desmontou, bradando por Pero Ermigues, o Coudel dos
bésteiros de Santa Ireneia. E, ao lado do ginete de
Tructesindo, risonho
e gozando a surpreza, ordenou ao Coudel que seis dos seus rijos homens
descessem o Bastardo da mula, o estirassem no chão, o
despissem, todo
nú, como sua mãe barregã o
soltára á negra vida...
Tructesindo encarou o
Sabedor, franzindo as
sobrancelhas hirsutas:
―Por Deus, D. Garcia! que me ides simplesmente afogar o
villão, e sujar
essa agua innocente!...
E alguns Cavalleiros, em redor, murmuraram tambem contra morte
tão
quieta e sem malicia. Mas os miudos olhos de D. Garcia giravam,
lampejavam de triumpho e gosto:
―Socegae, socegae! Velho estou certamente, mas ainda o senhor Deus me
consente algumas traças.
[473]Não!
Nem enforcado, nem
degolado, nem
afogado... Mas chupado, senhores! Chupado em vida, e de vagar, pelas
grandes sanguesugas que enchem toda essa agua negra!
D. Pedro de Castro, maravilhado, bateu o guante nas solhas do coxote:
―Vida de Christo! Que ter n'uma hoste o Snr. D. Garcia, é
ter
juntamente, para marchas e conselho, enrolados n'um só,
Annibal e
Aristoteles!
Um rumor d'admiração correu pela hoste:
―Boa traça, boa traça!
E Tructesindo, radiante, bradava:
―Andar, andar, bésteiros! E vós, senhores,
recuae para a lomba do
cerro, como para palanque, que vae ser grande a vista! Já
seis bésteiros
descarregavam da mula o Bastardo amarrado. Outros cercavam, com
mólhos
de cordas. E, como magarefes para esfolar uma rez, toda a rude turma se
abateu sobre o malfadado, arrancando por cordas que desatavam a
cervilheira, o saio, as grevas, os sapatões de ferro, depois
a grossa
roupa de linho encardido. Agarrado pelos compridos cabellos, filado
pelos pés, onde se cravavam agudas unhas no furor de o
manter, com os
braços esmagados sob outros grossos braços
retêsos, o possante Bastardo
ainda se estorcia, urrando, cuspindo contra as faces confusas da
matulagem um cuspo avermelhado, que espumava!
[474]
Mas, por entre o escuro tropel que o cobria, o seu corpo, todo despido,
branquejava, atado com cordas mais grossas. Lentamente o seu furioso
urrar esmorecia, arquejado e rouquenho. E um após outro se
erguiam os
bésteiros, esfalfados, bufando, limpando o suor do
esforço.
No emtanto os Cavalleiros d'Hespanha, de Santa Ireneia, desmontavam
cravando o couto das lanças entre o tojo e as pedras. Todos
os recostos
dos outeiros se cubriam da mesnada espalhada, como palanques em tarde
de
justa. Sobre uma rocha mais lisa, que dous magros espinheiros toldavam
de folha rala, um pagem estendera pelles d'ovelha para o Snr. D. Pedro
de Castro, para o senhor de Santa Ireneia. Mas só o velho
Castellão se
accommodou, para uma repousada delonga, desafivelando o seu corselete
de
ferro tauxeado d'ouro.
Tructesindo permanecera erguido, mudo, com os guantes apoiados ao punho
da sua alta espada, os olhos fundos ávidamente cravados na
tenebrosa
lagôa que, com morte tão fera e tão
suja, vingaria seu filho... E pela
borda do
Pego, peões, e alguns
cavalleiros d'Hespanha,
remexiam com
virotões, com os coutos das ascumas, a agua lodosa, na
curiosidade das
negras bichas escondidas, que o povoavam.
Subitamente a um brado de D. Garcia, que rondava, toda a chusma de
peões
amontoada em torno
[475]ao
Bastardo se arredou:―e o forte corpo appareceu,
nú e branco, sobre a terra negra, com um denso pello ruivo
nos peitos, a
sua virilidade afogada n'outra matta de pello ruivo, e todo ligado por
cordas de canave que o inteiriçavam. N'aquella rigidez de
fardo, nem as
costellas arfavam―apenas os olhos refulgiam, ensanguentados,
horrendamente esbugalhados pelo espanto e pelo furor. Alguns
cavalleiros
correram a mirar a aviltada nudez do homem famoso de Bayão.
O senhor dos
Paços d'Argelim mofou, com estrondo:
―Bem o sabia, por Deus! Corpo de manceba, sem costura de ferida!...
Leonel de Çamora raspou o sapato de ferro pelo hombro do
malfadado:
―Vêde este
Claro-Sol, tão
claro, que se apaga
agora, em agua tão
negra!
O Bastardo cerrava duramente as palpebras,―d'onde duas grossas lagrimas
escaparam, lentamente rolaram... Mas um agudo pregão resoou
pela
ribanceira:
―Justiça! Justiça!
Era o Adail de Santa Ireneia, que marchava, sacudia uma
lança, atroava
os cerros:
―Justiça! justiça que manda fazer o Senhor de
Treixedo e de Santa
Ireneia, n'um perro matador!...
[476]Justiça
n'um perro, filho de
perra, que
matou vilmente, e assim morra vilmente por ella!...
Trez vezes pregoou por deante da hoste apinhada nos cerros. Depois
quedou, saudou humildemente Tructesindo Ramires, o velho Castro,―como a
julgadores no seu Estrado de julgamento.
―Aviae, aviae! bradava o Senhor de Santa Ireneia.
Immediatamente, a um commando do
Sabedor, seis
bésteiros,
com as
pernas embrulhadas em mantas da carga, ergueram o corpo do Bastardo
como
se ergue um morto enrolado no seu lençol, e com elle
entraram na agua,
até ao mais alto pilar de granito. Outros, arrastando molhos
de cordas,
correram pelo limoso passadiço de traves. Com um alarido
d'
aguenta!
endireita! alça! n'um desesperado
esforço o
robusto corpo branco foi
mergulhado n'agua até ás virilhas, arrimado ao
mais alto pilar, depois
n'elle atado com um longo calabre que, passando pela argola de ferro, o
suspendia, sem escorregar, tão seguro e collado como um
rôlo de vela que
se amarra ao mastro. Rapidamente os bésteiros fugiram
d'agoa,
desentrapando logo as pernas, que palpavam, raspavam no horror das
bichas sugadoras. Os outros recolheram pelo passadiço, n'uma
fila que se
empurrava. No Pego ficava Lopo de Bayão bem arranjado
[477]para a
vistosa
morte lenta, com a agoa que já o afogava até
ás pernas, com cordas que o
enroscavam até ao pescoço como a um escravo no
poste; e uma espessa
mecha dos cabellos louros laçada na argola de ferro,
repuxando a face
clara, para que todos n'ella gozassem largamente a humilhada agonia do
Claro-Sol.
Então o attento da hoste, esperando espalhada pelos recostos
dos cerros,
mais entristeceu o enevoado silencio do ermo. A agoa jazia sem um
arrepio, com as suas manchas, negras como uma lamina d'estanho
enferrujado. Entre as cristas das rochas, archeiros postados pelo
Sabedor, atalaiavam, para além, os
descampados. Um alto
vôo de gralha
atrevessou grasnando. Depois um bafo lento agitou as flamulas das
lanças
cravadas no tojo denso.
Para despertar, aviar a lentidão das bichas, alguns
peões atiravam
pedras á agoa lodosa. Já alguns cavalleiros
hespanhoes rosnavam
impacientes com a delonga, n'aquella cova abafada. Outros, descendo
agachados a borda da lagôa, para mostrar que falladas bichas
nunca
acudiriam, mergulhavam lentamente, n'agoa negra, as mãos
descalçadas,
que depois sacudiam, rindo, e mofando o
Sabedor...
Mas de repente um
estremeção sacudiu o corpo do Bastardo; os seus
rijos musculos, no
furioso esforço de se desprenderem, inchavam entre as
cordas, como
cobras que se
[478]arqueiam;
dos beiços arreganhados romperam, em
rugidos, em
grunhidos, ultrages e ameaças contra Tructesindo covarde, e
contra toda
a raça de Ramires, que elle emprasava, dentro do anno, para
as labaredas
do Inferno! Indignado, um Cavalleiro de Santa Ireneia agarrou uma
bésta
de garrunche, a que retesou a corda.
Mas D. Garcia deteve o arremesso:
―Por Deus, amigo! Não roubeis ás sanguesugas nem
uma pinga d'aquelle
sangue fresco!... Vêde como veem! vêde como veem!
Na agoa espessa, em torno ás coxas mergulhadas do Bastardo,
um fremito
corria, grossas bolhas empolavam,―e d'ellas, mollemente, uma bicha
surdio, depois outra e outra, lusidias e negras, que ondulavam, se
collavam á branca pelle do ventre, d'onde pendiam, chupando,
logo
engrossadas, mais lustrosas com o lento sangue que já
escorria. O
Bastardo emmudecera―e os seus dentes batiam estridentemente. Enojados,
até rudes peões desviaram a face cuspindo para as
urzes. Outros, porém,
chasqueavam, assuavam as bichas, gritando―
a elle, donzellas!
a elle!
E o gentil Çamora de Cendufe, clamava rindo contra
tão ensossa morte!
Por Deus! Uma apostura de bichas, como a enfermo d'almorreimas. Nem era
sentença de Rico-Homem―mas receita d'herbanista moiro!
[479] ―Pois que mais quereis, meu Leonel? acudio alegremente o
Sabedor,
resplandecendo. Morte é esta para se contar em livros! E
não tereis este
inverno serão á lareira, por todos os solares de
Minho a Douro, em que
não volte a historia d'este Pego, e d'este feito! Olhae
nosso primo
Tructesindo Ramires! Formosos tratos presenceou de certo em
tão longo
lidar d'armas!... E como goza! tão attento! tão
maravilhado!
Na encosta do outeiro, junto do seu balsão, que o Alferes
cravára entre
duas pedras, e como elle tão quêdo, o velho
Ramires não despregava os
olhos do corpo do Bastardo, com deleite bravio, n'um fulgor sombrio.
Nunca elle esperára vingança tão
magnifica! O homem que atára seu filho
com cordas, o arrastára n'umas andas, o retalhára
a punhal deante das
barbacans da sua Honra―agora, vilmente nú, amarrado tambem
como cerdo,
pendurado d'um pilar, emergido n'uma agoa suja, e chupado por
sanguesugas, deante de duas mesnadas, das melhores d'Hespanha, que
miravam, que mofavam! Aquelle sangue, o sangue da raça
detestada, não o
bebia a terra revolta n'uma tarde de batalha, escorrendo de ferida
honrada, atravez de rija armadura―mas, gota a gota, escuramente e
mollemente se sumia, sorvido por nojentas bichas, que surdiam famintas
do lodo e no lodo recahiam fartas, para sobre o lodo bolsar
[480]o orgulhoso
sangue que as enfartára. N'um charco, onde elle o
mergulhára, viscosas
bichas bebiam socegadamente o cavalleiro de Bayão! Onde
houvera homizio
de solares fundado em desforra mais dôce?
E a fera alma do velho acompanhava, com inexoravel goso, as sanguesugas
subindo, espalhadamente alastrando por aquelle corpo bem amarrado, como
seguro rebanho pela encosta da collina onde pasta. O ventre
já
desapparecia sob uma camada viscosa e negra, que latejava, relusia na
humidade morna do sangue. Uma fila sugava a cinta, encovada pela ancia,
d'onde sangue se esfiava, n'uma franja lenta. O denso pello ruivo do
peito, como a espessura d'uma selva, detivera muitas, que ondulavam,
com
um rasto de lodo. Um montão ennovelado sangrava um
braço. As mais
fartas, já inchadas, mais relusentes, despegavam, tombavam
mollemente:
mas logo outras, famintas, se aferravam. Das chagas abandonadas o
sangue
escorria delgado, represo nas cordas, d'onde pingava como uma chuva
rala. Na escura agoa boiavam gordas postemas de sangue
esperdiçado. E
assim sorvido, ressumando sangue, o malfadado ainda rugia, atravez
ultrages immundos, ameaças de mortes, de incendios, contra a
raça dos
Ramires! Depois, com um arquejar em que as cordas quasi estalavam, a
bocca horrendamente escancarada e avida, rompia aos roucos urros,
implorando
[481]agoa,
agoa! No seu furor as unhas, que
uma volta de amarras
lhe collára contra as fortes côxas, esfarrapavam a
carne, cravavam-se na
fenda esfarrapada, ensopadas de sangue.
E o furioso tumulto esmorecia n'um longo gemer
cançado―até que parecia
adormecido nos grossos nós das cordas, as barbas relusindo
sob o suor
que as alagára como sob um grosso orvalho, e entre ellas a
espantada
lividez d'um sorriso delirado.
No emtanto já na hoste derramada pelos cerros, como por um
palanque, se
embotára a curiosidade bravia d'aquelle supplicio novo. E se
acercava a
hora da ração de meridiana. O Adail de Santa
Ireneia, depois o Almocadem
Hespanhol, mandaram soar os anafins. Então todo o
áspero ermo se animou
com uma faina d'arraial. O almazem das duas mesnadas parára
por detraz
dos morros, n'uma curta almargem d'herva, onde um regato claro se
arrastava nos seixos, por entre as raizes de amieiros
chorões. N'uma
pressa esfaimada, saltando sobre as pedras, os peões corriam
para a fila
dos machos de carga, recebiam dos uchões e estafeiros a
fatia de carne,
a grossa metade d'um pão escuro: e, espalhados pela sombra
do arvoredo,
comiam com silenciosa lentidão, bebendo da agoa do regato
pelas concas
de pau. Depois preguiçavam, estirados na relva,―ou trepavam
em bando
pela outra encosta dos morros,
[482]através
do matto, na
esperança
d'atravessar com um virote alguma caça erradia. Na
ribanceira, deante da
lagôa, os cavalleiros, sentados sobre grossas mantas, comiam
tambem, em
roda dos alforges abertos, cortando com os punhaes nacos de gordura nas
grossas viandas de porco, empinando, em longos tragos, as bojudas
cabaças de vinho.
Convidado por D. Pedro de Castro, o velho
Sabedor
descançava,
partilhando d'uma larga escudella de barro, cheia de
bolo
papal, d'um
bolo de mel e flôr de farinha, onde ambos enterravam
lentamente os
dedos, que depois limpavam ao forro dos morriões.
Só o velho Tructesindo
não comia, não repousava, hirto e mudo deante do
seu pendão, entre os
seus dous mastins, n'aquelle fero dever de acompanhar, sem que lhe
escapasse um arrepio, um gemido, um fio de sangue, a agonia do
Bastardo.
Debalde o
Castellão, estendendo para
elle um pichel de
prata, gabava o
seu vinho de Tordesillas, fresco como nenhum d'Aquilat ou de Provins,
para a sede de tão rija arrancada. O velho Rico-Homem nem
attendera:―e
D. Pedro de Castro, depois de atirar dous pães aos
alões fieis,
recomeçou discorrendo com Garcia Viegas sobre aquelle
teimoso amor do
Bastardo por Violante Ramires que arrastára a tantos
homizios e furores.
―Ditosos nós, Snr. D. Garcia! Nós a quem
[483]a edade
e o quebranto e a
fartura já arredam d'essas
tentações... Que a mulher, como m'ensinava
certo Physico quando eu andava com os moiros, é vento que
consola e
cheira bem, mas tudo enrodilha e esbandalha. Vêde como os
meus por ellas
penaram! Só meu pae, com aquella desvairança de
zelos, em que matou a
cutello minha dôce madre Estevaninha. E ella tão
santa, e filha do
Imperador! A tudo, tudo leva, a tonta ardencia! Até a
morrer, como este,
sugado por bichas, deante d'uma hoste que merenda e mofa. E por Deus,
quanto tarda em morrer, Snr. D. Garcia!
―Morrendo está, Snr. D. Pedro de Castro. E já
com o demo ao lado para o
levar!
O Bastardo morria. Entre os nós das cordas ensanguentadas
todo elle era
uma ascorosa aventesma escarlate e negra com as viscosas pastas de
bichas que o cobriam, latejando com os lentos fios de sangue que de
cada
ferida escorriam, mais copiosos que os regos d'humidade por um muro
denegrido.
O desesperado arquejar cessára, e a ancia contra as cordas,
e todo o
furor. Molle e inerte como um fardo, apenas a espaços
esbogalhava
horrendamente os olhos vagarosos, que revolvia em torno com enevoado
pavor. Depois a face abatia, livida e flaccida, com o beiço
pendurado,
escancarando a bocca em cova negra, d'onde se escoava uma baba
ensanguentada.
[484]E
das palpebras novamente cerradas, entumecidas, um muco
gotejava, tambem como de lagrimas engrossadas com sangue.
A peonagem, no emtanto, voltando da ração,
reatulhava a ribanceira,
pasmava, com rudes chufas para o corpo pavoroso que as bichas ainda
sugavam. Já os pagens recolhiam manteis e alforges. D. Pedro
de Castro
descera do cabeço com o
Sabedor
até
á borda da agoa lodosa, onde quasi
mergulhava os sapatos de ferro, para contemplar, mais de cerca, o
agonisante de tão rara agonia! E alguns senhores, estafados
com a
delonga, afivelando os gibanetes,
murmuravam:―«Está morto! Está
acabado!»
Então Garcia Viegas gritou ao Coudel dos
Bésteiros:
―Ermigues, ide vêr se ainda resta alento n'aquella postema.
O Coudel correu pelo passadiço de traves, e arrepiado de
nojo palpou a
livida carne, acercou da bocca, toda aberta, a lamina clara da adaga
que
desembainhára.
―Morto! morto!―gritou.
Estava morto. Dentro das cordas que o arroxeavam o corpo escorregava,
engilhado, chupado, esvasiado. O sangue já não
manava, havia coalhado em
postas escuras, onde algumas bichas teimavam latejando, relusindo. E
outras ainda subiam, tardias. Duas,
[485]enormes,
remexiam na orelha. Outra
tapava um olho. O
Claro-Sol não era
mais que uma immundice
que se
decompunha. Só a madeixa dos cabellos louros, repuxada,
presa na argola,
relusia com um lampejo de chamma, como rastro deixado pela ardente alma
que fugira.
Com a adaga ainda desembainhada, e que sacudia, o Coudel
avançou para o
Senhor de Santa Ireneia, bradou:
―Justiça está feita, que mandastes fazer no
perro matador que morreu!
Então o velho Rico-Homem atirando o braço, o
cabelludo punho, com
possante ameaça, bradou, n'um rouco brado que rolou por
penhascos e
cerros:
―Morto está! E assim morra de morte infame quem
traidoramente me
affronte a mim e aos da minha raça!
Depois, cortando rigidamente pela encosta do cerro, atravez do matto, e
com um largo aceno ao Alferes do Pendão:
―Affonso Gomes, mandae dar as bozinas. E a cavallo, se vos praz, Snr.
D. Pedro de Castro, primo e amigo, que leal e bom me fostes!...
O
Castellão ondeou risonhamente o
guante:
―Por Santa Maria, primo e amigo! que gosto e honra os recebi de
vós. A
cavallo pois se vos praz! Que nos promette aqui o Snr. D. Garcia
vêrmos
ainda, com sol muito alto, os muros de Monte-mór.
[486]
Já a peonagem cerrava as quadrilhas, os donzeis d'armas
puxavam para a
ribanceira os ginetes folgados que a vasta agua escura assustava. E,
com
os dous balsões tendidos, o Açor negro, as Treze
Arruellas, a fila da
cavalgada atirou o trote pelo barranco empinado, d'onde as pedras
soltas
rolavam. No alto, alguns cavalleiros ainda se torciam nas sellas para
silenciosamente remirarem o homem de Bayão, que
lá ficava, amarrado ao
pilar, na solidão do Pego, a apodrecer. Mas quando a ala dos
bésteiros e
fundibularios de Santa Ireneia desfilou, uma rija grita rompeu, com
chufas, sujas injurias ao «perro matador». A meio
da escarpa, um
bésteiro, virando, retezou furiosamente a bésta.
A comprida garruncha
apenas varou a agua. Outra logo zinio, e uma bala de funda, e uma setta
barbada,―que se espetou na ilharga do Bastardo, sobre um negro novello
de bichas. O Coudel berrou: «cerra! anda!» A
récua das azemolas de carga
avançava, sob o estralar dos lategos: os moços da
carriagem apanhavam
grossos pedregulhos, apedrejavam o morto. Depois os servos carreteiros
marcharam, nos seus curtos saios de couro crú,
balançando um chuço
curto:―e o capataz apanhou simplesmente esterco das bestas, que chapou
na face do Bastardo sobre as finas barbas d'ouro.
XI
Quando Gonçalo, estafado e já todo o ardor
bruxuleando, retocou este
derradeiro traço da affronta―a sineta no corredor repicava
para o
almoço. Emfim! Deus louvado! eis finda essa eterna
Torre
de
Ramires!
Quatro mezes, quatro penosos mezes desde Junho, trabalhára
na sombria
resurreição dos seus avós barbaros.
Com uma grossa e carregada lettra,
traçou no fundo da tira
Finis.
E datou,
com a hora, que
era do
meio-dia e quatorze minutos.
Mas agora, abandonada a banca onde tanto labutára,
não sentia o
contentamento esperado. Até esse supplicio do Bastardo lhe
deixára uma
aversão por aquelle remoto mundo Affonsino, tão
bestial, tão deshumano!
Se ao menos o consolasse a certeza de que reconstituira, com luminosa
verdade, o ser moral d'esses avós bravios... Mas que! bem
receava
[488]que
sob desconcertadas armaduras, de pouca exactidão
archeologica, apenas
s'esfumassem incertas almas de nenhuma realidade historica!...
Até
duvidava que sanguesugas recobrissem, trepando d'um charco, o corpo
d'um
homem, e o sugassem das côxas ás barbas, em quanto
uma hoste mastiga a
ração!... Emfim, o Castanheiro louvára
os primeiros Capitulos. A
Multidão ama, nas Novellas, os grandes furores, o sangue
pingando: e em
breve os
Annaes espalhariam,
por todo o Portugal, a
fama d'aquella
Casa illustre, que armára mesnadas, arrasára
castellos, saqueára
comarcas por orgulho de pendão, e affrontára
arrogantemente os Reis na
curia e nos campos de lide. O seu verão, pois,
fôra fecundo. E para o
coroar, eis agora a Eleição, que o libertava das
melancolias do seu
buraco rural...
Para não retardar as visitas ainda devidas aos Influentes, e
tambem para
espairecer, logo depois d'almoco montou a cavallo―apezar do calor, que
desde a vespera, e n'aquelle meado d'outubro, esmagava a aldeia com o
refulgente peso d'uma canicula d'Agosto. Na volta da estrada, dos
Bravaes um homem gordo, de calça branca enxovalhada, que
s'apressava,
bufando, sob o seu guarda-sol de panninho vermelho, deteve o Fidalgo
com
uma cortezia immensa. Era o Godinho, amanuense da
Administração. Levava
um officio urgente ao Regedor dos
[489]Bravaes,
e agora corria á
Torre de
mandado do Snr. Administrador...
Gonçalo recuou a egoa para a sombra d'uma carvalha:
―Então que temos, amigo Godinho?
O Snr. Administrador annunciava a S. Ex.
a que o
maroto do Ernesto, o
valentão de Nacejas, em tratamento no Hospital d'Oliveira,
melhorára
consideravelmente. Já lhe repegára a orelha, a
bocca soldava... E, como
se procedeu á querella, o patife passava da enfermaria para
a cadeia...
Gonçalo protestou logo, com uma palmada no selim:
―Não senhor! Faça o obsequio de dizer ao Snr.
João Gouveia que não
quero que se prenda o homem! Foi atrevido, apanhou uma dóse
tremenda,
estamos quites.
―Mas Snr. Gonçalo Mendes...
―Pelo amor de Deus, amigo Godinho! Não quero, e
não quero... Explique
bem ao Snr. João Gouveia... Detesto vinganças.
Não estão nos meus
habitos, nem nos habitos da minha familia. Nunca houve um Ramires que
se
vingasse... Quero dizer, sim, houve, mas... Emfim explique bem ao Snr.
João Gouveia. De resto eu logo o encontro, na Assembleia...
Bem basta ao
homem ficar desfeiado. Não
[490]consinto
que o apoquentem
mais!... Detesto
ferocidades.
―Mas...
―Esta é a minha decisão, Godinho.
―Lá darei o recado de V. Ex.
a
―Obrigado. E adeus!... Que calor, hein!
―De rachar, Snr. Gonçalo Mendes, de rachar!
Gonçalo seguiu, revoltado pela ideia de que o pobre
valentão de Nacejas,
ainda moído, com a orelha mal soldada, baixasse á
sordida enxovia de
Villa-Clara, para dormir sobre uma taboa. Pensou mesmo em galopar para
Villa-Clara, reter o zelo legal do João Gouveia. Mas perto,
adeante do
lavadoiro, era a casa d'um Influente, o João Firmino,
carpinteiro e seu
compadre. E para lá trotou, apeando ao portal do quinteiro.
O compadre
Firmino largára cedo para a Arribada, onde trabalhava nas
obras do lagar
do Snr. Esteves. E foi a comadre Firmina que correu da cosinha, obesa e
lusidia, com dous pequenos dependurados das saias e mais sujos que
esfregões. O Fidalgo beijou ternamente as duas faces
ramelosas:
―E que rico cheiro a pão fresco, oh comadre! Foi a fornada,
hein? Pois
então grande abraço ao Firmino. E que se
não esqueça! A Eleição vem
para
o outro Domingo. Lá conto com o voto d'elle. E olhe que
não é pelo voto,
é pela amisade.
[491]
A comadre arreganhava os dentes magnificos n'um regalado e gordo
riso:―«Ai o Fidalgo podia ficar seguro! Que o Firmino
já jurára, até ao
Snr. Regedor, que para o Fidalgo era todo o sitio a votar, e quem
não
fosse a amor ia a pau.» O Fidalgo apertou a mão da
comadre―que do
degrau do quinteiro, com os dous pequenos enrodilhados nas saias, e o
gordo riso mais embevecido, seguiu a poeira da egoa como o sulco d'um
Rei benefico.
E depois nas outras visitas, ao Cerejeira, ao Ventura da Chiche,
encontrou o mesmo fervor, os mesmos sorrisos luzindo de gosto.
«O que!
para o Fidalgo! Isso tudo! E nem que fosse contra o
Governo!»―Na tasca
do Manoel da Adega, um rancho de trabalhadores bebia, já
ruidoso, com as
jaquetas atiradas para cima dos bancos: o Fidalgo bebeu com elles,
galhofando, gosando sinceramente a pinga verde e o barulho. O mais
velho, um avejão escuro, sem dentes, e a face mais engilhada
que uma
ameixa secca, esmurrou com euthusiasmo o
balcão:―«Isto, rapazes, é
fidalgo que, quando um pobre de Christo escalavra a perna, lhe empresta
a egoa, e vae elle ao lado mais d'uma legua a pé, como foi
com o Sôlha!
Rapazes! isto é Fidalgo para a gente ter gosto!»
As
saudes atroaram a
venda. E quando Gonçalo montou, todos o cercavam como
vassallos
ardentes, que a um aceno correriam a votar,―ou a matar!
[492]
Em casa do Thomaz Pedra, a avó Anna Pedra, uma velha
entrevada, muito
velha e tremula, rompeu a choramigar por o seu Thomaz andar para o
Olival quando o Fidalgo o visitava. «Que aquillo era como
visita de
santo!»
―Ora essa, tia Pedra! Peccador, grande peccador!
Dobrada na cadeirinha baixa, com as farripas brancas descendo do
lenço,
pela face toda chupada de gelhas e pelluda, a tia Anna bateu no joelho
agudo:
―Não senhor! não senhor! que quem mostrou
aquella caridade pelo filho
do Casco, merece estar em altar!
O Fidalgo ria, beijocava pequenadas encardidas, apertava
mãos asperas e
rugosas como raizes, accendia o cigarro á braza das
lareiras,
conversando, com intimidade, das molestias e dos derriços.
Depois, no
calor e pó da estrada, pensava:―«É
curioso! parece haver amisade,
n'esta gente!»
Ás quatro horas, derreado, decidiu cessar o giro, recolher
á Torre pela
estrada mais fresca da
Bica Santa. E
passára o logarejo do
Cerdal,
quando na volta aguda do Caminho, rente ao souto de azinheiros, quasi
esbarrou com o Dr. Julio, tambem a cavallo, tambem no seu giro, de
quinzena d'alpaca, alagado em suor, debaixo d'um guarda-sol de
sêda
verde. Ambos detiveram as egoas, se saudaram amavelmente.
[493] ―Muito gosto em o vêr, Snr. Dr. Julio...
―Egualmente, com muita honra, Snr. Gonçalo Ramires...
―Então tambem na tarefa?...
O Dr. Julio encolheu os hombros:
―Que quer V. Ex.
a? Se me metteram n'esta! E
sabe V. Ex.
a como isto
acaba?... Acaba em eu mesmo, no outro Domingo, votar em V. Ex.
a.
O Fidalgo riu. Ambos se debruçaram, para se apertarem as
mãos com
alegria, com estima.
―Que calor este, Snr. Dr. Julio!
―Horroroso, Snr. Gonçalo Ramires... E que massada!
Assim o Fidalgo empregou essa semana nas visitas aos
Eleitores―«os
grandes e os miudos.» E dois dias antes da
Eleição, n'uma sexta-feira á
tarde, com um tempo já macio e fresco, partiu para
Oliveira―onde
chegára, na vespera, o André Cavalleiro, depois
da sua tão longa, tão
fallada demora em Lisboa.
Nos Cunhaes, apenas saltára da caleche, logo se enfureceu ao
saber, pelo
bom João da Porta―«que as Snr.
as
Louzadas
estavam em cima, de
visita, com a Snr.
a D.
Graça...»
―Ha muito?
―Já lá estão pegadas ha meia hora
boa, meu senhor.
Gonçalo enfiou surrateiramente para o seu quarto,
[494]pensando:―«Que
desavergonhadas! Chegou o André, veem logo cocar!»
E já se lavára,
mudára o fato cinzento,―quando o Barrôlo
appareceu, esbaforido,
desusadamente radiante, de sobrecasaca, de chapeu alto, com as
bochechas
accesas, alvoroçadamente radiantes:
―Eh, seu Barrôlo, que janota!
―Parece bruxedo! gritou o Barrôlo, depois d'um
abraço, que repetiu, com
desacostumado fervor. Estava agora mesmo para te mandar um telegramma,
que viesses...
―Para quê?
O Barrôlo gaguejou, com um riso reprimido que o illuminava, o
inchava:
―Para quê? P'ra nada... Quero dizer, para a
Eleição! Pois a Eleição
é
além d'ámanhã, menino! O Cavalleiro
chegou hontem. Agora volto eu do
Governo Civil. Estive no Paço com o Snr. Bispo, depois
passei pelo
Governo Civil... Optimo, o André! Aparou o bigode, parece
mais moço. E
traz novidades... Traz grandes novidades!
E o Barrôlo esfregava as mãos, n'um tão
faiscante alvoroço, com tanto
riso escapando dos olhos e da face relusente, que o Fidalgo o encarou
curioso, impressionado:
―Ouve lá, Barrolinho! Tu tens alguma cousa boa para me
annunciar?
[495]
Barrôlo recuou, negou com estrondo, como quem bruscamente
fecha uma
porta. Elle? Não! Não sabia nada! Só a
Eleição! Na Murtosa votação
tremenda...
―Ah! pensei, murmurou Gonçalo. E a Gracinha?
―A Gracinha tambem não!
―Tambem não quê, homem? Como está?
Simplesmente como está?
―Ah! está com as Louzadas. Ha mais de meia hora, aquellas
bebedas!...
Naturalmente por causa do Bazar do Asylo Novo... Esta massada dos
Bazares... E ouve lá, Gonçalinho! Tu ficas
até Domingo?
―Não, volto ámanhã para a Torre.
―Oh!...
―Pois dia d'Eleicão, homem! devo estar em casa, no meu
centro, no meio
das minhas freguezias...
―É pena, murmurou o Barrôlo. Logo se sabia
juntamente com a Eleição...
Eu dava um jantar tremendo...
―Logo se sabia, o quê?
O Barrôlo emmudeceu, com outro riso nas bochechas, que eram
duas brazas
gloriosas. Depois novamente gaguejou, gingando:
―Logo se sabia... Nada! O resultado, o apuramento. E grande brodio,
grande foguetorio. Eu, na Murtosa, abro pipa de vinho.
[496]
Então Gonçalo risonhamente prendeu o
Barrôlo pelos hombros:
―Dize lá, Barrolinho. Dize lá. Tu tens uma cousa
boa para contar ao teu
cunhado.
O outro escapou, protestando com alarido: Que teima, que tolice. Elle
não sabia nada. O André não lhe
contára nada!
―Bem, concluiu o Fidalgo, certo de um amavel mysterio, que pairava.
Então descemos. E se essas carraças das Louzadas
ainda estiverem lá
pegadas, manda dizer pelo escudeiro á sala, bem alto,
á Gracinha, que
cheguei, que lhe desejo fallar immediatamente no meu quarto: com esses
monstros não ha considerações.
O Barrôlo balbuciou, hesitando:
―O Snr. Bispo gosta d'ellas... Muito amavel commigo, ainda ha pouco, o
Snr. Bispo.
Mas, logo nas escadas, sentiram o piano, Gracinha cantarolando.
Já se
libertára das Louzadas. Era uma antiga
canção patriotica da Vendeia, que
outr'ora na Torre, ella e Gonçalo entoavam com
emoção, quando os
inflammava o amor fidalgo e romantico dos Bourbons e dos Stuarts:
Monsieur de Charette a dit
à
ceux d'Ancenes
"Mes Amis!...
Monsieur de Charette a dit...
[497]
Gonçalo franziu vagarosamente o reposteiro da sala,
rematando a
estrophe, com o braço erguido como uma bandeira:
"Mes amis!
Le Roy va rammener les Fleurs de Lys!"
Gracinha saltou do mocho, n'uma surpresa.
―Não te esperavamos! imaginei que passavas a
Eleição na Torre... E por
lá?
―Na Torre, tudo bem, com a ajuda de Deus... Mas eu com trabalho
immenso. Acabei o meu romance; depois visitas aos Eleitores.
Barrôlo, que não socegava pela sala, rompeu para
elles, com o mesmo riso
suffocado:
―Queres tu saber, Gracinha? Tem estado este homem, desde que chegou,
n'uma curiosidade, a ferver. Imagina que eu tenho uma boa nova, uma
grande nova para lhe contar... Eu não sei nada, a
não ser a Eleição!
Pois não é verdade, Gracinha?
Gonçalo, muito serio, prendeu o queixo da irmã:
―Sabes tu, dize lá.
Ella sorriu, córada... Não, não sabia
nada, só a Eleição.
―Dize lá!
―Não sei... São tolices do José.
Mas então, ante aquelle sorriso fraco, rendido, que
confessava―o
Barrôlo não se conteve, desafogou
[498]como um morteiro
estoira.―Pois bem!
sim! com effeito!―Grande novidade! Mas o André, que a
trouxera de
Lisboa, fresquinha a saltar, queria elle, só elle, causar a
surpresa a
Gonçalo...
―De modo que eu não posso! Jurei ao André. A
Gracinha sabe, que eu já
lhe contei hontem... Mas tambem não póde, tambem
jurou. Só o André. Elle
vem logo tomar chá, e rebenta a bomba... Que é
uma bomba! e graúda!
Gonçalo, roído de curiosidade, murmurou
simplesmente, encolhendo os
hombros:
―Bem, já sei, é uma herança! Tens
quinze tostões d'alviçaras, Barrôlo.
Mas durante o jantar e depois na sala tomando café, emquanto
Gracinha
recomeçára as velhas
canções patrioticas, agora as jacobitas, em
louvor
dos Stuarts―Gonçalo anciou pela
apparição do Cavalleiro. Nem receava
que a esse encontro se misturasse amargura, despeito suffocado. Todo o
seu furor contra o Cavalleiro, acceso na dolorosa tarde do Mirante,
revolvido na Torre durante torturados dias, logo se
dissipára lentamente
depois da sua tocante conversa com a irmã, na
manhã historica da briga
da Grainha. Gracinha então, com grandes lagrimas de pureza e
de verdade,
jurára reserva, retrahimento. Gonçalo,
abandonando Oliveira, mostrava
tambem uma resistencia louvavel contra o sentimento ou
[499]a vaidade que o
transviára. Demais elle não podia romper
novamente com o Cavalleiro,
andando ainda nos mexericos e espantos d'Oliveira aquella
reconciliação
ruidosa que chamára o Cavalleiro á intimidade dos
Cunhaes. E por fim de
que valiam furores ou magoas? Nenhum rugir ou gemer seu annullariam o
mal que se consummára no Mirante―se porventura se
consummára. E assim
toda a cólera contra o André se
dissipára n'aquella sua leve e doce
alma, onde os sentimentos, sobretudo os mais escuros, os mais
carregados, sempre facilmente se desfaziam como nuvens em ceu de
estio...
Mas quando, perto das nove horas, o Cavalleiro penetrou na sala,
vagaroso e magnifico, com o bigode encurtado mas mais retorcido, uma
gravata vermelha entufando estridentemente no largo peito que entufava,
Gonçalo sentiu uma renovada aversão por toda
aquella petulancia recheada
de falsidade―e apenas poude bater mollemente, desenxabidamente, nas
costas do velho amigo, que o apertava n'um abraço
d'apparatosa ternura.
E em quanto André, torcendo as luvas claras, languidamente
enterrado na
poltrona que o Barrôlo lhe achegou com carinho, contava de
Lisboa e de
Cascaes, tão alegre, e partidas de
bridge
e da Parada e
d'El-Rei―Gonçalo revivia a tarde do Mirante, o seu pobre
coração a
bater contra a persiana mal fechada, a bruta supplica
[500]murmurada atravez
d'aquelles bigodes atrevidos, e emmudecera, como empedernido,
esmigalhando nervosamente entre os dentes o charuto apagado. Mas
Gracinha conservava uma serenidade attenta, sem nenhum dos seus
chammejantes rubores, dos seus desgraçados enleios de modo e
gesto,
apenas levemente secca, d'uma seccura preparada e posta. Depois
André
alludira muito desprendidamente ao seu regresso a Lisboa, depois da
Eleição, «porque o tio Reis Gomes, o
José Ernesto, esses crueis amigos,
lhe andavam atirando para os hombros todo o trabalho da Nova Reforma
Administrativa.»
Entre elle e Gracinha, separados por um curto tapete, parecia cavada
uma
funda legua de fosso, onde rolára, se afundára
todo aquelle romance do
verão, sem que na face d'ambos restasse um afogueado
vestigio do seu
ardor. E Gonçalo, insensivelmente contente pela apparencia,
terminou por
abandonar a cadeira onde se impedernira, accendeu o charuto na vela do
piano, perguntou pelos amigos de Lisboa. Todos (segundo o Cavalleiro)
anciavam pela chegada de Gonçalo.
―Lá encontrei tambem o Castanheiro... Enthusiasmado com o
teu Romance.
Parece que nem no Herculano, nem no Rebello existe nada tão
forte, como
reconstrucção historica. O Castanheiro prefere
mesmo o teu realismo
epico ao do Flaubert, na
Salammbô.
[501]Emfim,
enthusiasmado! E
nós, está
claro, ardendo por que appareça a sublime obra.
O Fidalgo córou profundamente, murmurando―«Que
tolice!» Depois roçou
pela poltrona em que se enterrava o André, afagou suavemente
o largo
hombro do André:
―Pois, tens feito cá muita falta, meu velho! Ha dias passei
em Corinde,
tive saudades...
Então o Barrôlo, que não socegava,
vermelho, a estoirar rebolando pela
sala, espiando ora o Cavalleiro, ora o Gonçalo, com um riso
mudo e
avido, não se conteve mais, gritou:
―Bem, basta de prologos... Vamos lá agora á
grande surpresa, André! Eu
tenho estado toda a tarde a rebentar... Mas emfim, jurei e calei! Agora
não posso... Vamos lá. E tu,
Gonçalinho, vae preparando os quinze
tostões.
Gonçalo, com a curiosidade de novo refervendo, apenas
sorria,
desprendidamente:
―Com effeito! Parece que tens uma bella novidade.
O Cavalleiro alargou lentamente os braços, sempre enterrado
na vasta
poltrona, sem pressa:
―Oh! é a cousa mais simples, mais natural... A Snr.
a
D.
Graça já sabe,
não é verdade?... Não ha motivo para
surpresa... Tão legitima, tão
natural!
Gonçalo exclamou, já impaciente:
[502] ―Mas emfim, venha lá, dize.
O Cavalleiro insistia, indolente. Todo o espanto era que só
agora se
pensasse em a realisar, cousa tão devida, tão
adequada. Pois não lhe
parecia á Snr.
a D. Graça?
Gonçalo, n'uma braza, berrou:
―Mas quê? que diabo?
O Cavalleiro, que se despegára vagarosamente da poltrona,
puxou os
punhos, e deante de Gonçalo, no silencio attento, alteando o
peito,
grave, quasi official, começou:
―Meu tio Reis Gomes, e o José Ernesto, tiveram uma ideia
muito natural,
que communicaram a El-Rei, e que El-Rei approvou... Que approvou mesmo
ao ponto de a appetecer, de se assenhorear d'ella, de desejar que fosse
só sua. E hoje é só d'El-Rei. El-Rei
pois pensou, como nós pensamos, que
um dos primeiros fidalgos de Portugal, decerto mesmo o primeiro, devia
ter um titulo que consagrasse bem a antiguidade illustre da Casa, e
consagrasse tambem o merito superior de quem hoje a representa... Por
isso, meu querido Gonçalo, já te posso annunciar,
e quasi em nome
d'El-Rei, que vaes ser Marquez de Treixedo.
―Bravo! bravo! bramou o Barrôlo, com palmas delirantes.
Saltem para cá
os quinze tostões, Snr. Marquez de Treixedo!
[503]
Uma onda de sangue cobria a fina face de Gonçalo. N'um
relance sentiu
que o Titulo era um dom do Cavalleiro, não ao chefe da casa
de Ramires,
mas ao irmão complacente de Gracinha Ramires... E sobre tudo
sentia a
incoherencia de que, ao chefe d'uma Casa dez vezes secular,
mãe de
Dynastias, edificadora do Reino, com mais de trinta dos seus
varões
mortos sob a armadura, se atirasse agora um ouco titulo, atravez do
Diario do Governo, como a um tendeiro enriquecido
que subsidiou
eleições. Todavia saudou o Cavalleiro, que
esperava a effusão, os
abraços.―Oh! Marquez de Treixedo! certamente muito
elegante, muito
amavel... Depois, esfregando as mãos, com um sorriso de
graça e
d'espanto... Mas, meu caro André, com que auctoridade me faz
El-Rei
Marquez de Treixedo?
O Cavalleiro levantou vivamente a cabeça n'uma offendida
surpresa:
―Com que auctoridade? Simplesmente com a auctoridade que tem sobre
nós
todos, como Rei de Portugal que ainda é, Deus louvado!
E Gonçalo, muito simplesmente, sem fumaça ou
pompa, com o mesmo sorriso
de suave gracejo:
―Perdão, Andrésinho. Ainda não havia
Reis de Portugal, nem sequer
Portugal, e já meus avós Ramires tinham solar em
Treixedo! Eu approvo os
grandes dons entre os grandes fidalgos; mas cumpre
[504]aos mais antigos
começarem. El-Rei tem uma quinta ao pé de Beja,
creio eu, o
Roncão.
Pois dize tu a El-Rei, que eu tenho immenso gosto em o fazer, a elle,
Marquez do Roncão.
O Barrôlo embasbacára, sem comprehender, com as
bochechas descahidas e
murchas. Da beira do canapé, Gracinha, toda
córada, faiscava de gosto,
por aquelle lindo orgulho que tão bem condizia com o seu,
mais lhe
fundia a alma com a alma do irmão amado. E André
Cavalleiro, furioso,
mas vergando os hombros com ironica submissão, apenas
murmurou:―«Bem,
perfeitamente!... Cada um se entende a seu modo...»
O escudeiro entrava com a bandeja do chá.
E no Domingo foi a Eleição.
Ainda com uma desconfiança, uma reserva supersticiosa, o
Fidalgo desejou
atravessar esse dia muito solitariamente, quasi escondido, e no
sabbado,
em quanto todos os amigos de Villa-Clara, mesmo os d'Oliveira, o
consideravam estabelecido nos Cunhaes, e em
communicação azafamada com o
Governo Civil, montou a cavallo ao escurecer, e trotou surrateiramente
para Santa Ireneia.
Mas o Barrôlo (ainda abalado com «aquelle
despauterio do Gonçalo, que
era uma offensa para o
[505]Cavalleiro!
até para
El-Rei!») ficára com a
missão de telegraphar para a Torre as noticias successivas
das
assembleias, á maneira que ellas acudissem ao Governo Civil.
E, com
ruidoso zelo, logo depois da missa, estabeleceu entre os Cunhaes e o
velho Convento de S. Domingos um serviço de creados
formigando sem
repouso. Gracinha, na sala de jantar, ajudada por Padre Sueiro, copiava
com amor, n'uma lettra muito redonda, os telegrammas mandados pelo
Cavalleiro, que ajuntava a lapis alguma nota amavel―«
Tudo
optimamente!»―
Victoria cresce.―
Parabens
a V. Ex.as.
Pela estrada de Villa-Clara á Torre, incessantemente, o
moço do
Telegrapho se esbaforia sobre a perna manca. O Bento rompia pela
livraria, berrando: «outro telegramma, Snr.
Doutor». Gonçalo, nervoso,
com um immenso bule de chá sobre a banca, a bandeja
já alastrada de
cigarros meio fumados, lia o telegramma ao Bento. O Bento, com
vivas
pelo corredor, corria a bramar o telegramma á Rosa.
E assim, quando cerca das oito horas, o Fidalgo consentiu em
jantar―já
conhecia o seu triumpho explendido. E o que o impressionava, relendo os
telegrammas, era o enthusiasmo carinhoso d'aquelles influentes, povos
que elle mal rogava, e que convertiam o acto da
Eleição quasi n'um acto
d'Amor. Toda a freguezia dos Bravaes marchára para a Egreja,
[506]cerrada
como uma hoste, com o José Casco na frente erguendo uma
enorme bandeira,
entre dous tambores que estouravam. O Visconde de Rio-Manso
entrára no
adro da Egreja de Ramilde na sua victoria, com a neta toda vestida de
branco, seguido por uma vistosa fila de
char-à-bancs,
onde
se
apinhavam eleitores sob toldos de verdura. Na Finta todos os casaes se
esvasiavam, as mulheres carregadas d'ouro, os rapazes de flôr
na orelha,
correndo á Eleição do Fidalgo entre o
repenicar das violas, como á
romaria d'um Santo. E deante da taberna do Pintainho, em face
á Egreja,
a gente da Velleda, da Riosa, do Cercal, erguera um arco de buxo, com
distico vermelho, sobre panninho:―«Viva o nosso Ramires,
flôr dos
homens!»
Depois, em quanto jantava, um moço da quinta voltou de
Villa-Clara,
alvoroçado, contando o delirio, as philarmonicas pelas ruas,
a
Assembleia toda embandeirada, e na casa da Camara, sobre a porta, um
transparente com o retrato de Gonçalo, que uma
multidão acclamava.
Gonçalo apressou o café. Por timidez, receoso dos
vivorios, não ousava
correr a Villa-Clara―a espreitar. Mas accendeu o charuto, passou
á
varanda, para respirar a doce noite de festa, que andava tão
cheia de
clarões e rumores em seu louvor. E ao abrir a porta
envidraçada quasi
recuou, com outro
[507]espanto.
A Torre illuminára! Das suas
fundas frestas,
atravez das negras rexas de ferro, sahia um clarão; e muito
alta, sobre
as velhas ameias, refulgia uma serena corôa de lumes! Era uma
surpresa,
preparada, com delicioso mysterio, pelo Bento, pela Rosa, pelos
moços da
quinta,―que agora, todos, no escuro, por baixo da varanda, contemplavam
a sua obra, allumiando o ceu sereno. Gonçalo percebeu os
passos
abafados, o pigarro da Rosa. Gritou alegremente da borda da varanda:
―Oh, Bento! Oh, Rosa!... Está ahi alguem?
Um risinho esfusiou. A jaqueta branca do Bento surdio da sombra.
―O Snr. Doutor queria alguma cousa?
―Não, homem! Queria agradecer... Foram vocês,
hein? Está linda a
illuminacão! Mas linda. Obrigado, Bento. Obrigado, Rosa!
Obrigado,
rapazes! De longe deve fazer um effeito soberbo.
Mas o Bento ainda se não contentava com aquellas lamparinas
frouxas. A
Torre, para sobresahir, necessitava chammas fortes de gaz. O Snr.
Doutor
nem imaginava a altura, depois em cima, a immensidão do
eirado.
Então, de repente, Gonçalo sentiu um desejo de
subir a esse immenso
eirado da Torre. Não entrára na Torre desde
estudante―e sempre ella lhe
desagradára por dentro, tão escura, de
tão duro granito,
[508]com
a sua
nudez, silencio e frialdade de jazigo, e logo no pavimento terreo os
negros alçapões chapeados de ferro que levavam
ás masmorras. Mas agora
as luzes nas frestas aqueciam, reviviam aquella derradeira ossada,
Honra
de Ordonho Mendes. E de entre as suas ameias, mais alto que da varanda,
lhe parecia interessante respirar aquella rumorosa sympathia esparsa,
que em torno, pelas freguezias rolava, subindo para elle, atravez da
noite, como um incenso. Enfiou um paletot, desceu á cosinha.
O Bento, o
Joaquim da horta, divertidos, agarraram grandes lanternas. E com elles
atravessou o pomar, penetrou pela atarracada poterna, de funda
hombreira, começou a trepar a esguia escadaria de pedra, que
tanta sola
de ferro polira e poira.
Já desde seculos se perdera a memoria do logar que occupava
aquella
torre nas complicadas fortificações da Honra e
Senhorio de Santa
Ireneia. Não era de certo (segundo padre Sueiro) a nobre
torre albarran,
nem a de Alcaçova, onde se guardava o thesouro, o cartorio,
os sacos tão
preciosos das especiarias do Oriente―e talvez, obscura e sem nome,
apenas defendesse algum angulo de muralha, para os lados em que o
Castello enfrontava com as terras semeadas e os olmedos da Ribeira.
Mas,
sobrevivente ás outras mais altivas, comprehendida nas
construcções do
Paço formoso que se erguera
[509]d'entre
o sombrio Castello
Affonsino, e que
dominava Santa Ireneia durante a dynastia d'Aviz, ligada ainda por
claras arcarias d'um terraço ao Palacio de gosto italiano,
em que
Vicente Ramires converteu o Paço manuelino depois da sua
campanha de
Castella: isolada no pomar, mas sobranceando o casarão que
lentamente se
edificára depois do incendio do Palacio em tempo d'El-Rei D.
José, e a
derradeira certamente onde retiniram armas e circularam os homens do
Terço dos Ramires―ella ligava as edades e como que
mantinha, nas suas
pedras eternas, a unidade da longa linhagem. Por isso o povo lhe
chamára
vagamente a «Torre de D. Ramires». E
Gonçalo, ainda sob a impressão dos
avós e dos tempos que resuscitára na sua Novella,
admirou com um
respeito novo a sua vastidão, a sua força, os
seus empinados escalões,
os seus muros tão espessos, que as frestas esguias na
espessura se
alongavam como corredores, escassamente allumiadas pelas tigelinhas
d'azeite, com que o Bento as despertára. Em cada um dos trez
sobrados
parou, penetrando curiosamente, quasi com uma intimidade, nas salas
núas
e sonoras, de vasto lagedo, de tenebrosa abobada, com os assentos de
pedra, estranho buraco ao meio, redondo como o d'um poço e
ainda pelas
paredes riscadas de sulcos de fumos, os anneis dos tocheiros. Depois em
cima, no immenso eirado que a fieira de lamparinas,
[510]cingindo as ameias,
enchia de claridade, Gonçalo, erguendo a gola do paletot na
aragem mais
fina, teve a dilatada sensação de dominar toda a
Provincia, e de possuir
sobre ella uma supremacia paternal, só pela soberana altura
e velhice da
sua torre, mais que a Provincia e que o Reino. Lentamente caminhou em
roda das ameias, até ao miradouro, a que um candieiro de
petroleo, sobre
uma cadeira de palhinha posta em frente á fresta, estragava
o entono
feudal. No céo macio, mas levemente enevoado, raras
estrellas luziam,
sem brilho. Por baixo a quinta, toda a largueza dos campos, a espessura
dos arvoredos se fundiam em escuridão. Mas na sombra e
silencio, por
vezes além, para o lado dos Bravaes, lampejavam foguetes
remotos. Um
clarão amarellado e fumarento, caminhando mais longe,
entestando para a
Finta, era de certo um rancho com archotes festivos. Na alta Egreja da
Velleda tremeluzia uma illuminação vaga, rala.
Outras luzes, incertas
através do arvoredo, riscavam o velho arco do Mosteiro, em
Santa Maria
de Craquêde. Da terra escura subia, por vezes, um errante som
de
tambores. E lumes, fachos, abafados rufos, eram dez freguezias
celebrando amoravelmente o Fidalgo da Torre, que lhes recebia o amor e
o
preito no eirado da sua torre, envolto em silencio e sombra.
O Bento descera, com o Joaquim, para reforçar
[511]as lamparinas
nas frestas
dos muros, onde ellas esmoreciam na espessura. E Gonçalo
sósinho,
acabando o charuto, recomeçou a rolda, lento, em torno
ás ameias,
perdido n'um pensamento que já o agitára
estranhamente, atravez
d'aquelle sobresaltado Domingo... Era pois popular! Por todas essas
aldeias, estendidas á sombra longa da Torre, o Fidalgo da
Torre era pois
popular! E esta certeza não o penetrava d'alegria, nem de
orgulho,―antes o enchia agora, n'aquella serenidade da noite, de
confusão, d'arrependimento! Ah! se adivinhasse―se elle
adivinhasse!...
Como caminharia, com a cabeça bem levantada, com os
braços bem
estendidos, sósinho, em confiança risonha para
todas essas sympathias
que o esperavam, tão certas, tão dadas. Mas
não! Sempre se julgára
cercado da indifferença d'aquellas aldeias, onde elle,
apesar do
antiquissimo nome, era o costumado moço, que volta de
Coimbra e vive
silenciosamente da sua renda, passeando na sua egoa. A essas
indifferenças tão naturaes nunca elle
imaginára arrancar o punhado de
votos, o punhado de papelinhos que necessitava para entrar na Politica,
onde elle conquistaria pela destreza o que os velhos Ramires recebiam
por herança―fortuna e poder. Por isso se
agarrára tão avidamente á
mão
do Cavalleiro, á mão do Snr. Governador
Civil―para que S. Ex.
a, o bom
[512]amigo, o
mostrasse, o impozesse como o homem necessario, o querido do
Governo, o melhor entre os bons, a quem as freguezias deviam offerecer
n'um Domingo o punhado de votos.
E na impaciencia d'esse favor abafára a memoria de amargos
aggravos;
deante d'Oliveira pasmada abraçára o homem
detestado desde annos, que
andava chasqueando e demolindo, por praças e jornaes:
facilitára a
resurreição de sentimentos que para sempre deviam
jazer enterrados; e
envolvera o ser que mais amava, a sua pobre e fraca
irmãsinha, em
confusão e miseria moral... Torpezas e damnos―e para
quê? Para
surripiar um punhado de votos que dez freguezias lhe trariam correndo,
gratuitamente, effusivamente, entre
vivas e
foguetes, se elle acenasse
e lh'os pedissse...
Ah! eis ahi... Fôra a desconfiança, essa encolhida
desconfiança de si
mesmo,―que desde o collegio, atravez da vida, lhe estragára
a vida. Era
a mesma desgraçada desconfiança, que ainda
semanas antes, deante de uma
sombra, um pau erguido, uma risada n'uma taberna, o forçava
a abalar, a
fugir, arripiado e praguejando contra a sua fraqueza. Por fim, um dia,
n'uma volta d'estrada, avança, ergue o chicote―e descobre a
sua força!
E agora, penetra por entre o povo, agarrado timidamente á
mão poderosa,
[513]por se imaginar
impopular―e descobre a sua popularidade immensa. Que
vida enganada, e tanto a sujára―por não saber!
O Bento não apparecia, ainda azafamado em illuminar
condignamente as
rexas da Torre. Gonçalo atirou a ponta do charuto, e com as
mãos nas
algibeiras do paletot, parou junto do miradouro, olhou vagamente para
as
estrellas. A nevoa adelgaçára quasi
sumida,―lumes mais vivos palpitavam
no ceu mais profundo. De lumes e ceus descia essa
sensação de
infinidade, d'eternidade, que penetra, como uma surpresa, nas almas
desacostumadas da sua contemplação. Na alma de
Gonçalo passou, muito
fugidiamente, o espanto d'essas eternas immensidades sob que se agita,
tão vaidosa da sua agitação, a
rasteira, a sombria poeira humana. Longe,
algum derradeiro foguete ainda lampejava, logo apagado na
escuridão
serena. As luzinhas sobre a capella de Velleda, sobre o arco de Santa
Maria de Craquêde, esmoreciam, já ralas. Todo o
remoto rumor de
musicatas se perdera, na mudez mais funda dos campos adormecidos. O dia
de triumpho findava, breve como os luminares e os foguetes.―E
Gonçalo,
parado, rente do miradouro, considerava agora o valor d'esse triumpho
por que tanto almejára, porque tanto sabujára.
Deputado! Deputado por
Villa-Clara, como o Sanches Lucena. E ante esse resultado,
tão miudo,
[514]tão
trivial,―todo o seu esforço tão
desesperado, tão sem escrupulos,
lhe parecia ainda menos immoral que risivel. Deputado! Para
quê? Para
almoçar no Bragança, galgar de tipoia a ladeira
de S. Bento, e dentro do
sujo convento escrevinhar na carteira do Estado alguma carta ao seu
alfaiate, bocejar com a inanidade ambiente dos homens e das ideias, e
distrahidamente acompanhar, em silencio ou balando, o rebanho do S.
Fulgencio, por ter desertado o rebanho identico do Braz Victorino. Sim,
talvez um dia, com rasteiras intrigas e sabujices a um chefe e
á senhora
do chefe, e promessas e risos atravez de
Redacções, e algum Discurso
esbrazeadamente berrado―lograsse ser Ministro. E então?
Seria ainda a
tipoia pela calçada de S. Bento, com o correio atraz na
pileca branca, e
a farda mal-feita, nas tardes d'assignatura, e os recurvados sorrisos
d'amanuenses pelos escuros corredores da Secretaria, e a lama
escorrendo
sobre elle de cada gazeta d'opposição... Ah! que
pêca, desinteressante
vida, em comparação d'outras cheias e soberbas
vidas, que tão
magnificamente palpitavam sob o tremeluzir d'essas mesmas estrellas! Em
quanto elle se encolhia no seu paletot, deputado por Villa-Clara, e no
triumpho d'essa miseria―Pensadores completavam a
explicação do
Universo; Artistas realisavam obras de belleza eterna; Reformadores
aperfeiçoavam a harmonia social;
[515]Santos
melhoravam
santamente as almas;
Physiologistas diminuiam o velho soffrer humano; Inventores alargavam a
riqueza das raças; Aventureiros magnificos arrancavam mundos
de sua
esterilidade e mudez... Ah! esses eram os verdadeiramente homens, os
que
viviam deliciosas plenitudes de vida, modelando com as suas
mãos
incançadas fórmas sempre mais bellas ou mais
justas da humanidade. Quem
fôra como elles, que são os sobre-humanos! E tal
acção tão suprema
requeria o Genio, o dom que, como a antiga chamma, desce de Deus sobre
um eleito? Não! Apenas o claro entendimento das realidades
humanas―e
depois o forte querer.
E o Fidalgo da Torre, immovel no eirado da Torre, entre o ceu todo
estrellado, e a terra toda escura, longamente revolveu pensamentos de
Vida superior―até que enlevado, e como se a energia da
longa raça, que
pela Torre passára, refluisse ao seu
coração, imaginou a sua propria
encaminhada emfim para uma acção vasta e fecunda,
em que soberbamente
gozasse o goso de verdadeiro viver, e em torno de si creasse vida, e
accrescentasse um lustre novo ao velho lustre de seu nome, e riquezas
puras o dourassem e a sua terra inteira o bem-louvasse por que elle
inteiro e n'um esforço pleno bem servira a sua terra...
[516]
O Bento surdiu da portinha baixa do eirado, com a lanterna:
―O Snr. Doutor ainda se demora?
―Não. A festa acabou, Bento.
Nos começos de Dezembro, com o primeiro numero dos
Annaes,
appareceu a
Torre de D. Ramires. E todos os jornaes, mesmo os
da
opposição,
louvaram «esse estudo magistral (como affirmou a
Tarde)
que, revelando
um erudito e um artista, continuava, com uma arte mais moderna e
colorida, a obra de Herculano e de Rebello, a
reconstituição moral e
social do velho Portugal heroico.» Depois das festas de
Natal, que elle
passou alegremente nos Cunhaes, ajudando Gracinha a cosinhar bolos de
bacalhau por uma receita sublime do padre José Vicente, da
Finta, os
amigos d'Oliveira, os rapazes do Club e da Arcada offereceram ao
Deputado por Villa-Clara, na sala da Camara, adornada de buxos e
bandeiras, um banquete, a que assistia o Cavalleiro, de gran-cruz, e em
que o Barão das Marges (que presidia) saudou «o
prestigioso moço que,
talvez em breve, nas cadeiras do Poder levantasse do marasmo este
brioso
paiz, com a pujança, a valentia, que são proprias
da sua raça
nobilissima!»
[517]
No meado de Janeiro, por uma agreste noite de chuva, Gonçalo
partiu para
Lisboa; e atravez do inverno, em Lisboa, andou sempre nos
Carnet-Mondain e
High-Life
dos jornaes, nas noticias de jantares, do
raouts, de tiros aos pombos, de Caçadas
d'El-Rei,
tão notado nos
movimentos mais simples da sua elegancia, que os Barrôlos
assignaram o
Diario Illustrado para saber quando elle passeava
na Avenida. Em
Villa-Clara, na Assembleia, o José Gouveia já
encolhia os hombros,
rosnando:―«Desandou em janota!»―Mas nos fins
d'Abril uma noticia de
repente alvoroçou Villa-Clara, espantou na quieta Oliveira
os rapazes do
Club e da Arcada, perturbou tão inesperadamente Gracinha,
então em
Amarante com o Barrôlo, que n'essa noite ambos abalaram para
Lisboa―e
na Torre atirou a Rosa para um banco de pedra da cosinha, lavada em
lagrimas, sem comprehender, gemendo:
―Ai o meu rico menino, o meu rico menino, que o não torno
mais a vêr!
Gonçalo Mendes Ramires, silenciosamente, quasi
mysteriosamente,
arranjára a concessão d'um vasto praso de
Macheque, na Zambezia,
hypothecára a sua quinta historica de Treixedo, e embarcava
em começos
de Junho no paquete
Portugal, com o Bento, para a
Africa.
XII
Quatro annos passaram ligeiros e leves sobre a velha Torre, como
vôos
d'ave.
N'uma doce tarde dos fins de Septembro, Gracinha, que
chegára na vespera
de Oliveira acompanhada pelo bom Padre Sueiro, descansava na varanda da
sala de jantar, estendida sobre o canapé de palhinha, ainda
com um
grande avental branco, tapando o vestido até ao
pescoço, um velho
avental do Bento. Todo o dia, d'avental, atravez do casarão,
ajudada
pela Rosa e pela filha da Crispola, s'esfalfára, arrumando e
limpando,
com tanto gosto e fervor no trabalho, que ella mesma sacudira o
pó a
todos os livros da livraria, o seu socegado pó de quatro
annos. O
Barrôlo tambem se occupára, dando
sentenças nas obras da cavallariça,
que a valente egoa da briga da Grainha em breve partilharia com uma
[520]egoa
ingleza, de meio sangue, comprada em Londres. Tambem Padre Sueiro
remexera, pelo Archivo, zelosamente, com um espanejador. E
até o Pereira
da Riosa, o bom rendeiro, apressava desde madrugada dois
moços na final
limpeza da horta, agora muito cuidada, já com meloal,
já com morangal, e
duas novas ruas, ambas bordadas de roseiras e recobertas de latada que
a
parra densa já recobria.
Com efeito a Torre, entre a alvoroçada alegria de todos,
enfeitava a sua
velhice―por que no Domingo, depois dos seus quatro annos d'Africa,
Gonçalo regressava á Torre.
E Gracinha, estendida no canapé com o seu velho avental
branco, sorrindo
pensativamente para a quinta silenciosa, para o ceu todo
córado sobre
Valverde, recordava esses quatro annos, desde a manhã em que
abraçára
Gonçalo, suffocada e a tremer, no beliche do
Portugal...
Quatro annos!
Assim passados, e nada mudára no mundo, no seu curto mundo
d'entre os
Cunhaes e a Torre, e a vida rolára, e tão sem
historia como rola um rio
lento n'uma solidão:―Gonçalo na Africa, na vaga
Africa, mandando raras
cartas, mas alegres, e com um enthusiasmo de fundador de Imperio; ella
nos Cunhaes, e o seu Barrôlo, n'um tão quieto e
costumado viver, que
eram quasi d'agitação os jantares em que reuniam
os Mendonças, os
Marges, o coronel do 7, outros amigos, e
[521]á
noite na sala se
abriam duas
mezas de panno verde para o voltarete e para o boston.
E n'este manso correr de vida se desfizera mansamente, quasi
insensivelmente, a sombria tormenta do seu
coração. Nem ella agora
comprehendia como um sentimento, que atravez das suas anciedades ella
justificava, quasi secretamente santificava por o saber
unico,
e o
desejar
eterno, assim se sumira, insensivelmente,
sem
dilacerações,
deixára apenas um leve arrependimento, alguma esfumada
saudade, tambem
estranheza e confusão, restos de tanto que ardera, formando
uma cinza
fina... A successão das cousas rolára, como o
vento ás lufadas n'um
campo, e ella rolára, levada com a inercia d'uma folha secca.
Logo depois do derradeiro Natal passado com Gonçalo,
André, que ainda os
acompanhára á Missa do Gallo e
consoára nos Cunhaes, voltou para Lisboa,
para essa «Reforma», de que se lastimava... No
silencio que entre ambos
então se alargou, corria já uma frialdade
d'abandono... E quando André
recolheu a Oliveira, ao seu Governo Civil, partia ella para Amarante,
onde a santa mãe do Barrôlo adoecera, com uma
vagarosa doença d'anemia e
velhice, que em Maio a levou para o Senhor.
Em Junho fôra o commovido embarque de Gonçalo para
a Africa,―e no
tombadilho do paquete, entre o barulho e as bagagens, um encontro com
André,
[522]que
chegara d'Oliveira, dias antes, e contou muito
alegremente do
casamento da Mariquinhas Marges. Todo esse verão, como o
Barrôlo
decidira fazer obras consideraveis no velho palacete do Largo d'El-Rei,
o passaram na quinta da
Murtosa, que ella
escolhera por causa da linda
matta, dos altos muros de convento. A essa solidão attribuiu
logo o
Barrôlo a sua melancolia, a sua magreza, aquelle cansado
scismar a que
se abandonava, pelos bancos musgosos da matta, com um romance esquecido
no regaço. Para que ella se distrahisse, se fortificasse com
banhos do
mar, alugou em Setembro, na Costa, o vistoso chalet do commendador
Barros. Ella não tomou banhos, nem apparecia na praia,
á fresca hora das
barracas, entre as senhoras sentadas em cadeirinhas baixas:―e
só á
tarde passeava pelo comprido areal rente á vaga, acompanhada
por dous
enormes galgos que lhe dera Manoel Duarte. Uma manhã, ao
almoço, ao
abrir as
Novidades, Barrôlo pulou, com
um berro, um
espanto. Era a
queda inesperada do Ministerio do S. Fulgencio! André
Cavalleiro
apresentava logo a sua demissão pelo telegrapho. E ainda
pelas
Novidades souberam na Costa que S. Ex.
a
partira
para uma
«longa e
pittoresca viagem», a viagem a Constantinopla, á
Asia Menor, que elle
annunciára ao jantar nos Cunhaes. Ella abrira um Atlas: com
o dedo lento
caminhou desde Oliveira
[523]até
á Syria, por sobre
fronteiras e montes: já
André lhe parecia desvanecido, n'esses horisontes mais
luminosos; fechou
o Atlas, pensando simplesmente «como a gente muda!»
Em Novembro voltaram a Oliveira, n'um sabbado de chuva, e ella na
carruagem sentia toda a melancolia e a frialdade do ceu penetrar no seu
coração. Mas no Domingo acordou com um lindo sol
nas vidraças. Para a
missa das onze na Sé, ella estreou um chapéo
novo; depois, no caminho
para casa da tia Arminda, levantou os olhos para o casarão
do Governo
Civil: agora habitava lá outro Governador Civil, o Snr.
Santos
Maldonado, um moço louro que tocava piano.
Na outra primavera o Barrôlo, agora escravisado pela
paixão d'obras,
imaginou demolir o Mirante para construir outra estufa, mais vasta, com
um repuxo entre palmeiras, que formaria «um jardim d'inverno
catita.»
Os trabalhadores começaram por esvasiar o Mirante da velha
mobilia que o
guarnecia desde o tempo do tio Melchior: o immenso divan jazeu dois
dias
no jardim, encalhado contra uma sebe de buxo, e o Barrôlo,
impaciente,
com aquelle desusado traste, de molas quebradas, nem o consentiu nas
arrecadações do sotão, mandou que o
queimassem com outras cadeiras
partidas, n'uma fogueira de festa, na noute
[524]dos
annos de Gracinha. E
ella andou em torno da fogueira. O estofo poído flammejou,
depois o
mogno pesado mais lentamente, com um leve fumo, até que uma
braza ficou
latejando, e a braza escureceu em cinza.
Logo n'essa semana as Lousadas, mais agudas, mais escuras, invadiram
uma
tarde os Cunhaes―e apenas espetadas no sophá, logo lhe
contaram, com um
riso feroz nos olhinhos furantes, do grande escandalo, o Cavalleiro! em
Lisboa! sem rebuço! com a mulher do Conde de S.
Romão! um fazendeiro de
Cabo Verde!
N'essa noite, ella escreveu a Gonçalo uma carta muito longa
que
começava:―«Por cá estamos todos bem, e
n'este rame-ram costumado...» E
com effeito a vida recomeçára, no seu rame-ram,
simples, contínua, e sem
historia, como corre um rio claro n'uma solidão.
Á porta envidraçada da varanda o filho da
Crispola espreitou―o filho da
Crispola, que ficára sempre na Torre, como
«andarilho», mas crescera
muito para fóra da sua antiga jaqueta de botões
amarellos, usava agora
jaquetões velhos do Snr. Doutor, e já repuxava o
buço:
―É que está lá em baixo o Snr.
Antonio Villalobos, com o Snr. Gouveia e
outro senhor, o Videirinha, e perguntam se podem fallar á
senhora...
[525] ―O Snr. Villalobos! Sim! que subam, que entrem para aqui, para a
varanda!
Ao atravessar a sala, onde dous esteireiros d'Oliveira pregavam uma
esteira nova, o vozeirão do Titó já
ribombava, notando os «preparativos
da festa...» E quando entrou na varanda a sua face mais
barbuda, mais
requeimada, rebrilhava com a alegria d'encontrar emfim a Torre
despertando d'aquella modorra, em que tudo dentro parecia tristemente
apagado, até o lume das caçarolas:
―Peço desculpa da invasão, prima
Graça. Mas passamos, de volta d'um
passeio dos Bravaes, soubemos que a prima viera com o
Barrôlo...
―Oh! gosto immenso, primo Antonio. Eu é que peço
desculpa d'esta
figura, assim despenteada, de grande avental... Mas todo o dia em
arranjos, a preparar a casa... E o Snr. Gouveia, como tem passado?
Não o
vejo desde a Paschoa.
O administrador, que não mudára n'esses quatro
annos, escuro, secco,
como feito de madeira, sempre esticado na sobrecasaca preta, apenas com
o bigode mais amarellado do cigarro, agradeceu á Snr.
a
D.
Graça... E
passára menos mal, desde a Paschoa. A não ser a
desavergonhada da
garganta...
―E então o nosso grande homem? quando chega? quando chega?
―No Domingo. Estamos todos em alvoroço...
[526]Então
não se senta, Snr.
Videira? Olhe, puxe aquella cadeira de vime. A varanda por ora
não está
arranjada.
Videirinha, logo depois da Eleição, recebera de
Gonçalo o logar
promettido, facil e com vagares, para não esquecer o
violão. Era
amanuense na Administração do Concelho de
Villa-Clara. Mas convivia
ainda na intimidade do seu chefe, que o utilisava para todos os
serviços, mesmo de enfermeiro, e o mandava sempre com uma
auctoridade
secca, mesmo ceando ambos no Gago.
Timidamente arrastou a cadeira de vime, que collocou, com respeito,
atraz da cadeira do seu Chefe. E depois de tirar as luvas pretas, que
agora sempre trazia para realçar a sua
posição, lembrou que o comboio
chegava ao apeadeiro de Craquêde ás dez e
quarenta, não trazendo atrazo.
Mas talvez o Snr. Doutor apeasse em Corinde, por causa das bagagens...
―Duvido, murmurou Gracinha. Em todo o caso o José
está com tenção de
partir de madrugada, para o encontrar na
bifurcação, em Lamello.
―Nós não! acudiu o Titó, que se
sentára familiarmente no rebordo da
varanda. Cá o nosso rancho vae simplesmente a
Craquêde. Já é terra da
familia, e sitio mais socegado para o vivorio... Mas então
esse homem
não se demorou em Lisboa, prima Graça?
[527] ―Desde Domingo, primo Antonio. Chegou no Domingo, de Paris, pelo
Sud-Express. E teve uma chegada brilhante... Oh! muito brilhante!
Hontem
recebi eu uma carta da Maria Mendonça, uma grande carta em
que conta...
―O que? A prima Maria Mendonça está em Lisboa?
―Sim, desde os fins d'Agosto, n'uma visita a D. Anna Lucena...
Vivamente, João Gouveia puxou a cadeira, n'uma curiosidade
que de certo
o remoera:
―É verdade, Snr.
a D.
Graça!―Então
parece que a D. Anna Lucena comprou
uma casa em Lisboa. anda em arranjos de mobilia?... V. Ex.
a
ouviu,
Snr.
a D. Graça?
Não, Gracinha não sabia. Mas era natural, agora
que tanto se demorava em
Lisboa, pouco se aproveitava da
Feitosa,
tão linda
quinta...
―Então casa! exclamou o Gouveia, com immensa
convicção. Se anda em
arranjos de mobilia, então casa. É natural, quer
posição. Depois, já lá
vão quatro annos de viuvez, e...
Gracinha sorriu. Mas o Titó, que coçava
lentamente a barba, voltou á
carta da prima Maria Mendonça, contando a chegada.
―Sim! acudiu Gracinha, conta, esteve na Estação,
no Rocio. Parece que o
Gonçalo optimo, mais
[528]forte...
Olhe, primo Antonio, leia a
carta. Leia
alto! Não tem segredos. É toda sobre o
Gonçalo...
Tirára do bolso um pesado enveloppe, com sinete d'armas no
lacre. Mas a
prima Maria escrevia sempre depressa, n'uma lettra atabalhoada, com as
linhas crusadas. Talvez o primo Antonio não
comprehendesse...―E com
effeito, deante das quatro folhas de papel erriçadas de
negras linhas,
parecendo uma sebe espinhosa, o Titó recuou, aterrado. Mas o
João
Gouveia immediatamente se offereceu, com a sua pericia em decifrar
officios de regedores... Não havendo segredos.
―Não, não ha segredos, afiançou
Gracinha, rindo. É unicamente sobre o
Gonçalo, como n'um jornal.
O administrador folheou a immensa carta, passou os dedos sobre o
bigode,
com certa solemnidade:
«Minha querida Graça... A costureira do Silva diz
que o vestido...»
―Não! acudiu Gracinha. É na outra pagina, no
alto. Volte a pagina.
Mas o Administrador gracejou, ruidosamente. Oh! está claro,
carta de
senhora, logo os trapos... E a Snr.
a D.
Graça a assegurar
que era toda
sobre Gonçalo. Pois já veriam se pelo meio se
não fallava ainda em
vestidos... Ah! estas senhoras, com os
[529]trapos!...―Depois
recomeçou, na
outra pagina, com lentidão e gravidade:
«...Deves agora estar anciosa por saber da grande chegada do
primo
Gonçalo. Foi realmente brilhante, e parecia uma
recepção de pessoa real.
Eramos mais de trinta amigos. Está claro, appareceu toda a
roda da nossa
parentella; e se rebentasse de repente n'essa manhã uma
revolução, os
Republicanos apanhavam alli junta, na estação do
Rocio, toda a flôr da
nobresa de Portugal, da velha, da boa. De senhoras, era a prima
Chellas,
a tia Louredo, as duas Esposendes (com o tio Esposende, que apesar do
rheumatismo e da vindima, veiu expressamente da quinta de Torres), e
eu.
Homens, todos. E como estava o Conde de Arega, que é
secretario d'El-Rei
e o primo Olhalvo, que é o seu Mordomo-Mór, e o
Ministro da Marinha e o
Ministro das Obras Publicas, ambos condiscipulos e intimos de
Gonçalo,
as pessoas na estação deviam imaginar que chegava
El-Rei. O Sud-Express
trouxe quarenta minutos de demora. De modo que parecia um
salão, com
toda aquella gente da sociedade, muito alegre, e o primo Arega, sempre
tão amavel e engraçado, e fazendo já
convites para um jantar (que depois
deu) ao primo Gonçalo. Lá fui a esse jantar com o
meu vestido verde,
novo, que ficou bem...»
Gouveia gritou triumphando:
[530] ―Hein? que disse eu?! cá está vestido. Vestido
verde!
―Lê para deante, homem! bramou o Titó.
E o Administrador, realmente interessado, recomeçou, com
entono:
«...com o meu vestido verde novo, excepto a saia, um pouco
pesadota.
Creio que fui eu a primeira que avistou o primo Gonçalo, na
plataforma
do Sud-Express. Não imaginas como vem... optimo!
Até mais bonito, e
sobretudo mais homem. A Africa nem de leve lhe tostou a pelle. Sempre a
mesma brancura. E d'uma elegancia, d'um apuro! Prova de como se adeanta
a civilisação d'Africa! dizia o primo Arega, este
é estylo novo de
tangas em Macheque!... Como imaginas, muito abraço, muita
beijoca. A tia
Louredo choramigou. Ah, já esquecia! Estava tambem o
Visconde de
Rio-Manso, com a filha, a Rosinha. Muito linda ella, com um vestido do
Redfern, fez sensação. Todos me perguntavam quem
era, e o conde d'Arega,
está claro, logo com appetite de ser apresentado. O
Rio-Manso tambem
choramigou ao abraçar o primo Gonçalo. E ali
viemos todos, em nobre
sequito, pela estação fóra, entre o
pasmo dos povos. Mas immediatamente
uma scena. De repente, no meio de toda aquella nata de
brazões, o primo
Gonçalo rompe e cahe nos braços do homemzinho de
bonet agaloado que
[531]recebia
á porta os bilhetes. Sempre o mesmo
Gonçalo! Parece que o
conheceu ao chegar a Lourenço Marques, onde o homem tratava
de se
estabelecer como photographo. Mas já esquecia o melhor―o
Bento! Não
imaginas o Bento... Magnifico! Deixou crescer um bocado de suissa.
É um
modelo, vestido em Londres, de grande casaco de viagem de panno claro,
até aos pés, luvas amarelladas, gravidade
immensa. Gostou de me vêr na
estação―perguntou logo, com o olho humido, pela
Snr.
a D. Graça, e pela
Rosa. Á noite, o José e eu jantamos em familia,
com o primo Gonçalo, no
Bragança, para conversar da Torre e dos Cunhaes. Elle contou
muitas
cousas interessantes d'Africa. Traz notas para um livro, e parece que o
praso prospera. N'estes poucos annos plantou dois mil coqueiros. Tem
tambem muito cacau, muita borracha. Gallinhas são aos
milhares. É
verdade que uma gallinha gorda em Macheque vale um pataco. Que inveja!
Aqui em Lisboa custa seis tostões, só com
ossos―por que tendo tambem
alguma carne no peito, salta para cá dez tostões,
e agradece! No praso
já se construiu uma grande casa, proximo do rio, com vinte
janellas e
pintada de azul. E o primo Gonçalo declara que já
não vende o praso nem
por oitenta contos. Para felicidade completa até achou um
excellente
administrador. Eu todavia duvido que elle volte para a Africa. Tenho
agora cá a minha linda ideia sobre o futuro do primo
Gonçalo. Talvez te
rias. E não adivinhas... com effeito, eu mesma só
n'essa noite em que
jantamos no Bragança, recebi de repente a
inspiração. O Rio-Manso está
tambem no Bragança. Quando desciamos para o jantar, para um
gabinete,
encontramos no corredor o velho com a pequena. O homem tornou logo a
abraçar Gonçalo, com uma
ternura de pae.
E a
Rosinha tão vermelha se
fez, que até Gonçalo, apesar de excitado e
distrahido, notou e córou de
leve. Parece que já ha entre elles um conhecimento antigo,
por causa
d'um cesto de rosas, e que, desde annos, o Destino os anda
surrateiramente chegando. Ella é realmente uma belleza. E
tão
sympathica, tão bem educada!... Differença
d'edade, apenas onze annos; e
o dote tremendo. Fallam em quinhentos contos. Ha apenas a
questão de
sangue e o d'ella, coitadinha... Emfim, como se diz em
heraldica,―«
o
Rei faz a pastora Rainha.» E os Ramires,
não
só vem dos Reis, mas os
Reis vem dos Ramires.―E agora passando a assumpto menos
interessante...»
Discretamente João Gouveia dobrou a carta, que entregou a
Gracinha,
louvando a Snr.
a D. Maria Mendonça
como um
«reporter» precioso. Depois,
com um cumprimento:
[533] ―E, minha senhora, se as previsões d'ella se realisam...
Mas não! Gracinha não acreditava! Ora!
imaginações da Maria Mendonça.
―O primo Antonio bem a conhece, sabe como ella é
casamenteira...
―Pois se até a mim me quiz casar, ribombou o
Titó saltando do rebordo
da varanda. Imagine a prima... Até a mim! Com a viuva Pinho,
da loja de
pannos.
―Credo!
Mas o Gouveia insistia, com superioridade, um sentimento verdadeiro da
vida positiva:
―Olhe, Snr.
a D. Graça, acredite V.
Ex.
a, sempre era
melhor arranjo
para o Gonçalo que a Africa... Eu não acredito
n'esses prazos... Nem na
Africa. Tenho horror á Africa. Só serve para nos
dar desgostos. Boa para
vender, minha senhora! A Africa é como essas quintarolas,
meio a monte,
que a gente herda d'uma tia velha, n'uma terra muito bruta, muito
distante, onde não se conhece ninguem, onde não
se encontra sequer um
estanco; só habitada por cabreiros, e com sezões
todo o anno. Boa para
vender.
Gracinha enrolava lentamente nos dedos a fita do avental:
―O quê! vender o que tanto custou a ganhar,
[534]com tantos
trabalhos no
mar, tanta perda de vida e fazenda?!
O Administrador protestou logo, com calor, já enristado para
a
controversia:
―Quaes trabalhos, minha senhora? Era desembarcar alli na areia, plantar
umas cruzes de pau, atirar uns safanões aos pretos... Essas
glorias
d'Africa são balelas. Está claro, V. Ex.
a
falla
como fidalga, neta de
fidalgos. Mas eu como economista. E digo mais...
O seu dedo agudo ameaçava argumentos agudos.
Titó acudiu, salvou Gracinha:
―Oh Gouveia, nós estamos a tirar o tempo á prima
Graça, que anda nos
seus arranjos. Essas questões d'Africa são para
depois, com o Gonçalo, á
sobremeza... E então, minha querida prima, até
Domingo, em Craquêde. Lá
comparece o rancho todo. E quem atira os foguetes sou eu!
Mas Gouveia, cofiando o côco com a manga, ainda esperava
converter a
Snr.
a D. Graça ás ideias
sãs, sobre
Politica Colonial.
―Era vender, minha senhora, era vender! Ella sorria, já
consentia―tomando a mão do Videirinha, que hesitava, com os
dedos
espetados:
―E então, Snr. Videira, tem agora algumas quadras novas
para o
Fado?
[535]
Córando, Videirinha balbuciou que
«arranjára uma coisita, tambem n'um
fado, para a volta do Snr. Doutor.» Gracinha prometteu
decorar, para
cantar ao piano.
―Muito agradecido a V. Ex.
a... Creado de V. Ex.
a...
―Então até Domingo, primo Antonio...
Está uma tarde linda.
―Até Domingo, em Craquêde, prima.
Mas á porta envidraçada, João Gouveia
parou mais teso, bateu na testa:
―Já me esquecia, desculpe V. Ex.
a!
Recebi uma carta do
André
Cavalleiro, da Figueira da Foz. Manda muitas saudades ao
Barrôlo. E quer
saber se o Barrôlo lhe poderia ceder d'aquelle vinho verde de
Vidainhos.
É tambem para um africanista, para o conde de S.
Romão... Parece que a
Snr.
a condessa se péla por vinho
verde!
E os tres amigos, em fila, atravessaram a sala de jantar, onde o
vozeirão do Titó ainda ribombou, louvando a
esteira nova de côres. No
corredor, Videirinha espreitou para a Livraria, notou o molho de penas
de pato espetado no velho tinteiro de latão, que esperava,
rebrilhando
solitariamente sobre a mesa nua sem papeis nem livros. Depois a Rosa
appareceu á porta do quarto de Gonçalo, ajoujada
de roupa, com um riso
em cada ruga da sua face
[536]redonda
e côr de tijolo, que o farto
lenço de
cambraia, muito branco, circumdava como um nimbo. O Titó
affagou
carinhosamente o hombro da boa cosinheira:
―Então, tia Rosa, agora recomeçam essas grandes
petisqueiras, hein?
―Louvado seja Deus, Snr. D. Antonio! Que imaginei que não
tornava a vêr
o meu rico senhor. Tambem já tinha decidido... Se me
enterrassem o corpo
aqui em Santa Ireneia, antes de eu vêr o menino, a alma com
certesa ia á
Africa para lhe fazer uma visita.
Os seus miudos olhos piscaram, lagrimejando de gosto―e seguiu pelo
corredor, tesa e decidida, com a sua trouxa que rescendia a
maçã
camoeza. O Gouveia murmurára com uma
careta:―«Safa!» E os tres amigos
desceram ao pateo onde, por curiosidade do Titó, visitaram
as obras da
cavallariça.
―Veja você! exclamou elle para o Gouveia, que accendia o
charuto. Você
a negar!... Mobilias, obras, egoa ingleza... Tudo já
dinheiro d'Africa.
O Administrador encolheu os hombros:
―Veremos depois como elle traz o figado...
Deante do portão o Titó ainda parou a colher, na
roseira costumada, uma
rosinha para florir o jaquetão de velludilho. E juntamente
entrava o
Padre Sueiro, recolhendo d'uma volta pelos Bravaes, com
[537]o seu grande
guarda-sol de panninho e o seu breviario. Todos acolheram com carinho o
santo e douto velho, tão raro agora na Torre.
―E então no Domingo, cá temos o nosso homem,
Padre Sueiro!
O capellão achatou sobre o peito a mão gorda, com
reverencia, com
gratidão...
―Deus ainda me quiz conceder, na minha velhice, mais esse grande
favor... Pois mal o esperava. Terras tão asperas, e elle
tão delicado...
E para conversar de Gonçalo, da espera em
Craquêde, acompanhou aquelles
senhores até á ponte da Portella. João
Gouveia manquejava, aperreado por
umas infames botas novas que n'essa manhã
estreára. E descançaram um
momento no bello banco de pedra que o pae de Gonçalo
mandára collocar,
quando Governador Civil d'Oliveira. Era esse o doce sitio d'onde se
avista Villa-Clara, tão aceada, sempre tão
branca, áquella hora toda
rosada, d'esde o vasto convento de Santa Theresa até ao muro
novo do
cemiterio no alto, com os seus finos cyprestes.
Para além dos outeiros de Valverde, longe, sobre a Costa, o
sol descia,
vermelho como um metal candente que arrefece, entre nuvens vermelhas,
accendendo ainda, em ouro coruscante, as janellas da Villa.
Ao fundo do valle, uma claridade nimbava as
[538]altas
ruinas de Santa Maria
de Craquêde, entre o seu denso arvoredo. Sob o arco, o rio
cheio corria
sem um rumor, já dormente na sombra dos choupos finos, onde
ainda
passaros cantavam. E na volta da estrada, por cima dos alamos que
escondiam o casarão, a velha Torre, mais velha que a Villa e
que as
ruinas do Mosteiro, e que todos os casaes espalhados, erguia o seu
esguio miradoiro, envolto no vôo escuro dos morcegos,
espreitando
silenciosamente a planicie e o sol sobre o mar, como em cada tarde
d'esses mil annos, desde o Conde Ordonho Mendes.
Um pequeno com uma alta aguilhada passou, recolhendo duas vaccas
lentas.
Do lado da Villa, o padre José Vicente da Finta trotou na
sua egoa
branca, saudou o Snr. Administrador, o amigo Sueiro,
abençoando tambem a
chegada do Fidalgo para quem já preparára uma
bella cesta da sua uva
moscatel. Trez caçadores, com uma matilha de coelheiras,
atravessaram a
estrada, descendo pelo portello á quelha que contorna o
casal do
Miranda.
Um silencio ainda claro, de immenso repouso, tão doce como
se descesse
do ceu, cobria a largueza povoada dos campos, onde não se
movia uma
folha, na macia transparencia do ar de Setembro. Os fumos das lareiras
accesas já se escapavam, lentos e leves, d'entre a telha
rala. Na loja
do João ferreiro, adeante da Portella, o clarão
da forja avivou, mais
[539]vermelho. Um
bum-bum
de tambor bateu festivamente
para o lado dos
Bravaes, cresceu apressado, marchando:―n'algum cabeço,
depois
lentamente se afastou, esmoreceu, logo sumido, em arvoredos ou no valle
mais fundo.
João Gouveia, que se recostára no canto do largo
assento de pedra, com o
seu côco sobre os joelhos, acenou para o lado dos Bravaes:
―Estou a lembrar aquella passagem do romance do Gonçalo,
quando os
Ramires se preparam para soccorrer as Infantas, andam a reunir a
mesnada. É assim, a estas horas da tarde, com tambores: e
por sitios...
«Na frescura do valle...» Não!
«Pelo valle de Craquêde...» Tambem
não!
Esperem vocês, que eu tenho boa memoria... Ah! «E
por todo o fresco
valle até Santa Maria de Craquêde, os atambores
mouriscos abafados no
arvoredo, tararam! tararam! ou mais vivos nos cerros ralatam! ralatam!
convocavam á mesnada dos Ramires, na doçura da
tarde...» E lindo!
Por sobre as costas do Titó que, debruçado,
riscava pensativamente com o
bengalão a poeira da estrada, Videirinha adeantou para o seu
chefe a
face estendida, com um sorriso de finura:
―Oh Snr. Administrador, olhe que talvez seja ainda mais bonito, quando
os Ramires largam a perseguir o Bastardo! Cá para mim, tem
mais poesia.
[540]Quando o velho faz
aquella jura com a espada e depois lá na
Torre, muito
devagar, começa a tocar a finados... É d'appetite!
Á borda do assento, encolhido contra o Titó, para
que o Snr.
Administrador se alastrasse confortavelmente, Padre Sueiro, com as
mãos
no cabo do seu guarda-sol, concordou:
―Com certesa! são lances interessantes... Com certesa!
N'aquella
novella ha imaginação rica, muito rica: e ha
saber, ha verdade.
O Titó, que depois de
Simão de Nantua,
em
pequeno, não abrira mais as
folhas d'um livro, e não lêra a
Torre
de D.
Ramires, murmurou, com um
risco mais largo na poeira:
―Extraordinario, aquelle Gonçalo!
O Videirinha não findára o seu enlevado sorriso:
―Tem muito talento... Ah! o Snr. Doutor tem muito talento.
―Tem muita raça! exclamou o Titó, levantando a
cabeça. E é o que o
salva dos defeitos... Eu sou um amigo de Gonçalo, e dos
firmes. Mas não
o escondo, nem a elle... Sobretudo a elle. Muito leviano, muito
incoherente... Mas tem a raça que o salva.
―E a bondade, Snr. Antonio Villalobos! atalhou docemente Padre Sueiro.
A bondade, sobretudo como a do Snr. Gonçalo, tambem salva...
Olhe, ás
vezes
[541]ha um homem
muito serio, muito puro, muito austero, um
Catão que
nunca cumpriu senão o dever e a lei... E todavia ninguem
gosta d'elle,
nem o procura. Por que? Por que nunca deu, nunca perdoou, nunca
acarinhou, nunca serviu. E ao lado outro leviano, descuidado, que tem
defeitos, que tem culpas, que esqueceu mesmo o dever, que offendeu
mesmo
a lei... Mas quê? É amoravel, generoso, dedicado,
serviçal, sempre com
uma palavra doce, sempre com um rasgo carinhoso... E por isso todos o
amam, e não sei mesmo, Deus me perdôe, se Deus
tambem o não prefere...
A curta mão que acenára para o ceu, recahiu sobre
o cabo d'osso do
guarda-sol. Depois, e córado com a temeridade de pensamento
tão
espiritual acudiu cautelosamente:
―Que esta não é propriamente doutrina da
Egreja!... Mas anda nas almas;
anda já em muitas almas.
Então João Gouveia abandonou o recosto do banco
de pedra e teso na
estrada, com o côco á banda, reabotoando a
sobrecasaca, como sempre que
estabelecia um resumo:
―Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes.
E sabem
vocês, sabe o Snr. Padre Sueiro quem elle me lembra?
―Quem?
[542] ―Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquelle todo
de Gonçalo,
a franqueza, a doçura, a bondade, a immensa bondade, que
notou o Snr.
Padre Sueiro... Os fogachos e enthusiasmos, que acabam logo em fumo, e
juntamente muita persistencia, muito aferro quando se fila á
sua
ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos
negocios, e sentimentos de muita honra, uns escrupulos, quasi pueris,
não é verdade?... A
imaginação que o leva sempre a exaggerar
até á
mentira, e ao mesmo tempo um espirito pratico, sempre attento
á
realidade util. A viveza, a facilidade em comprehender, em apanhar... A
esperança constante n'algum milagre, no velho milagre
d'Ourique, que
sanará todas as difficuldades... A vaidade, o gosto de se
arrebicar, de
luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na
rua o braço a um
mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador,
tão sociavel.
A desconfiança terrivel de si mesmo, que o acobarda, o
encolhe, até que
um dia se decide, e apparece um heroe, que tudo arrasa...
Até aquella
antiguidade de raça, aqui pegada á sua velha
Torre, ha mil annos... Até
agora aquelle arranque para a Africa... Assim todo completo, com o bem,
com o mal, sabem vocês quem elle me lembra?
―Quem?...
―Portugal.
[543]
Os tres amigos retomaram o caminho de Villa-Clara. No ceu branco uma
estrellinha tremeluzia sobre Santa Maria de Craquêde. E Padre
Sueiro,
com o seu guarda-sol sob o braço, recolheu á
Torre vagarosamente, no
silencio e doçura da tarde, resando as suas
Avè-Marias, e pedindo a paz
de Deus para Gonçalo, para todos os homens, para campos e
casaes
adormecidos, e para a terra formosa de Portugal, tão cheia
de graça
amoravel, que sempre bemdita fosse entre as terras.
FIM
A revisão das provas d'este livro, desde paginas 417
até á conclusão,
não foi feita pelo Auctor. Entretanto seguiu-se á
risca o original.