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As Farpas—R. Ortigão—Eça de Queiroz

AS FARPAS

RAMALHO ORTIGÃO—EÇA DE QUEIROZ

CRONICA MENSAL DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES

3.º ANNO

Outubro a Novembro de 1873

VOLUME XX


Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande universo, e da adoração de mim mesmo.

P.J. PROUDHON


SUMMARIO

Regresso. Explicações—Historia de uns pés—Modos de morrer. Os Lovelaces do sepulchro. Os descamisados da cova—Epistola aos catholicos do Porto. A associação catholica, seus fins, seus meios, sua organisação, seu programma. O catholicismo. A egreja refugio da liberdade. As propagandas catholicas em França e na Italia. Manzoni, Rosmini, Balbo, Chateaubriand, Lamartine, o sr. conde de Samodães. Os padres portuguezes. O liberal, o reaccionario, o indifferente. O confissionario. As academias da rua da Picaria. A mulher christã. O partido liberal portuense e a infallibilidade do papa. O protestantismo do sr. Bismark. O seculo XVI. Theoria do scepticismo. A duvida na politica, na sciencia, na religião. A tolerancia—Festa veneziana nas aguas de Caparica—O aio de sua alteza. O que é o aio? O perfil do sr. Martens Ferrão. A corte, a mocidade, a aventura, os tações encarnados, as espadas dos paladinos. Semiramis, Cleopatra, Penelope e outras. A regencia. O beijo de Maria Laczinska. A bengala de Constancia de Arbes—As senhoras hispanholas e os faqueiros—O santo padre, o imperador Guilherme, o martyrio e as pastilhas de Voltaire. O conde de Chambord e o constitucionalismo. Saul, Pepino, Henrique IV. Historia philosophica dos pontapés nas monarchias modernas—Perfil do sr. D. Miguel de Bragança e influencia politica d'este rei, o seu typo physionomico, o seu temperamento, a sua popularidade. De como se fabricou o partido liberal portuguez. O João Sedvem, o José da Policia, o Telles Jordão e a idéa nova. De como o actual principe D. Miguel é anemico—O jornalismo, as idéas, os aguadeiros da opinião publica—O drama do Mexilhoeiro—A falta do elemento feminino nos banquetes patrioticos.


Leitor querido—Depois de uma longa abstenção de tres mezes—os mezes do verão—As Farpas voltam a apparecer no teu banquete ao mesmo tempo a que recomeçam a servir-se tambem as ostras.

Á similhança dos mariscos, qu não é bom comerem-se nos mezes que não teem r, estas paginas condimentosas e estimulantes, se abusasses d'ellas no tempo quente, amigo, far-te-hian, talvez, furunculos.


Além de que, o verão tem influencias de expansibilidade que desconcentram a vida da esphera das suas condições normaes. É a epoca das viagens, dos banhos, das estações do campo. Abandona cada um o interior da sua casa, os seus habitos, as suas occupações, a sua hygiene, o seu trabalho. Fórma-se uma existencia interina, transitoria, supplementar. Está-se em uma casa alugada por dois mezes como hospede de uma noite n'uma estalagem. Não se reside; pernoita-se apenas, e passam-se os dias. Com a supensão do trabalho esterilisam-se tambem as idéas, porque todo o trabalho é uma fecundação da intelligencia. Assim todo o ser humano temporariamente transplantado da parte de solo, de atmosphera moral, em que ordinariamente exerce a sua actividade, emurchece. O portuguez, que sempre lê pouco, no verão então não lê nada. Achei-me por muitas vezes durante a estação finda a bordo dos pequenos vapores que fazem o transporte dos banhistas entre Lisboa e as praias. Os setenta minutos d'estas breves viagens eram o tempo consagrado por cada um para, por meio da leitura, pôr as suas idéas em relação com os interesses intellectuaes e moraes do resto do mundo. Fóra do convez dos vapores de Belem ninguem nas praias lê, ninguem tem comsigo um livro. Isto não é uma simples hypothese, é uma observação positiva. Em Pedroiços, por exemplo, a vida—toda de porta da rua—é transparente: vê-se o que cada um faz, quasi que tambem se vê todo quanto cada um sente e quanto cada um pensa. Pois bem, nas viagens dos vapores de Belem, unico lapso de tempo destinado pelos banhistas ao estudo, observámos durante o periodo de tres mezes consecutivos que ninguem lia senão almanachs, collecções de cantigas ou de charadas, e os periodicos de noticias. Que elementos para, a educação intellectual de alguns milhares de cabeças: darem mergulhos no Tejo, aprenderem nos livros que nasceu o dente do sizo ao sr. Alexandre Herculano, e saberem pelos jornaes que o sr. commendador Santos foi á Outra Banda em partida da recreio, com os seus amigos, comer um safio!


Não foram essas porém as rasões porque As Farpas se callaram durante a estação calmosa. Os nossos motivos são inteiramente pessoaes. Nós adoecemos ... Perdôa, leitor benevolo, estas perigosas tendencias de um convalescente para a autobiographia. Não, não foi um dente novo que nos esteve crescendo. Nós não temos, como o immortal historiador a que acima nos referimos, a honra de abrir estas linhas offerecendo á patria e á sr.ª D. Guiomar Torrezão mais um novo instrumento gloriosamente recemnascido para a trincadeira nacional.

O nosso mal, foi simplesmente uma affecção na larynge. Apanhámos isto no Chiado. Tivemos na mucose da garganta as mesmas granulações que padecem os beduinos na mucose das palpebras por effeito do pó nas peregrinações do deserto. O Chiado pagou-nos o pessimo gosto burguez, especieiro, indigno, abominavel, de o frequentar, dando-nos esta doença climaterica e local. Os hospitaes de S. José e do Desterro dão as desyntherias e as gangrenas; os tanques do Passeio do Rocio dão as febres paludosas e intermittentes; o Limoeiro e a Casa de detenção das Monicas dão as viciações do sangue e as escrophulas; o Chiado e o deserto da Arabia dão as affecções granulosas da larynge e dos olhos. Cada um dá o que tem.

A poeira do Chiado é uma especialidade curiosa, interessante, tão romanesca como a sombra da mancenilha. Esta poeira é fina, miuda, subtil como a veloutine de Lubin. Ligeiramente tocada pela aza morna do vento leste, ensinua-se, entranha-se, penetra docemente, consoladoramente, profundamente—como a calumnia. Depois, uma vez inoculada, produz as ophtalmias e as esquinencias—as duas maiores enfermidades de Lisboa. Não é simplesmente formada pelas triturações da terra esta poeira. Não, porque o solo em Lisboa não é de terra. Aqui a terra tem sido de tal maneira misturada, falsificada, fingida, que, hoje, aquillo que primitivamente era a terra já não tem terra nenhuma. O solo de Lisboa é formado de sobreposições de estercos, de amalgamas de lixo, de restos pulverisados de fructas podres, de cães mortos e de papeis sujos.

De todas estas misturas requeimadas pelo verão, carbonisadas pelo sol canicular, moidas sob as rodas dos trens e sob os pés pressurosos do sr. conselheiro Arrobas, resulta o pó envenenado da capital. Os papeis velhos de Lisboa, dejecções burocraticas ou litterarias dos bancos, dos cartorios, dos tribunaes, dos escriptorios dos negociantes, dos jornalistas, dos advogados, dos tabelliães e do sr. Melicio, são de tal maneira abundantes que todos os esgotos da cidade não bastam para os engulir. A brisa espalha esses papeis dilacerados pelas povoações suburbanas. A praia de Belem é uberrima de papeis sujos, e Pedrouços, a mansão burgueza das villegiaturas officiaes, parece-se no aspecto especial das suas immundicies com um corredor da secretaria das Obras Publicas destinado a projecto de nitreira modelo pelos disvellos agronomicos do sr. Rodrigo de Moraes Soares.

De modo que a antiga expressão «terra da patria», com referencia a Lisboa e seus suburbios, é figura de rhetorica em demasia arrojada. A patria do lisboeta não tem terra, tem os agglomerados residuos das podridões e dos papeis velhos. O nauta vigilante, que do alto mar descobre no azul o ponto escuro e indeciso d'estas praias, procederá com louvavel exactidão e amor da verdade se em vez do grito poetico de «terra! terra!» começar a exclamar á vista de Lisboa: «Supedaneo de Melicio!»—ou—«Nitreira de Soares!»

Victima nós mesmo em todo o nosso apparelho respiratorio d'essas influencias deleterias da geologia e da civilisação lisbonense, achamos prudente substituir—como fizemos—a convivencia do publico pela do gargarejo.


No theatro de D. Maria, o drama—Idiota.

Suppoz-se pelos annuncios que Idiota seria uma peça sem nome do auctor. Equivoco. Era um nome do auctor sem peça.

No theatro de S. Carlos exhibição extraordinaria dos pés do sr. Barberat. A primeira vez que este cantor appareceu em scena os violinistas da orchestra suppozeram que elle se lhes tinha calçado—nas caixas das rebecas.

Quando no dia da chegada elle poz á porta as suas botinas para engraxar, os creados do hotel cuidaram que elle rescindira a escriptura e se retirava, por se lhes figurar que o sr. Barberat tinha já no corredor as malas.

Em algumas alfandegas os guardas do fisco, desconfiados d'elle, teem-lhe pedido as chaves dos pés!

Nunca até hoje poderam dormir juntos os pés e elle. Emquanto elle está deitado de costas, os seus pés estão erguidos, ao fundo do leito, embuçados em capas, contemplando-o, firmes e silenciosos. Pela manhã os pés estão mortos de somno e de fadiga, e para que elles se deitem um momento, elle então, compadecido—levanta-se.

Ou por que elle os não queira desasocegar de dia, lembrando-se de que teem de estar a pé de noite, ou porque elles mesmos se recusem obstinadamente a uma evolução a que debalde os teem querido algumas vezes violentar, o artista desistiu absolutamente de vestir as calças pelos pés e começou a vestil-as, como a camisa,—pela cabeça. Antes de chegar a esta prudente solução, o cantor, para conseguir vestir-se, era obrigado todas as manhãs ou a descoser as calças, ou a desmanchar os pés.

Uma das coisas que mais vivamente picou a curiosidade do publico nas primeiras vezes em que este artista se mostrou em S. Carlos foi saber como elle poderia cantar n'um theatro pequeno para que podesse estar mais alguma coisa em scena além d'elle com os pés. O empresario acaba de confiar-nos a explicação d'esse segredo, que elle nos permitte enviar d'aqui como uma dadiva sua á justa anciedade das platéas. Mesmo porque o empresario attribue, com bastantes probabilidades de acerto, a esta preocupação do publico perante os pés phenomenaes do baixo a frieza desdenhosa com que nas primeiras noites se escutou o canto tão vivamente sentido, tão profundo e tão genial da Galetti.

Pois bem, meus senhores, não pensem mais n'isso. Querem saber como elle cantava nos pequenos palcos?...

Do mesmo modo que cantam os gallos—n'um pé só.


Á praia da Torre em Belem foi hontem arrojado pela maré o cadaver de um homem afogado Era ainda novo, robusto e forte. Estava vestido de panno azul. A jaqueta e o collete que vestia tinham botões de metal doirado com uma ancora em relevo. Na manga estava presa uma corôa tambem de metal. Tinha na algibeira um relogio e algumas moedas de prata portuguezas e brazileiras. As auctoridades da policia e da saude vieram á praia e olharam para o cadaver, como a lei manda. Depois do que, officialmente averiguado que estava ali effectivamente o cadaver de um afogado, pegaram nelle, atiraram-o ao fundo de uma cova aberta á pressa na praia, e cobriram-o com alguns metros de areia.

Bem feita coisa!


Nem toda a gente vae para a sepultura com esta simplicidade de apparatos, a que podemos chamar o enterro incivil. Mas todos os cães se enterram por este modo, e não é por isso menos repousado o seu eterno somno. Além de que, é preciso que cada um se apresente na eternidade em condições que não desdigam da gerarchia em que viveu e do conceito em que o teve a sociedade e a opinião publica. Pretender o contrario é querer lograr a divina justiça sujeitando-a a illudir-se com o aspecto exterior dos mortos e a acolher com os mesmos cumprimentos na côrte do ceu o primeiro aguadeiro que chegue assim como o mais digno e respeitavel ministro de estado ou general de divisão que se apresente,—o que seria certamente para Deus um desgosto profundo. Logo: que cada qual morra como o que é e vá para o outro mundo como o que foi, para não pôr em equívocos a celestial etiqueta!


É um senhor conselheiro a pessoa que morre, na sua cama, victima da sua gotta? Vestem-se-lhe as suas calças de presilhas e galão de oiro, e a sua farda bordada; prega-se-lhe no peito a constellação das suas placas de diamantes, faz-se-lhe a barba, retinge-se-lhe o cabello, põe-se-lhe ao lado o espadim e as luvas brancas, o chapeu armado sobre o ventre e um pouco de carmim nas faces. E eil-o ahi está em toda a plenitude e em toda a magestade dos seus meios physicos e da sua importancia social. As pallidas Julietas dos sepulchros e as immodestas Rigolboches da tabida podridão e dos gulosos vermes do chic, que se acautelem d'esse maganão de bom gosto!

Elle é poderoso: deixou na terra muitos necrologios e muitas missas, e vae optimamente recommendado pelo alto clero á especial protecção do Padre Eterno.


O que morre é pelo contrario um destes infimos e asquerosos animaes, de jaqueta de panno azul com botões de ancora, que andam a bordo dos navios sobre a agua do mar? Uma onda envolve-o no tombadilho e arroja-o ao abysmo inclemente? Suspende-se então por dois ou tres minutos a marcha da embarcação—um sólido paquete talvez, luxuoso, commodo, de uma forte companhia, em que tudo está seguro para os riscos da navegação, tudo menos a gente,—lança-se uma boia de salvação, arreia-se uma lancha com quatro homens, e alguns gentlemen que sobem á tolda, tiram dos estojos de couro de Varsovia que trazem ao tiracollo os seus binoculos e assestam-os sobre o elemento. Apesar porém d'estas delicadas attenções, o bruto desagradecido desapparece. Dois ou tres dias depois, a maré, com nojo, cospe-o á praia da Torre juntamente com outras immundicies.

Que queres tu d'aqui, meu estupido? Isto não é nenhuma selvagem ilha deserta e encantada, querida dos luares transcendentes de que fallam á phantasia as musicas de Bethowen e os versos do Ileine, e em que se figuram, sob uma luz de esmeralda, os bailados da opera.

Aqui não ha os profundos paraizos aquaticos habitados pelas ondinas e pelas sereias de beijos deliciosos e gelados. Não ha os duendes das phantasticas florestas que te suspendam, sob o luar impregnado de calidos aromas e de nocturnas harmonias, nos berços aereos das magnolias e dos lilazes em flor, nem beneficas deidades transparentes que te cinjam nos seus doces braços e te levem n'uma festa nupcial para os seus leitos de algas, de coral e de perolas, no fundo dos dormentes lagos, sob as folhas dos nenufares.

Não, isto aqui é uma praia decente e grave onde os senhores oficiaes de secretaria o os senhores desembargadores veem durante a villegiatura sentar-se pela fresquidão das tardes, com suas mulheres, contemplando austeros e recolhidos as babugens da vasante e o fronteiro panorama, tão magestoso e solemne, da Fonte da Pipa. É d'esta praia que o senhor commendador Santos e o senhor commendador Firmo e o senhor commendador Eloy teem partido em fina companhia de virtuosas damas, com honestas guitarras e casto peixe frito, a bordejar no Tejo. É aqui que a illustre e veneravel burguesia de Lisboa faz as suas estações balneatorias. É n'estas aguas que ella annualmente refresca e desemporcalha a sua gorda carne. É aqui que o mesmo poder moderador tem vindo, por vezes, com sua augusta e elegante consorte demolhar no argento o excelso e inviolavel systema nervoso da monarchia e da constituição.

Portanto, ó immundo, tu que morreste afogado no oceano e te deixaste rolar para a praia da Torre, impertinente como o esqueleto de um goso morto de fome na Trafaria, tu, imbecil, se querias mais alguma consideração, mais algum respeito com os teus restos, fosses cahir a outra parte.

Trazias algum dinheiro na algibeira, o sufficiente para te pagares o luxo de um padre e de uma cova, mas, realmente tu não tinhas aspecto de mereceres a pena de que alguem se occupasse por um minuto comtigo.

Animal! se querias ser enterrado com respeito e commoção, se querias ter artigos nos jornaes e padres a cantarem-te o De profundis, porque foi que em vez de te afogares de jaqueta, te não afogaste com uma farda de almirante, ou de casaca preta e grã cruz dentro de um coupé da companhia?!

Deixaste por acaso na terra uma velha mãe desamparada, uma esposa lacrimosa, uma filha orphã, uma familia, a que seria doce ajoelhar sobre a tua sepultara ou plantar algumas flores sobre a terra que te cobrisse? Querias permittir-lhes essa extrema consolação? Deixasses-te ficar no Chiado ou no Terreiro do Paço, tornasses-te um dos elementos constituitivos da civilisação lisbonense, fizesses-te moço de recados, agiota ou empregado publico. Vive-se assim na corrupção, na usura, na humilhação ou na miseria, mas enfim morre-se bem, barato—e muito!


O Jornal da Noite publica uma conta de despeza feita pelo presidente da republica dos Estados Unidos, Abrahão Lincoln, em um hotel de Albany. O illustre democrata e as pessoas do seu sequito pagaram a somma de um conto e alguns mil réis por uma hospedagem de menos de vinte e quatro horas.

Este facto argumenta vivamente contra a opinião dos que acham as republicas mais baratas para os povos do que as monarchias.

Effectivamente vemos que, ao passo que o presidente da republica da America do Norte faz um conto de réis de despeza em algumas horas em Albany e paga essa despeza, sua magestade o imperador da America do Sul dispende no Porto mil libras em quatro dias, e não as paga.

É indubitavel pois que as monarchias são incomparavelmente mais baratas do que as republicas.

Deve-se porém observar que, sob este ponto de vista, o descredito das democracias prodigas procede principalmente das estalagens exigentes. Porque está provado que sempre que um republicano em viagem pretende gastar tão pouco como um rei economico, os estalajadeiros fazem ao republicano o seguinte: sequestram-lhe a bagagem.


Parece-nos arriscado estabelecer entre os principes e os povos esta perigosa competencia de quem ha de pagar menos em viagem. Pois que, realmente, desde que as testas coroadas chegaram ao ideal de se apoderarem das contas e não pagarem nada, os povos só poderão desbancar os reis se, não pagando egualmente nada, começarem a estabelecer este uso: depois de se apoderarem das contas, apoderarem-se egualmente—das pratas.


Primeira aos membros da Associação Catholica no Porto

Meus senhores e minhas senhoras.—Em nome da Nosso Senhor Jesus Christo e da Santa Madre Egreja Catholica Apostolica Romana, eu vos saúdo e vos desejo a divina graça. Como tenho obrigação de vos suppôr—taes como o dizeis—sinceros e dedicados servos de Deus, devotados a cumprir a sua lei e a divulgar a sua doutrina, mais vos desejo que nunca vos persigam os bens e as riquezas temporaes de que certamente vos despojastes para seguir a Jesus. Eu sei que o divino mestre, antes de mandar aos apostolos que o acompanhassem, lhes ordenou que deixassem as redes, fazendo-nos sentir por esta fórma que ninguem póde estar com Deus estando ao mesmo tempo com o mundo, e que para ter os bens do céo é a condição essencial—abandonar os da terra. Primeiro: deixae as redes; depois: vinde commigo.

Amados irmãos, presumindo-vos pobres, desvalidos, tendo previamente dado o vosso pão aos que tinham fome e os vossos vestidos aos que tinham frio, eu desejo ainda sobre a vossa nudez a mortificação da vossa carne, a santa mortificação que raspa a vaidade e o orgulho e limpa o entendimento e a alma das lepras mundanaes.

Que a graça de Nosso Senhor vos assista e que nada mais do que é temporal se vos pegue, porque n'este mundo tudo é esterco: Omnia ut stercora, como muito bem disse S. Paulo!

Se vos não poderdes furtar aos contactos impuros do seculo, permitta o ceo que em todas as vossas relações com a sociedade todas as invectivas e todas as malquerenças pharisaicas vos punjam e vos espicassem o coração, assim como os chacaes famintos furam e rasgam no deserto as tendas dos piedosos peregrinos. Porque—bem o sabeis—só com as inimisades do mundo podereis merecer e lograr a amisade de Deus:amicitia hujus mundi inimica est Dei.

Finalmente, meus senhores e minhas senhoras, resumindo os meus votos pelo molde mais consentaneo com as vossas aspirações, que o Senhor vos veja eternamente no ceu e vos aplane o caminho da promissão, tendo-vos tanto de sua mão que nunca sobre vós deixem de chover as dores e as ruinas, por isso que, como diz o psalmista, será pela somma das vossas penas contingentes, transitorias e mundanaes, que serão medidas as vossas alegrías celestiaes e eternas!—Secundum multitudinem dolorum meorum in corde meo, consolationes tuae laectificaverunt animam meam.


Permittí-me agora que, antes de entrar em algumas breves considerações que a natureza do vosso instituto me suggere, eu me detenha um momento na simples contemplação do nome que lhe puzestes.

Que razões poderiam levar-vos, beatissimos senhores, a denominardes catholica a associação que fundastes, ahi no Porto, em certa casa da rua da Picaria? Que significa uma associação chamada catholica no meio de uma sociedade egualmente catholica? Quem é que não é catholico em Portugal? Não temos nós todos a mesma religião, que não é uma religião especial da rua da Picaria, mas sim a bem conhecida religião do paiz, a religião do estado, a religião famosa da carta? Ignoraes por acaso que nenhuma associação póde ser em Portugal senão isso—catholica? Ignoraes que não temos a liberdade dos cultos, a divergencia de religiões?...

Ora, não havendo o mosaismo aqui no Chiado, não existindo o pantheismo no Rocio, nem o lutheranismo no Terreiro do Paço, nem o fetichismo no Arco do Bandeira, o que vem a ser um catholicismo da rua da Picaria na cidade do Porto? Terá cahido o Porto porventura no paganismo idolatra? Estará elle sacrificando a Jupiter a sua rica vacca cosida? Tel-o-hiam levado os seus representantes, os seus philosophos, os srs. Faria Guimarães e Pinto Bessa, ás vertiginosas regiões do livre exame, onde o espirito humano, abatido, fatigado, morde na solidão o fructo amargo da sciencia?...

Não. Eu visitei o Porto ha pouco tempo. Cheguei ahi no dia 24 de junho. A cidade tinha o aspecto mais jubiloso e festival. Erguiam-se arcos triumphaes nas embocaduras das ruas, palpitavam á viração matutina bandeiras desfraldadas nas janellas das casas. Na rua de S. João os habitantes, de camisa lavada e barba feita, passavam com bandejas cheias de lanternas para luminarias, outros espetavam no chão mastros embandeirados; iam, vinham, fallavam alto, tinham gestos abundantes e felizes. As egrejas por onde passei estavam cheias até á porta de fieis que ouviam as primeiras missas. Os sinos repicavam em todas as torres, e os foguetes furavam o limpido azul da manhã.

O Porto, onde n'esse dia devia celebrar-se um grande meeting liberal, começava no emtanto—por festejar o S. João!

Portanto, meus senhores, se vós vos denominaes catholicos, não é porque supponhaes que os outros o não são; é porque vos parece que o sabeis ser melhor do que os outros, e pretendeis que vos considerem como unicos catholicos perfeitos, catholicos affiançados, catholicos garantidos.

Se é isto o que quereis dizer-nos com o titulo escolhido para a vossa associação, e não podeis querer dizer outra coisa, então—meditae-o—achaes-vos em peccado mortal de soberba, de jactancia, de presumpção de merecimentos.

Localisando por esse modo a religião na rua da Picaria, vós lançaes tacitamente a suspeita de impiedade nas demais ruas da cidade da Virgem.

Pois bem, que a Picaria o saiba: a viella do Ferraz tambem vae á missa, e Deus sabe se jejua ou não, ás sextas-feiras, a Ferraria de Cima!


Advirtamos agora como a associação catholica tem correspondido pela importancia dos seus actos á audaciosa escolha do seu titulo.

Até o momento em que vós vos apoderastes do catholicismo para vos fechardes com elle na rua da Picaria, cabia ao catholicismo a gloria de ter inspirado as maiores obras produzidas pelo espirito humano.

Foi esse pobre catholicismo, ainda então desprotegido do valioso patrocinio que n'este seculo lhe devia conceder a vossa associação, meus illustres senhores e minhas preclaras senhoras, foi elle, ainda desalbergado da rua da Picaria, o que na edade media fez brotar da imaginação dos povos o que ha mais bello nas artes, os maravilhosos poemas, as ternas legendas melancolicas, as portentosas cathedraes. Foi elle que levou Pedro Eremita e Godofredo de Bulhões a descerem o valle do Danubio e a seguirem o caminho de Attila. Foi elle que inspirou Tasso e Dante. Foi elle que produziu S. Thomaz, o boi mudo de Sicilia, o Aristoteles do christianismo—como lhe chamou Michelet—, o mais poderoso cerebro da egreja. Foi elle que creou em Hispanha desde o seculo XVI até o seculo XVII no meio da maior escravidão e do maior fanatismo, o mais brilhante grupo de artistas que tem visto o mundo: Velasquez, Murillo, Herrera, Zurbaran, Lope de Vega, Calderon, Cervantes, Tirso de Molina, Luiz de Leon. O profundo mysticismo de «Quixote» é um reflexo do poder da fé em todos esses espiritos. Calderon era official do santo officio e Lope de Vega desmaiava em extase ao dizer missa. O catholicismo inaugurou ainda a sociedade mais popular, mais accessivel, mais equalitaria. No meio da barreira levantada diante da plebe pelos privilegios do sangue, a egreja era o portico de todos os grandes talentos e de todas as elevadas ambições: o papa Urbano IV, filho de um sapateiro, edificava a egreja de Santo Urbano e expunha n'ella, bordado em uma rica tapessaria, o retrato de seu pae fazendo sapatos.

Por outro lado o catholicismo deu-nos ainda a Saint-Barthelemy, a carnificina nacional dos christãos novos, a Inquisição, a guerra dos trinta annos, os monges bretões que envenenaram o calix de Abeilard e os dominicanos de Buon Convento que assassinaram Henrique VII, fazendo-lhe commungar o veneno na hostia consagrada.

Protegido por vós, meus senhores, tutelado pela vossa sociedade propagandista da rua da Picaria, o catholicismo portuense tem-nos dado apenas:—como carnificina, quatro pranchadas nas espaduas de quatro patriotas á porta da Sé; como arte, a Palavra, um pobre jornal piegas, lacrimoso e beato, com pouca elevação, com pouco enthusiasmo, com pouca fé, e com alguns erros de grammatica.

Ora realmente, meus senhores, para resultados tão mediocres não valia a pena de vos dardes o apparato de quem funda uma agencia para a Bemaventurança e nos fecha o ceu—n'um armazem de commissões.

Em 1849 havia na Italia uma propaganda catholica, cujos membros todavia não chegaram nunca a aggremiar-se e a constituir-se em sociedade como os cavalheiros e as damas da rua da Picaria.

O chefe da propaganda italiana era um dos espiritos mais rectos e mais benignos, era o doce e pacifico poeta Manzoni, recentemente fallecido.

I promessi Sposi, o celebre romance tão conhecido, foi como o Genio do Christianismo, de Chateaubriand e como as odes religiosas de Lamartine, inspirado por essa reacção catholico-litteraria com que os romanticos de 1830 bateram as idéas philosophicas do seculo XVIII.

Manzoni porém, servindo a causa catholica como propagandista, e abrindo um exemplo que se tornou escola de muitos escriptores e poetas italianos, Manzoni, em primeiro logar, escrevia para esse fim livros adoraveis,—e que vós, meus queridos senhores não resolvestes ainda começar a fazer na vossa officina religiosa da rua da Picaria. Em segundo logar Manzoni considerava a idéa religiosa como um elemento de emancipação e de regeneração para a Italia então opprimida e escravisada. Finalmente Manzoni não tinha por fim especial glorificar os padres, arregimental-os, armal-os, pôl-os em pé de guerra, como o está fazendo a associação catholica portuense. Pelo contrario, Manzoni sabia que os padres italianos do seu tempo eram, como Cantú os descreve tomado do mais santo horror: «glutões, avaros, estupidos e bandidos». O perfil ideal do padre Borromeu nos Promessi Sposi não tinha pois a intenção de um retrato, era o estabelecimento de um novo nivel para a opinião, era um exemplo, era uma lição dada pelo modo delicado e brando com que o desgosto profundo inspirára a alma candida e honesta do piedoso escriptor.

Feita assim, n'estas circumstancias, n'estas condições, por estes meios, eu comprehendo a propaganda catholica, e inclino-me respeitosamente diante dos que a servirem e a promoverem. Não me parece todavia que seja esse o caso da Associação catholica portuense, nem no que diz respeito aos fins que ella se propõe, nem no que toca aos meios que emprega para conseguir o seu fim.


Que pretende a associação catholica?

Libertar a patria, chamal-a á independencia, fortificando com o sentimento religioso a fé patriotica, como fizeram Manzoni, Rosmini, Gioberti, Balbo e outros na Italia invadida pela dominação? Não, porque Portugal, é por emquanto independente e livre.

Estabelecer a cathechese? Diffundir a moral? Regenerar os costumes? Não, porque, não sendo publicas as sessões da associação e não tomando parte n'ellas senão os mesmos associados, pessoas cujos costumes e cujas crenças religiosas foram d'antemão affiançados, estes acham-se satisfatoriamente moralisados e instruidos.

Educar o clero, aprestando-o para uma influencia mais directa e mais proficua nos interesses da cidade ou nos interesses do ceu? Tambem não, pelas razões seguintes:

Os padres portuguezes acham-se todos incluidos em uma d'estas tres classes:—os indifferentes, os liberaes e os reaccionarios.

O padre indifferente vive obscuro e tranquillo no fundo de uma aldeia entre a sua lavoira e o seu campanario. Baptisa as creanças, confessa os adultos e absolve os que morrem. Se não forem todos para o ceu, a culpa não é d'elle. Cartilha e bons conselhos propina-lh'os todos os domingos depois da missa conventual; se os não tomarem para seu bem, lá se avirão com o demonio no outro mundo e cá na terra com o regedor. De resto elle cava a sua horta, é grande madrugador, deita-se com as gallinhas, diz a missa ao romper d'alva, caça a perdiz no inverno e pesca os barbos no verão. Além de um bocado de breviario, não lê senão um repertorio para estar ao facto das luas e saber quando convém alporcar as pereiras e semear os pepinos. Bom homem, rijo, satisfeito, sanguineo, infatigavel companheiro na caça e na mesa, se tentardes esgrimir com elle algumas idéas politicas ou religiosas, algumas subtilezas de critica, de controversia, terá tonturas, arregalará os olhos, ouvír-se-lhe-hão rugidos interiores e não sentirá senão um desejo: o de vos açular ás pernas os seus cães e cascar-vos pela cabeça com o seu grosso marmeleiro argolado.

O padre liberal habita as cidades, lê os periodicos, intervém em eleições, frequenta os botequins e as casas de jogo, fuma cigarros, e protesta vigorosamente contra a reacção e contra o jesuitismo, trazendo os dedos amarellos e tomando medicamentos secretos.

O padre reaccionario anda quasi sempre de loba; tem os olhos baixos, o passo miudo e commedido, o sorriso contrafeito como uma coisa azeda misturada com assucar; gordura fria e pallida, um tanto sinistra; mãos brancas, suadas, viscosas; pés moles, de pato, arrastando. O confissionario é para elle uma vocação, um destino, um prazer: é a sua arte. Algumas vezes mobila-o com certo luxo, introduz-lhe um sophá e abastece-o de viveres: uma lata de pão de ló e copos com geléa. É ahi que elle escuta, de olhos meio cerrados e mãos crusadas no peito, as confidencias secretas das mulheres, os casos encobertos ás mães e aos maridos, os inveterados vicios escondidos e os grandes crimes occultos, as obras e os pensamentos, os alvoroços da carne no meio da penitencia e da oração, as tentações do inimigo, os ardentes desejos diabolicos, os pungentes escrupulos de alcova, a grande tragedia intima dos mysticos e dos solitarios. Elle escuta, manda repetir, inquire, investiga, indaga, minucia por minucia, as circumstancias que aggravam e as circumstancias que attenuam; disseca o peccado, desfibra-o musculo por musculo, nervo por nervo, arteria por arteria; depois reconstitue-o, recompõe-o, inteira-o, evoca-o, fal-o resurgir nos olhos da penitente—para a moralisar com a enormidade do erro. A culpa, assim rediviva pelos retoques finos, dialecticos, incisivos do stylo theologico e casuistico dos commentadores do Decalogo, a culpa repintada com essa arte mais sabia, mais poderosamente minuciosa que a de todos os modernos romancistas psychologos dos vicios torpes e vergonhosos, cinge outra vez a peccadora, collêa-se estreitamente com ella como a serpente do Eden, envolve-a nas suas espiraes, penetra-a da sua essencia magnetica, communica-lhe a electricidade dos seus filtros. É então, n'esse momento terrivel de crise, nevralgico, histerico, allucinado, que elle critica friamente, com uma analyse perpendicular, dominadora, arbitra da commoção; e consola, aconselha, admoesta, subjuga, domina, e absolve ou condemna, elle, elle em nome do Creador, a fragil creatura desmaiada aos seus pés. O padre reaccionario faz parte da grande centralisação catholica, é uma das rodas do grande machinismo, vive no systema de partido como na obediencia e na regra de um instituto. Não pensa nem discute. O seu rumo está tomado; segue-o apezar de tudo, atravez de tudo, como um boi abre um rego, com os olhos tapados. Tem heranças de velhas devotas, avultadas esmolas de missa, frequentes presentes de confessadas. Vende agua de Nossa Senhora de Lourdes ou de La Salette. Cobra os dinheiros de S. Pedro e remette-os para Roma, assigna a Nação, e quasi sempre é rico.

Dos padres d'estas tres categorias quaes são aquelles que a associação Catholica influe, aconselha ou dirige?

O padre obscuro nem mesmo sabe que tal associação existe. O padre liberal é seu inimigo e adversario intransigente. Resta-lhe o padre ultramontano.

Ora este ultimo padre é o ôvo de que a associação Catholica é a ave. Ella não o modifica, não o educa, não o adverte, não o illustra. Faz-lhe simplesmente isto: choca-o. Depois, quebrada a casca do sr. padre Couto, o sr. conde de Samodães apparece.


A associação Catholica celebra periodicamente reuniões, a que chama academias. Que se faz n'estas reuniões frequentadas por muitas senhoras da primeira sociedade portuense, o que ha de mais digno, de mais inviolavel e de mais sagrado?

Relevem-nos este ponto de interrogação, que não tem de nenhum modo a impertinencia de uma pergunta e deve apenas ser considerado da nossa parte como um simples ponto de perturbação e de pasmo.

Se os homens estivessem sós comprehendemos que as reuniões da associação Catholica fossem para elles um meio do repousarem suavemente das fadigas temporaes, dos enganos do mundo, das illusões e das vaidades do seculo. Concebemos perfeitamente que depois de terminados os seus negocios, assignada a sua correspondencia, pagas as suas lettras, despachadas as suas mercadorias, fechada a sua caixa, comido amplamente o seu jantar, saboreado o seu café e o seu kumel, elles encerrassem o seu dia juntando-se todos fradescamente, sem etiqueta, sem cerimonias de elegancia nem de toilette, e que, em seguida, descalçassem as botas e dissessem: «Ora dissertemos lá um bocado sobre a immortalidade da alma!»

Mas, com senhoras, com senhoras elegantes e bellas, que hão de apear-se das suas carruagens, depôr os seus burnous no vestiaire e penetrar no salão, sob o gaz, n'uma onda scintillante de setim e de renda, que farão os homens?

Hão de se ter espalhado na athmosphera os perfumes da toilette, os murmurios dos vestidos, os reflexos das joias e as confusas palavras finas, magneticas, que susurram sob a palpitação dos leques. Suppomos que não ha orchestra nem piano, de modo que as pessoas devotas não poderão dirigir-se immediatamente ao sr. padre Couto para que as faça valsar; não estarão patentes os ultimos telegrammas dos successos de Hispanha; não haverá um serviço de gelados trazido em bandejas de prata por criados de calção curto: não se terá á mão um numero da Illustração nem um album que se folheie ...

Estranha perplexidade!

Tem um simples associado de abotoar as suas luvas, de adiantar um fauteuil, de se aproximar de um grupo e de lançar um assumpto pela seguinte fórmula: «Minha senhora, será vossencia assaz boa para querer fazer-me a honra de me dizer se já tem interlocutor para uma breve dissertação sobre os novissimos do homem?»

Ou talvez que haja uma organisação parlamentar para a distribuição dos assumptos e para a ordem das discussões. E n'esse caso, reunido o claustro pleno, será o sr. conde de Samodães quem abrirá as sessões, persignando-se, tocando a sua campainha e dizendo:

—«Dou a palavra ao relator da commissão encarregada de dar o seu parecer ácerca das Divinas Pessoas da Santissima Trindade. Meus senhores e minhas senhoras, está em discussão o Espirito Santo.»


Porque emfim, meus senhores, celebrando como catholicos as vossas academias religiosas, das duas coisas uma: ou vós estabeleceis a controversia e discutis os canones e os dogmas, ou não a estabeleceis e não os discutis.

No primeiro caso usurpaes os poderes que só competem aos concilios, entregaes aos debates da razão as materias de obediencia e de fé e cahis no racionalismo heretico.

No segundo caso, reunidos em nome de Deus, vós não tendes o direito de fazer senão uma coisa: elevar humildemente ao ceu os vossos espiritos e prostrar-vos na penitencia e na oração.

Mas para os exercicios da oração e da penitencia vós tendes a egreja para rezar e a solidão no interior das vossas casas para meditar o arrependimento. Para similhantes effeitos congregar os fieis nos salões da rua da Picaria é desviar dos templos a corrente natural da devoção e arrancar do interior da familia o saudavel recolhimento dos propositos bons.

Eu creio profundamente que entre vós existem homens dignos, honrados, de uma piedade limpida, com as mais rectas intenções de espirito e de consciencia. Acredito mesmo que essas almas, timoratas mas boas, constituem a grossa maioria dos vossos consocios. Por isso vos consagro, passando, esta palavra séria:

Nada mais funesto para os costumes do que ensinar ás mulheres que ha instituições especiaes para o serviço de Deus, para a conquista do ceu, para a remissão da culpa. O posto digno da mulher christã é em sua casa ao pé dos seus filhos. Os exercicios espirituaes e as contemplações mysticas escurecem a alegria domestica, alvoroçam a virtude, perturbam a consciencia. Na sociedade actual a mulher pertence, integralmente, com toda a responsabilidade do seu destino, á missão sublime da regeneração do homem pela attracção do lar. Desviar sob qualquer pretexto que seja a attenção da mulher dos interesses da familia é commetter para com a moral um sacrilegio. A casa conjugal tambem é um templo, e a maternidade é uma religião.


Meus senhores, tenho procurado tanto quanto me tem sido possivel ser amavel comvosco, tomando para vos observar todos os pontos de vista. Olho-vos como christão, olho-vos como catholico romano, olho-vos como cidadão, olho-vos como simples espectador, como dilettante. De todos os modos vós me pareceis ou incongruentes, ou ridiculos, ou absurdos.

Todavia, meus senhores, depois de tão exactas observações, eu não concluo que dissolvaes o vosso synodo e que vos retireis para vossas casas. Os senhores liberaes, que vos combatem, são egualmente incongruentes, egualmente absurdos e um pouco mais comicos do que vós, e os senhores liberaes tambem se não retiram.

Elles dão morras ao papa, chefe supremo da religião catholica e todavia continuam a dizer-se catholicos. Odeiam e guerreiam os padres e no emtanto continuam a entregar as suas mulheres aos confissionarios e as suas filhas á cathechese. Insultam a theologia do vosso jornal a Palavra mas não acceitam com elle a controversia porque não sabem theologia. Não lhes importa o irem para o inferno, mas não querem ir para o Carmo. O seu atheismo leva-os a quererem «esmagar o infame» como elles mesmos dizem, mas com a clausula de não molestarem com essa operação os calos do sr. Bento de Freitas, governador civil, ou do sr. Pinto Bessa, presidente da camara. Ultimamente vós festejaveis com um Te Deum na egreja da Sé o anniversario de Pio IX: estaveis inteiramente no vosso direito e na logica dos vossos principios. Elles, em vez de combaterem com uma affirmação de sciencia a vossa protestação de fé, esperaram-vos á porta da egreja, deram vivas á liberdade, a Victor Manuel e a Garibaldi e alguns morras ao Papa infallivel. Foi com esta elevação de critica que analysaram o Concilio do Vaticano, consti. 4.ª cap. IV De infallibilitate romani pontificis magni, a qual constituição nunca leram. A policia interveio, espancou varias pessoas, prendeu varias outras, e eis em resumo o que os periodicos liberaes chamam os conflictos da liberdade e da reacção religiosa na cidade do Porto!

Profundas graças ao Altissimo, que não são inteiramente estas as circumstancias que determinaram as antigas crises do poder entre os burguezes do senado do Porto e os poderosos barões feudaes da Sé portuense ou do balio de Leça! Os srs. padre Rademaker e padre Couto não afivelaram os arnezes de aço dos antigos bispos e dos freires hospitalarios, não reuniram os seus sergentes e homens d'armas, não mandaram erguer as levadiças dos seus paços acastellados nem desembainharam as suas espadas famosas ... Não, elles apenas entoaram a ladainha de todos os santos, e prometteram, não excursões armadas sobre os rebeldes dos seus feudos, mas sim jubileus e bençãos telegraphicas aos seus adeptos.

Ora não vemos realmente em que estas coisas possam atterrar a liberdade e sobresaltar o paiz.

É singular esta coincidencia:

O clero catholico tem hoje em toda a Europa o papel sympathico. Os unicos paizes do mundo em que ainda se gosa a liberdade religiosa são os paizes catholicos. Na Russia, na Allemanha, temos o despotismo e a perseguição protestante. O sr. de Bismark prende, processa e desterra os sacerdotes catholicos. No novo imperio do rei Guilherme, o patriotismo reforça-se na religião do estado; a recente legislação allemã submette todos os casos de disciplina ecclesiastica e todas as deliberações episcopaes ao poder civil, e prohibe o clero sob as mais severas penas de cumprir preceitos que dimanem de qualquer auctoridade ecclesiastica estranha á nacionalidade allemã.

Ferida violentamente na sua liberdade, perseguida pela força, a egreja catholica—quem o diria!—appella para as garantias espirituaes e quer a distincção dos poderes como salvaguarda da liberdade. Na Allemanha os ultramontanos mais ardentes fortificam-se nos seus ultimos entrincheiramentos pedindo como Cavour a egreja livre no estado livre. A tal estado chegou desprestigiado e abatido o antigo poder clerical!... Elle já não quer exercer a sua velha tyrannia, contenta-se em não supportar a perseguição; e, como todos os martyres, pede a liberdade como o extremo refugio das consciencias apavoradas.

Violentamente ferida no coração, perseguida pela força, a egreja apresenta esse symptoma infallivel da sua suprema dôr—o grito das garantias espirituaes, o appello em ultima instancia para a distincção dos poderes.

Pio IX, fortificado no Vaticano, como n'uma cidadella gloriosa, desmoronada e vencida, posto que respeitada, soffre as ultimas consequencias fataes da sua politica, e, indomavelmente pertinaz e corajoso, esse velho batalhador veneravel, despojado da sua corôa temporal, arroja aos vencedores o derradeiro desafio do seu despreso, arvorando impavidamente o dogma e metralhando com as excommunhões a opinião liberal em ultimo sacrificio a uma causa perdida.

É curioso até o ponto de se tornar ligeiramente comico que seja este o momento escolhido pela burguezia portuense para começar a apontar-nos a egreja catholica como um perigo para a liberdade!

No Porto os livres pensadores da calçada dos Clerigos principiam agora a receiar que os catholicos da rua da Picaria assoberbem e esmaguem sob a desmaiada e quasi esvahida legenda pontificia o poderoso mundo scientifico moderno.

Pela sua parte vós, catholicos da Picaria, reunis as vossas mulheres e as vossas filhas, entoaes ladainhas e procuraes com preces e com penitencias desaggravar a divindade offendida com as invectivas dos periodicos liberaes—no que nos parece que confundis tambem um pouco a religião com a sacristia, e tomaes frequentemente o sr. padre Couto pelo Padre Eterno. É o vosso erro. No entanto ficae no vosso posto. A civilisação precisa de vós, não como elemento reconstituinte, mas como producto lachante. A sciencia estima-vos ... como droga. O velho mundo invoca a vossa assistencia para o ajudar a morrer, para o enterrar. Para mim, que acabo de vos discutir como fazendo eu mesmo parte do meio burguez em que existis, vós sois certamente um absurdo. Perante a philosophia vós sois porém uma necessidade historica. Nos annaes do progresso transcendente do espirito humano o vosso nome ha de ficar como o curioso epitaphio de uma geração que se extinguiu ha tresentos annos. Porque a verdade é que vós representaes as idéas do seculo XVI.

A associação catholica do Porto instituiu-se para quê? Vós mesmos o estaes dizendo todos os dias: Para salvaguardar a fé religiosa da corrente invasora do scepticismo moderno.

Pois bem, meus senhores, foi esse mesmo scepticismo, cuja corrente vós pretendeis hoje reprimir ou recuar, o que produziu a grande revolução scientifica do seculo XVII e toda a civilisação subsequente até os nossos dias.

O scepticismo é o estado de espirito que medeia entre a superstição e a tolerancia. Ha mais de um seculo que nenhum pensador grave se intromette na vossa controversia theologica. Ninguem vos combate, ninguem mesmo vos discute. O mundo novo está já na tolerancia, quando vós combateis ainda o scepticismo de que a tolerancia é o fructo!

Duvidar, meus bons amigos, é exercer uma das mais poderosas e mais fecundas faculdades da razão humana. Para chegar á verdade não ha senão esse caminho: a duvida. Para chegar a Deus, que não é outra coisa senão a expressão theologica da verdade, o unico meio é tambem esse: a duvida. Primeiro que tudo duvida-se, depois aprende-se, por fim descobre-se. Tal é a marcha invariavel dos espiritos na sua grande ascensão do imperfeito para o absoluto.

O mesmo christianismo não poderia nunca ter principiado a existir se não o tivesse precedido a duvida nas consciencias da antiguidade pagã. Antes de acreditar em Jesus Nazareno o homem teve que duvidar de Jupiter Capitolino. A tradicção christã é uma conquista do scepticismo antigo. A duvida foi a primeira e a mais augusta expressão da revelação divina.

A duvida tem sido em todos os tempos a luz immortal e a guia suprema do entendimento humano. Foi a duvida quem levou Colombo ao novo mundo, Copernico e Newton á astronomia, Boyle e Pascal á hydrostatica, Galyleu á mecanica e Lavoisier á chimica.

Se nas profundidades da nossa alma o scepticismo não tivesse existido sempre como uma indomavel força inextinguivel de perfectibilidade indefinida, a sciencia astronomica não viria occupar o logar da astrologia, a physica e a chimica não substituiriam a alchimia, e a imagem de Christo crucificado não succederia nos altares do Vaticano ás estatuas dos dois mil deuses da Roma antiga.

Quereis a definição precisamente scientifica do scepticismo? Ouvi Buckle, o historiador da civilisação: scepticismo é a difficuldade de crer; de sorte que o scepticismo que se augmenta é a percepção augmentada da difficuldade de provar asserções, ou, n'outros termos, é a applicação augmentada e a diffusão augmentada das regras do raciocinio e das leis da evidencia. Esse sentimento de hesitação é em todo o campo do pensamento o preliminar invariavel de todas as revoluções intellectuaes por que tem passado o espirito humano; sem o scepticismo, progresso, mudança, civilisação, tudo seria impossivel. Na physica é elle o precursor necessario da sciencia; na politica o precursor da liberdade; na religião o precursor da tolerancia.

Ora defendendo a integridade da fé, vós fazeis á philosophia este serviço relevante: suggeris a duvida, procuraes accordar a razão individual, a qual nunca em nenhum outro meio social se desenvolveu tão larga e tão arrojadamente, como no seio da egreja christã, a qual apezar de todos os seus erros e dos seus mesmos crimes, tem sido sempre o mais forte nucleo da vida moral e o mais alto objecto de todos os grandes desenvolvimentos da intelligencia e da vontade.

De resto entendo que o Porto, esse feliz e arrojado industrial, vos deve ser especialmente grato e reconhecido, porque vós o dotastes com um estabelecimento que Lisboa ainda não possue—A associação catholica da rua da Picaria,—a qual, á similhança dos antigos moinhos do Tibet e das cabaças rotatorias dos Kalmuks, assegura á commodidade dos habitantes um systema permanente, uma especie de moagem mechanica, com motuo continuo, de adorações e de preces.


Algumas das familias que durante a estação finda se achavam a banhos de mar em Pedrouços, resolveram de uma vez fazer uma festa nocturna, mysteriosa, venesiana. Tomaram um vapor da carreira de Belem, illuminaram-o com balões de papel como as gondolas do canal da Zueca que deslisam em frente dos terrassos do palacio Barbarigo no primeiro acto da Lucrecia. Para que a commoção de todas as pessoas que tomaram parte n'esta scena fosse profunda e illimitada, os homens tinham-se apresentado todos vestidos como os tenores nas scenas de barcarola. O jubilo era indescriptivel.

Reunida a bordo toda a sociedade, o vapor levantou ferro, e penetrou na treva, vibrante de aventura, saturado de drama, na direcção de Caparica.

O Tejo porém estava grosso e picado, de modo que começou a dar ao vapor uns balanços intermittentes para um lado e para o outro como de quem escabacea com somno. Com isto principiaram a manifestar-se com uma insistencia progressiva os symptomas spasmodicos nos esophagos da assembléa. Os Mazaniellos, verdes como azebre, tristes como condemnados á morte, procurando sorrir á catastrophe com sorrisos dilacerados como os que apresentam os cotovellos rotos, enrolavam-se nas suas capas e prostravam-se como trôchos inuteis nos bancos da tolda. As senhoras punham os seus lenços na bocca, corriam a mão pela testa, cuspiam desconsoladamente no mar, e tinham ligeiros movimentos extaticos e doloridos como de quem está escutando no ar o rumor de uma angustia que chega.

Então o sr. Mathias Ferrari, segundo lemos no Diario de Noticias, «fez correr um abundante serviço de neve». Todos se serviram.

Os effeitos foram taes que quando os criados repassaram com a segunda roda de sorvetes, todos os convivas, com as boccas ainda abertas, estremeceram de horror, porque cuidaram que esses segundos gelados eram outra vez—os primeiros.

Então um homem forte, que tinha ido para bordo armado de um violão, tentando arrancar a companhia a uma consternação abatida e geral, começou, a dedilhar o instrumento e a entoar uma chacara. Mas, de repente, suspende-se, torce-se, arripiam-se-lhe os cabellos, encurva-se-lhe a espinha dorsal, cae-lhe o violão desfallecido nos braços das senhoras, e o resto da chacara destinada aos eccos nocturnos do oceano e recolhida pelos circumstantes n'uma bacia.

Era immenso a bordo o desalento.

Mathias Ferrari, descorçoado, abatido, já «não fazia correr os serviços.» Este grande confeiteiro, dominando inteiramente a situação com a profundidade da sua critica, comprehendera—e muito bem!—que a questão ali já não era de fazer correr, mas de fazer parar.

Era alta noite quando o vapor abicou outra vez á praia de Belem, recolhendo-se todos perfeitissimamente satisfeitos pelo modo como se passara tão bello tempo. Apenas, para que desembarcassem, houve o pequeno trabalho de virar os que tinham assistido a esta festa, a mais brilhante talvez que se tem dado no Tejo, por que os convivas em virtude dos reiterados exforços que tinham feito no mar para puxar para fora o interior, succedera-lhes terem-o effectivamente conseguido, e haverem chegado todos a terra—pelo avesso.


Com a mais extranha commoção lemos ultimamente que fôra nomeado aio de sua alteza o principe real sua ex.ª o sr. Martens Ferrão, abalisado jurisconsulto e procurador geral da corôa.


É talvez uma bem perigosa temeridade da parte de prosaicos e obscuros burgueses como nós somos o atrevermo-nos a meditar um momento no que possam ser perante a educação e perante a sciencia as attribuições especiaes de um aio junto de um principe. Todavia—debalde procurariamos escondel-o—em presença de similhante assumpto, profunda e illimitada é a confusão do nosso espirito. Por isso que, por mais assignaladas que se nos representem as differenças que devem distinguir o alto e poderoso filho de um monarcha do mero filho de um fabricante de velas de cebo, nunca, por maiores que sejam na direcção do infinito os arrojos da nossa phantasia curiosa, nunca podemos chegar a alcançar, nem pelas presumpções mais vagas nem pelas mais remotas suspeitas nem pelas mais affastadas conjecturas, qual o emprego pratico e effectivo que possa dar um principe aos prestimos de um aio. Para satisfação de que necessidades, de que conveniencias ou de que simples formalidades, em que condições, em que circumstancias, em que especial momento da preciosa e augusta vida do real infante vae sua excellencia o aio á presença de sua alteza o principe?!... Nós o ignoramos.

Porque, quando as ordens de sua alteza procedam das necessidades do seu espirito, das curiosidades da sua intelligencia, dos interesses da sua instrucção, sua alteza pedirá naturalmente algum dos seus mestres ou algum dos seus livros, e a sua alteza será então applicado um professor de linguas, um compendio do sr. João Felix ou um numero do Diario de Noticias. Quando os desejos manifestados por sua alteza dimanem das urgencias physicas da sua naturesa, das fatalidades animaes do seu organismo ou do seu temperamento, sua alteza pedirá o seu banho, o seu jantar, as suas pastilhas ou o seu escarrador; e então os camaristas de sua alteza, as suas aias e os seus escudeiros cumprirão os desejos de sua alteza.

E não vemos, nem na ordem physica, nem na ordem moral, nem na ordem inlellectual das relações de sua alteza com o mundo externo, a necessidade, a conveniencia ou a plausibilidade da intervenção do aio.

A não ser que a concorrencia d'esta legendaria entidade methaphysica se deva considerar nos reaes paços como um acepipe hors d'oeuvre ou como um objecto supplementar de recreio, porque então comprehendemos de certo modo que ao serviço particular de sua alteza um camareiro exclame:

«Está o lunch na mesa: ha galantine, rabanetes e o sr. Martens Ferrão com salsa picada e manteiga fresca.» ou então: «Eis os brinquedos de sua alteza: aqui está a bola de guttapercha e a caixa com o sr. Martens Ferrão de engonsos.»


Se porém—e perdoe-se-nos esta hypothesese, sob a senhoreal e demievica palavra «aio», devemos entender a idéa perfeitamente logica, sensata, popular, de um preceptor pratico, de um mestre experimental, de um amigo, de um companheiro, n'esse caso notaremos com o mais profundo respeito a Sua Magestade a Rainha, dedicada mãe e primeira educadora do joven principe, que foi singularmente illudida a sua perspicacia elegendo o sr. Martens Ferrão como conselheiro official e privado de seu filho, como guia experimentado da candida existencia inexperiente do innocente alumno. E isto por uma razão que de nenhuma maneira desabona os altos merecimentos de sua excellencia o actual senhor procurador geral da corôa, antes pelo contrario os confirma e corrobora. Esta razão é que: o sr. Martens Ferrão, pela sua natureza, pela sua organisação, pelo seu temperamento, pelo seu caracter, pela sua biologia, é tão inexperiente, tão candido, tão ingenuo, tão innocente e tão puro como o proprio alumno que elle é chamado a aconselhar e a dirigir na difficil e complicada navegação da vida.

Passando em tenros annos do regaço d'aquella que lhe deu o ser para os braços da austera jurisprudencia, que tinha de amamental-o para a sciencia e para a gloria, o sr. Martens Ferrão tem até hoje passado a sua vida en nourrice em casa do Direito Publico.

Os seus dias teem decorrido transcendentemente fora das condições historicas do tempo e do espaço. A sua existencia tem sido exclusivamente mystica e symbolica. Quando tem os seus impetos mais ferozes de extravagancia, de anarchia, de deboche, elle sae a passear pelas viçosas campinas da philosophia do direito e faz patuscadas orgiacas e escandalosas com as origens celticas do direito e com as liberdades municipaes do imperio romano. Depois o remorso apodera-se d'elle. No dia seguinte acorda pallido, abatido, com a lingua grossa: o espectro pavoroso e formidavel do sr. Batbie appareceu-lhe em sonhos, e elle ouviu vozes vingadoras que lhe bradavam das profundidades da noite e do arrependimento: «João Baptista, para onde deixaste o direito de punir? que fizeste do direito administrativo, João? que é do direito internacional, Baptista?!» Taes são os seus dias de mais desdem, de mais anormalidade, de mais sexo, de mais jogo e de mais champagne! tal é o seu despertar contricto para a legalidade, para a descentralisação districtal e para as reformas de administração! Tal, resumidamente, é elle! E quando dizemos elle, commettemos uma incerteza de concordancia, porque tão pura, tão transcendental, tão scientifica é a personalidade do sr. Martens Ferrão, que nada obsta a que a historia referindo-se a sua excellencia, em vez de dizer elle, diga—ella. Pela nossa parte, aguardando ácerca da resolução d'esse ponto as ulteriores disposições definitivas da posteridade, diremos por emquanto simplesmente el, sem a desinencia de genero, sob a respeitosa formula neutra.

Como diziamos, pois, tal é—el.


Analysando, timidamente como o temos feito, a nomeação do sr. Martens Ferrão para aio do principe real—note-se bem isto—não é a sorte de sua alteza o que nos inspira receios sob a guarda de um tal guia ... Ah! não! É pelo contrario o destino de sua excellencia o que nos inquieta sob a influencia de um tal companheiro. Por elle podemos estar perfeitamente socegados. Mas el? o que será d'el, el tão puro ou pura, tão candido ou candida, sob os impulsos da nova existencia que repentinamente vae no seu temeroso vertice arrebatal-o ou arrebatal-a?!

Na vida da côrte, fina, scintillante, irritavel, cheia de factos, de commoções, de rasgos de espirito e de valor, de emboscadas, de surpresas, de malicias, de tentações, quantos perigos, quantos laços, quantas ratoeiras para a innocencia virginal, para a candida pureza inexperiente e inerme d'el! ...

Os principes por effeito da sua vida reclusa, claustral, vigiada, monotona, amam naturalmente a escapada, o mysterio, a aventura, a innocente anormalidade. Apraz-lhes a sortida arriscada, a partida carnavalesca, o ruido dos festins secretos, a mascara inescrutavel, a longa capa dramatica e a espada ligeira e subtil dos paladinos;—o que se lhes deve relevar, porque é esse o unico despique dos principes para a secca official dos intrigantes, dos bajuladores, dos ambiciosos, dos sensaborões e dos hypocritas que ordinariamente os rodeiam. Estes porém não são ainda para el os unicos perigos. Não é licito esconder que ha outros mais e muito mais temerosos. Pensemos nas influencias tempestuosas d'esse elemento, terrivel para a mocidade, que se chama—a mulher. Sentimos magoar com este promenor a pudicicia do sr. procurador geral da corôa, mas esta é a verdade que não devemos occultar aos olhos de sua excellencia. Diz Michelet, o casto, o austero Michelet, que em todo o tempo a mulher attrahiu o homem, assim como a vinha da Italia chamou os gaulezes, e a laranja da Sicilia chamou os normandos. Ellas chamam-nos, ó srs. procuradores geraes da corôa, ellas chamam-nos! Lembremo-nos da bella Helena, sr. Martens Ferrão, lembre-mo-nos de Semiramis, de Cleopatra, da casta Penelope, das Sabinas!

Os principes não estão mais isemptos que os outros homens d'esta lei geral da humanidade, e os que vivem com elles—ponderemol-o bem—ficam sujeitos ás mesmas influencias que envolvem os reis.

Guilherme VII, cuja fé religiosa era tão ardente que elle foi á Terra Santa com cem mil homens, o proprio Guilherme VII levou tambem na viagem do Santo Sepulchro a galante legião das suas amantes, e diz d'elle uma velha chronica que, bom trovador e bom cavalleiro d'armas, por muito tempo correra o mundo para enganar as damas. Tal é a raça de que elles sáem, ás vezes, quando não sáem peores que o mystico e piedoso Guilherme! Que a actual procuradoria geral da corôa emquanto é tempo o medite!

De Francisco I, um dos mais sabios e dos mais uteis reis que tem tido o mundo, diz-se que ás bellas milanezas se deve a mais importante parte na perseverança com que elle combateu pela conquista da Italia.

Sem fallarmos na cohorte das peccadoras, tão gentis como funestas, dos boudoirs de Luiz XIV e da Regencia, recordemos ainda as dissolutas e ferozes mulheres da côrte de Carlos IX, Catharina de Medicis, Maria Touchet, e as grosseiras amantes torpes de Luiz XI, a Gigogne e a Passefilou ... Oh! pudor! oh decoro! oh reforma administrativa!

Suppondes que a educação, os exemplos salutares e os conselhos sabios possam preservar os principes dos perigos das suas ligações clandestinas? Mas quando assim pudesse ser, quantos outros riscos na propria convivencia legal das mulheres legitimas!

Um dia Maria Laczinska, legitima mulher de Luiz XV, recusou um beijo ao rei com o fundamento de que este cheirava a vinho. Luiz, segundo a expressão pittoresca de um chronista das galanterias escandalosas do seculo passado, começava então a tomar o gosto ao champagne. O rei resolveu n'esse dia nefasto separar-se para sempre da rainha, e são sabidos os desgostos e as desgraças que o rompimento d'essas relações custou á felicidade da França e á moral da Europa. Que remorso para o aio de Luiz XV! Foi d'elle a culpa d'esse desastre. Se o aio do joven rei, em vez de começar a tomar o gosto ao champagne juntamente com o seu alumno, fosse, como pelo contrario devia ser, um experimentado e antigo soupeur, conhecedor esperto de todas as ciladas armadas ao homem pela bebida e pelo amor, elle teria evitado o divorcio do rei.

Tel-o-hia evitado, porque teria ensinado ao seu alumno, com a auctoridade da experiencia, que a intemperança nas ceias e o abuso no champagne produzem as hepatites, as predisposições para a apoplexia e para a gotta e a manifestação das areias no rim. Se o principe não obedecesse a estes conselhos e persistisse em ceiar, n'esse caso o seu aio lhe faria comprehender que depois de ter bebido champagne nenhum homem vae conversar com senhoras sem ter concluido a sua digestão e sem haver previamente lavado a bocca com um elixir dentifrico. Um pequeno passeio ao ar livre, uma gota de laudano ou uma pastilha, qualquer d'estas tres coisas ministrada opportunamente por um aio intelligente e dedicado, teria obstado ao rompimento das relações de Luiz XV com sua mulher e a todas as consequencias que d'ahi se seguiram.

Algumas vezes succede ainda que, além de todos estes desgostos, d'estas decepções e d'estes remorsos, os aios, os validos, os intimos dos principes levam ainda por cima pancada das princezas. N'este ponto as chronicas são prodigas de eloquentes e salutares avisos. Constancia de Arles, por exemplo, mulher de Roberto Pio, tinha taes accessos furiosos de mau genio que um dia vasou um olho do seu proprio confessor batendo-lhe com uma bengala que tinha no castão um bico de passaro. Esta mesma bengala nem sempre se conteve perante a pessoa inviolavel e sagrada da real magestade, e por muitas vezes se ergueu sobre as cabeças dos amigos mais particulares do rei para nem sempre deixar inteiros esses craneos dedicados e fieis. Foi a mesma sobredita princeza a que de uma vez mandou matar por occasião de um passeio, aos proprios olhos do soberano, o ministro De Beauvais, que lhe desagradava, e que, de outra vez impoz para o outro mundo um cortezão antipathico, estafando-o com uma corrida que o obrigou a dar n'uma caçada.


Ora se a corôa tem por um lado a obrigação de escudar a infancia e a innocencia dos principes, não deve por outro lado sacrificar a inexperiencia inerme das instituições pondo os srs. procuradores geraes como barreira entre as tentações e as culpas, lançando emfim a alta magistratura ao pego tenebroso, ao Mexilhoeiro insondavel em que ha o espumar dos vinhos capitosos, o sussurrar das sedas, o arfar dos leques, os sorrisos tentadores e as bengalas de castão de bico.


Algumas das pessoas que tiveram a honra de serem admittidas a jantar com as senhoras hispanholas que ultimamente se acharam em uso de banhos de mar, e de emigração, em Lisboa pedem-nos a nossa intervenção para dirigirem áquellas senhoras, aliás tão distinctas e tão interessantes, uma pequena observação que os seus amigos mais dedicados se não atrevem a fazer-lhes directamente.

Suas excellencias teem á mesa o terrivel habito de comerem o peixe com a faca, o que os admiradores mais enthusiastas do fino sal de espirito de suas excellencias e do seu poderoso encanto de maneiras, não podem abster-se de considerar como uma concorrencia temeraria feita por suas excellencias aos acrobatas dos jogos malabares, unicos entes que insistem em accumular os seus meritos pessoaes com o talento supplementar de metterem as facas pela bocca.

... Sendo certo ainda assim que os malabares que temos visto entregarem-se a este exercicio, servem-se o seu rodovalho á parte, e comem as facas—sem peixe!

Submettemos estas simples reflexões a suas excellencias, as quaes em seu delicado criterio decidirão se, attentos os graves cuidados que nos inspiram, devem ou não continuar a manter—na lista dos seus acepipes predilectos—os faqueiros.


Durante este mez, tão inquieto, tão palpitante de commoções, em toda a Europa, os principes com mão nervosa e febril cultivaram a epistola.

O Santo Padre escreveu ao imperador da Alemanha, o imperador da Alemanha escreveu ao Santo Padre, o conde de Chambord escreveu ao deputado Rodez-Benavent, o sr.D. Miguel de Bragança escreveu ao sr. conde da Redinha, e a historia em geral e os redactores da Nação espeialmente, escutaram com ardor o fremito d'essas pennas riscando a face do universo com letras um pouco menos correctas que as de Cicero, de Plinio o moço e de madame de Sevigné.


O Santo Padre pede ao imperador Guilherme que obste a que o governo da Alemanha persista na perseguição do clero catholico. O imperador Guilherme roga a Sua Santidade que impeça o clero catholico de proseguir na rebelião contra o governo da Alemanha.

D'este modo o Papa deseja que se retire da scena o martyrio, a grande e bella apotheose da egreja triumphante, e lembra ao verdugo que sirva aos martyres o antigo fel das legendas gloriosas com o moderno assucar dos confortos policiaes.

O imperador opina que amargo de mais é o proprio calix que o obrigam a tragar, e tirando da cabeça o seu ponderoso capacete bellico de ponta de pára-raios, e humilhando-se dentro das suas botas de couraceiro, elle—abatido, beato, lacrimoso—pede egualmente para as suas tribulações de christão as correspondentes e proporcionaes doçuras.

E taes são os dois maximos guardas da fé, os dois summos representantes na Europa moderna dos dois grandes ramos em que se acha dividida a christandade!

Oh! Voltaire compungir-se-hia, e, franzindo n'um sorriso bom os feixes malignos das suas sarcasticas rugas, elle, o caustico philosopho, o livre espirito, tirando benevolo dos bolsos da sua houppelande de veludo e martas a caixa das suas pastilhas, offereceria ás potestades chorosas os bombons sacrilegos dos salões de Mesdames du Deffant e de de Lambert.


A carta do conde de Chambord é o velho golpe astuto de Jarnac jogado ao constitucionalismo monarchico.

O principe a quem a França offerecera a corôa burgueza de Luiz Filippe, pergunta-lhe o que exige d'elle a França, que papel lhe destina, para que missão o invoca.

Vós, que estaes na liberdade, na democracia, na republica, cedeis ao invencivel appetite de acclamar um rei. Comprehendestes que é superior aos vossos meios repressivos e reorganisadores a perturbação corrompida da sociedade em que viveis. Duvidaes da vontade, da intelligencia, da força do vosso accordo collectivo. Quereis uma iniciativa individual, culminante, prestigiosa, predestinada para o mando, para o triumpho, para a gloria; quereis o monarcha eleito como Saul «para livrar o seu povo das mãos dos seus inimigos», segundo a formula primitiva do propheta Samuel.

N'esse caso armae a vossa cathedral de Reims, convidae os vossos principes do seculo e da egreja, trazei a corôa real, a espada, as esporas, a dalmatica azul, as botinas de seda estrellada de lizes de oiro, entregae-nos o sceptro de Carlos Magno, e dae-nos as sete uncções de Pepino o Breve. Depois do que, nós haveremos por bem deliberar por quaes secretos caminhos nos apraz mandar-vos, segundo as vossas gerarchias, para a victoria, para a bemaventurança ou para a força. Emquanto vós, tranquillos, repousados, deixareis definitivamente de occupar-vos da coisa publica, e, sem ambições, sem principios, sem idéas, tereis a felicidade absoluta da besta no seu aprisco; hoc erit jus regis qui vobis imperaturus est.

Se, em vez d'isto porém, o que desejaes ter é, não uma força omnipotente que vos governe, mas sim um instrumento politico que manejeis; se para me outorgardes a corôa, precisaes de me tirar a iniciativa, a personalidade, a dignidade de homem; se para que me julgueis inoffensivo é preciso que eu vos mostre ser pôdre; se as garantias que me pedis para que vos não domine são uma fraqueza, uma corrupção, uma inepcia que vos assegurem a facilidade de me dominardes a mim, então não: não vos convenho eu, o derradeiro dos Bourbons fundadores da monarchia absoluta nascida dos terrores da Liga e da Saint-Barthelemy, descendente e herdeiro de Henrique IV, o que teve a dupla coragem da força e da miseria, o que na tomada de Cahors se bateu nas ruas durante cinco dias consecutivos, ôlho a ôlho, dente a dente, braço a braço, o que de Dieppe escrevia alegremente a Sully que tinha todas as camisas despedaçadas e um gibão roto nos cotovellos!

Camille Desmoulins conta que em 1790 o poder monarchico era representado em Londres por meio de um bailado expressivo como uma parabola. N'este baile a primeira figura era um rei que terminava a execução de um entrechat cheio de garbo e de pompa alongando um pontapé ao fundo das costas do seu primeiro ministro; este transmittia o pontapé real ao segundo ministro, o qual o traspassava ao terceiro, seguindo-se a mais viva e espirituosa corrente de pontapés que se tem visto n'uma côrte, até que o personagem que apanhava em cheio no seu volumoso e amplo hemispherio posterior o ultimo pontapé era o paiz—que ficava com elle.

Nas monarchias constitucionaes imaginou-se reconstituir, por meio da carta, essa graciosa dança, alterando porém a collocação do soberano ou a ordem dos pontapés, de maneira que ou o principe está em baixo e os pontapés vem de cima, ou o tyranno está em cima e os pontapés vão de baixo.

Os povos monarchicos julgam-se felizes tendo cada pessoa ao lado de si alguem a quem transmittir o pontapé em giro atravez das instituições e da politica. A carta do conde de Chambord não é em resumo senão o testemunho de uma divergencia com a assembléa nacional sobre este ponto importante do bailado em ensaios: quem é que recebe o pontapé?

A um paiz corrompido e a uma assembléa senil não occorre esta consideração tão simples: que quando se trata de um stygma de servilismo e de baixeza a questão não é poder transmittil-o, é não dever acceital-o. Organisar pela monarchia a responsabilidade dos que se corrompem é abdicar a faculdade de demittir a corrupção. Os reis quando não enodoam os povos, tambem não lhes tiram as nodoas que elles tenham. N'esses casos o que limpa um paiz não é a realesa. Quereis saber o que é? Pois bem! É a benzina!


A carta do sr. D. Miguel de Bragança ao sr. conde da Redinha é ao mesmo tempo o tocante documento da estima inviolavel de um amigo ausente, e o authentico manifesto politico de um principe proscripto.

Sua alteza declara ao seu paiz que quer ser o protector e o amigo de todos os portuguezes e que considera como sua mais elevada ambição e sua maior gloria—restaurar o throno pontificio. N'este simples traço encarna sua alteza a expressão politica da sua indole,—o que nos parece de uma moderação de intuitos demasiadamente modesta.

Diriamos que sua alteza folga em confundir-se na obscura legião invalida dos tyranos burguezes, dos cezares bonacheirões, Neros de barrete de dormir, Caligulas dyspepticos, Eliogabalos em uso do pronto alivio e da revalenta arabica. A politica affirmada por sua alteza accusa uma visivel pobresa de sangue. Sua alteza é um anemico. Tal é o infortunio da nossa raça! Que degeneração!

O pae do joven principe D. Miguel era sanguineo, esse. A sua extraordinaria força muscular era a admiração respeitosa, a maravilha profundamente inclinada do sport lusitano de 1827. Nas redondezas do paço de Queluz, nas terras do Infantado, via-se ás vezes atravessar os campos, a pé, caçando acompanhado do seu falcoeiro, um homem de mais de meia estatura, de solidos hombros, faces morenas, barba rapada, mãos enormes, beiços sensuaes, grandes olhos negros, rasgados, peninsulares; vestia um casaco de baetão verde, calção preto, botas altas, de cava, com tações de prateleira e esporas de prata; usava um bonet azul, do prato largo, com vizeira. Este homem, que amava a convivencia dos plebeus, a quem dava largas esmolas de dinheiro e de conversação, comprazia-se em ensinar a lavrar os moços do campo: tomava na mão esquerda a rabiça de um arado, azorragava com a direita uma parelha de mulas, e abria no solo mais empedrado e mais endurecido, sob a poderosa pressão do seu pulso, um rego profundo, extenso de um kilometro, e recto como um risco passado a regoa por um tira-linhas. Suffocava um forte cavallo de Alter puchando-lhe a ponta da cilha com os dentes. Segurava pela bocca, que juntava e cerrava no punho, um sacco de sete alqueires do trigo, e lançava-o ao hombro, com uma só mão, erguendo o braço por cima da cabeça e conservando o corpo immovel, erecto e firme. Quando vinha de Queluz a Lisboa, galopando á desfilada, com uma vara debaixo da perna, entre os seus companheiros mais assiduos, João Sedvem, o picador, o José Verissimo, o da policia, a força de soldados de cavallaria que o acompanhava, ficava aos poucos pela estrada destroçada pela fadiga: elle nunca chegou senão só. No dia em que recebeu ao pé da mata, na Quinta Velha, onde estava caçando ao falção, por volta das duas horas da tarde, a noticia de ter entrado a barra de Lisboa a flotilha que apresou e levou para França todos os nossos vasos de guerra surtos no Tejo, elle veiu de Queluz a Belem, em menos de tres quartos de hora. Esse homem que tinha a grande popularidade que trazem comsigo as legendas da força e da destreza physica, era sua magestade el-rei o sr. D. Miguel I.

O soberano tinha os defeitos do homem e as qualidades dos seus defeitos. A sua politica era apopletica simplesmente porque elle era plethorico.

Esse principe, com o seu temperamento, o qual constituia, politicamente assim como physiologicamente, toda a sua personalidade, fez á liberdade e ás idéas modernas o mais relevante serviço: foi elle o que fabricou o partido liberal portuguez.

Os constitucionaes foram uma invenção da policia do sr. D. Miguel. Elles não combatiam o direito divino, nem os privilegios da nobreza e do clero, nem o regime absoluto, nem a servidão popular; o que elles combatiam principalmente era o José Verissimo. Affirmavam-se os direitos do homem porque se tinha percebido que esses direitos prejudicavam os do João Sedvem. Os revolucionarios portuguezes não vieram da sciencia, não vieram do amor da justiça, das impaciencias da liberdade, dos contagios da Convenção, da revolta da dignidade humana. Não. Elles vieram simplesmente dos carceres, dos carceres em que o regime despotico recalcou de mais a força viva da nação. Os principios eram o pretexto sob o qual se vingavam as offensas feitas não ás idéas vigentes, mas aos interesses estabelecidos. As denuncias partiam dos lesados. A idéa exposta na organisação da Companhia dos vinhos preoccupava mais os espiritos em Portugal do que o principio representado em França pela existencia da Bastilha. Havia martyres da liberdade que nunca tinham amado a liberdade com devoção mais intensa que a do Sedvem e que não teriam posto duvidas irremissiveis em continuar a «dobrar a cerviz, ao jugo da tyrannia» como se dizia no stylo do tempo; sómente o que elles tinham recusado era emprestar algumas moedas ao José da Policia. Para a maior parte da gente a victoria da idéa liberal foi simplesmente a morte do Telles Jordão. Finalmente o sr. D. Miguel de Bragança, primeiro, foi o principe cuja força fez na monarchia portugueza o rombo por onde a liberdade appareceu. O sr.D. Miguel de Bragança, segundo, figura-se-nos pela sua expressiva carta ao sr. conde da Redinha, uma pessoa extremamente debilitada. Ser o protector e o amigo de todos os portugueses é enfraquecer-se diffundindo-se. Os antigos fortes concentravam-se.

Pobres de nós! Como somos diversos de nossos paes! Os plethoricos, sangrados, legaram á geração que lhes succedeu a impotente anemia!


Acabamos de lêr um livro que foi publicado era Lisboa ha cerca de tres mezes e a respeito do qual ainda não ouvimos á critica uma palavra de menção. Foi abafado pelo silencio. Se lhe não dessem esse destino teria sido um livro escandaloso porque foi inteiramente concebido fóra da rotina, fóra da convenção, fóra do compadrio, por um espirito justo, esclarecido, honrado, fatalmente inclinado ao bem. Intitula-se—Portugal e o socialismo, e é escripto pelo sr. Oliveira Martins.

A litteratura portugueza actual apresenta este notavel caracter:—o bysantinismo. Ella não é um documento historico, nem um documento moral do tempo em que vivemos. Não tem importancia na direcção dos espiritos, não tem influencia na formação dos caracteres, não tem validade no estabelecimento dos principios. Não dá nenhuma theoria á razão, não dá nenhuma lei á consciencia, não dá nenhuma norma á dignidade.

A imitação, a convenção, o servilismo, o estreito espirito de seita, de partido, de escola, a ignorancia, a indolencia, a bajulação, a orthodoxia official puzeram a pouco e pouco as lettras portuguezas inteiramente fóra do seu objecto—a simples e pura verdade humana.

O que actualmente se escreve não é absolutamente nada o que actualmente se pensa. Todas as grandes questões capitaes que preoccupam a sociedade, a litteratura ou as evita ou as falsea. Ou as evita porque as não sabe tratar, ou as falsea porque as trata com um espirito particular de interesse, hostil á sciencia e rebelde á arte.

Entre tantos escriptores portuguezes que quotidianamente enegrecem em Portugal o innocente papel sobre o qual se orça a medida das nossas faculdades, onde está o homem cuja obra represente o precurso das idéas predominantes d'este seculo atravez d'esta sociedade? Onde está o artista, onde está o philosopho, onde está o poeta que tenha atacado de frente a solução desinteressada, independente, firme, clara, nitida, dos multiplos problemas que agitam o espirito, a consciencia, o coração do homem moderno no meio do sentimento, do temperamento, da religião e da politica da sociedade moderna?

Será tal escriptor o sr. Alexandre Herculano, philosopho collaborador da sr.ª D. Guiomar Torresão no Almanack das Senhoras?

Será o poeta sr. Nunes, deputado conservador, o mais arrojado dos vates que conhecemos dentro dos limites da carta constitucional e do systema representativo?

Não nos parece.

O sr. Oliveira Martins faz parte de um pequeno grupo de alguns trabalhadores obscuros, inteiramente penetrados da corrente scientifica do tempo actual, que teem procurado introduzir na litteratura as idéas correspondentes ás preoccupações, ás necessidades e aos interesses mais altos, mais legitimos e mais vitaes da sociedade em que vivem, fixando assim scientificamente algumas das bases do programma geral da revolução por meio da qual se vae transformando o mundo europeu.

Esses humildes obreiros, aos quaes cabe a gloria de terem iniciado em Portugal quasi todos os grandes principios das civilisações modernas, não teem encontrado, como galardão dos seus estudos, da sua independencia e da sua andácia de pensadores, senão a surda guerra das maledicências, das calumnias e dos desdens, evantada pelo obscurantismo, pelo fanatismo, pela ignorancia. Accusam-os de attentarem contra a moral, contra a religião, contra a ordem, contra o patriotismo, e expulsaram-os vilmente e infamemente do respeito publico e da consideração social como jacobinos, como communistas, como incendiarios.


É do livro acima citado que extrahimos a seguinte pagina tão sensata, tão viva, tão humana:

«Portugal não tem pauperismo. É por isso que entre nós se não levantaram ainda, nem se levantarão já, Nelsons ou Sydney Smiths para dizerem como em Inglaterra: «A pobreza é infame.» É por isso que a definição ingleza da fabrica—manufactura de algodão e de pobres—não pode servir-nos. O não attingirmos porém um termo tão elevado de preversão social não quer dizer que as classes trabalhadoras de todas as industrias vivas do paiz, extractivas e transformadoras, encontrem para cá das nossas fronteiras um modo de vida essencialmente differente. Não, a nossa organisação politica, semi-monarchica, semi-liberal, dá em resultado ser duplamente absurda, immoral, pauperisadora. Porque, como liberal, permitte a livre concorrencia do capital e do trabalho, aliena as funcções e propriedades collectivas, e, para corrigir as consequencias de distribuição viciosa que d'ahi resultam, mantem uma protecção anachronica, com as alfandegas, com a divida e com o imposto, protecção que recaindo afinal toda no consumo, vem ainda aggravar as condições do trabalhador pela elevação no preço das coisas. Acima da preversão economica devemos pôr a preversão moral. No pequeno mundo industrial de Lisboa, não contaste nunca, leitor, aos sabados o numero de ebrios que povôa as vielas escuras e nauseabundas, onde á crapula vem juntar-se a orgia das mulheres perdidas? Onde o prostibulo está em frente da taberna, ao lado o bilhar, e entre o bilhar, o prostibulo e a taberna, se funde a feria?

A desordem e a immoralidade são contra a natureza. Se esses homens não fossem pobres seriam melhores. Se não tivessem de trabalhar doze horas para comer saberiam ler. Se tivessem pão e liberdade seriam paes de familia. Olhae as mulheres e as creanças. Termo medio a familia tem quatro pessoas; termo medio o salario é de 400 réis. O trabalhador recorre ao celibato, á prostituição, ás relações illicitas, d'onde resultam os infantecidios (tão frequentes em Portugal como na China) e a roda dos expostos. Quando um homem foi agarrado por esta engrenagem d'aço morreu. Ha muitos a quem uma certa energia de caracter ou uma constituição artistica e sentimental levaram ao casamento e á familia: é então que se encontram quatro pessoas com quatro tostões por dia. A industria offerece uma tentação diabolica: augmentar o salario destruindo a familia. N'esse momento a esposa e os filhos entram na fabrica ...»


A fabrica é para as mulheres e para as creanças o sepulchro do pudor, da honestidade e da saude. Emquanto as instituições sociaes não assegurarem á mulher o seu legitimo logar na familia é absolutamente preciso que, pelo menos a protejam na miseria fatal da fabrica. Porque nas fabricas portuguezas o que succede com a mulher é que, pela sua fraqueza e pela sua ignorancia, ella é no trabalho o escravo do homem. Ninguem entre nós tem lançado os olhos a esses desgraçados destinos obscuros.


Acostura que ainda ha pouco era o grande refugio das raparigas pobres desappareceu com a machina de cozer. A mulher não póde sustentar essa concorrencia, porque ella não póde, por maiores que sejam os esforços dar por suas mãos mais de 30 pontos por minuto: a machina dá 643 pontos no mesmo espaço de tempo. Para se empregar n'outros serviços precisaria de uma educação preparatoria pratica, para a qual são indispensaveis as escolas profissionaes que não existem em Portugal. Em França, na Inglaterra, na Allemanha e principalmente na Suecia, as mulheres habilitadas em cursos especiaes teem já muitos empregos uteis na industria e no commercio. Em 1871 havia na Suecia 4:055 mulheres empregadas no commercio e na industria. D'estas 2:675 dirigiam os seus proprios negocios. Quinhentas e quatro mulheres eram proprietarias de fabricas e de officinas. Além d'isto muitas outras se achavam empregadas nos bancos, nas caixas de soccorros, nas companhias de seguros, etc. com emolumentos annuaes variando de 800 a 5:000 rixdalers. No serviço dos correios, dos caminhos de ferro, dos telegraphos, a mulher alarga de dia para dia os seus dominios. A America, a Suecia, o Wurtemberg, offerecem-lhe sob esse ponto de vista as maiores facilidades.

Em Darmstadt muitas mulheres se acham empregadas nas repartições de estatistica com optimos resultados para o serviço publico. Os cuidados aos doentes são um bello emprego para o trabalho das mulheres. Na Hollanda muitas teem sido auctorisadas a tirar diplomas de pharmaceuticos. A profissão medica tem-lhes sido permittida em diversos paizes. Na America, em S. Petersburgo, em Zurich, em Upsel e em varias outras universidades ha um consideravel numero de alumnos do sexo feminino estudando a medicina. Na Suecia estabeleceu-se pelo estado um fundo permanente de soccorros para as mulheres que seguem a carreira medica.

A ultima exposição de Vienna veiu provar ainda quanto as mulheres se teem ultimamente occupado nas artes industriaes e nas bellas artes. Na exposição sueca vê-se no pavilhão dos productos da industria o perfeito exito com que as mulheres teem cultivado n'aquelle paiz a pintura, a gravura em madeira, a xylographia, a lythographia, a gravura em cobre, a photographia, a cartographia, a pintura em porcelana, a modelagem. Na Suecia concedeu-se-lhes accesso, como aos demais empregados, nos serviços dos telegraphos, dos correios e dos caminhos de ferro. Admittem-as como gravadoras na casa da moeda; muitas são empregadas nas academias, nas imprensas e n'outros estabelecimentos como xylographas, impressoras, compositoras, directoras de officina, etc.

Na Suecia ha hoje immensas escolas sustentadas pelo governo, pelas communas e por associações particulares onde ensinam ás raparigas pobres todos os trabalhos femininos do «ménage». Ha escolas especiaes destinadas a formar creadas. Em Stockolmo ha escolas de remendagem onde as raparigas aprendem a concertar os seus fatos e a sua roupa branca com um acceio e uma arte inexcedivel. As meninas burguezas teem á sua disposição a escola industrial de Stockolmo, as escolas normaes reaes, o instituto central de gymnastica onde se formam mestras de gymnastica, a academia real de musica, a academia das bellas artes os estabelecimentos de instrucção das parteiras e a mesma universidade, onde se ministram subsidios a tres raparigas que estudam por conta do estado. Depois da Suecia devem-se citar os Paizes Baixos e a Austria. Em Vienna a municipalidade fundou em alguns bairros escolas industriaes nocturnas. Sociedades de senhoras estabeleceram escolas profissionaes de differentes especies. Ha uma sociedade especial encarregada de obter ás mulheres meios de subsistência (Frauenerwerb-Verein). Além das escolas preparatorias para a instrucção geral elementar e para a instrucção superior, estabeleceu a referida sociedade uma escola de costura, uma escola superior de trabalho com um curso de estudos que dura tres annos, uma escola de desenho industrial, uma escola de commercio, uma escola de linguas, um curso especial para as empregadas na telegraphia. Na Hollanda é na escola industrial de Amsterdam que se instrue a mocidade feminina não só nos trabalhos manuaes, taes como o bordado, costura á mão e á machina trabalhos de cartonagem e obras de palha, escripturação commercial, legislação commercial e pharmacia. Na Alemanha do norte e na Alemanha central ha egualmente muitas escolas industriaes fundadas por sociedades especiaes e por outras corporações para a educação das raparigas e das mulheres. Um fabricante de Munich fundou uma excellente escola de ensino commercial para as raparigas da classe burgueza e da classe operaria. As mulheres que sáem d'esta escola encontram immediatamente emprego nos bancos, ou nas casas de commercio.

A Russia resolveu ultimamente facultar a matricula na escola de medicina de S. Petrsburgo ás mulheres habilitadas com determinados titulos de capacidade. Logo depois da promulgação d'esta lei, quatrocentas mulheres se apresentaram como candidatos á frequencia da alludida faculdade.


Sabem dizer-nos o que é que, sob este ponto de vista, se tem feito em Portugal? Esperamos que suas excellencias os senhores conservadores se dignarão responder-nos.


O sr. marquez de Vallada mandou correr este mez os reposteiros brasonados dos seus salões para inaugurar as soirées elegantes do presente inverno com um jantar prié.

Assistiram todos os membros do gabinete e varios outros personagens illustres na politica e na burocracia. Sentia-se apenas uma falta n'essa reunião selecta: a ausência absoluta de senhoras no palacio do nobre fidalgo. Bem sabemos que um jantar não é precisamente como uma valsa para a qual a gente não ha de ir convidar a lagosta, nem dançar com o perú. Mas mesmo para o que é comer não basta apenas a comida. O sr. marquez sabe a este respeito a opinião de Savarin: o bruto pasta, o homem come, só o homem de espirito é que sabe comer. Ora uma duzia de barbatolas postos a mascar trufas uns diante dos outros em volta de uma mesa não nos parece que deem o espectaculo da espiritualidade mais fina. É preciso que concorram tambem as senhoras, com a toilette, com a fina pelle, com os perfumes, com as rendas, com as perolas, com as frescas risadas cristalinas, com os agudos ditos penetrantes, com a elevação finalmente, com a idealidade, com o espirito.


Atravessar a gente por entre duas filas de criados gordos e graves como embaixadores, indo por baixo dos lustres, pizando um tapete espesso, dando o braço a alguem, ou seguindo mesmo, atraz, sosinho, na turba dos obscuros, com a claque debaixo do braço; entrar na sala de jantar, tepida, fulgurante de luz; contemplar a mesa de um aspecto tropical pela natureza das fructas e pela fórma das flôres trasvasadas do plateau, procurarmos o nosso nome nos bilhetes que estão em cima dos guardanapos; sentarmo-nos ao dôce murmurio dos vestidos que se enfôfam ao nosso lado e dos talheres que telintam; desdobrar nos joelhos um amplo guardanapo, frio, lustroso e pesado, de linho de Irlanda; aconchegarmo-nos, unirmos os cotovellos ao corpo e inclinarmo-nos sobre o prato; metter na bocca a primeira colher do sopa, sentir estalar e derreter-se no dente o primeiro rabiolo, escorrendo no paladar o acre succo dos espinafres, em quanto a nossa visinha da esquerda mette a sua luva enrolada no copo do Madeira, e a nossa visinha da direita morde atrevidamente no pão deixando-nos vêr de lado todos os seus pequeninos dentes mais lindos que as suas perolas ... isto é realmente acharmo-nos n'um dos momentos mais augustos que a civilisação e a elegencia concedem ao homem em paga dos sacrificios que elle lhes tem feito nos esmeros da educação e na alta cultura do espirito. É então que as mulheres, sómente as mulheres—ellas que vivem na graça e no mimo como os solitarios vivem no egoismo e no tedio—desenvolvem o talento especial de fazer romper os alados assumptos ligeiros e subtis, em torno dos quaes adejam as conversações, as phantasias, as replicas, os repentes, como doiradas abelhas famintas sobre um ramo de rosas.

Se n'esses momentos os homens se acham sós, ou caem na bestialidade indolente e calada dos deuses de Epicuro, ou discutem, questionam, fallam alto, gritam, põem os cotovellos na mesa, fazem gestos, fazem bolas de pão, dão estalos com a lingua, limpam as unhas, e quebram palitos nos dedos—o que ha mais implicativo dos nervos e mais offensivo do gosto.


Consta-nos que pelas razões referidas o jantar do sr. marquez tocou um pouco no tetrico. O silencio era a principio tão solemne que apenas se ouvia confusamente o ruido da maioria parlamentar engolindo pelo esophago do ministerio e a ordem e a guarda municipal mastigando pela bocca do sr. barão do Zezere. Tinha-se ar de se estar n'uma sessão deliberativa e não n'uma festa; parece até que o sr. marquez de Avila, o illustre parlamentar, dirigindo-se a um criado, se mostrára gravemente preoccupado ao ponto de que, sendo a sua intenção pedir-lhe Sauterne, lhe pedira a palavra.

Por fim parece que o dono da casa usara da fala para expôr o objecto d'aquella reunião, o qual, segundo referem os jornaes, foi:

Affirmar a adhesão do sr. marques de Vallada á monarchia.


Achamos extremamente louvavel e digno de ser imitado por todos os fidalgos portuguezes o exemplo dado pelo sr. marquez de se sacrificarem pelo throno ao ponto de não hesitarem um momento, para o salvar, em irem ... para a mesa!

Os vossos avós, quando queriam dedicar-se ao esplendor da corôa iam bater-se em Arzilla, em Ormuz, em Ceuta, em Tanger, descobriam terras, venciam batalhas, conquistavam reinos.

Quereis provar-nos que ainda guardaes nos vossos archivos as antigas cartas do roteiro dos mares? Que ainda tendes nas vossas panoplias as duras armaduras e as famosas lanças dos vossos maiores? Muito bem! Visto que não podeis refazer o que está já feito por elles, começae pelo menos a realisar o que elles tantas vezes omittiram: jantae!

E a corôa verá, pela maneira como vos mostrardes aptos para comer, quanto sois capazes de amar.

Assim como o Castro forte dizia que por cada pedra da fortaleza de Diu elle daria um filho, mostrae vós que por cada perna de perú trufado sereis capazes de dar um avô. E o soberano, jubiloso e grato, contemplando por cima da gloriosa terrina da historia contemporanea, os feitos valorosos dos vossos garfos invenciveis, apreciará os vossos titulos de immortalidade, discriminando, no ardor e na confusão das refregas, os que se lhe dedicam até ao pato com arroz, os que o estremecem até ao frango com hervilhas, os que o idolatram até ás salchichas com couve lombarda!


Mas por Deus, meus senhores, consenti que vol-o repitamos: Não excluaes dos agapes patrioticos com que preparaes a entranha para a communhão monarchica, o doce elemento feminino, o melhor encanto do triumpho, o mais alto premio do heroismo, o mais precioso complemento da gloria! Se a prosmicuidade dos sexos insuperavelmente vos repugna, que alguns de vós pelo menos se sacrifiquem ás conveniencias da arte, ás prescripções do bello, e salvem sequer as apparencias—vestindo-se de mulheres!

Animo, senhores commandantes dos corpos! animo, senhores officiaes maiores! animo, senhores ministros de estado! É por ellas, que vos pedimos isto, pelas que tiveram sempre o seu logar nas nossas gloriosas tradicções dymnasticas! Lembrae-vos d'ellas, e ide lançar-vos aos pés da Aline! Lembrae-vos d'ellas, e consenti em decotardes os vossos hombros! Elanguescei, meus senhores, reclinae meigamente as frontes, cerrae levemente as palpebras, agitae um pouco os vossos leques, dae suspiros, ponde tações de setim escarlate, vinde de cuia! e, sobretudo—não o esqueçaes—trazei tournure ... Que vos custa trazer tournure? Uma coisa tão facil, que se traz como as patronas!

É pelo throno, pelo mesmo throno de que vos declaraes adeptos, que vos supplicamos isto! é pelas vossas excelsas e augustas soberanas, não representadas no vosso banquete ... Em nome de Mecia Lopes, meus senhores! Em nome de D. Urraca!


A imprensa de Lisboa não tem opinião. Aquelles dos seus membros que por excepção presentem as idéas proprias, vivas, originaes zumbindo-lhes importunamente no cerebro, enxotam-as como vespas venenosas. É que a missão do jornalismo portuguez não é ter idéas suas, é transmittir as idéas dos outros. Por tal razão em Lisboa o homem que pensa não é nunca o homem que escreve. O jornalista nunca se concentra, nunca se recolhe com o seu problema para o meditar, para o estudar, para o resolver. Nunca procura a verdade. Procura apenas a solução achada pelo publico, pelo publico d'elle, pelo seu partido politico, pelos consocios do seu club, pelos seus amigos, pelos seus protectores, pelos seus assignantes. Portanto trabalha na rua, debaixo da arcada do Terreiro do Paço, nos corredores ou nas tribunas de S. Bento, no Chiado, no Martinho, no Gremio. Como trabalha? Trabalha d'este modo: informando-se;—é o termo technico. Uma vez informado, o jornalista considera-se instruido. Desde que tem a informação recebida tem o jornal feito. O que elle vos escreve hoje—notae-o bem—é o que vós lhes dissestes hontem. O jornal não é uma fonte de critica, de analyse, de investigação. O jornal é o barril de transporte das idéas em circulação, das soluções previamente recebidas e approvadas pelo consenso publico. O jornalista é o aguadeiro submisso e fiel da opinião. Não a dirige, não a corrige, não a modifica, não a tempera. O unico serviço que lhe faz é este: transporta-a dos centros publicos aos domicilios particulares. O publico é a nascente, é o veio, é o manancial; a imprensa periodica é simplesmente—o cano.


Essa é a lei geral da conducta da publicidade em Portugal. Toda a transgressão d'essa lei é um eminente perigo para o que a commette. O leitor portuguez não quer que o seu livro ou o seu periodico o obriguem ás fadigas da discussão e da controversia com o seu proprio espirito. A conquista desinteressada e pura da verdade não tem attractivo algum para as suas faculdades. As curiosidades e os interesses especiaes da alma portugueza repastam-se no sentimento: a reflexão molesta-a. Entre tantos escriptores nacionaes nunca houve um pensador. Descartes, Spinosa, Kant seriam inteiramente impossiveis no seio d'esta sociedade, a que falta a respiração logo que a tirem da rotina. Não se lhes dá, aos leitores portuguezes, de verem a verdade, mas querem a verdade atravez da opinião. Ninguem pensa fóra das materias da ordem do dia. «Que ha de novo?» é a nossa pergunta de todas as manhãs. Esta phrase profundamente caracteristica quer dizer: «Dêem-me a senha e a contrasenha; digam-me em que pensam para eu saber o que hei do pensar.» O meu jornal vem bom ou vem mau segundo é ou não é em cada dia a expressão das minhas convicções baseadas em ideas preconcebidas na convivencia do publico. O criterio é substituido pelo mot d'ordre.

Se n'um tal meio intellectual apparece um miseravel solitario, que não tem um partido, que não tem um centro, que não tem um club, que não tem sequer um botequim, mas que, não obstante, segue os successos do seu tempo e exprime a respeito d'elles uma opinião absolutamente individual, isto é—livre, sobre esse homem cáem todas as suspeitas, todas as presumpções malevolas que acompanham atravez de uma multidão apalavrada um intruso mysterioso e sinistro. Tal é a especie de acolhimento que por differentes vezes nos tem sido feito e que mais particularmente nos foi manifestado depois da publicação do nosso ultimo numero a proposito de dois artigos, um consagrado ao sr. Alexandre Herculano, outro destinado á casa de correcção installada no convento das Monicas.


Lemos alguns dos artigos que nos foram consagrados, e achamo-nos inteiramente edificados ácerca do nosso desacato ás instituições publicas e da nossa irreverencia com as glorias nacionaes.

Sómente, meus senhores, uma coisa nos parece ter-vos esquecido, e é: demonstrar-nos que a reverencia das instituições e o respeito das celebridades gloriosas seja um instrumento de critica ou um meio de analyse. Porque nós—talvez o não tenhaes comprehendido bem—nós não somos propriamente os mestres de ceremonias da geração a que pertencemos. Não estamos aqui a leccionar mesuras nem a praticar experiencias sobre a variedade das curvas mais ou menos inclinadas a que se nos presta o espinhaço. Nós somos apenas uns simples chronistas do tempo que vamos atravessando. Somos os contribuintes especiaes do mez para a historia geral do seculo. Ora não será pondo-nos humildemente de cocoras no chão que nós veremos de mais alto as coisas e os homens. No exame e na apreciação dos factos o minimo vislumbre do respeito é um perigo da verdade. Michelet, demolindo no seu ultimo livro a legenda napoleonica filha da reverencia da historia pelo falso heroismo de Bonaparte, mostra-nos que a fascinação grosseira produzida pelo «heroe de Marengo e de Austerlitz» teria cahido perante o bom senso e perante a gargalhada, se a França não tivesse perdido, depois do Terror, o riso, a sua grande arma contra os tyrannos.

O primeiro dever da critica diante dos grandes acontecimentos e dos grandes personagens é simplesmente o despreso ou a zombaria ... Michelet diz mesmo «o sacrilegio» como instrumento da verdade! e aconselha-nos que imitemos como historiadores o exemplo de Renaud de Montauband pegando n'um tição para barbear Carlos Magno.


De resto, meus senhores, para que se mantenham na decencia do culto as tradições patrioticas, parece-nos inutil que nós nos occupemos d'isso. Lá estaes vós, diligentes e sollitos, para espanardes as teias da aranha aos velhos principios, para varrerdes as instituições veneraveis, e para conservardes em bom estado os heroes e os sabios, limpando-lhes as golas das sobrecasacas, engraxando-lhes os sapatos e pondo-lhes rapé novo no nariz.


Chegámos tarde para fallar da grande tragedia monumentosa do Mexilhoeiro. O paiz inteiro se pronunciou já sobre este caso, o maior da historia contemporanea. O facto tem sido largamente tratado em artigos de jornaes, em folhetins, em trechos de romance, em pias legendas, em dramas, em te-deuns cantados em todas as cathedraes, em polkas expressivas, em missas rezadas em todas as egrejas, em felicitações de todos os municipios, em sentimentaes mazurkas.

Uma só coisa nos parece que falta, e é a que propomos: um monumento que eternise tão alto successo, levando ás gerações vindouras esta lapide:

AOS MOLHADOS

POR UMA FRIA TARDE

NO PEGO DO MEXILHOEIRO

A GLORIA

RECONHECE N'ESTE MONUMENTO

OS IRREFRAGAVEIS DIREITOS

DE TÃO ILLUSTRES VICTIMAS

Á

CONSTIPAÇÃO


INDEX

Dos volumes d'esta chronica

PUBLICADOS ATÉ HOJE

    I—Maio................... 1871

   II—Junho..................  »

  III—Julho..................  »

   IV—Agosto.................  »

    V—Setembro...............  »

   VI—Outubro................  »

  VII—Novembro...............  »

 VIII—Dezembro...............  »

   IX—Janeiro................ 1872

    X—Fevereiro..............  »

   XI—Março..................  »

  XII—Abril..................  »

 XIII—Junho a julho..........  »

  XIV—Julho a agosto.........  »

   XV—Setembro a outubro.....  »

  XVI—Novembro...............  »

 XVII—Dezembro...............  »

XVIII—Janeiro a fevereiro.... 1873

  XIX—Março a abril..........  »

   XX—Outubro a novembro.....  »

Nota. D'hora ávante cada um dos volumes d'esta publicação será marcado com o correspondente numero.

*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 14622 ***