EÇA
DE QUEIROZ
O MANDARIM
LIVRARIA INTERNACIONAL
DE
ERNESTO CHARDRON, EDITOR.
Porto e Braga
1880
O MANDARIM
PROLOGO
1.º Amigo
(bebendo Cognac e soda, debaixo d'arvores, n'um
terraço, á beira d'agua)
Camarada, por estes calores do estio que embotam a ponta da sagacidade,
repousemos do aspero estudo da Realidade humana... Partamos para os
campos do Sonho, vaguear por essas azuladas collinas romanticas
[2]onde se
ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as
ruinas do Idealismo... Façamos phantasia!...
2.º Amigo
Mas sobriamente, camarada, parcamente!... E como nas sabias e amaveis
Allegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma
Moralidade discreta...
(Comedia
Inedita).
I
Eu chamo-me
Theodoro―e fui amanuense do Ministerio do Reino.
N'esse tempo vivia eu á travessa da
Conceição n.º 106, na casa d'hospedes da
D. Augusta, a esplendida D. Augusta, viuva do major Marques. Tinha dois
companheiros: o Cabrita, empregado na
Administração do bairro central, esguio
[4]
e
amarello como uma tocha d'enterro; e o possante, o exuberante tenente
Couceiro, grande tocador de viola franceza.
A minha existencia era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de
mangas de lustrina á carteira da minha
repartição, ia lançando, n'uma formosa
letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado, estas phrases faceis:
«
Ill.mo e Exc.mo
Snr.―
Tenho
a honra de communicar a V.
Exc.ª... Tenho a honra de passar ás mãos
de V.
Exc.ª, Ill.mo e Exc.mo
Snr...»
Aos domingos repousava: installava-me então no
canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava
a D. Augusta, que, em dias de missa,
costumava limpar com clara d'ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta
hora, sobretudo no verão, era deliciosa: pelas
[5]
janellas meio
cerradas penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos
sinos da Conceição Nova, e o arrulhar das rolas
na
varanda; a monotona susurração das moscas
balançava-se sobre a velha cambraia, antigo
véo nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador
os pratos de cerejas bicaes; pouco a pouco o tenente, envolvido n'um
lençol como
um idolo no seu manto, ia adormecendo, sob a
fricção molle
das carinhosas mãos da D. Augusta; e ella, arrebitando o
dedo minimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as rêpas
lustrosas com o pentesinho dos bichos...
Eu então, enternecido, dizia á deleitosa senhora:
―Ai D. Augusta, que anjo que é!
Ella ria; chamava-me
enguiço! Eu
sorria, sem me
escandalisar.
Enguiço era com effeito
o
nome que me davam
[6]
na casa―por
eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito,
tremer de ratos,
ter á cabeceira da cama uma lithographia de Nossa Senhora
das Dôres
que pertencera á mamã, e corcovar. Infelizmente
corcóvo―do muito que verguei o espinhaço, na
Universidade, recuando como uma
pêga assustada diante dos senhores Lentes; na
repartição,
dobrando a fronte ao pó perante os meus Directores Geraes.
Esta attitude de resto
convém ao bacharel; ella mantem a disciplina n'um Estado bem
organisado; e a mim garantia-me a tranquillidade dos domingos, o uso
d'alguma roupa branca,
e vinte mil reis mensaes.
Não posso negar, porém, que n'esse tempo eu era
ambicioso―como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lepido
Couceiro.
Não que me
[7]
revolvesse o peito o appetite heroico de dirigir,
do alto d'um throno, vastos rebanhos humanos; não que a
minha louca alma
jámais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia,
seguida d'um correio choitando;―mas pungia-me o desejo de poder jantar
no Hotel Central com
Champagne, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo
menos duas vezes por semana, adormecer, n'um extasi mudo, sobre o seio
fresco de Venus. Oh! moços que vos dirigieis vivamente a S.
Carlos,
atabafados em paletots caros onde alvejava a gravata de
soirée! Oh!
tipoias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os
touros―quantas vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os
meus vinte mil reis por mez e o meu geito encolhido de
enguiço me excluiam
para sempre d'essas alegrias sociaes vinha-me
[8]então
ferir o
peito―como
uma frecha que se crava n'um tronco, e fica muito tempo vibrando!
Ainda assim, eu não me considerava sombriamente um
«pária». A vida humilde tem
doçuras: é grato, n'uma
manhã de sol alegre, com o guardanapo ao pescoço,
diante do bife de grelha, desdobrar o
Diario de Noticias;
pelas tardes de verão, nos bancos
gratuitos do
Passeio, gozam-se suavidades de idyllio; é saboroso
á
noite no Martinho, sorvendo aos goles um café, ouvir os
verbosos injuriar a patria...
Depois, nunca fui excessivamente infeliz―porque não tenho
imaginação: não me consumia, rondando
e almejando em torno de paraisos ficticios, nascidos
da minha propria alma desejosa como nuvens da
evaporação d'um lago; não suspirava,
olhando as lucidas estrellas, por um amor á
Romeo,
[9]ou por uma
gloria social á Camors. Sou um positivo.
Só
aspirava ao racional, ao tangivel, ao que já fôra
alcançado por
outros no meu bairro, ao que é accessivel ao bacharel. E
ia-me resignando, como quem a uma
table d'hôte
mastiga a
bucha de pão secco á
espera que lhe chegue o prato rico da
Charlotte russe.
As felicidades
haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia como
portuguez e como constitucional:―pedia-as todas as noites a Nossa
Senhora das
Dôres, e comprava decimos da loteria.
No entanto procurava distrahir-me. E como as
circumvoluções do meu cerebro me não
habilitavam a compôr odes,
á maneira de tantos outros ao meu lado que se desforravam
assim do tedio da profissão;
como o meu ordenado, paga a casa e o tabaco, me não
permittia
[10]um
vicio―tinha tomado o habito discreto de comprar na feira da Ladra
antigos volumes desirmanados, e á noite, no meu quarto,
repastava-me d'essas
leituras curiosas. Eram sempre obras de titulos ponderosos:
Galera da
Innocencia,
Espelho
Milagroso,
Tristeza
dos Mal Desherdados... O typo
venerando, o papel amarellado com picadas de traça, a grave
encadernação freiratica, a fitinha verde marcando
a pagina―encantavam-me! Depois, aquelles dizeres ingenuos em letra
gorda davam uma
pacificação a todo o meu sêr,
sensação comparavel á paz penetrante
d'uma velha cêrca de mosteiro, na quebrada d'um valle, por um
fim suave de tarde, ouvindo o correr d'agua
triste...
Uma noite, ha annos, eu começára a lêr,
n'um d'esses in-folios vetustos, um
[11]capitulo
intitulado
Brecha
das
Almas; e ia cahindo n'uma somnolencia grata, quando este
periodo
singular se me destacou do tom neutro e apagado da pagina, com o relevo
d'uma medalha d'ouro nova brilhando sobre um tapete escuro:
copío textualmente:
«No fundo da China
existe um Mandarim mais rico que todos os reis
de que a Fabula ou a Historia
contam. D'elle nada conheces, nem o
nome, nem o semblante, nem a
sêda de que se veste. Para que tu
herdes os seus cabedaes
infindaveis, basta que toques essa
campainha, posta a teu lado,
sobre um livro. Elle soltará apenas um
suspiro, n'esses confins da
Mongolia. Será então um cadaver: e tu
verás a teus
pés mais ouro do que póde sonhar a
ambição d'um avaro.
Tu, que me
[12]lês
e
és um homem mortal, tocarás tu a
campainha?»
Estaquei, assombrado, diante da pagina aberta: aquella
interrogação «homem mortal,
tocarás tu a campainha?»
parecia-me facêta, picaresca, e todavia perturbava-me
prodigiosamente. Quiz lêr mais; mas as
linhas fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que
deixavam, d'uma
lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a
interpellação
estranha―«tocarás tu a compainha?»
Se o volume fosse d'uma honesta edição
Michel-Levy, de capa amarella, eu, que por fim não me achava
perdido n'uma floresta de
ballada allemã, e podia da minha sacada vêr
branquejar á luz do
gaz o correame da patrulha―teria simplesmente fechado o livro, e
[13]estava dissipada a
allucinação nervosa. Mas
aquelle sombrio in-folio
parecia estalar magia; cada letra affectava a inquietadora
configuração
d'esses signaes da velha cabala, que encerram um attributo fatidico; as
virgulas tinham o retorcido petulante de rabos de diabinhos,
entrevistos n'uma alvura de luar; no
ponto
d'interrogação final eu via o
pavoroso gancho com que o Tentador vai fisgando as almas que
adormeceram sem se refugiar na inviolavel cidadella da
Oração!... Uma influencia
sobrenatural apoderando-se de mim, arrebatava-me devagar para
fóra da
realidade, do raciocinio: e no meu espirito foram-se formando duas
visões―d'um lado um Mandarim, decrepito, morrendo sem
dôr, longe, n'um kiosque
chinez, a um
ti-li-tin de campainha; do outro
toda
uma montanha de
ouro scintillando aos meus
[14]pés!
Isto era tão
nitido,
que eu via os olhos obliquos do velho personagem embaciarem-se, como
cobertos d'uma tenue camada de pó; e sentia o fino tinir de
libras rolando
juntas. E immovel, arripiado, cravava os olhos ardentes na campainha,
pousada pacatamente diante de mim sobre um diccionario francez―a
campainha prevista,
citada no mirifico in-folio...
Foi então que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e
metallica me disse, no silencio:
―Vamos, Theodoro, meu amigo, estenda a mão, toque a
campainha, seja um forte!
O
abat-jour verde da vela punha uma penumbra em
redor. Ergui-o, a
tremer. E vi, muito pacificamente sentado, um individuo corpulento,
todo vestido de preto, de chapéo alto, com as
[15]duas
mãos calçadas de luvas negras gravemente apoiadas
ao cabo d'um guarda-chuva. Não
tinha nada de phantastico. Parecia tão contemporaneo,
tão
regular, tão classe-média como se viesse da minha
repartição...
Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e
duras; o nariz brusco, d'um aquilino formidavel, apresentava a
expressão rapace e atacante d'um bico d'aguia; o
córte dos labios,
muito firme, fazia-lhe como uma bocca de bronze; os olhos, ao fixar-se,
assemelhavam
dois clarões de tiro, partindo subitamente d'entre as
sarças tenebrosas das sobrancelhas unidas; era livido―mas,
aqui e além na
pelle, corriam-lhe raiações sanguineas como n'um
velho
marmore phenicio.
Veio-me á idéa de repente que tinha diante de mim
o Diabo: mas logo
[16]todo
o meu raciocinio se insurgiu resolutamente
contra esta
imaginação. Eu nunca acreditei no Diabo―como
nunca acreditei em Deus.
Jámais o disse alto, ou o escrevi nas gazetas, para
não descontentar os
poderes publicos, encarregados de manter o respeito por taes entidades:
mas que
existam estes dois personagens, velhos como a Substancia, rivaes
bonacheirões, fazendo-se mutuamente pirraças
amaveis,―um de barbas nevadas e tunica azul, na toilette do antigo
Jove, habitando os altos luminosos, entre uma côrte mais
complicada que a de Luiz XIV;
e o outro enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chammas
inferiores, n'uma imitação burgueza do pitoresco
Plutão―não acredito. Não,
não acredito! Céo e Inferno
são concepções sociaes para uso da
plebe―e eu pertenço á classe-média.
[17]Rezo, é
verdade, a Nossa Senhora das Dôres:
porque, assim como pedi o favor do senhor doutor
para passar no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil reis,
implorei a benevolencia do senhor deputado; igualmente para me
subtrahir
á tisica, á angina, á navalha de
ponta, á febre
que vem da sargeta, á casca de laranja escorregadia onde se
quebra a perna, a outros males publicos, necessito ter uma
protecção extra-humana. Ou pelo
rapa-pé ou pelo incensador o homem prudente deve ir fazendo
assim uma serie de sabias adulações desde a
Arcada até ao
Paraiso. Com um compadre no bairro, e uma comadre mystica nas
Alturas―o destino do bacharel está
seguro.
Por isso, livre de torpes superstições, disse
familiarmente ao individuo vestido de negro:
[18] ―Então,
realmente, aconselha-me que toque a campainha?
Elle ergueu um pouco o chapéo, descobrindo a fronte
estreita, enfeitada d'uma gaforinha crespa e negrejante como a do
fabuloso Alcides, e respondeu, palavra a palavra:
―Aqui está o seu caso, estimavel Theodoro. Vinte mil reis
mensaes são uma vergonha social! Por outro lado, ha sobre
este globo coisas prodigiosas: ha vinhos de Borgonha, como por exemplo
o
Romanée-Conti de 58 e o
Chambertin
de 61, que custam,
cada garrafa, de dez a onze mil reis; e quem bebe o primeiro calix,
não
hesitará, para beber o segundo, em assassinar seu pai...
Fabricam-se em Paris e em Londres carruagens de tão suaves
molas, de tão mimosos
estofos, que é preferivel percorrer n'ellas o Campo Grande,
a viajar,
[19]como os
antigos deuses, pelos céos, sobre os
fôfos coxins das nuvens...
Não farei á sua instrucção
a offensa de o informar que se mobilam
hoje casas, d'um estylo e d'um conforto, que são ellas que
realisam
superiormente esse regalo ficticio, chamado outr'ora a
«Bemaventurança». Não lhe
fallarei, Theodoro, d'outros gozos terrestres: como, por exemplo, o
Theatro do
Palais Royal, o
baile
Laborde, o
Café
Anglais...
Só chamarei a sua attenção para este
facto: existem sêres
que se chamam Mulheres―differentes d'aquelles que conhece, e que se
denominam
Femeas. Estes sêres, Theodoro, no meu tempo, a paginas 3 da
Biblia,
apenas usavam exteriormente uma
folha de vinha.
Hoje, Theodoro,
é
toda uma symphonia, todo um engenhoso e delicado poema de rendas,
baptistes, setins, flôres, joias,
[20]cachemiras, gazes e
velludos...
Comprehende a satísfação inenarravel
que
haverá, para os cinco dedos de um christão, em
percorrer, palpar estas maravilhas macias;―mas tambem percebe que
não é com o troco d'uma placa honesta de cinco
tostões que se pagam as contas d'estes cherubins... Mas
ellas possuem melhor, Theodoro:
são os cabellos côr do ouro ou côr da
treva, tendo assim
nas suas tranças a apparencia emblematica das duas grandes
tentações
humanas―a fome do metal precioso e o conhecimento do absoluto
transcendente. E ainda teem
mais: são os braços côr de marmore,
d'uma frescura de lirio orvalhado; são os seios, sobre os
quaes o grande Praxiteles modelou a
sua Taça, que é a linha mais pura e mais
ídeal da
Antiguidade.... Os seios, outr'ora (na idéa d'esse ingenuo
[21]Ancião
que os formou, que
fabricou o mundo, e de quem uma inimizade secular me veda de pronunciar
o nome), eram destinados á nutrição
augusta da
humanidade; socegue porém, Theodoro; hoje nenhuma maman
racional os expõe a essa
funcção deterioradora e severa; servem
só para resplandecer, aninhados em rendas, ao
gaz das
soirées,―e para outros usos
secretos. As
conveniencias
impedem-me de proseguir n'esta exposição radiosa
das bellezas,
que constituem o
Fatal Feminino... De resto as
suas pupillas
já rebrilham.... Ora
todas estas coisas, Theodoro, estão para além,
infinitamente
para além dos seus vinte mil reís por mez...
Confesse, ao menos, que estas
palavras teem o veneravel sello da verdade!...
Eu murmurei com as faces abrasadas:
[22] ―Teem.
E a sua voz proseguiu, paciente e suave:
―Que me diz a cento e cinco, ou cento e seis mil contos? Bem sei,
é uma bagatella... Mas emfim, constituem um
começo; são
uma ligeira habilitação para conquistar a
felicidade. Agora
pondere estes factos: o Mandarim, esse Mandarim do fundo da China,
está decrepito e
está gottoso: como homem, como funccionario do celeste
imperio, é
mais inutil em Pekin e na humanidade, que um seixo na bocca d'um
cão
esfomeado. Mas a transformação da substancia
existe:
garanto-lh'a eu, que sei o segredo das coisas... Porque a terra
é assim: recolhe aqui um homem
apodrecido, e restitue-o além ao conjuncto das
fórmas como
vegetal viçoso. Bem póde ser que elle, inutil
como
[23]Mandarim no
Imperio do Meio, vá
ser util n'outra terra como rosa perfumada ou saboroso
repôlho. Matar,
meu filho, é quasi sempre equilibrar as necessidades
universaes.
É eliminar aqui a excrescencia para ir além
supprir a falta. Penetre-se
d'estas solidas philosophias. Uma pobre costureira de Londres anceia
por vêr
florir, na sua trapeira, um vaso cheio de terra negra: uma
flôr
consolaria aquella desherdada; mas na disposição
dos
sêres, infelizmente, n'esse momento, a substancia que
lá devia ser rosa é aqui na Baixa
homem d'Estado... Vem então o fadista de navalha aberta, e
fende o estadista; o
enxurro leva-lhe os intestinos; enterram-no, com tipoias atraz; a
materia
começa a desorganisar-se, mistura-se á vasta
evolução dos atomos―e o superfluo homem de
governo vai alegrar, sob a fórma de
[24]amor
perfeito,
a agua furtada da loura costureira. O assassino é um
philanthropo!
Deixe-me resumir, Theodoro: a morte d'esse velho Mandarim idiota
traz-lhe
á algibeira alguns milhares de contos. Póde desde
esse momento
dar pontapés nos poderes publicos: medite na intensidade
d'este
gozo! É desde logo citado nos jornaes: reveja-se n'esse
maximo da gloria
humana! E agora note: é só agarrar a campainha, e
fazer
ti-li-tin. Eu não sou um barbaro:
comprehendo a
repugnancia d'um
gentleman em assassinar um
contemporaneo: o espirrar do sangue suja vergonhosamente os punhos, e
é repulsivo o agonisar d'um corpo humano. Mas aqui, nenhum
d'esses espectaculos torpes... É como quem chama um
criado... E
são cento e cinco ou cento e seis mil contos; não
me lembro, mas tenho-o
nos meus apontamentos...
[25]O
Theodoro não duvída de
mim. Sou
um cavalheiro:―provei-o, quando, fazendo a guerra a um tyranno na
primeira insurreição da justiça, me vi
precipitado d'alturas que nem Vossa Senhoria concebe... Um
trambulhão consideravel, meu caro
senhor! Grandes desgostos! O que me consola é que o OUTRO
está
tambem muito abalado: porque, meu amigo, quando um Jehovah tem apenas
contra si um Satanaz, tira-se bem de difficuldades mandando carregar
mais uma
legião d'archanjos; mas quando o inimigo é o
homem, armado d'uma
penna de pato e d'um caderno de papel branco―está
perdido... Emfim
são seis mil contos. Vamos, Theodoro, ahi tem a campainha,
seja um homem.
Eu sei o que deve a si mesmo um christão. Se este personagem
me tivesse
[26]levado
ao cume d'uma montanha na Palestina, por uma noite de
lua cheia,
e ahi, mostrando-me cidades, raças e imperios adormecidos,
sombriamente me dissesse:―«Mata o Mandarim, e tudo o que
vês em
valle e collina será teu»,―eu saberia
replicar-lhe, seguindo um exemplo illustre,
e erguendo o dedo ás profundidades
constelladas:―«O meu
reino não é d'este mundo!» Eu
conheço os meus authores. Mas eram cento e tantos mil
contos, offerecidos á luz d'uma vela de stearina, na
travessa da
Conceição, por um sujeito de chapéo
alto, apoiado a um guarda-chuva...
Então não hesitei. E, de mão firme,
repeniquei a campainha. Foi talvez uma illusão; mas
pareceu-me que um sino, de bocca
tão vasta como o mesmo céo, badalava na
escuridão, através do
Universo, n'um tom temeroso que decerto
[27]foi
acordar sóes que
faziam
né-né e planetas pançudos resonando
sobre os seus eixos...
O individuo levou um dedo á palpebra, e limpando a lagrima
que ennevoára um instante o seu olho rutilante:
―Pobre Ti-Chin-Fú!...
―Morreu?
―Estava no seu jardim, socegado, armando, para o lançar ao
ar, um papagaio de papel, no passatempo honesto d'um Mandarim
retirado,―quando o surprehendeu este
ti-li-tin
da
campainha. Agora
jaz á
beira d'um arroio cantante, todo vestido de sêda amarella,
morto, de
pança ao ar, sobre a relva verde: e nos braços
frios tem o seu papagaio
de papel, que parece tão morto como elle.
Ámanhã
são os funeraes. Que a sabedoria de Confucio, penetrando-o,
ajude a bem emigrar a sua alma!
[28]
E o sujeito, erguendo-se, tirou respeitosamente o chapéo,
sahiu, com o seu guarda-chuva debaixo do braço.
Então, ao sentir bater a porta, afigurou-se-me que emergia
d'um pesadêlo. Saltei ao corredor. Uma voz jovial fallava com
a
Madame Marques; e a cancella da escada cerrou-se subtilmente.
―Quem é que sahiu agora, ó D.
Augusta?―perguntei, n'um suor.
―Foi o Cabritinha que vai um bocadinho á batota...
Voltei ao quarto: tudo lá repousava tranquillo, identico,
real. O in-folio ainda estava aberto na pagina temerosa. Reli-a: agora
parecia-me apenas a prosa antiquada d'um moralista caturra; cada
palavra se tornára como um carvão apagado...
Deitei-me:―e sonhei que estava longe, para além de Pekin,
nas fronteiras
[29]da
Tartaria, no kìosque d'um convento de
Lamas,
ouvindo maximas prudentes e suaves que escorriam, com um aroma fino de
chá, dos labios de um Buddha vivo.
II
Decorreu um mez.
Eu, no entanto, rotineiro e triste, lá ia pondo o meu
cursivo ao serviço dos poderes publicos, e admirando aos
domingos a pericia tocante com
que a D. Augusta lavava a caspa do Couceiro. Era
[32]agora evidente para
mim que, n'essa noite, eu adormecera sobre o in-folio, e
sonhára
com uma «Tentação da
Montanha» sob
fórmas familiares. Instinctivamente, porém,
comecei a preoccupar-me com a China. Ia lêr os telegrammas
á Havaneza; e o que o meu interesse lá buscava,
eram sempre as noticias do
Imperio do Meio; parece porém que, a esse tempo, nada se
passava na
região das raças amarellas... A
Agencia
Havas
só
tagarellava sobre a Herzegovina, a Bosnia, a Bulgaria e outras
curiosidades barbaras....
Pouco a pouco fui esquecendo o meu episodio phantasmagorico: e ao mesmo
tempo, como gradualmente o meu espirito reserenava, voltaram de novo a
mover-se as antigas ambições que lá
habitavam,―um ordenado de Director Geral, um seio amoroso de Lola,
bifes
[33]mais tenros
que os da D. Augusta.
Mas taes regalos pareciam-me tão inaccessiveis,
tão nascidos do sonho―como os proprios milhões
do Mandarim. E pelo monotono
deserto da vida,―lá foi seguindo, lá foi
marchando, a lenta
caravana das minhas melancolias...
Um domingo de agosto, de manhã, estirado na cama em mangas
de camisa, eu dormitava, com o cigarro apagado no labio―quando a porta
rangeu devagarinho, e entreabrindo a palpebra dormente, vi curvar-se ao
meu lado uma calva respeitosa. E logo uma voz perturbada murmurou:
―O snr. Theodoro?... O snr. Theodoro do Ministerio do Reino?...
Ergui-me lentamente sobre o cotovêlo e respondi, n'um bocejo:
―Sou eu, cavalheiro.
O individuo recurvou o espinhaço:
[34]assim
na
presença augusta d'el-rei Bobeche se arquêa o
cortezão... Era pequenino e
obeso: a ponta das suiças brancas roçava-lhe as
lapellas do fraque
d'alpaca: veneraveis oculos d'oiro reluziam na sua face bochechuda, que
parecia uma prospera
personificação da Ordem: e todo elle tremia desde
a calva, lustrosa até aos botíns de bezerro.
Pigarreou, cuspilhou, balbuciou:
―São noticias para vossa senhoria! Consideráveis
noticias! O meu nome é Silvestre... Silvestre, Juliano
& C.
a... Um
serviçal criado de vossa excellencia... Chegaram justamente
pelo paquete de Southampton...
Nós somos correspondentes de Brito, Alves & C.
a
de
Macau...
Correspondentes de Craig and Co d'Hong-Kong... As letras vem
d'Hong-Kong...
O sujeito engasgava-se; e a sua
[35]mão
gordinha agitava em
tremuras um
enveloppe repleto, com um sello de
lacre negro.
―Vossa excellencia―proseguiu―estava decerto prevenido...
Nós é que o não estavamos... A
atrapalhação
é natural... O que esperamos é que vossa
excellencia nos conserve a sua benevolencia... Nós sempre
respeitámos muito o caracter de vossa excellencia... Vossa
excellencia é
n'esta terra uma flôr de virtude, e espelho de bons! Aqui
estão os primeiros saques sobre Bhering and Brothers de
Londres... Letras a trinta dias sobre Rothschild...
A este nome, resoante como o mesmo oiro, saltei vorazmente do leito.
―O que é isso, senhor?―gritei.
E elle, gritando mais, brandindo o
[36]enveloppe,
todo alçado
no bico dos botins:
―São cento e seis mil contos, senhor! Cento e seis mil
contos sobre Londres, Paris, Hamburgo e Amsterdam, sacados a seu favor,
excellentissimo senhor!... A seu favor, excellentissimo senhor! Pelas
casas de Hong-Kong, de Chang-Hai e de Cantão, da
herança depositada do Mandarim Ti-Chin-Fú!!
Senti tremer o Globo sob os meus pés―e cerrei um momento os
olhos. Mas comprehendi, n'um relance, que eu era, desde essa hora, como
uma incarnação do Sobrenatural, recebendo d'elle
a
minha força e possuindo os seus attributos. Não
podia comportar-me como um homem,
nem desconsiderar-me em expansões humanas. Até,
para
não quebrar a linha hieratica―abstive-me de
[37]ir
soluçar, como m'o pedia a alma,
sobre o vasto seio da Madame Marques...
D'ora em diante cabia-me a impassibilidade d'um Deus―ou d'um Demonio:
dei, com naturalidade, um puxão ás
calças, e disse a Silvestre, Juliano & C.
a
estas
palavras:
―Está bem! O Mandarim... Esse Mandarim que disse portou-se
com cavalheirismo. Eu sei de que se trata. É uma
questão de familia. Deixe ahi os papeis... Bons dias.
Silvestre, Juliano & C.
a retirou-se,
ás arrecuas,
de dorso vergado e fronte voltada ao chão.
Eu então fui abrir, toda larga, a janella: e, dobrando para
traz a cabeça, respirei o ar calido, consoladamente, como
uma
corça cançada...
Depois olhei para baixo, para a rua, onde toda uma burguezia se
escoava,
[38]n'uma
pacata sahida de missa, entre duas filas de trens.
Fixei, aqui e além, inconscientemente, algumas cuias de
senhoras, alguns
metaes brilhantes d'arreios. E de repente, veio-me esta
idéa, esta
triumphante certeza―que todas aquellas tipoias as podia eu tomar
á hora
ou ao anno! Que nenhuma das mulheres que via, deixaria de me offerecer
o seu seio nú, a um aceno do meu desejo! Que todos esses
homens, de
sobrecasaca de domingo, se prostrariam diante de mim como diante de um
Christo, de um Mahomet ou de um Buddha, se eu lhes sacudisse junto
á face
cento e seis mil contos sobre as praças da Europa!...
Apoiei-me á varanda: e ri, com tedio, vendo a
agitação ephemera d'aquella humanidade
subalterna―que se considerava livre e forte, em quanto por cima,
[39]n'uma
sacada de quarto andar, eu tinha na
mão, n'um
enveloppe lacrado de negro,
o principio mesmo da
sua fraqueza e da
sua escravidão!... Então,
satisfações do Luxo, regalos do Amor, orgulhos do
Poder, tudo gozei, pela imaginação, n'um
instante, e d'um só sôrvo. Mas logo, uma grande
saciedade me foi invadindo a alma: e sentindo o mundo aos meus
pés―bocejei como um leão farto.
De que me serviam por fim tantos milhões, senão
para me trazerem, dia a dia, a affirmação
desoladora da villeza
humana?... E assim, ao choque de tanto oiro, ia desapparecer aos meus
olhos como um fumo a belleza moral
do Universo! Tomou-me uma tristeza mystica. Abati-me sobre uma cadeira;
e, com a face entre as mãos, chorei abundantemente.
D'ahi a pouco a Madame Marques
[40]abria
a porta, toda vistosa nas suas
sêdas pretas.
―Está-se á sua espera para jantar,
enguiço!...
Emergi da minha amargura para lhe responder seccamente:
―Não janto.
―Mais fica!
N'esse momento estalavam foguetes ao longe. Lembrei-me que era domingo,
dia de touros: de repente uma visão rebrilhou, flammejou,
attrahindo-me deliciosamente:―era a tourada vista d'um camarote;
depois um jantar
com
Champagne; á noite a orgia, como
uma
iniciação! Corri á mesa. Atulhei as
algibeiras de letras sobre Londres. Desci á rua com um
furor d'abutre fendendo o ar contra a presa. Uma caleche passava,
vazia. Detive-a, berrei:
―Aos touros!
[41] ―São
dez tostões, meu amo!
Encarei com repulsão aquelle reles pedaço de
materia organisada―que fallava em placas de prata a um colosso d'oiro!
Enterrei a
mão na algibeira ajoujada de milhões, e tirei o
meu metal: tinha
setecentos e vinte!
O cocheiro bateu a anca da egoa e seguiu, resmungando. Eu balbuciei:
―Mas tenho letras!... Aqui estão! Sobre Londres! Sobre
Hamburgo!...
―Não péga.
Setecentos e vinte!... E touros, jantar de lord, andaluzas nuas, todo
esse sonho expirou como uma bola de sabão que bate a ponta
de um prego.
Odiei a Humanidade, abominei o Numerario. Outra tipoia,
lançada a trote, apinhada de gente festiva, quasi me
atropellou n'aquella
abstracção em que
[42]eu
ficára com os
meus setecentos e vinte na palma da
mão suada.
Cabisbaixo, enchumaçado de milhões sobre
Rothschild, voltei ao meu quarto andar; humilhei-me á Madame
Marques, aceitei-lhe o
bife corneo; e passei essa primeira noite de riqueza, bocejando sobre o
leito solitario,―em quanto fóra o alegre Couceiro, o
mesquinho
tenente de quinze mil reis de soldo, ria com a D. Augusta, repenicando
á viola o
Fado da Cotovia.
Foi só na manhã seguinte, ao fazer a barba, que
reflecti sobre a origem dos meus milhões. Ella era
evidentemente sobrenatural e
suspeita.
Mas como o meu Racionalismo me
[43]impedia
d'attribuir estes thesouros
imprevistos á generosidade caprichosa de Deus ou do Diabo,
ficções puramente escolasticas; como os
fragmentos de Positivismo, que constituem o fundo da minha Philosophia,
não me permittiam a
indagação
das causas primarias, das
origens
essenciaes―bem depressa me decidi
a aceitar seccamente este Phenomeno; e a utilisal-o com largueza.
Portanto corri de quinzena ao vento para o
London
Brazìlian
Bank...
Ahi, arremessei para cima do balcão um papel sobre o
Banco
d'Inglaterra, de mil libras; e soltei esta deliciosa
palavra:
―Oiro!
Um caixeiro suggeriu-me com doçura:
―Talvez lho fosse mais commodo em notas...
[44]
Repeti seccamente:
―Oiro!
Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado,
icei-me para uma caleche. Sentía-me gordo, sentia-me obeso;
tinha na bocca um sabor d'oiro, uma seccura de pó d'oiro na
pelle das
mãos: as paredes das casas pareciam-me faiscar como longas
laminas d'oiro: e dentro do cerebro ia-me um rumor surdo onde
retilintavam metaes―como o
movimento d'um oceano que nas vagas rolasse barras d'oiro.
Abandonando-me á oscillação das molas,
rebolante como um odre mal firme, deixava cahir sobre a rua, sobre a
gente, o olhar turvo e tedioso do
sêr repleto. Emfim, atirando o chapéo para a nuca,
estirando a
perna, empinando o ventre, arrotei formidavelmente de flatulencia
ricaça...
[45]
Muito tempo rolei assim pela cidade, bestialisado n'um gozo de Nababo.
Subitamente um brusco appetite de gastar, de dissipar oiro, veio-me
enfunar o peito como uma rajada que incha uma véla.
―Pára, animal!―berrei, ao cocheiro.
A parelha estacou. Procurei em redor com a palpebra meio cerrada alguma
coisa cara a comprar―joia de rainha ou consciencia de estadista: nada
vi; precipitei-me então para um estanco.
―Charutos! de tostão! de cruzado! Mais caros! de dez
tostões!
―Quantos?―perguntou servilmente o homem.
―Todos!―respondi, com brutalidade.
Á porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao
seio, estendeu-me
[46]a
mão transparente. Incommodava-me
procurar os
trocos de cobre por entre os meus punhados d'oiro. Repelli-a,
impaciente: e, de chapéo sobre o olho, encarei friamente a
turba.
Foi então que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do
meu Director Geral: immediatamente, achei-me com o dorso curvado em
arco e o
chapéo comprimentador roçando as lages. Era o
habito da
dependencia: os meus milhões não me tinham dado
ainda a verticalidade
á espinha...
Em casa despejei o oiro sobre o leito, e rolei-me por cima d'elle,
muito tempo, grunhindo n'um gozo surdo. A torre, ao lado, bateu tres
horas; e
o sol apressado já descia, levando comsigo o meu primeiro
dia de opulencia... Então, couraçado de libras,
corri a
saciar-me!
[47]
Ah, que dia! Jantei n'um gabinete do Hotel Central, solitario e
egoista, com a mesa alastrada de Bordeus, Borgonha, Champagne, Rheno,
licôres de todas as communidades religiosas―como para matar
uma sêde de
trinta annos! Mas só me fartei de Collares. Depois,
cambaleando,
arrastei-me para o Lupanar! Que noite! A alvorada clareou por traz das
persianas; e
achei-me estatelado no tapete, exhausto e semi-nú, sentindo
o corpo e a alma como esvaírem-se, dissolverem-se n'aquelle
ambiente
abafado onde errava um cheiro de pó de arroz, de
fêmea e de
punch...
Quando voltei á travessa da Conceição,
as janellas do meu quarto estavam fechadas, e a véla
expirava, com fogachos lividos, no
castiçal de latão. Então ao chegar
junto á cama, vi isto: estirada
de través, sobre a coberta, jazia uma figura
[48]bojuda, de
Mandarim fulminado, vestida de
sêda amarella, com um grande rabicho solto; e entre os
braços
como morto tambem, tinha um papagaio de papel!
Abri desesperadamente a janella: tudo desappareceu;―o que estava agora
sobre o leito era um velho paletot alvadio.
III
Então
começou a minha vida de milionario. Deixei
bem depressa a casa da Madame Marques―que, desde que me
sabía rico, me tratava
todos os dias a arroz dôce, e ella mesma me servia, com o seu
vestido de
sêda dos domingos.
[50]Comprei,
habitei o palacete amarello, ao
Loreto: as magnificencias da minha installação
são bem conhecidas pelas gravuras indiscretas da
Illustração Franceza. Tornou-se
famoso na Europa o meu leito, d'um gosto exuberante e barbaro, com a
barra recoberta de
laminas d'ouro lavrado, e cortinados d'um raro brocado negro onde
ondeam, bordados a perolas, versos eroticos de Catullo; uma lampada,
suspensa
no interior, derrama alli a claridade lactea e amorosa d'um luar de
verão.
Os meus primeiros mezes ricos, não o occulto, passei-os a
amar―a amar com o sincero bater de coração d'um
pagem
inexperiente. Tinha-a visto, como n'uma pagina de novella, regando os
seus craveiros á
varanda: chamava-se Candida; era pequenina, era loira; morava a
Buenos-Ayres, n'uma casinha
[51]casta
recoberta de trepadeiras; e
lembrava-me pela
graça e pelo airoso da cinta, tudo o que a Arte tem creado
de mais fino e fragil―Mimi, Virginia, a Joanninha do Valle de
Santarem.
Todas as noites eu cahia, em extasis de mystico, aos seus
pés côr de jaspe. Todas as manhãs lhe
alastrava o regaço de
notas de vinte mil reis: ella repellia-as primeiro com um
rubor,―depois, ao guardal-as na
gaveta, chamava-me o seu
anjo Tótó.
Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso
tapete syrio, até ao seu
boudoir―ella
estava escrevendo,
muito enlevada, de dedinho no ar: ao vêr-me, toda tremula,
toda
pallida, escondeu o papel que tinha o seu monogramma. Eu
arranquei-lh'o, n'um ciume insensato. Era a carta, a carta costumada, a
carta necessaria, a
[52]carta
que desde a velha antiguidade a mulher sempre
escreve;
começava por
meu idolatrado―e era
para um alferes da
visinhança...
Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como uma planta
venenosa. Descri para sempre dos Anjos loiros, que conservam no olhar
azul o reflexo dos céos atravessados: de cima do meu oiro,
deixei
cahir sobre a Innocencia, o Pudor, e outras
idealisações
funestas acida gargalhada de Mephistopheles: e organisei friamente uma
existencia animal, grandiosa
e cynica.
Ao bater do meio dia, entrava na minha tina de marmore côr de
rosa, onde os perfumes derramados davam á
[53]agua um tom opaco
de leite:
depoîs pagens tenros, de mão macia,
fríccionavam-me com o
ceremonial de quem celebra um culto: e embrulhado n'um
robe-de-chambre de sêda da
India, através da galeria, dando aqui e além um
olhar aos meus Fortunys e
aos meus Corots, entre alas silenciosas de lacaios, dirigia-me ao bife
á ingleza, servido em Sèvres, azul e oiro.
O resto da manhã, se havia calor, passava-o sobre coxins de
setim côr de perola, n'um
boudoir em
que a mobilia era de
porcelana fina de Dresde
e as flôres faziam um jardim d'Armida; ahi, saboreava o
Diario de Noticiais,
em quanto lindas raparigas vestidas á
japoneza
refrescavam o ar, agitando leques de plumas.
De tarde ia dar uma volta a pé, até ao Pote das
Almas: era a hora mais pesada
[54]do
dia: encostado á bengala,
arrastando as pernas
molles, abria bocejos de fera saciada,―-e a turba abjecta parava a
contemplar, em extasis, o Nababo enfastiado!
Ás vezes vinha-me como uma saudade dos meus tempos occupados
da Repartição. Entrava em casa; e encerrado na
livraria, onde o Pensamento da Humanidade repousava esquecido e
encadernado em marroquim, aparava uma penna de pato, e ficava horas
lançando sobre folhas do
meu querido Tojal d'outr'ora: «
Ill.mo
e Exc.mo
Snr.―Tenho
a honra de
participar a V. Exc.a... Tenho a honra de passar
ás
mãos de
V. Exc.a!...».
Ao começo da noite um criado, para annunciar o jantar, fazia
soar pelos corredores na sua tuba de prata, á moda gothica,
uma
harmonia solemne. Eu erguia-me
[55]e
ia comer, magestoso e solitario. Uma
populaça
de lacaios, de librés de sêda negra, servia, n'um
silencio de
sombras que resvalam, as vitualhas raras, vinhos do preço de
joias: toda a mesa
era um esplendor de flôres, luzes, crystaes,
scintillações d'oiro:―e enrolando-se pelas
pyramides de fructos, misturando-se ao vapor dos pratos, errava, como
uma nevoa subtil, um tedio inenarravel...
Depois, apopletico, atirava-me para o fundo do coupé―e
lá ia ás Janellas Verdes onde nutria, n'um jardim
de serralho, entre requintes musulmanos, um viveiro de
fêmeas: revestiam-me d'uma tunica
de sêda fresca e perfumada,―e eu abandonava-me a delirios
abominaveis... Traziam-me semi-morto para casa, ao primeiro alvor da
manhã:
fazia machinalmente o meu signal da cruz, e
[56]d'ahi
a pouco roncava de
ventre
ao ar, livido e com um suor frio, como um Tiberio exhausto.
Entretanto Lisboa rojava-se aos meus pés. O pateo do
palacete estava constantemente invadido por uma turba: olhando-a
enfastiado das
janellas da galeria, eu via lá branquejar os peitilhos da
Aristocracia, negrejar a sotaina do Clero, e luzîr o suor da
Plebe: todos vinham
supplicar, de labio abjecto, a honra do meu sorriso e uma
participação no meu oiro. Ás vezes,
consentia em receber algum velho de titulo historico:―elle
adiantava-se pela sala, quasi roçando o tapete com os
cabellos brancos, tartamudeando adulações; e
immediatamente,
[57]espalmando sobre o
peito a mão de fortes vêas onde
corria um sangue de tres
seculos, offerecia-me uma filha bem-amada para esposa ou para
concubina.
Todos os cidadãos me traziam presentes como a um Idolo sobre
o altar―uns Odes votivas, outros o meu monogramma bordado a cabello,
alguns chinelas ou boquilhas, cada um a sua consciencia. Se o meu olhar
amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher―era logo ao outro dia
uma carta em que a creatura, esposa ou prostituta, me offertava a sua
nudez, o seu amor, e todas as complacencias da lascivia.
Os jornalistas esporeavam a imaginação para achar
adjectivos dignos da minha grandeza; fui o
sublime snr.
Theodoro,
cheguei a ser o
celeste
snr. Theodoro; então, desvairada, a
Gazeta [58]das
Locaes
chamou-me o
extra-celeste snr. Theodoro! Diante
de mim nenhuma
cabeça
ficou jámais coberta―ou usasse a corôa ou o
côco. Todos os dias
me era offerecida uma Presidencia de Ministerio ou uma
Direcção de
Confraria. Recusei sempre, com nojo.
Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da
Monarchia. O Figaro, cortezão, em cada numero fallou de mim,
preferindo-me a Henrique V; o grotesco immortal, que assigna
Saint-Genest, dirigiu-me apostrophes convulsivas,
pedindo-me para
salvar a França; e foi então que as
Illustrações estrangeiras publicaram, a
côres, as scenas do meu viver. Recebi de todas
as princezas da Europa enveloppes, com sêllos heraldicos,
expondo-me, por photographias, por documentos, a fórma dos
seus corpos e a
antiguidade
[59]das
suas genealogias. Duas pilherias que soltei durante
esse anno foram
telegraphadas ao Universo pelos fios da Agencia Havas; e fui
considerado mais espirituoso que Voltaire, que Rochefort, e que esse
fino entendimento que se chama
Todo-o-Mundo.
Quando o meu intestino
se alliviava com estampido―a Humanidade sabia-o pelas gazetas. Fiz
emprestimos aos Reis, subsidiei guerras civis―e fui caloteado por
todas as Republicas latinas que orlaram o golfo do Mexico.
E eu, no entanto, vivia triste...
Todas as vezes que entrava em casa estacava, arripiado, diante da mesma
visão: ou estirada no limiar da porta,
[60]ou atravessada sobre
o leito d'oiro―lá jazia a figura bojuda, de rabicho negro e
tunica
amarella, com o seu papagaio nos braços... Era o Mandarim
Ti-Chin-Fú! Eu precipitava-me, de punho erguido: e tudo se
dissipava.
Então cahia aniquilado, todo em suor, sobre uma poltrona, e
murmurava no silencio do quarto, onde as vélas dos
candelabros davam tons
ensaguentados aos damascos vermelhos:
―
Preciso matar este morto!
E todavia, não era esta impertinencia d'um velho phantasma
pançudo, accommodando-se nos meus moveis, sobre as minhas
colchas, que me fazia saber mal a vida.
O horror supremo consistia na idéa, que se me
cravára então no espirito como um ferro
inarrancavel―
que eu tinha assassinado um velho!
[61]
Não fôra com uma corda em torno da garganta
á moda musulmana; nem com veneno n'um calix de vinho de
Syracusa, á maneira italiana
da Renascença; nem com algum dos methodos classicos, que na
historia das Monarchias teem recebido
consagrações augustas―a
punhal como D. João
ii,
á clavina como Carlos
ix...
Tinha eliminado a creatura, de longe, com uma campainha. Era absurdo,
phantastico, faceto. Mas não diminuia a tragica negrura do
facto:
eu assassinára um velho!
Pouco a pouco esta certeza ergueu-se, petrificou-se na minha alma, e
como uma columna n'um descampado dominou toda a minha vida interior: de
sorte que, por mais desviado caminho que tomassem os meus pensamentos
viam sempre negrejar no horisonte
[62]aquella
Memoria accusadora; por mais
alto que se levantasse o vôo das minhas
imaginações, ellas terminavam por ir fatalmente
ferir as azas n'esse Monumento de miseria moral.
Ah! por mais que se considere Vida e Morte como banaes
transformações da Substancia, é
pavoroso o pensamento―que se fez regelar um
sangue quente, que se immobilisou um musculo vivo! Quando depois de
jantar, sentindo ao lado o aroma do café, eu me estirava no
sophá, enlanguecido, n'uma sensação de
plenitude, elevava-se logo
dentro em mim, melancolico como o côro que vem d'um
ergastulo, todo um susurro de
accusações:
―E todavia tu fizeste que esse bem-estar em que te regalas, nunca mais
fosse gozado pelo veneravel Ti-Chin-Fú!...
[63]
Debalde eu replicava á Consciencia, lembrando-lhe a
decrepitude do Mandarim, a sua gôta incuravel... Facunda em
argumentos,
gulosa de controversia, ella retorquia logo com furor:
―Mas, ainda na sua actividade mais resumida, a vida é um
bem supremo: porque o encanto d'ella reside no seu principio mesmo, e
não
na abundancia das suas manifestações!
Eu revoltava-me contra este pedantismo rhetorico de pedagogo rigido:
erguia alto a fronte, gritava-lhe n'uma arrogancia desesperada:
―Pois bem! Matei-o! Melhor! Que queres tu? o teu grande nome de
Consciencia não me assusta! És apenas uma
perversão da sensibilidade nervosa. Posso eliminar-te com
flôr de laranja!
E immediatamente sentia passar-me n'alma, com uma lentidão
de briza, um
[64]rumor
humilde de murmurações
ironicas:
―Bem, então come, dorme, banha-te e ama...
Eu assim fazia. Mas logo, os proprios lençoes de Bretanha do
meu leito tomavam aos meus olhos apavorados os tons lividos d'uma
mortalha; a
agua perfumada em que me mergulhava arrefecia-me sobre a pelle, com a
sensação espessa d'um sangue que coalha: e os
peitos nús das minhas amantes entristeciam-me, como lapides
de marmore que encerram um corpo morto.
Depois assaltou-me uma amargura maior: comecei a pensar que
Ti-Chin-Fú tinha de certo uma vasta familia, netos, bisnetos
tenros, que, despojados da herança que eu comia á
farta em
pratos de Sèvres, n'uma pompa de sultão
perdulario, iam atravessando na China todos
[65]os infernos
tradicionaes da miseria humana―os dias sem arroz, o corpo
sem
agasalho, a esmola recusada, a rua lamacenta por morada...
Comprehendi então porque me perseguia a figura obesa do
velho letrado; e dos seus labios recobertos pelos longos pellos brancos
do seu bigode de
sombra, parecia-me sahir agora esta accusação
desolada:―«Eu não me lamento a mim,
fórma meio morta que era; chóro os
tristes que arruinaste, e que a estas horas, quando tu vens do seio
fresco das tuas
amorosas, gemem de fome, regelam na frialdade, apinhados n'um grupo
expirante, entre leprosos e ladrões, na
Ponte dos
Mendigos, ao pé dos terraços do Templo
do
Céo!»
Oh tortura engenhosa! Tortura realmente chineza! Não podia
levar á bocca
[66]um
pedaço de pão sem
imaginar immediatamente o
bando faminto de criancinhas, a descendencia de Ti-Chin-Fú,
penando, como
passarinhos implumes que abrem debalde o bico e piam em ninho
abandonado; se me abafava no meu paletot era logo a visão de
desgraçadas senhoras, mimosas outr'ora de tepido conforto
chinez, hoje rôxas de frio, sob
andrajos de velhas sêdas, por uma manhã de neve; o
tecto
d'ébano do meu palacete lembrava-me a familia do Mandarim,
dormindo á beira dos
canaes, farejada pelos cães; e o meu coupé bem
forrado fazia-me
arripiar á idéa das longas caminhadas errantes,
por estradas encharcadas, sob um duro inverno asiatico.
O que eu soffria!―E era o tempo em que a populaça invejosa
vinha pasmar
[67]para
o meu palacete, commentando as felicidades
inaccessiveis que
lá deviam habitar!
Emfim, reconhecendo que a Consciencia era dentro em mim como uma
serpente irritada―decidi implorar o auxilio d'Aquelle que dizem ser
superior á Consciencia porque dispõe da
Graça.
Infelizmente eu não acreditava n'Elle... Recorri pois
á minha antiga divindade particular, ao meu dilecto idolo,
padroeira da minha familia,
Nossa Senhora das Dôres. E, regiamente pago, um povo de curas
e conegos, pelas cathedraes de cidade e pelas capellas
d'aldêa, foi
pedindo a Nossa Senhora das Dôres que voltasse os seus olhos
piedosos para o
meu mal interior... Mas nenhum allivio desceu d'esses céos
inclementes, para onde ha milhares d'annos
[68]debalde
sobe o clamor da
miseria humana.
Então eu proprio me abysmei em praticas piedosas―e Lisboa
assistiu a este espectaculo extraordinario: um ricaço, um
Nababo,
prostrando-se humildemente ao pé dos altares, balbuciando de
mãos postas phrases de
Salvè-Rainha,
como se
visse na
Oração e no Reino do Céo que ella
conquista, outra cousa mais que uma consolação
ficticia que os que possuem tudo inventaram para contentar os que
não possuem
nada... Eu pertenço á Burguezia; e sei que se
ella mostra
á Plebe desprovída um paraiso distante, gozos
ineffaveis a alcançar―é
para lhe afastar a attenção dos seus cofres
repletos e da abundancia
das suas searas.
Depois, mais inquieto, fiz dizer milhares de missas, simples e
cantadas,
[69]para
satisfazer a alma errante de Ti-Chin-Fú.
Pueril
desvario d'um cerebro peninsular! O velho Mandarim na sua classe de
letrado, de
membro da Academia dos Han-Lin, collaborador provavel do grande tratado
Khou-Tsuane-Chou que
já tem setenta e oito mil e setecentos
e trinta volumes, era certamente um sectario da Doutrina, da Moral
positiva de Confucio... Nunca elle, sequer, queimára mechas
perfumadas
em honra de Buddha: e os ceremoniaes do Sacrificio mystico deviam
parecer
á sua abominavel alma de grammatico e de sceptico como as
pantomimas dos palhaços, no theatro de Hong-Tung!
Então prelados astutos, com experiencia catholica, deram-me
um conselho subtil―captar a benevolencia de Nossa Senhora das Dores
com presentes,
flôres, brocados e joias, como se quizesse
[70]alcançar
os favores d'Aspasia: e á maneira d'um
banqueiro obeso, que obtem as
complacencias d'uma dançarina dando-lhe um
Cottage
entre
arvores―eu,
por uma suggestão sacerdotal, tentei peitar a dôce
Mãi dos Homens, erguendo-lhe uma cathedral toda de marmore
branco. A abundancia das flôres
punha entre os pilares lavrados perspectivas de paraisos: a
multiplicidade
dos lumes lembrava uma magnificencia sideral... Despezas
vãs! O
fino e erudito cardeal Nani veio de Roma consagrar a Igreja; mas,
quando eu n'esse dia entrei a visitar a minha hospeda divina, o que vi,
para
além das calvas dos celebrantes, entre a mystica nevoa dos
incensos,
não foi a Rainha da Graça, loira, na sua tunica
azul,―foi o velho
malandro com o seu olho obliquo e o seu papagaio nos braços!
Era a
elle, ao seu branco bigode
[71]tartaro, á
sua pança
côr
d'oca, que todo um sacerdocio recamado d'oiro estava offerecendo, ao
roncar do orgão, a
Eternidade dos Louvores!...
Então, pensando que Lisboa, o meio dormente em que me movia,
era favoravel ao desenvolvimento d'estas
imaginações―parti, viajei sobriamente, sem
pompa, com um bahú e um lacaio.
Visitei, na sua ordem, classica, Paris, a banal Suissa, Londres, os
lagos taciturnos da Escocia; ergui a minha tenda diante das muralhas
evangelicas de Jerusalém; e d'Alexandria a Thebas, fui ao
comprido d'esse longo Egypto monumental e triste como o corredor d'um
mausoléo. Conheci o enjôo dos paquetes,
[72]a
monotonia das ruinas, a
melancolia das multidões desconhecidas, as
desillusões do
boulevard: e o meu mal interior ia crescendo.
Agora já não era só a amargura de ter
despojado uma familia veneravel: assaltava-me o remorso mais vasto de
ter privado toda uma sociedade
d'um Personagem fundamental, um letrado experiente, columna da Ordem,
esteio
d'Instituições. Não se póde
arrancar assim a um Estado uma personalidade do valor de cento e seis
mil contos, sem lhe perturbar o equilibrio... Esta idéa
pungia-me, acerbamente. Anciei por saber se na
verdade a desapparição de Ti-Chin-Fú
fôra funesta á decrepita China: li todos os
jornaes de Hong-Kong e de Chang-Hai, velei a noite sobre Historias de
viagens, consultei sabios missionarios:―e artigos, homens,
[73]livros,
tudo me falla da decadencia do Imperio do Meio, provincias arruinadas,
cidades moribundas, plebes esfomeadas, pestes e rebelliões,
templos aluindo-se, leis perdendo a authoridade, a
decomposição d'um mundo, como uma nau encalhada
que a vaga desfaz tábua a
tábua!...
E eu attribuia-me estas desgraças da Sociedade chineza! No
meu espirito doente Ti-Chin-Fú! tomára
então o
valor desproporcionado d'um Cesar, um Moysés, um d'esses
sêres providenciaes que
são a força d'uma raça. Eu
matára-o; e com elle desapparecera a vitalidade da sua
patria! O seu vasto cerebro poderia talvez ter salvado, a rasgos
geniaes, aquella velha monarchia asiatica―e eu
immobilisára-lhe a
acção creadora! A sua fortuna concorreria a
refazer a grandeza
[74]do
Erario―e eu estava-a dissipando a offerecer
pecegos em janeiro ás messalinas do Helder!...―Amigos,
conheci o remorso colossal de ter arruinado um imperio!
Para esquecer este tormento complicado, entreguei-me á
orgia. Installei-me n'um palacete da avenida dos Campos-Elysios―e fui
medonho. Dava festas á Trimalcião: e, nas horas
mais
asperas de furia libertina, quando das charangas, na estridencia brutal
dos cobres, rompiam os
can-cans; quando
prostitutas, de seio
desbragado, ganiam coplas canalhas; quando os meus convidados bohemios,
atheus de cervejaria, injuriavam Deus, com a taça de
Champagne erguida―eu,
tomado subitamente como Heliogabalo d'um furor de bestialidade, d'um
ódio contra o Pensante
[75]e
o Consciente, atirava-me ao
chão a
quatro patas e zurrava formidavelmente de burro...
Depois quiz ir mais baixo, ao deboche da plebe, ás torpezas
alcoólicas do
Assomoir: e quantas
vezes, vestido de blusa,
com o casquete para a
nuca, de braço dado com
Mes-Bottes ou
Bibi-la-Gaillarde,
n'um tropel avinhado, fui cambaleando pelos
boulevards
exteriores, a
uivar, entre
arrotos:
Allons, enfants de la
patrie-e-e!...
Le jour de
gloire est arrivé...
Foi uma manhã, depois d'um d'estes excessos, á
hora em que nas trevas da alma do debochado se ergue uma vaga aurora
espiritual―que me nasceu,
de repente, a idéa de partir para a China! E, como soldados
em
acampamento
[76]adormecido,
que ao som do clarim se erguem, e um a um se
vão
juntando e formando columna―outras idéas se foram reunindo
no meu
espirito, alinhando-se, completando um plano formidavel... Partiria
para Pekin; descobriria a familia de Ti-Chin-Fú; esposando
uma das
senhoras, legitimaría a posse dos meus milhões;
daria
áquella casa letrada a antiga prosperidade; celebraria
funeraes pomposos ao Mandarim, para lhe
acalmar o espirito irritado; iria pelas provincias miseraveis fazendo
colossaes distribuições d'arroz; e, obtendo do
Imperador o botão de crystal de Mandarim, accesso facil a um
bacharel, substituir-me-hia
á personalidade desapparecida de Ti-Chin-Fú―e
poderia assim
restituir legalmente á sua patria, senão a
authoridade do
seu saber, ao menos a força do seu oiro.
[77]
Tudo isto, por vezes, me apparecia como um programma indefinido,
nevoento, pueril e idealista. Mas já o desejo d'esta
aventura original e epica me envolvera; e eu ia, arrebatado por elle,
como uma folha secca n'uma rajada.
Anhelei, suspirei por pisar a terra da China!―Depois d'altos
preparativos, apressados a punhados d'oiro, uma noite parti emfim para
Marselha. Tinha alugado todo um paquete, o
Ceylão.
E na
manhã seguinte, por um mar azul-ferrete, sob o vôo
branco das
gaivotas, quando os primeiros raios do sol ruborisavam as torres de
Nossa Senhora da Guarda, sobre o seu rochedo escuro―puz a
prôa ao Oriente.
IV
O Ceylão
teve uma viagem calma e monotona até
Chang-Hai.
D'ahi subimos pelo rio Azul a Tien-Tsin n'um pequeno
steamer
da
Companhia Russel. Eu não vinha visitar a China n'uma
curiosidade ociosa de
touriste: toda a paizagem
d'essa
[80]provincia,
que
se assemelha
á dos vasos de porcelana, d'um tom azulado e vaporoso, com
collinasinhas calvas e de longe a longe um arbusto bracejante, me
deixou sombriamente
indifferente.
Quando o capitão do
steamer, um
yankee
impudente de
focinho de chibo, ao passarmos á altura de Nankin, me propoz
parar, ir
percorrer as ruinas monumentaes da velha cidade de porcelana,―eu
recusei, com um movimento secco de cabeça, sem mesmo desviar
os olhos
tristes da corrente barrenta do rio.
Que pesados e soturnos me pareceram os dias de
navegação de Tien-Tsin a Tung-Chou, em barcos
chatos que o cheiro dos remadores chinezes empestava; ora
através de terras baixas inundadas pelo
Pei-hó, ora ao longo de pallidos e infindaveis arrozaes;
passando aqui
[81]uma
lugubre aldêa de lama negra,
além um campo coberto de
esquifes amarellos; topando a cada momento com cadaveres de mendigos,
inchados e esverdeados, que desciam ao fio d'agua, sob um
céo fusco e
baixo!
Em Tung-Chou fiquei surprehendido, ao dar com uma escolta de cossacos
que mandava ao meu encontro o velho general Camilloff, heroico official
das campanhas da Asia Central, e então embaixador da Russia
em Pekin. Eu vinha-lhe recommendado como um sêr precioso e
raro: e o
verboso interprete Sá-Tó, que elle punha ao meu
serviço, explicou-me que as cartas de sêllo
imperial, avisando-o da minha chegada,
recebera-as elle, havia semanas, pelos correios da Chancellaria que
atravessam a Siberia em trenó, descem a dorso de
camêlo até
á Grande Muralha tartara, e
[82]entregam
ahi a mala a esses
corredores mongolicos, vestidos de coiro escarlate, que dia e noite
galopam sobre Pekin.
Camilloff enviava-me um poney da Manchouria, ajaezado de
sêda, e um cartão de visita, com estas palavras
traçadas a
lapis sob o seu nome: «
Saúde! o animal
é dôce de
bocca!»
Montei o poney: e a um
hurrah! dos cossacos, n'um
agitar heroico de
lanças, partimos á desfilada pela poeirenta
planicie―porque já a tarde declinava, e as portas de Pekin
fecham-se mal o ultimo raio de sol
deixa as torres do Templo do Céo. Ao principio seguimos uma
estrada, caminho batido do transito das caravanas, atravancado de
enormes lages de marmore dessoldadas da antiga Via Imperial. Depois
passámos
a ponte de Pa-li-kao, toda de marmore branco, flanqueada de
dragões
arrogantes.
[83]Vamos
correndo então á beira de
canaes d'agua
negra: começam a apparecer pomares, aqui e além
uma aldêa de côr
azulada, aninhada ao pé de um Pagode:―de repente, a um
cotovêlo do caminho, paro
assombrado...
Pekin está diante de mim! É uma vasta muralha,
monumental e barbara, d'um negro baço, estendendo-se a
perder de vista, e,
destacando, com as architecturas babylonicas das suas portas de tectos
recurvos, sobre um fundo de poente de purpura ensanguentada...
Ao longe, para o Norte, n'um vago de vapor roxo, esbatem-se, como
suspensas no ar, as montanhas da Mongolia...
Uma rica liteira esperava-me á porta de Tung-Tsen-Men, para
eu atravessar Pekin até á Residencia militar de
Camilloff. A muralha agora, ao perto, parecia
[84]erguer-se
até
aos céos com o
horror d'uma construcção biblica: á
sua base apinhava-se uma confusão de
barracas, feira exotica, onde rumorejava uma multidão, e a
luz de lanternas
oscillantes cortava já o crepúsculo de vagas
manchas côr de
sangue; os toldos brancos faziam ao pé do negro muro como um
bando de borboletas pousadas.
Senti-me triste; subi á liteira, cerrei as cortinas de
sêda escarlate todas bordadas a oiro; e cercado dos cossacos,
eis-me entrando a velha Pekin, por essa porta babelica, na turba
tumultuosa, entre carretas, cadeirinhas de xarão,
cavalleiros mongolicos armados de
flechas, bonzos de tunica alvejante marchando um a um, e longas filas
de lentos dromedarios balançando a sua carga em cadencia...
[85]
D'ahi a pouco a liteira parou. O respeitoso Sá-Tó
correu as cortinas, e vi-me n'um jardim, escurecido e calado, onde, por
entre sycomoros seculares, kiosques alumiados brilhavam com uma luz
dôce,
como colossaes lanternas pousadas sobre a relva: e toda a sorte de
aguas correntes murmuravam na sombra. Sob um peristilo feito de
madeiros pintados a vermelhão, aclarado por fios de lampadas
de papel
transparente, esperava-me um membrudo figurão, de bigodes
brancos, apoiado
a um grosso espadão. Era o general Camilloff. Ao adiantar-me
para elle,
eu sentia o passo inquieto das gazellas fugindo de leve sob as
arvores...
O velho heroe apertou-me um momento ao peito, e conduziu-me logo,
segundo os usos chinezes, ao banho da hospitalidade, uma vasta tina de
porcelana,
[86]onde
entre rodelas finas de limão sobrenadavam
esponjas brancas, n'um perfume forte de lilaz...
Pouco depois a lua banhava deliciosamente os jardins: e eu, muito
fresco, de gravata branca, entrava pelo braço de Camilloff
no
boudoir da generala. Era alta e loira; tinha
os olhos verdes das
sereias de Homero; no decote baixo do seu vestido de sêda
branca pousava
uma rosa escarlate; e nos dedos, que lhe beijei, errava um aroma fino
de sandalo
e de chá.
Conversámos muito da Europa, do Nihilismo, de Zola, de
Leão XIII, e da magreza de Sarah Bernardth...
Pela galeria aberta penetrava um ar calido que rescendia a heliotropio.
Depois ella sentou-se ao piano―e a sua voz de contralto quebrou
até tarde os silencios melancolicos da cidade
[87]tartara, com
as picantes
arias de
Madame Favart e com as melodias
afagantes do
Rei de
Lahore.
Ao outro dia cedo, encerrado com o general n'um dos kiosques do jardim,
contei-lhe a minha lamentavel historia e os motivos fabulosos que me
traziam a Pekin. O heroe escutava, cofiando sombriamente o seu espesso
bigode cossaco...
―O meu prezado hospede sabe o chinez?―perguntou-me de repente,
fixando em mim a pupilla sagaz.
―Sei duas palavras importantes, general:
Mandarim
e
chá.
Bile passou a sua mão de fortes cordovêas sobre a
medonha cicatriz que lhe sulcava a calva:
―
Mandarim, meu amigo, não é
[88]uma palavra
chineza, e ninguem a entende na China. É o nome que no
seculo XVI os navegadores do seu
paiz, do seu bello paiz...
―Quando nós tinhamos navegadores...―murmurei, suspirando.
Elle suspirou tambem, por polidez, e continuou:
―...Que os seus navegadores deram aos funccionarios chinezes. Vem do
seu verbo, do seu lindo verbo...
―Quando tinhamos verbos...―rosnei, no habito instinctivo de deprimir
a patria.
Elle esgazeou um momento o seu olho redondo de velho mocho―e proseguiu
paciente e grave:
―Do seu lindo verbo
mandar ... Resta-lhe por
tanto
chá.
É um vocabulo que tem um vasto papel na vida chineza, mas
julgo-o insufficiente
[89]para
servir a todas as
relações
sociaes. O meu estimavel hospede pretende esposar uma senhora da
famillia Ti-Chin-Fú,
continuar a grossa influencia que exercia o Mandarim, substituir,
domestica e socialmente, esse chorado defunto... Para tudo isto
dispõe
da palavra
chá. É pouco.
Não pude negar―que era pouco. O venerando russo, franzindo
o seu nariz adunco de milhafre, pôz-me ainda outras
objecções que eu via erguerem-se diante do meu
desejo―como as muralhas mesmas de Pekin: nenhuma senhora
da familia Ti-Chin-Fú consentiria jámais em casar
com um barbaro; e seria impossivel, terrivelmente impossivel que o
Imperador, o Filho do Sol, concedesse a um estrangeiro as honras
privilegiadas d'um Mandarim...
[90] ―Mas porque m'as
recusaria?―exclamei.―Eu pertenço a uma
boa familia da provincia do Minho. Sou bacharel formado: portanto na
China, como em
Coimbra, sou um letrado! Já fiz parte d'uma
repartição publica... Possuo
milhões... Tenho a experiencia do estylo administrativo...
O general ia-se curvando com respeito a esta abundancia dos meus
attributos.
―Não é―disse elle emfim―que o Imperador
realmente o recusasse: é que o individuo que lh'o propozesse
seria immediatamente decapitado. A lei chineza, n'este ponto,
é explicita e secca.
Baixei a cabeça, acabrunhado.
―Mas, general―murmurei―eu quero livrar-me da presença
odiosa do velho Ti-Chin-Fú e do seu papagaio!...
[91]Se eu
entregasse metade dos
meus milhões ao thesouro chinez, já que
não
me é dado pessoalmente applical-os, como Mandarim,
á prosperidade do Estado...?
Talvez Ti-Chin-Fú se calmasse...
O general pousou-me paternalmente a vasta mão sobre o
hombro:
―Êrro, consideravel êrro, mancebo! Esses
milhões nunca chegariam ao thesouro imperial. Ficariam nas
algibeiras insondaveis das classes dirigintes: seriam dissipados em
plantar jardins, colleccionar porcelanas, tapetar de pelles os soalhos,
fornecer sêdas
ás concubinas: não alliviariam a fome d'um
só chinez, nem
reparariam uma só pedra das estradas publicas... Iriam
enriquecer a orgia asiatica. A alma de Ti-Chin-Fú deve
conhecer bem o Imperio: e isso
não a satisfaria.
[92] ―E se eu
empregasse parte da fortuna do velho malandro em fazer
particularmente, como philanthropo, largas
distribuições d'arroz á
populaça faminta? É uma idéa...
―Funesta―disse o general, franzindo medonhamente o sobr'olho.―A
côrte imperial veria ahi immediatamente uma
ambição
politica, o tortuoso plano de ganhar os favores da plebe, um perigo
para a Dynastia... O meu bom amigo seria decapitado... É
grave...
―Maldição!―berrei.―-Então para que
vim eu á China?
O diplomata encolheu vagarosamente os hombros; mas logo, mostrando n'um
sorriso astuto os seus dentes amarellos de cossaco:
―Faça uma coisa. Procure a familia de
Ti-Chin-Fú... Eu indagarei do
[93]primeiro
ministro, sua
excellencia o principe Tong, onde
pára essa prole interessante... Reuna-os, atire-lhes uma ou
duas duzias de
milhões... Depois prepare ao defunto funeraes regios.
Funeraes d'alto ceremonial, com um prestito d'uma legua, filas de
bonzos, todo um mundo de estandartes, palanquins, lanças,
plumas, andores escarlates,
legiões de carpideiras ululando sinistramente, etc. etc...
Se depois de tudo isto
a sua consciencia não adormecer e o phantasma insistir...
―Então?
―Córte as guelas.
―Obrigado, general.
Uma coisa porém era evidente, e n'ella concordaram
Camilloff, o respeitoso Sá-Tó e a generala:―que,
para
frequentar
[94]a
familia Ti-Chin-Fú, seguir os funeraes,
misturar-me á
vida de Pekin, eu devia desde já vestir-me como um chinez
opulento, da classe
letrada, para me ir habituando ao traje, ás maneiras, ao
ceremonial
mandarim...
A minha face amarellada, o meu longo bigode pendente favoreciam a
caracterisação:―e quando na manhã
seguinte, depois d'arranjado pelos costureiros engenhosos da rua
Chá-Coua, entrei na sala
forrada de sêda escarlate, onde já rebrilhavam as
porcelanas do
almoço sobre a mesa de charão negro,―a generala
recuou como á
appariçâo do proprio Tong-Tché, Filho
do Céo!
Eu trazia uma tunica de brocado azul escuro abotoada ao lado, com o
peitilho ricamente bordado de dragões e flôres
d'oiro: por cima um casabeque de sêda de um tom azul mais
claro, curto,
[95]amplo
e
fôfo: as calças de setim côr de
avellã
descobriam ricas babouches amarellas pespontadas a perolas, e um pouco
da meia picada d'estrellinhas negras:
e á cinta, n'uma linda facha franjada de prata, tinha
mettido um leque de bambú, dos que teem o retrato do
philosopho
Lá-o-Tsé e são fabricados em Swaton.
E, pelas mysteriosas correlações com que o
vestuario influenceia o caracter, eu sentia já em mim
idéas, instinctos
chinezes:―o amor dos ceremoniaes meticulosos, o respeito bureocratico
das
fórmulas, uma ponta de scepticismo letrado; e tambem um
abjecto terror do Imperador, o odio
ao estrangeiro, o culto dos antepassados, o fanatismo da
tradição, o gosto das coisas assucaradas...
Alma e ventre, era já totalmente um
[96]Mandarim.
Não
disse á generala:―
Bon jour, Madame.
Dobrado ao meio,
fazendo girar os punhos
fechados sobre a fronte abaixada, fiz gravemente o
chin-chin!
―É adorável, é precioso!―dizia ella,
com o seu lindo riso, batendo as maosinhas pallidas.
N'essa manhã, em honra da minha nova
incarnação, havia um almoço chinez.
Que gentis guardanapos de papel de sêda escarlate, com
monstros fabulosos desenhados a negro! O serviço
começou
por ostras de Ning-Pó. Eximias! Absorvi duas duzias com um
intenso regalo chinez. Depois
vieram deliciosas febras de barbatana de tubarão, olhos de
carneiro
com picado d'alho, um prato de nenufares em calda d'assucar, laranjas
de
Cantão, e emfim o arroz sacramental, o arroz dos
avós...
Delicado repasto, regado largamente
[97]de
excellente vinho de
Chão-Chigne! E por fim, com que gôzo recebi a
minha taça d'agua
a ferver, onde deitei uma pitada de folhas de chá imperial,
da primeira colheita
de março, colheita unica, que é celebrada como um
rito santo pelas
mãos puras de virgens!...
Duas cantadeiras entraram, em quanto nós fumavamos; e muito
tempo, n'uma modulação guttural, disseram velhas
cantigas dos
tempos da dynastia Ming, ao som de guitarras recobertas de pelles de
serpente, que dous tartaros agachados repenicavam, n'uma cadencia
melancolica e barbara. A
China tem encantos d'um raro gosto...
Depois a loira generala cantou-nos, com chiste, a
Femme
à
barbe: e quando o general sahiu com a sua escolta cossaca
para o Yamen
do principe Tong, a informar-se da residencia da familia
[98]Ti-Chin-Fú―eu,
repleto e bem disposto, sahi com
Sá-Tó a
vêr Pekin.
A habitação de Camilloff ficava na cidade
tartara, nos bairros militares e nobres. Ha aqui uma tranquillidade
austera. As ruas assemelham-se a largos caminhos d'aldêa
sulcados pelas rodas dos carros; e
quasi sempre se caminha ao comprido de um muro, d'onde sahem ramos
horisontaes de sycomoros.
Por vezes uma carreta passa rapidamente, ao trote de um poney mongol,
com altas rodas cravejadas de pregos dourados; tudo n'ella oscilla, o
toldo, as cortinas pendentes de sêda, os ramos de plumas aos
angulos; e dentro entrevê-se alguma linda dama chineza,
coberta de
brocados claros, a cabeça toda cheia
[99]de flôres,
fazendo girar nos
pulsos dois aros de prata, com um ar de tedio ceremonioso. Depois
é alguma
aristocratica cadeirinha de Mandarim, que koulis vestidos d'azul, de
rabicho solto, vão levando a um trote arquejante para os
Yamens do Estado;
precede-os uma criadagem maltrapilha que ergue ao alto rolos de seda
com inscripções bordadas, insignias
d'authoridade; e
dentro o personagem bojudo, com enormes oculos redondos, folheia a sua
papelada ou dormita de beiço cahido...
A cada momento paravamos a olhar as lojas ricas, com as suas taboletas
verticaes de letras douradas sobre fundo escarlate: os freguezes, n'um
silencio d'igreja, subtis como sombras, vão examinando as
preciosidades―porcelanas da dynastia Ming, bronzes, esmaltes, marfins,
sêdas, armas marchetadas, os
[100]leques
maravilhosos de Swaton:
por vezes, uma fresca rapariga d'olho obliquo, tunica azul, e papoilas
de papel
nas tranças, desdobra algum raro brocado diante d'um grosso
chinez que o contempla beatamente, com os dedos cruzados na
pança: ao
fundo o mercador apparatoso e immovel, escreve com um pincel sobre
longas taboinhas de sandalo: e um perfume adocicado que sahe das coisas
perturba e entristece...
Eis-aqui a muralha que cérca a Cidade interdictca, morada
santa do Imperador! Moços nobres vem descendo do
terraço
d'um templo onde se estiveram adestrando á frecha.
Sá-Tó
disse-me os seus nomes: eram da guarda selecta, que nas ceremonias
escolta o guarda-sol de
sêda amarella, com o Dragão bordado, que
é o emblema
sagrado do Imperador. Todos elles comprimentaram profundadamente
[101]um
velho que ia passando, de
barbas venerandas, com o casabeque amarello que é o
privilegio do ancião; vinha fallando só, e trazia
na
mão uma vara sobre que pousavam cotovias domesticadas... Era
um principe do Imperio.
Estranhos bairros! Mas nada me divertia como vêr a cada
instante, a uma porta de jardim, dois Mandarins pançudos que
para entrar se
trocavam indefinidamente salamalés, cortezias, recusas,
risinhos
agudos d'etiqueta, todo um ceremonial dogmatico―que lhes fazia
oscillar d'um modo picaresco, sobre as costas, as longas pennas de
pavão.
Depois se erguia os olhos para o ar, lá via sempre pairar
enormes
papagaios de papel, ora em fórma de dragões, ora
de cetaceos,
ora d'aves fabulosas―enchendo o espaço d'uma inverosimil
legião
[102]de
monstros transparentes e ondeantes...
―Sá-Tó, basta de cidade tartara! Vamos
vêr os bairros chinezes...
E lá fomos penetrando na cidade chineza, pela porta
monstruosa de Tchin-Men. Aqui habita a burguezia, o mercador, a
populaça.
As ruas alinham-se como uma pauta; e no sólo vetusto e
lamacento,
feito da immundicie de gerações recalcada desde
seculos,
ainda aqui e além jaz alguma das lages de marmore
côr de rosa que outr'ora o
calçavam, no tempo da grandeza dos Ming.
Dos dois lados são―ora terrenos vagos onde uivam manadas de
cães famintos, ora filas de casebres fuscos, ora pobres
lojas com as suas taboletas esguias
[103]e
sarapintadas,
balouçando-se d'uma haste
de ferro. A distancia erguem-se os arcos triumphaes feitos de barrotes
côr de purpura, ligados no alto por um telhado oblongo de
telhas azues envernizadas, que rebrilham como esmaltes. Uma
multidão
rumorosa e espessa, onde domina o tom pardo e azulado dos trajes,
circula sem cessar; a poeira envolve tudo d'uma nevoa amarellada; um
fedor acre exhala-se dos enxurros negros; e a cada momento uma longa
caravana de camêlos fende lentamente a turba, conduzida por
mongoes
sombrios vestidos de pelle de carneiro...
Fomos até ás entradas das pontes sobre os canaes,
onde saltimbancos semi-nús, com mascaras simulando demonios
pavorosos, fazem
destrezas d'um picaresco barbaro e subtil; e muito tempo estive a
admirar os astrologos de
[104]longas
tunicas, com dragões de
papel collados
ás cóstas, vendendo ruidosamente horoscopos e
consultas d'astros. Oh cidade fabulosa e singular!
De repente ergue-se uma gritaria! Corremos: era um bando de presos, que
um soldado, de grandes oculos, ia impellindo com o guarda-sol,
amarrados uns aos outros pelo rabicho! Foi ahi n'essa avenida, que eu
vi o estrepitoso cortejo de um funeral de Mandarim, todo ornado de
auriflammas e de bandeirolas; grupos de sujeitos funebres vinham
queimando papeis em fogareiros portateis; mulheres esfarrapadas uivavam
de dôr espojando-se sobre tapetes; depois erguiam-se,
galhofavam, e um kouli vestido de luto branco servia-lhes logo
chá, d'um
grande bule em fórma d'ave.
Ao passar junto ao Templo do Céo, vejo apinhada n'um largo
uma legiao
[105]de
mendigos; tinham por vestuario um tijolo preso
á cinta n'um
cordel; as mulheres, com os cabellos entremeados de velhas
flôres de
papel, roiam ossos tranquillamente; e cadaveres de crianças
apodreciam ao
lado, sob o vôo dos moscardos. Adiante topamos com uma jaula
de traves,
onde um condemnado estendia, através das grades, as
mãos
descarnadas, á esmola... Depois Sá-Tó
mostrou-me respeitosamente
uma praça estreita: ahi, sobre pilares de pedra, poupavam
pequenas gaiolas contendo
cabeças de decapitados: e gotta a gotta ia pingando d'ellas
um sangue espesso e
negro...
―Ouf!―exclamei, fatigado e aturdido.―Sá-Tó,
agora quero o repouso, o silencio, e um charuto caro...
[106]
Elle curvou-se: e, por uma escadaria de granito, levou-me ás
altas muralhas da cidade, formando uma esplanada que quatro carros de
guerra
a par podem percorrer durante leguas.
E emquanto Sá-Tó, sentado n'um vão
d'ameia, bocejava n'um desafôgo de
cicerone
enfastiado, eu
fumando contemplei muito tempo aos meus
pés a vasta Pekin...
É como uma formidavel cidade da Biblia, Babel, ou Ninive que
o propheta Jonas levou tres dias a atravessar. O grandioso muro
quadrado limita os
quatro pontos do horisonte, com as suas portas de torres monumentaes,
que o ar azulado, áquella distancia, faz parecer
transparentes. E na immensidão do seu recinto agglomeram-se
confusamente
verduras de bosques, lagos artificiaes, canaes scintillantes como
aço,
pontes de
[107]marmore,
terrenos alastrados de ruinas, telhados envernizados
reluzindo
ao sol; por toda a parte são pagodes heraldicos, brancos
terraços de templos, arcos triumphaes, milhares de kiosques
sahindo d'entre as folhagens dos jardins; depois espaços que
parecem um
montão de porcelanas, outros que se assemelham a monturos de
lama; e sempre a intervallos regulares o olhar encontra algum dos
bastiões,
d'um aspecto heroico e fabuloso...
A multidão, junto a essas edificações
grandiosas, é apenas como grãos d'arêa
negra que um vento brando vai trazendo e levando...
Aqui está o vasto palacio imperial, entre arvoredos
mysteriosos, com os seus telhados d'um amarello d'oiro vivo! Como eu
desejaria penetrar-lhe
os segredos, e ver desenrolar-se, pelas galerias
[108]sobrepostas, a
magnificencia barbara d'essas Dynastias seculares!
Além ergue-se a torre do Templo do Céo semelhando
três guarda-soes sobrepostos: depois a grande columna dos
Principios, hieratica e
sêcca como o Genio mesmo da Raça: e adiante
branquejam n'uma meia
tinta sobrenatural os terraços de jaspe do Santuario da
Purificação...
Então interrogo Sá-Tó: e o seu dedo
respeitoso vai-me mostrando o Templo dos Antepassados, o Palacio da
Soberana Concordia, o
Pavilhão das Flôres das Letras, o Kiosque dos
Historiadores, fazendo brilhar, entre os bosques sagrados que os
cercam, os seus telhados lustrosos de
faianças azues, verdes, escarlates e côr de
limão. Eu
devorava, d'olho avido, esses monumentos da Antiguidade asiatica, n'uma
curiosidade de
[109]conhecer
as impenetraveis classes que os habitam, o principio das
Instituições, a
significação dos Cultos, o espirito das suas
letras, a grammatica, o dogma, a estranha vida interior d'um cerebro de
letrado chinez... Mas esse mundo é inviolavel como um
Santuario...
Sentei-me na muralha, e os meus olhos perderam-se pela planicie arenosa
que se estira para além das portas até aos
contrafortes dos montes mongolicos; ahi incessantemente redemoinham
ondas infindaveis de
poeira; a toda a hora negrejam filas vagarosas de caravanas...
Então
invadiu-me a alma uma melancolia, que o silencio d'quellas alturas,
envolvendo Pekin, tornava d'um vago mais desolado: era como uma saudade
de mim mesmo, um longo pezar de me sentir alli isolado, absorvido
n'aquelle mundo duro e barbaro:
[110]lembrei-me,
com os olhos humedecidos,
da minha aldêa do Minho, do seu adro assombreado de
carvalheiras, a
venda com um ramo de louro á porta, o alpendre do ferrador,
e os ribeiros
tão frescos quando verdejam os linhos...
Aquella era a época em que as pombas emigram de Pekin para o
sul. Eu via-as reunirem-se em bandos por cima de mim, partindo dos
bosques dos templos e dos pavilhões imperiaes; cada uma
traz, para a
livrar dos milhafres, um leve tubo de bambu que o ar faz silvar; e
aquellas nuvens
brancas passavam como impellidas d'uma aragem molle, deixando no
silencio um lento e melancolico suspiro, uma
ondulação eolia, que se perdia nos ares
pallidos...
Voltei para casa, pesado e pensativo.
[111]
Ao jantar, Camilloff, desdobrando o seu guardanapo, pediu-me com
bonhomia as minhas impressões de Pekin.
―Pekin faz-me sentir bem, general, os versos d'um poeta nosso:
Sôbolos rios que
vão
Por
Babylonia me achei...
―Pekin é um monstro!―disse Camilloff oscillando
reflectidamente a calva.―E agora considere, que a esta capital,
á classe
tartara e conquistadora que a possue, obedecem trezentos
milhões
d'homens, uma raça subtil, laboriosa, soffredora, prolifica,
invasora...
Estudam as nossas sciencias... Um calice de Medoc, Theodoro?... Teem
uma marinha formidavel! O exercito, que
[112]outr'ora
julgava
destroçar o
estrangeiro com dragões de papelão d'onde sahiam
bichas de fogo,
tem agora tactica prussiana e espingarda d'agulha! Grave!
―E todavia, general, no meu paiz, quando, a proposito de Macau, se
falla do Imperio Celeste, os patriotas passam os dedos pela grenha, e
dizem negligentemente:
Mandamos lá cincoenta
homens, e
varremos a China...
A esta sandice―fez-se um silencio. E o general, depois de tossir
formidavelmente, murmurou, com condescendencia:
―Portugal é um bello paiz...
Eu exclamei com seccura e firmeza:
―É uma choldra, general.
A generala, collocando delicadamente á borda do prato uma
aza de frango, e limpando o dedinho, disse:
―É o paiz da canção de Mignon.
É lá que floresce a laranjeira...
[113]
O gordo Meriskoff, doutor allemão pela Universidade de Bonn,
chanceller da legação, homem de poesia e de
commentario,
observou com respeito:
―Generala, o dôce paiz de Mignon é a Italia:
Conheces tu a terra privilegiada onde a laranjeira
dá
flor? O divino Goethe
referia-se á Italia,
Italia mater... A
Italia
será o eterno amor da
humanidade sensivel!
―Eu prefiro a França!―suspirou a esposa do primeiro
secretario, uma bonecasinha sardenta, de cabello arruivascado.
―Ah! a França!...―murmurou um addido, revirando um bugalho
d'olho ternissimo.
O gordo Meriskoff ageitou os oculos d'oiro:
―A França tem um mal, que é a Questão
social...
[114] ―Oh! a
Questão social!―rosnou sombriamente Camilloff.
―Ah! a Questão social!...―considerou ponderosamente o
addido.
E discreteando com tanta sapiencia, chegámos por fim ao
café.
Ao descer ao jardim, a generala, apoiando-se sentimentalmente ao meu
braço, murmurou-me, junto á face:
―Ai, quem me dera viver n'esses paizes apaixonados, onde verdejam os
laranjaes!...
―É lá que se ama, generala―segredei-lhe eu,
levando-a dôcemente para a escuridão dos
sycomoros...
V
Foi necessario todo
um longo verão para descobrir a
provincia onde residira o defunto Ti-Chin-Fú!
Que episodio administrativo tão pittoresco, tão
chinez! O serviçal Camillof, que passava o dia inteiro a
percorrer os Yamens do Estado, teve de provar primeiro que o desejo de
conhecer a morada d'um velho Mandarim não encobria
[116]uma
conspiração
contra a segurança do Imperio; e depois foi-lhe ainda
preciso jurar que não havia n'esta
curiosidade um attentado contra os Ritos sagrados! Então,
satisfeito, o
principe Tong permittiu que se fizesse o inquerito imperial: centenares
d'escribas empallideceram noite e dia, de pincel na mão,
desenhando
relatorios sobre papel d'arroz; mysteriosas conferencias sussurraram
incessantemente por todas as repartições da
Cidade Imperial, desde o Tribunal astronomico até ao Palacio
da Bondade Preferida; e
uma população de koulis transportava da
legação russa para os kiosques da Cidade
Interdicta, e d'ahi para o Pateo dos Archivos padiolas estalando
ao peso de maços de documentos vetustos...
Quando Camilloff perguntava
pelo resultado,
vinha-lhe a resposta,
satisfactoria
[117]que
se estavam consultando os Livros Santos de
Lá-o-Tsé, ou que se iam explorar velhos textos do
tempo de Nor-ha-chú.
E para calmar a impaciencia bellica do russo, o principe Tong remettia,
com estes recados subtis, algum substancial presente de confeitos
recheados, ou de gomos de bambú em calda d'assucar...
Ora em quanto o general trabalhava com fervor para encontrar a familia
Ti-Chin-Fú,―eu ia tecendo horas de sêda e oiro
(assim diz um poeta japonez) aos pés pequeninos da
generala...
Havia um kiosque no jardim sob os sycomoros, que se denominava,
á maneira chineza, do
Repouso discreto:―ao
lado um arroio
fresco ia cantando
[118]dôcemente
sob uma pontesinha rustica
pintada de
côr de rosa. As paredes eram apenas um gradeado de
bambú fino forrado de
sêda côr de ganga: o sol, passando
através d'ellas, fazia uma luz
sobrenatural de opala desmaiada. Ao centro afofava-se um divan de
sêda
branca, d'uma poesia de nuvem matutina, attrahente como um leito
nupcial. Aos cantos,
em ricas jarras transparentes da época de Yeng, erguiam-se,
na sua gentileza aristocratica, lirios escarlates do Japão.
Todo o
soalho estava recoberto d'esteiras finas de Nankin; e junto
á
janella rendilhada, sobre um airoso pedestal de sandalo, pousava aberto
ao alto
um leque formado de laminas de crystal separadas, que a aragem entrando
fazia vibrar, n'uma modulação melancolica e
terna.
As manhãs do fim d'agosto em
[119]Pekin
são muito
suaves; já erra no ar um enternecimento outonal. A essa hora
o conselheiro Meriskoff, os officiaes da legação,
estavam sempre na
chancellaria
fazendo a mala para S. Petersburgo.
Eu então, de leque na mão, pisando subtilmente na
ponta das babouches de setim as ruasinhas areadas do jardim, ia
entreabrir a porta do
Repouso
discreto:
―Mimi?
E a voz da generala respondia, suave como um beijo:
―
All right...
Como ella era linda vestida de dama chineza! Nos seus cabellos
levantados alvejavam flôres de pecegueiro; e as sobrancelhas
pareciam mais puras e negras avivadas a tinta de Nankin. A camisinha de
gaze, bordada
[120]a
soutache de filigrana d'oiro, collava-se aos seus seios
pequeninos e direitos: vastas, fôfas calças de
foulard côr de
côxa de Nympha,
que lhe davam uma
graça de serralho, recahiam sobre
o tornozêlo fino, coberto de meia de seda amarella:―e apenas
tres dedos da minha mão cabiam na sua chinelinha...
Chamava-se Vladimira; nascera ao pé de Nidji-Novogorod; e
fôra educada por uma tia velha que admirava Rousseau, lia
Faublas, usava o cabello empoado, e parecia a grossa lithographia
cossaca d'uma dama galante de Versalhes...
O sonho de Vladimira era habitar Paris; e fazendo ferver delicadamente
as folhas de chá, pedia-me historias ladinas de
Cocottes,
e dizia-me o seu culto por Dumas filho...
[121]
Eu arregaçava-lhe a larga manga do casabeque de
sêda côr de folha morta, e ia fazendo viajar os
meus labios devotos pela pelle fresca dos seus bellos
braços;―e depois sobre o divan,
enlaçados, peito contra peito, n'um extasi mudo, sentiamos
as laminas de crystal resoar eoliamente, as
pêgas azues esvoaçarem pelos platanos, o fugitivo
rhythmo do arroio corrente...
Os nossos olhos humedecidos encontravam ás vezes um quadro
de setim preto, por cima do divan, onde em caracteres chinezes se
desenrolavam sentenças do Livro Sagrado de Li-Num
«sobre os
deveres das esposas». Mas nenhum de nós percebia o
chinez... E no silencio os nossos
beijos recomeçavam, espaçados, soando
dôcemente, e comparaveis (na lingua florida
[122]d'aquelles
paizes) a perolas que cahem uma a uma sobre uma
bacia de prata...―Oh suaves séstas dos jardins de Pekin,
onde
estaes vós? Onde estaes, folhas mortas dos lirios escarlates
do
Japão?...
Uma manhã Camilloff entrando na chancellaria, onde eu fumava
o cachimbo d'amizade de companhia com Meriskoff, atirou o seu enorme
sabre para um
canapé, e contou-nos radiante as noticias que lhe dera o
penetrante principe Tong.―Descobrira-se emfim que um opulento
Mandarim, de nome Ti-Chin-Fú, vivera outr'ora nos confins da
Mongolia, na
villa de Tien-Hó! Tinha morrido subitamente: e a sua larga
descendencia residia lá, em miseria, n'um casebre vil...
[123]
Esta descoberta, é certo, não fôra
devida á sagacidade da burocracia imperial―mas fizera-a um
astrologo do templo de Faqua, que durante vinte noites
folheára no céo o luminoso archivo
dos astros...
―Theodoro, ha-de ser o seu homem!―exclamou Camilloff.
E Meriskoff repetiu, sacudindo a cinza do cachimbo:
―Ha-de ser o seu homem, Theodoro!
―O meu homem...―murmurei sombriamente.
Era talvez o
meu homem, sim! Mas não
me seduzia ir
procurar o
meu homem ou a sua familia, na
monotonia d'uma caravana,
por essas desoladas extremidades da China!... Depois, desde que
chegára a Pekin, eu não tornára a
avistar a fórma
[124]odiosa de
Ti-Chin-Fú e do seu papagaio. A Consciencia era
dentro em mim como uma pomba adormecida. Certamente,
o alto esforço de me ter arrancado ás
doçuras do
boulevard e do Loreto, de
ter sulcado os mares
até ao Império do Meio,
parecera á Eterna Equidade uma
expiação sufficiente e uma
peregrinação reparadora. Certamente
Ti-Chin-Fú, acalmado, recolhera-se com o seu
papagaio á sempiterna Immobilidade... Para que iria eu,
pois, a
Tien-Hó? Porque não ficaria alli, n'aquelle
amavel Pekin, comendo nenufares em calda d'assucar, abandonando-me
ás somnolencias amorosas do
Repouso discreto, e pelas tardes azuladas, dando o
meu passeio pelo
braço do bom Meriskoff, nos terraços de jaspe da
Purificação ou sob os cedros do Templo do
Céo?...
[125]
Mas já o zeloso Camilloff, de lapis na mão, ia
marcando no mappa o meu itinerário para Tien-Hó!
E mostrando-me, n'um
desagradavel entrelaçamento, sombras de montes, linhas
tortuosas de rios,
esfumados de lagôas:
―Aqui está! O meu hospede sobe até
Ni-ku-hé, na margem do Pei-Hó... D'ahi, em barcos
chatos vai a My-yun. Boa cidade, ha lá um
Buddha vivo... D'ahi, a cavallo, segue até á
fortaleza
de Ché-hia. Passa a grande muralha, famoso
espectáculo!... Descança
no forte de Ku-pi-hó. Póde lá
caçar a gazella. Soberbas
gazellas... E com dois dias de caminhada está em
Tien-Hó... Brilhante, hein?...
Quando quer partir? Ámanhã?...
―Ámanhã―rosnei, tristonho.
Pobre generala! N'essa noite, em
[125]quanto
Meriskoff, ao fundo da sala,
fazia com tres officiaes da embaixada o seu
whist
sacramental; e
Camilloff, ao canto do sophá, de braços cruzados,
solemne como n'uma poltrona do Congresso de Vienna, dormia de bocca
aberta;―ella
sentou-se ao piano. Eu ao lado, na attitude d'um Lara, devastado pela
fatalidade,
retorcia lugubremente o bigode. E a dôce creatura, entre dois
gemidos do teclado, d'uma saudade penetrante, cantou revirando para mim
os seus olhos rebrilhantes e humidos:
L'oiseau s'envole,
Lá bas,
lá bas!...
L'oiseau s'envole...
Ne
revient pas...
―A ave ha-de voltar ao ninho,―murmurei eu enternecido.
[127]
E, afastando-me a esconder uma lagrima, ia resmungando furioso:
―Canalha de Ti-Chin-Fú! Por tua causa! Velho malandro!
Velho garoto!...
Ao outro dia lá vou para Tien-Hó―com o
respeitoso interprete Sá-tó, uma longa fila de
carretas, dois cossacos, toda uma populaça de
koulis.
Ao deixar a muralha da cidade tartara, seguimos muito tempo ao comprido
dos jardins sagrados que orlam o templo de Confucio.
Era no fim do outono; já as folhas tinham amarellecido; uma
doçura tocante errava no ar...
Dos kiosques santos sahia uma susurração de
canticos, de nota monotona
[128]e
triste. Pelos terraços, enormes
serpentes, veneradas como
deuses, iam-se arrastando, já entorpecidas da friagem. E
aqui e
além, ao passar, avistavamos buddhistas decrepitos,
sêccos como pergaminhos e
nodosos como raizes, encruzados no chão sob os sycomoros,
n'uma
immobilidade de idolos, contemplando incessantemente o umbigo,
á espera da
perfeição do Nirvana...
E eu ia pensando, com uma tristeza tão pallida como aquelle
mesmo céo d'outubro asiatico, nas duas lagrimas redondinhas
que vira brilhar,
á despedida, nos olhos verdes da generala!...
VI
Já a tarde
declinava, e o sol descia vermelho como um escudo
de metal candente, quando chegámos a Tien-Hó.
As muralhas negras da villa erguem-se, do lado do sul, ao pé
d'uma torrente que ruge entre rochas: para o nascente, a planicie
livida e poeirenta
[130]estende-se
até a um grupo escuro de
collinas onde
branqueja um vasto edificio―que é uma Missão
Catholica. E
para além, para o extremo norte são as eternas
montanhas rôxas da Mongolia,
suspensas sempre no ar como nuvens.
Alojámo-nos n'um barracão fetido, intitulado
Estalagem da Consolação terrestre.
Foi-me
reservado o quarto nobre, que abria sobre uma
galeria fixada em estacas; era ornado estranhamente de
dragões de
papel recortado, suspensos por cordeis do travejamento do tecto;
á
menor aragem aquella legião de monstros fabulosos oscillava
em
cadencia, com um rumor secco de folhagem, como tomada de vida
sobrenatural e
grotesca.
Antes que escurecesse fui vêr com Sá-tó
a villa: mas bem depressa
[131]fugi
ao fedor abominavel das viellas: tudo se
me afigurou ser negro―os casebres, o chão barrento, os
enxurros, os cães
famintos, a populaça abjecta... Recolhi ao albergue―onde
arreeiros mongoes e
crianças piolhosas me miravam com assombro.
―Toda esta gente me parece suspeita,
Sá-tó―disse eu, franzindo a testa.
―-Tem Vossa Honra razão. É uma ralé!
Mas não ha perigo: eu matei, antes de partirmos, um gallo
negro, e a deusa Kaonine deve estar contente. Póde Vossa
Honra dormir ao abrigo dos maus espiritos... Quer
Vossa Honra o chá?...
―Traze, Sá-tó.
Bebido o chá, conversámos do
grande
plano: na
manhã seguinte eu a levar a alegria á triste
choupana
[132]da viuva
de
Ti-Chin-Fú, annunciando-lhe os milhões que lhe
dava, depositados
já em Pekin: depois, de accordo com o Mandarim governador,
fariamos uma copiosa distribuição de arroz pela
populaça: e
á noite illuminações,
danças como n'uma gala publica...
―Que te parece, Sá-tó?
―Nos labios de Vossa Honra habita a sabedoria de Confucio... Vai ser
grande! Vai ser grande!
Como vinha cançado, bem cêdo comecei a bocejar, e
estirei-me sobre o estrado de tijolo aquecido que serve de leito nas
estalagens da China; enrolado na minha pelliça, fiz o signal
da cruz, e adormeci
pensando nos braços brancos da generala, nos seus olhos
verdes de
sereia...
Era talvez já meia noite quando
[133]despertei
a um rumor lento e
surdo que envolvia o barracão―como de forte vento n'um
arvoredo, ou
uma maresia grossa batendo um paredão. Pela galeria aberta,
o luar
entrava no quarto, um luar triste d'outono asiatico, dando aos
dragões
suspensos do tecto fórmas, semelhanças
chimericas...
Ergui-me, já nervoso―quando um vulto, alto e inquieto,
appareceu na facha luminosa do luar...
―Sou eu, Vossa Honra!―murmurou a voz apavorada de
Sá-tó.
E logo, agachando-se ao pé de mim, contou-me n'um fluxo de
palavras roucas a sua afflicção:―emquanto eu
dormia,
espalhára-se pela villa que um estrangeiro, o
Diabo
estrangeiro, chegára com bagagens
carregadas de thesouros... Já desde o começo da
noite elle
tinha entrevisto
[134]faces
agudas, d'olho voraz, rondando o
barracão, como chacaes
impacientes... E ordenára logo aos koulis que
entrincheirassem a porta com os
carros das bagagens, formados em semi-circulo á velha
maneira
tartara... Mas pouco a pouco a malta crescera... Agora vinha
d'espreitar por um postigo: e era em roda da estalagem toda a
populaça de
Tien-Hó, rosnando sinistramente... A deusa Kaonine
não se satisfizera com o
sangue do gallo preto!... Além d'isso elle vira á
porta
d'um Pagode uma cabra negra recuar!... A noite sería de
terrores!... E sua mulher,
o osso do seu osso, que estava tão longe, em Pekin!...
―E agora, Sá-tó?―perguntei eu.
―Agora... Vossa Honra! Agora...
Calou-se: e a sua magra figura
[135]tremia,
acaçapada como um
cão que se roja sob o açoite.
Eu afastei o cobarde, e adiantei-me para a galeria. Em baixo, o muro
fronteiro, coberto d'um alpendre, projectava uma funda sombra. Ahi com
effeito estava uma turba negra apinhada. Ás vezes uma
figura, rastejando, adiantava-se no espaço alumiado,
espreitava,
farejava as carretas, e sentindo a lua sobre a face, recuava vivamente,
fundindo-se
na escuridão: e como o tecto do alpendre era baixo, faiscava
um momento á luz algum ferro de lança
inclinada...
―Que querem vossês, canalha?―bradei eu em portuguez.
A esta voz estrangeira um grunhido sahiu da treva; immediatamente uma
pedra veio ao meu lado
[136]furar
o papel encerado da gelosia; depois uma
flecha silvou, cravou-se por cima da minha cabeça, n'um
barrote...
Desci rapidamente á cozinha da estalagem. Os meus koulis,
acocorados sobre os calcanhares, batiam o queixo n'um terror; e os dois
cossacos que me acompanhavam, impassiveis á lareira,
cachimbavam, com
o sabre nú nos joelhos.
O velho estalajadeiro d'oculos, uma avó andrajosa que eu
vira no pateo deitando ao ar um papagaio de papel, os arreeiros
mongoes, as
crianças piolhosas, esses tinham desapparecido;
só ficára
um velho, bebedo d'opio, cahido a um canto como um fardo.
Fóra ouvia-se
já a multidão vociferar.
Interpellei então Sá-tó, que quasi
[137]desmaiava,
arrimado a uma viga: nós estavamos sem armas; os
dois cossacos, sós, não
podiam repellir o assalto: era necessario pois ir acordar o Mandarim
governador, revelar-lhe que eu era um amigo de Camilloff, um conviva do
principe Tong, intimal-o a que viesse dispersar a turba, manter a lei
santa da hospitalidade!...
Mas Sá-tó confessou-me, n'uma voz debil como um
sôpro, que o Governador de certo é quem estava
dirigindo o assalto! Desde as
authoridades até aos mendigos, a fama da minha riqueza, a
legenda das carretas
carregadas d'oiro inflammára todos os appetites!... A
prudencia
ordenava, como um mandamento santo, que abandonassemos parte dos
thesouros, mulas, caixas
de comestiveis...
[138] ―E ficar aqui,
n'esta aldêa maldita, sem camisas, sem
dinheiro e sem mantimentos?...
―Mas com a rica vida, Vossa Honra!
Cedi. E ordenei a Sá-tó que fosse
propôr á turba uma copiosa
distribuição de sapeques,―se ella consentisse em
recolher aos seus casebres, e respeitar em nós os hospedes
enviados por
Buddha...
Sá-tó subiu á sacada da galeria, a
tremer; e rompeu logo a arengar á malta, bracejando,
atirando as palavras com a violencia d'um
cão que ladra. Eu abrira já uma maleta, e ia-lhe
passando cartuchos,
saccos de sapeques―que elle arremessava aos punhados com um gesto de
semeador...
Em baixo havia por momentos um tumulto furioso ao chover dos metaes;
[139]depois um lento
suspiro de gula satisfeita; e logo um silencio, n'uma
suspensão
de quem espera mais...
―Mais!―murmurava Sá-tó, voltando-se para mim
ancioso.
Eu, indignado, lá lhe dava outros cartuchos, mais
rôlos, mólhos de moedas de meio real enfiadas em
cordeis... Já a maleta
estava vazia. A turba rugia, insaciada.
―Mais, Vossa Honra!―supplicou Sá-tó.
―Não tenho mais, creatura! O resto está em
Pekin!
―Oh Buddha Santo! Perdidos! Perdidos!―chamou
Sá-tó, abatendo-se sobre os joelhos.
A populaça, calada, esperava ainda. De repente, uma
ululação selvagem rasgou o ar. E eu senti aquella
massa avida arremessar-se sobre as
[140]carretas
que defendiam a porta em
semi-circulo: ao choque todo o madeiramento da
Estalagem da
Consolação
terrestre rangeu e oscillou...
Corri á varanda. Em baixo era um tropel desesperado em torno
dos carros derrubados: os machados reluziam cahindo sobre a tampa dos
caixotes: o coiro das malas abria-se fendido á faca por
mãos
innumeraveis: no alpendre, os cossacos debatiam-se, aos urros, sob o
cutelo. Apesar da lua, eu via em roda do barracão errarem
tochas, n'uma
dispersão de fagulhas: um alarido rouco elevava-se, fazendo
ao longe uivar os
cães; e de todas as viellas desembocava, corria
populaça, sombras
ligeiras, agitando chuços e foices recurvas...
Subitamente, na loja terrea, ouvi o tumulto da turba que a invadia
[141]pelas portas
despedaçadas: de certo me procuravam, suppondo
que eu
teria commigo o melhor do thesouro, pedras preciosas ou oiros... O
terror desvairou-me. Corri a uma grade de bambús para o lado
do
pateo. Demoli-a, saltei sobre uma camada de matto grosso, n'um cheiro
acre de immundicies. O meu poney, preso a uma trave, relinchava,
puxando furiosamente o cabresto: arremessei-me sobre elle,
empolguei-lhe as crinas...
N'esse momento, do portão da cozinha arrombada rompia uma
horda com lanternas, lanças, n'um clamor de delirio. O
poney,
espantado, salta um regueiro; uma flecha silva a meu lado; depois um
tijolo bate-me no hombro, outro nos rins, outro na anca do poney, outro
mais grosso rasga-me a orelha! Agarrado desesperadamente
[142]ás
crinas,
archejando, com a lingua de fóra, o sangue a gottejar da
orelha, vou
despedido n'uma desfilada furiosa ao longo d'uma lua negra... De
repente vejo diante de
mim a muralha, um bastião, a porta da villa fechada!
Então, allucinado, sentindo atraz rugir a turba, abandonado
de todo o soccorro humano―
precisei de Deus!
Acreditei n'elle,
gritei-lhe que
me salvasse; e o meu espirito ia tumultuosamente arrebatando, para lhe
offerecer, fragmentos de orações, de
Salvè-Rainhas, que ainda me jaziam no
fundo da memoria...
Voltei-me sobre a anca do potro: d'uma esquina ao longe surgiu um
fogacho de tochas: era a corja!... Larguei
de golpe ao comprido da alta muralha que corria ao meu lado como uma
vasta
fita negra
[143]furiosamente
desenrolada: de subito avisto uma brecha, um
boqueirão erriçado d'esgalhos de
sarças, e fóra a planicie que sob a lua parecia
como uma vasta agua dormente! Lancei-me para lá,
desesperadamente, sacudido aos galões do potro... E muito
tempo galopei no descampado.
De repente o poney, eu, rolámos com um baque surdo. Era uma
lagôa. Entrou-me pela bocca agua putrida, e os pés
enlaçaram-se-me nas raizes molles dos nenufares... Quando me
ergui, me firmei no
sólo,―vi o poney, correndo, muito longe, como uma sombra,
com os estribos ao vento...
Então comecei a caminhar por aquella solidão,
enterrando-me nas terras lodosas, cortando através do matto
espinhoso. O sangue da
orelha ia-me pingando sobre o hombro: á
[144]frialdade agreste, o
fato
encharcado regelava-se-me sobre a pelle: e por vezes, na sombra,
parecia-me
vêr luzir olhos de feras.
Emfim, encontrei um recinto de pedras soltas onde jazia, sob um arbusto
negro, um d'aquelles montões d'esquifes amarellos que os
chinezes abandonam nos campos, e onde apodrecem corpos. Abati-me sobre
um
caixão, prostrado: mas um cheiro abominavel pesava no ar: e
ao apoiar-me sentia
o viscoso d'um liquido que escorria pelas fendas das
tábuas... Quiz fugir. Mas os joelhos negavam-se, tremiam-me:
e arvores, rochas, hervas
altas, todo o horisonte começou a girar em torno de mim como
um disco muito rapido. Faiscas sanguineas vibravam-me diante dos olhos:
e senti-me como cahindo de muito alto,
[145]devagar,
á maneira
d'uma penna que desce...
Quando recuperei a consciencia estava estirado n'um banco de pedra, no
pateo d'um vasto edificio semelhante a um convento, que um alto
silencio envolvia. Dois padres lazaristas lavavam-me devagar a orelha.
Um ar fresco circulava; a roldana d'um poço rangia
lentamente; um
sino tocava a matinas. Ergui os olhos, avistei uma fachada branca com
janellinhas gradeadas e uma cruz no topo: então, vendo
n'aquella paz de
claustro catholico como um recanto da patria recuperada, o abrigo e a
consolação, rolaram-me das palpebras duas
lagrimas mudas.
VII
De madrugada, dois
padres lazaristas, dirigindo-se a
Tien-Hó, tinham-me encontrado desmaiado no caminho. E, como
disse o alegre padre Loriot, «era já
tempo»; porque em redor do meu
corpo immovel um negro semi-circulo d'esses grossos
[148]e soturnos corvos
da Tartaria
já me estava contemplando com gula...
Trouxeram-me sem demora para o convento n'uma padiola,―e grande foi o
regosijo da communidade quando soube que eu era um latino, um
christão e um subdito dos Reis Fidelissimos. O convento
fórma alli o
centro d'um pequeno burgo catholico, apinhado em torno da
maciça
residencia como uma casaria de servos á base d'um castello
feudal. Existe desde
os primeiros missionarios que percorreram a Manchouria. Porque
nós
estamos aqui nos confins da China: para além já
é a
Mongolia, a Terra das Hervas, immenso prado verde-escuro, leziria sem
fim, colorida aqui e além do
vivo das flôres silvestres...
Ahi jaz a vasta planicie dos Nomadas. Da minha janella eu via negrejar
[149]os circulos de
tendas cobertas de feltro, ou de pelles de carneiro; e
por vezes assistia á partida d'uma tribu, em filas de longas
caravanas, levando os seus rebanhos para o oeste...
O superior lazarista era o excellente padre Giulio. A longa permanencia
entre as raças amarellas tornára-o quasi um
chinez: quando eu o encontrava no claustro com a sua tunica
rôxa, o rabicho
longo, a barba veneravel, agitando devagar um enorme leque―parecia-me
algum
sábio letrado mandarim commentando mentalmente, na paz de um
templo, o Livro sacro de Chú. Era um santo: mas o cheiro
d'alho que
exhalava―afastaria as almas mais doloridas e precisadas de
consolação.
Conservo suave a memoria dos dias alli passados! O meu quarto, caiado
de branco, com uma cruz negra, tinha
[150]um
recolhimento de cella. Acordava
sempre ao toque de matinas. Em respeito aos velhos missionarios, vinha
ouvir a missa á capella: e enternecia-me, alli,
tão longe da patria catholica, n'aquellas terras mongolicas,
vêr á
clara luz da manhã a casula do padre, com a sua cruz
bordada, curvando-se diante do altar, e
sentir ciciar no fresco silencio―os
Dominus vobiscum,
e os
Cum
spiritu tuo...
De tarde ia á escóla, admirar os pequenos
chinezes declinando
Hora, Horoe... E depois do
refeitorio, passeando
no claustro, escutava historias de longiquas missões, de
viagens apostolicas ao
Paiz das Hervagens, as prisões
supportadas, as marchas, os
perigos,
as Chronicas heroicas da Fé...
Eu por mim não contei no convento as minhas aventuras
phantasticas:
[151]dei-me
como um
touriste curioso,
tomando apontamentos
pelo Universo.
E esperando que a minha orelha cicatrizasse, abandonava-me, n'uma
lassidão d'alma, áquella paz de mosteiro...
Mas estava decidido a deixar bem depressa a China, esse Imperio
barbaro, que eu odiava agora, prodigiosamente!
Quando me punha a pensar que viera desde os confins do Occidente, para
trazer a uma provincia chineza a abundancia dos meus
milhões, e que apenas lá chegára
fôra logo saqueado,
apedrejado, fréchado―enchia-me um rancor surdo, gastava
horas agitando-me pelo quarto, a revolver coisas feras que tentaria
para me vingar do Imperio do Meio!
Retirar-me com os meus milhões era a desforra mais pratica,
mais facil!
[152]Demais,
a minha idéa de resuscitar
artificialmente, para bem
da China, a personalidade de Ti-Chin-Fú, parecia-me agora
absurda, d'uma
insensatez de sonho. Eu não comprehendia a lingua, nem os
costumes, nem
os ritos, nem as leis, nem os sabios d'aquella raça: que
vinha pois
fazer alli, senão expôr-me, pelo apparato da minha
riqueza,
aos assaltos d'um povo, que, ha quarenta e quatro seculos, é
pirata nos mares e traz
as terras varridas de rapina!...
Além d'isso, Ti-Chin-Fú e o seu papagaio
continuavam invisiveis, remontados de certo ao Céo chinez
dos Avós: e
já o aplacamento do remorso visivel diminuira em mim
singularmente o desejo da
expiação...
Sem duvida o velho letrado estava fatigado de deixar essas
regiões ineffaveis para se vir estirar pelos meus
[153]moveis.
Vira os meus
esforços, o meu desejo de ser util á sua prole,
á sua
provincia, á sua raça―e, satisfeito,
accommodára-se regaladamente para a sua
sésta eterna. Eu nunca mais avistaria a sua pança
amarella!...
E então mordia-me o appetite de me achar já
tranquillo e livre, no pacifico gozo do meu oiro, ao Loreto ou no
boulevard, sorvendo o mel ás
flôres da
Civilisação...
Mas a viuva de Ti-Chin-Fú, as mimosas senhoras da sua
descendencia, os netos pequeninos?... Iria eu deixal-os barbaramente,
na fome e no frio,
pelas viellas negras de Tien-Hó? Não. Esses
não eram culpados das pedradas que me atirára a
populaça. E eu
christão, asylado n'um convento christão, tendo
á cabeceira da cama o Evangelho,
cercado d'existencias que eram
[154]incarnações
de
Caridade―não
podia partir do Imperio sem restituir áquelles que
despojára, a abundancia,
esse conforto honesto que recommenda o Classico da Piedade Filial...
Então escrevi a Camilloff. Contava-lhe a minha abjecta fuga,
sob as pedras da turba chineza; o abrigo christão que me
dera a
Missão; o vivaz desejo de partir do Imperio do Meio.
Pedia-lhe que remettesse elle
á viuva de Ti-Chin-Fú os milhões
depositados por
mim em casa do mercador Tsing-Fó, na avenida de Cha-Coua, ao
lado do arco triumphal
de Tong, junto ao templo da deusa Kaonine.
O alegre padre Loriot, que ia a Pekin em missão, levou esta
carta, que eu lacrára com o sêllo do convento―uma
cruz
sahindo d'um coração em chammas...
[155]
Os dias passaram. As primeiras neves alvejaram nas montanhas
septentrionaes da Manchouria: e eu occupava-me a caçar a
gazella pela Terra das Hervas... Horas energicas e fortemente
vívidas, as
d'essas manhãs, quando eu largava á desfilada, no
grande
ar agreste da planicie, entre os monteadores mongolicos que, com um
grito ululado e vibrante, batiam o matagal á
lançada! Por vezes, uma
gazella saltava: e, d'orelha baixa, estirada e fina, partia no fio do
vento... Soltavamos o
falcão que voava sobre ella, d'aza serena, dando-lhe a
espaços
regulares, com toda a força do bico recurvo, uma picada viva
no craneo. E
iamo'l-a abater, por fim, á beira d'alguma agua morta,
coberta de
nenufares... Então os cães negros da Tartaria
amontoavam-se-lhe sobre o ventre, e, com as patas no sangue, iam-lhe
[156]a
ponta de dente, desfiando devagar as entranhas...
Uma manhã o leigo da portaria avistou emfim o alegre padre
Loriot, galgando á lufa-lufa pelo caminho ingreme do burgo,
de volta
de Pekin, com a sua mochila ao hombro, e uma criancinha nos
braços:
tinha-a encontrado abandonada, nuasinha, morrendo á beira
d'um
caminho: baptisára-a logo n'um regato com o nome de
Bem-Achado: e
alli a trazia, todo enternecido, arquejando de tanto que
estugára o
passo, para dar depressa á creaturinha esfomeada o bom leite
da cabra do
convento...
Depois d'abraçar os religiosos, d'enxugar as grossas bagas
de suor, tirou da algibeira dos calções um
enveloppe com o
sello da aguia russa:
―É isto que manda o papá Camilloff,
[157]amigo
Theodoro. Ficou optimo. E a senhora tambem... Tudo rijo.
Corri a um recanto do claustro a lêr as duas folhas de prosa.
Meu bom Camilloff, de calva severa e olho de mocho! Como elle alliava
tão originalmente ao senso fino d'um habil de Chancellaria
as caturrices picarescas de diplomata bufo! A carta dizia assim:
«Amigo, hospede, e
carissimo Theodoro,
«Ás primeiras linhas
da sua carta ficámos consternados! Mas logo as
seguintes nos deram um grato
allivio, por nos certificar que estava
com esses santos padres da
Missão christã... Eu parti para o Yamen
imperial a fazer uma severa
reclamação ao principe Tong, sobre o
escandalo de
Tien-Hó. Sua excellencia
[158]mostrou
um jubilo
desordenado! Porque, se
lamenta como particular a offensa, o roubo
e as pedradas que o meu
hospede soffreu, como ministro do Imperio
vê ahi a
dôce opportunidade d'extorquir á villa de
Tien-Hó, em multa,
em castigo da injuria
feita a um estrangeiro, a vantajosa
somma de
trezentos
mil
francos, ou, segundo os calculos do nosso
sagaz Meriskoff,
cincoenta
e
quatro contos de reis na moeda do
seu bello paiz! É,
como disse Meriskoff, um excellente resultado
para o Erario imperial, e fica
assim a sua orelha copiosamente
vingada... Aqui,
começam a picar os primeiros frios, e já estamos
usando pelles. O bom Meriskoff
lá vai soffrendo do figado, mas a
dôr não
lhe altera o criterio philosophico nem a sábia
verbosidade... Tivemos um
grande desgosto: o lindo cãosinho da boa
Madame
[159]Tagarieff,
a esposa do
nosso amado secretario, o adoravel
Tu-tu
desappareceu na
manhã de 15... Fiz, na policia, instancias
urgentes, mas o
Tu-tu
não nos foi restituido,―e o sentimento é
tanto maior, quanto
é sabido que a populaça de Pekin aprecia
extremamente estes
cãesinhos, guisados em calda de assucar...
Deu-se aqui um facto
abominavel e de consequencias funestas: a
ministra de França,
essa petulante Madame Grijon, esse
galho
sêcco
(como diz o
nosso Meriskoff), no ultimo jantar da legação,
deu, em desprezo de todas as
regras internacionaes, o braço, o seu
descarnado braço, e
a sua direita á mesa a um simples addido
inglez, lord Gordon! Que me
diz a isto? É crivel? É racional? É
destruir a ordem social! O
braço, a direita, a um addido, um
escossez côr de
tijolo, de vidro entalado
[160]no
olho, quando havia
presentes todos os
embaixadores, os ministros, e eu! Isto tem
causado, no corpo diplomatico,
uma sensação inenarravel...
Esperamos
instrucções dos nossos governos. Como diz
Meriskoff, oscillando
tristemente a
cabeça―
é grave... é muito
grave!―O
que prova (e ninguem o
duvidava)
que lord Gordon é o Benjamim do
galho
sêcco.
Que
podridão! Que lodo!... A generala não tem passado
bem, desde a sua partida para
essa
malfadada Tien-Hó; o doutor Pagloff
não lhe percebe o
mal; é uma languidez, um murchar, uma saudosa
indolencia que a conserva
horas e horas immovel sobre o sophá, no
Pavilhão
do
Repouso discreto, com o olhar vago e o labio cheio de
suspiros... Eu não
me illudo: sei perfeitamente o que a mina: é a
desgraçada
doença de bexiga, que lhe veio das más
[161]aguas,
quando estivemos na
legação de Madrid... Seja feita a vontade do
Senhor!... Ella pede-me para
lhe mandar
un petit bonjour, e
deseja que o meu hospede
apenas chegue a Paris, se fôr a Paris, lhe
remetta pela mala da Embaixada
para S. Petersburgo (d'ahi virá a
Pekin) duas duzias de luvas de
doze botões, numero
cinco e tres
quartos, da marca
Sol,
dos
armazens do Louvre; assim como os
ultimos romances de Zola,
Mademoiselle de Maupin
de Gautier, e uma
caixa de frascos de
Opoponax... Esquecia-me dizer-lhe que
mudámos
de padeiro: fornecemo-nos
agora na padaria da Embaixada ingleza:
deixámos a da
Embaixada franceza para não ter
communicações com o
galho
sêcco... Ahi
estão os inconvenientes de não termos aqui na
Embaixada russa uma
padaria―apesar de tantos relatorios, tantas
[162]
reclamações que, sobre esse ponto, tenho feito
para a chancellaria de S.
Petersburgo! Elles sabem
bem que em Pekin não ha padarias,
que cada
legação tem a sua propria, como um elemento
d'installação
e d'influencia. Mas
quê! Na côrte imperial desattendem-se os mais
serios interesses da
civilisação russa!... Creio que é tudo
o que ha de novo em Pekin e
nas
legações. Meriskoff recommenda-se, e
todos d'esta Embaixada; e
tambem o condesinho Arthur, o Zizi da
legação
hespanhola, o
Focinho cahido, e o
Lulú; emfim todos; eu
mais que ninguem, que me
assigno com saudade e affeição
«General
Camilloff».
«P.S. Em quanto á
viuva e familia de Ti-Chin-Fú, houve um engano: o
astrologo
[163]do
templo de Faqua
equivocou-se na interpretação sideral:
não é
realmente em Tien-Hó que reside essa familia... É
ao sul da China, na provincia
de
Cantão. Mas também ha uma familia
Ti-Chin-Fú para
além da Grande
Muralha, quasi na fronteira russa, no districto
de Ka-ó-li. A ambas
morreu o chefe, a ambas assaltou a pobreza...
Portanto, esperando novas
ordens, não levantei os dinheiros da casa
de Tsing-Fó. Esta
recente informação mandou-m'a hoje sua
excellencia o principe Tong,
com uma deliciosa compota de
calombro... Devo annunciar-lhe
que o nosso bom Sá-Tó aqui
appareceu, de volta de
Tien-Hó, com um beiço rachado e leves
contusões no
hombro, tendo apenas salvado da bagagem saqueada uma
lithographia de Nossa Senhora
das Dôres, que, pela inscripção a
tinta, vejo que pertencera a
[164]sua respeitavel
mamã... Os meus
valentes cossacos, esses,
lá ficaram n'uma poça de sangue. Sua
excellencia o principe Tong
condescende em m'os pagar a dez mil
francos cada um, das sommas
extorquidas á villa de Tien-Hó...
Sá-Tó
diz-me que se o meu hospede,
como é natural, recomeçar as suas
viagens através do
imperio em busca dos Ti-Chin-Fú,―elle
considerar-se-hia honrado e
venturoso em o acompanhar, com uma
fidelidade canina e uma
docilidade cossaca...
«Camilloff».
―Não! nunca!―rugi com furor, amarrotando a carta,
monologando a largas passadas pelo melancolico
claustro.―Não, por Deus ou pelo
Demonio! Ir de novo bater as estradas da China? Jámais!
[165]Oh
sorte
grotesca e desastrosa! Deixo os meus regalos ao Loreto, o meu ninho
amoroso de Paris, venho rolado pela vaga enjoadôra de
Marselha a
Chang-Hai, soffro as pulgas das bateiras chinezas, o fedor das viellas,
a poeirada dos caminhos aridos―e para quê? Tinha um plano,
que se erguia
até aos céos, grandioso e ornamentado como um
trophéo: por sobre elle
scintillavam, d'alto a baixo, toda a sorte
d'acções boas: e eis
que o vejo tombar ao chão, peça a
peça, n'uma ruina! Queria
dar o meu nome, os meus milhões, e metade do meu leito
d'oiro a uma senhora Ti-Chin-Fú―e
não m'o permittem os prejuizos sociaes d'uma raça
barbara! Pretendo,
com o botão de crystal de Mandarim, remodelar os destinos da
China, trazer-lhe a prosperidade civil,―e veda-m'o a lei imperial!
Aspiro a derramar
[166]uma
esmola sem fim por esta populaça
faminta―e corro o perigo
ingrato de ser decapitado como instigador de rebelliões!
Venho
enriquecer uma villa―e a turba tumultuosa apedreja-me! Ia emfim dar a
abundancia, o conforto que louva Confucio, á
família
Ti-Chin-Fú,―e essa familia some-se, evapora-se como um
fumo, e outras familias
Ti-Chin-Fú surgem, aqui e além, vagamente, ao
sul, a oeste, como
clarões enganadores... E havia d'ir a Cantão, a
Ka-ó-li, expôr a
outra orelha a tijolos brutaes, fugir ainda pelos descampados, agarrado
ás crinas d'um
potro? Jámais!
Parei: e de braços erguidos, fallando ás arcadas
do claustro, ás arvores, ao ar silencioso e fino que me
envolvia:
―Ti-Chin-Fú!―bradei―Ti-Chin-Fú, para te
aplacar, fiz o que era racional, generoso e logico! Estás
emfim satisfeito,
[167]letrado
veneravel, tu, o teu gentil papagaio, a tua pança official?
Falla-me!
Falla-me!...
Escutei, olhei: a roldana do poço, áquella hora
do meio dia, rangia devagar, no pateo: sob as amoreiras, ao longo da
arcaria do claustro, seccavam em papel sêda as folhas de
chá da
colheita d'outubro: da porta meio cerrada da aula vinha um susurro
lento de
declinações latinas: era uma paz severa, feita da
simplicidade das
occupações, da honestidade dos estudos, do ar
pastoril d'aquella collina, onde dormia, sob um sol branco d'inverno, o
burgo religioso... E com aquella serenidade ambiente, pareceu-me
receber na alma, de repente, uma
pacificação absoluta!
Accendi com os dedos ainda tremulos um charuto, e disse, limpando na
[168]testa uma baga de
suor, esta palavra, resumo d'um destino:
―Bem, Ti-Chin-Fú está contente. Fui logo
á cella do excellente padre Giulio. Elle lia o seu Breviario
á janella, debicando
confeitos d'assucar, com o gato do convento no collo.
―Reverendissimo, volto á Europa... Algum dos nossos bons
padres vai por acaso em missão, para os lados de
Chang-Hai?...
O veneravel superior pôz os seus oculos redondos: e folheando
com uncção um vasto registro em letra chineza, ia
assim murmurando:
―Quinto dia da decima lua... Sim, ha o padre Anacleto para Tien-Tzin,
para a novena dos Irmãos da Santa Creche. Duodecima lua, o
padre Sanchez para Tien-Tzin tambem, para a obra do
[169]Catecismo aos
Orphãos... Sim, caro hospede, tem companheiros para
Léste...
―Ámanhã?
―Ámanhã. É dolorosa a
separação n'estes confins do mundo, quando as
almas se comprehendem bem em Jesus... O nosso padre Gutierrez que lhe
faça um bom farnel... Nós já o
amavamos como irmão, Theodoro... Coma um confeito,
são deliciosos... As coisas estão em
feliz repouso quando se acham no seu lugar e elemento natural: o lugar
do
coração do homem é o
coração de Deus: e o seu está n'esse
asylo seguro... Coma um confeito... Que é isso, meu filho,
que é isso?
Eu estava collocando sobre o seu Breviario aberto, n'uma pagina do
Evangelho de pobreza, um rôlo de notas do
Banco
d'Inglaterra; e balbuciei:
[170] ―Meu
reverendissimo, para os seus pobres...
―Excellente, excellente... O nosso bom Gutierrez que lhe
faça um farnel copioso...
Amen, meu
filho ...
In Deo
omnia spes!...
Ao outro dia, entre o padre Anacleto e o padre Sanchez, montado na mula
branca do convento, desci o burgo, ao repique dos sinos. E ahi vamos
para Hiang-Hiam, villa negra e murada, onde atracam os barcos que
descem a Tien-Tzin. Já as terras ao longo do
Pei-Hó
estavam todas brancas de neve: nas enseadas baixas já a agua
ia gelando: e
embrulhados em pelles de carneiro, em roda do fogareiro, á
pôpa do
barco, os bons padres e eu iamos conversando de trabalhos de
Missionarios, de coisas da China, por
vezes dos interesses do Céo―passando em redor
[171]sem cessar o
grosso frasco da genebra...
Era Tien-Tzin separei-me d'aquelles santos camaradas. E d'ahi a duas
semanas, por um meio dia de sol tepido, passeava, fumando o meu charuto
e olhando a azafama dos caes d'Hong-Kong, no tombadilho do
Java
que
ia levantar ferro para a Europa.
Foi um momento commovente para mim, aquelle em que vi, ás
primeiras voltas do helice, afastar-se a terra da China.
Desde que acordára, n'essa manhã, uma
inquietação surda recomeçava a
pesar-me na alma. Agora, punha-me a pensar que viera áquelle
vasto imperio para acalmar pela expiação um
protesto
[172]temeroso da
Consciencia: e por fim, impellido por uma impaciencia
nervosa, ahi partia, sem ter feito mais que deshonrar os bigodes
brancos d'um general heroico, e ter
recebido pedradas pela orelha n'uma villa dos confins da Mongolia.
Estranho destino, o meu!...
Até ao anoitecer estive encostado sombriamente á
borda do paquete, vendo o mar liso, como uma vasta peça de
sêda azul,
dobrar-se aos lados em duas pregas molles: pouco a pouco grandes
estrellas palpitaram na concavidade negra; e o helice na sombra ia
trabalhando em rhythmo. Então, tomado d'uma fadiga molle,
fui errando pelo paquete,
olhando, aqui e além, a bussola alumiada;
[173]os
montões de
cabrestantes; as peças da machina, n'uma claridade ardente,
batendo em cadencia; as fagulhas que fugiam do cano, n'um
rôlo de fumaraça negra; os
marinheiros de barba ruiva, immoveis á roda do leme; e as
fórmas dos
pilotos, sobre o pontal, altas e vagas na noite. Na
cabine
do
capitão, um inglez de
capacete de cortiça, cercado de damas que bebiam Cognac, ia
tocando
melancolicamente na flauta a aria de
Bonnie Dundee...
Eram onze horas quando desci ao meu beliche. As luzes já
estavam apagadas: mas a lua que se erguia ao nivel da agua, redonda e
branca, batia o vidro da
cabine com um raio de
claridade: e
então,
a essa meia tinta pallida, lá vi estirada sobre a maca a
figura
pançuda, vestida de sêda amarella, com o seu
papagaio nos braços!
[174]
Era
elle, outra vez!
E foi
elle, perpetuamente! Foi elle em Singapura
e em
Ceylão. Foi elle erguendo-se dos areaes do deserto ao
passarmos no canal de Suez; adiantando-se á prôa
d'um barco de
provisões quando parámos em Malta; resvalando
sobre as rosadas montanhas da Sicilia; emergindo dos nevoeiros que
cercam o morro de Gibraltar! Quando desembarquei em Lisboa, no caes das
Columnas, a sua figura bojuda enchia todo o arco da
rua Augusta; o seu olho obliquo fixava-me―e os dois olhos pintados do
seu papagaio pareciam fixar-me tambem...
VIII
Então,
certo que não poderia jámais
aplacar Ti-Chin-Fú, toda essa noite no meu quarto ao Loreto,
onde como outr'ora as velas innumeraveis das serpentinas davam aos
damascos tons de sangue fresco, meditei sacudir
de mim, como um adorno de peccado, esses milhões
sobrenaturaes.
[176]E assim me
libertaria talvez d'aquella pança e d'aquelle
papagaio
abominavel!
Abandonei o palacete ao Loreto, a existencia de Nababo. Fui, com uma
quinzena coçada, realugar o meu quarto na casa da Madame
Marques: e voltei á Repartição,
d'espinhaço curvo, a implorar os meus vinte mil reis
mensaes, e a minha dôce penna de amanuense!...
Mas um soffrimento maior veio amargurar os meus dias. Julgando-me
arruinado,―todos aquelles, que a minha opulencia humilhára,
cobriram-me de offensas, como se alastra de lixo uma estatua derrubada
de principe decahido. Os jornaes, n'um triumpho de ironia,
achincalharam a minha miseria. A aristocracia, que
balbuciára
adulações aos pés do Nababo, ordenava
agora aos seus cocheiros que atropellassem
[177]nas
ruas o corpo encolhido
do plumitivo de Secretaría. O clero, que eu
enriquecera, accusava-me de
feiticeiro; o povo
atirou-me pedras; e a
Madame Marques, quando eu me queixava humildemente da dureza granitica
dos bifes,―plantava as duas mãos á cinta, e
gritava:
―Ora o enguiço! Então que quer vossê
mais? Aguente! Olha o pelintra!...
E, apesar d'esta expiação, o velho
Ti-Chin-Fú lá estava sempre á minha
ilharga, obeso e côr d'óca,―porque os seus
milhões, que jaziam agora estereis e intactos nos Bancos,
ainda de facto eram meus! Desgraçadamente meus!
Então, indignado, um dia subitamente reentrei com estrondo
no meu palacete e no meu luxo. N'essa noite, de novo o resplendor das
minhas janellas
[178]alumiou
o Loreto: e pelo portão aberto
viram-se
como outr'ora negrejar, nas suas fardas de sêda negra, as
longas filas de
lacaios decorativos.
Logo, Lisboa, sem hesitar, se rojou aos meus pés. A Madame
Marques chamou-me, chorando,
filho do seu
coração. Os
jornaes deram-me os qualificativos que, de antiga
tradição, pertencem
á Divindade: fui o
Omnipotente, fui o
Omnisciente!
A
aristocracia beijou-me os dedos como a um Tyranno: e o clero
incensou-me como a um idolo. E o meu desprezo pela Humanidade foi
tão largo,―que se estendeu ao
Deus que a creou.
Desde então uma saciedade enervante mantem-me semanas
inteiras n'um sophá, mudo e soturno, pensando na felicidade
do
não-ser...
Uma noite, recolhendo só por uma rua deserta, vi diante de
mim o Personagem
[179]vestido
de preto com o guarda-chuva debaixo do
braço, o mesmo que no meu quarto feliz da travessa da
Conceição
me fizera, a um
ti-li-tin de campainha, herdar
tantos
milhões detestaveis.
Corri para elle, agarrei-me ás abas da sua sobrecasaca
burgueza,
bradei:
―Livra-me das minhas riquezas! Resuscita o Mandarim! Restitue-me a paz
da miseria!
Elle passou gravemente o seu guarda-chuva para debaixo do outro
braço, e respondeu com bondade:
―Não póde ser, meu prezado senhor,
não póde ser...
Eu atirei-me aos seus pés n'uma
supplicação abjecta: mas só vi diante
de mim, sob uma luz mortiça de gaz, a fórma magra
de
um cão farejando o lixo.
Nunca mais encontrei este individuo.―E agora o mundo parece-me um
[180]immenso
montão de ruinas onde a minha alma solitaria, como
um exilado que erra por entre columnas tombadas, geme, sem
descontinuar...
As flôres dos meus aposentos murcham e ninguem as renova:
toda a luz me parece uma tocha: e quando as minhas amantes
véem, na
brancura dos seus penteadores, encostar-se ao meu leito, eu
chóro―como se
avistasse a legião amortalhada das minhas alegrias
defuntas...
Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. N'elle lego os meus
milhões ao Demonio; pertencem-lhe; elle que os reclame e que
os reparta...
E a vós, homens, lego-vos apenas, sem commentarios, estas
palavras: «
Só [181]sabe
bem o pão
que dia a
dia ganham as nossas
mãos: nunca mates o Mandarim!»
E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta idéa:
que do Norte ao Sul e do Oeste a Léste, desde a Grande
Muralha da
Tartaria até ás ondas do Mar Amarello, em todo o
vasto Imperio da China,
nenhum Mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu,
o
pudesses supprimir e herdar-lhe os milhões, oh leitor,
creatura
improvisada por Deus, obra má de má argilla, meu
semelhante e meu
irmão!
Angers, junho, 1880.
porto―typ. de a. j. da silva teixeira
62, Cancella Velha, 62