RAMALHO ORTIGÃO—EÇA DE QUEIROZ
CRONICA MENSAL DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES
2.º ANNO
Março a Abril de 1873
Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande universo, e da adoração de si mesmo.
P.J. PROUDHON
SUMMARIO
O sr. Alexandre Herculano, opusculista. Os semi-deuses e os rapazes. As armaduras e as flanellas. A Voz do Propheta, geremiada de salão. A biblia-cacete. Deus cartista. Reincidencia do milagre de Ourique. Os egressos e Pharaó. A censura dramatica. As conferencias democraticas. Os fins da arte e a bisca sueca. Em que o sr. Herculano se parece com Theodosio II. A tristeza chronica do grande homem e o pronto-alivio de Radway. A velhice e a arte. Os martyrios de vinheta. Spinosa, Campanella, Diderot e Proudhon. Victor Hugo, Michelet, Quinet, Raspail e Carl Marx. O sr. Herculano Salomão e nós o bôbo Marcullo.—João Felix Pereira, historiador. Os compendios da instrucção publica e as equarissages.—O sr. D. Fernando em Coimbra. Os rouxinoes do Mondego e seus principios politicos.—A casa de detenção nas Monicas. O edificio, as camaratas, o refeitorio, as officinas, a escola. A instrucção, a catechese, a hygiene, a moral. A direcção technica. A colonia penitenciaria de Meltray. Contrastes. Se é dado aos vadios rehabilitarem se fazendo-se dezembargadores ou coroneis—As curiosidades infantis da Republica Portugueza—Duas palavras aos leitores das Farpas, folheto brazileiro. O commercio, a instrucção e a industria no Brazil: testemunho insuspeito e juizo final. O sr. Mathias de Carvalho e a actriz Emilia Adelaide. A America e a rainha Fulvia, a lingua de Cicero e a nossa.—O alto dandysmo. As ultimas corridas no Campo Grande. O Sport e o Lagoia. Perfil do high-life. Os srs. De Lagrange, De Mouchy, Rothschild, Dudley Stuart. João Russo e Chico Perfeito. Hurrah! pelas tipoias vencedoras—Representação da comedia Magdalena. Os caracteres, os costumes, a peça. Conselhos amigaveis ás burguezas honestas.—Um anjo catholico e uma jovem deusa da Razão, typos da litteratura e da moda.—O leilão do espolio de sua magestade imperial.
O sr. Alexandre Herculano acaba de publicar sob o titulo de Opusculos um livro em que, além de uma refutação erudictamente argumentada e inedita da portaria que suspendeu as conferencias democraticas do Casino Lisbonense, se encontram apenas reedições de algumas antigas obras do illustre escriptor.
Reapparecendo assim na publicidade, reentrando na lucta das idéas novas com os velhos engenhos de guerra despendurados dos arsenaes de 1836 ou 1843, sua excellencia lembra-nos demasiadamente o antiquario que sáe a combater forças vivas á frente das naturezas mortas do seu museu, formando em batalha contra os entes animados da creação os jacarés empalhados e os monstros em espirito de vinho da sua galeria curiosa.
Os discursos d'estas paginas antigas, a que sobejam por um lado os accessorios artificiaes da rhetorica e a que faltam por outro lado, com as opportunidades do momento em que foram concebidas, as condições de uma existencia necessaria e real, fazem-nos o effeito de armaduras primorosamente cinzeladas, mas suspensas em ripes de pinho, finos capacetes de viseiras caladas sobre caraças de papelão com verniz de cera côr de rosa e olhos de vidro.
E causa-nos pena isto: que tantos apparatos de força e tão solidos instrumentos de guerra se prestem a desabar, com o estampido ridiculo dos louceiros que se quebram nas velhas farças, aos golpes de stick do primeiro irreverente que passe trazendo na cabeça as exaltações de dois dedos de Proudhon e de um copo de Champagne!
Serão injustos depois os que bradarem contra a decadencia, contra a corrupção, contra a irreligiosidade do seculo com o fundamento de que, n'estes contactos das antigas armas consistentes e das novas modas futeis, é o espesso arnez de Carlos Magno o que rende e a fina veste Bênoiton a que triumpha.
Ai! perdoae-nos ... Nós preferimos ás impenetraveis armaduras dos vossos gigantes, que não servem hoje a ninguem e que não trazem ninguem dentro, a simples flanella vulgar, talhada por Pool para as fórmas exiguas dos macacos sabios da geração nova, dentro da qual flanella todavia se abotoam homens, pequenos e frageis, mas emfim mais ou menos vivos, graças ás capsulas ferruginosas e ao Rob Lafecteur, podendo impunemente, perante os minotauros de cartão, n'um rasgo de cancan, chegar-lhes com o bico do pé á ponta do nariz.
Ao passo que, sobre estes fracos mortaes, que ainda não estoiraram de todo nos galopes da vida, as effigies dos antigos semi-deuses, inoffensivos e inuteis como estatuas de louça branca—na attitude classica dos Abrahões de jardim—suspendem os seus alphanges, como poleiros aereos, cuja immobilidade tem convidado ao somno quarenta gerações de pardaes!
Aqui temos nós, por exemplo, A voz do propheta, cem paginas sybilinas, em estylo emphatico, allegorico, confuso, tremendo.
É uma especie de Dies irae—de salão.
Cada periodo ronca lugubremente como um estertor de moribundo, imitado n'um figle.
Em cada phrase ha um vacuo premeditado que lembra a orbita sem olho da caveira de um cyclope.
A locução, pintada como uma actriz vestida do branco, com os cabellos desgrenhados, que se predispoz ao espelho para uma scena de delírio, tem tons cadavericos, produzidos por grossos riscos pretos sobre gesso esverdinhado e branco: ella passa mysteriosa e terrivel; não se sabe do onde vem nem para onde vae, nem quem busca, nem o que pretende—ella, desvairada, tambem o não sabe!—mas pisa o tablado a largos compassos tectricos, brandindo um punhal, olhos fixos e dedo descarnado e livido apontando o espaço. A orchestra, a golpes taciturnos e tremidos de rebeção, imita os rumores das tempestades. E os espectadores angustiados, presentindo que alguma coisa pavorosamente tragica vae occorrer, desdobram os seus lenços nas mãos abertas, aprontando-se para acolher aquella porção de sensibilidade oppressa de que a imperfeita natureza humana se desencarrega—ai de nós!—pelo nariz....
O monologo porém termina; está volvida a ultima pagina da prosa melodramatica do sr. Herculano; elle, o propheta, principiou estas palavras:
«O espirito de Deus passou pelo meu espirito, e disse-me: vae, e faze resoar nos ouvidos das turbas palavras de terror e de verdade. E eu obedecerei ao meu Deus no meio dos punhaes de assassinos ...»
E conclue assim:
«N'este momento a visão desappareceu, e achei-me banhado em suor frio e repassado de amargura. E por impossivel tinha que tão negro futuro houvesse nunca de verificar-se: mas subito ouvi muitas vozes que diziam:—Guerra á religião do Christo! Então cri na visão que o Senhor me enviava, e apagou-se-me na alma o ultimo clarão de esperança.»
Ao terminarem a leitura, as turbas obscuras e humildes a quem o auctor se dirigira, e das quaes nós temos a honra de fazer parte, perguntam contristadas e attonitas:
Mas, bom Deus, poder-se-ha saber por que altos motivos está s.ex.ª o propheta banhado em suor frio e repassado de amargura?!
Ser-nos-ha dado apreciar quaes as razões por que o digno socio de merito de Jeremias e da Academia Real das Sciencias, apagou dentro da sua alma o ultimo clarão de esperança?
Sim! N'esta recente edição do seu opusculo, s.ex.ª o anjo, incumbido directamente por Deus de fazer resoar palavras de terror, explica satisfatoriamente o phenomeno pathologico da desesperança em sua alma e dos suores frios em seu corpo, por via de algumas laudas de introducção, destinadas a prehencher cabalmente os votos d'aquelles que tinham promettido aos deuses um propheta de cêra, se os deuses lhes consentissem penetrar o sentido da Voz do propheta.
A explicação d'essa voz que diz ao povo «que a sua hora extrema vae soar, que elle é maldito, que elle é empestado, que é pustulento e pôdre, vil e malvado, escoria, immundice e relé»,—a explicação da voz que diz e rediz isto em 118 paginas de uma prophecia de exterminio e de morte para o povo e para o paiz, é que:
A revolução de setembro triumphava com a democracia, o sr. Alexandre Herculano não acreditava na democracia, tinha-a pela «declamação interessada de engenhos superficiaes que pretendem jungir ao carro das proprias ambições as turbas más, porque ignorantes, odientas, porque invejosas, espoliadoras, porque miseraveis;» e Elle, o propheta, Elle, o anjo exterminador, Elle, o enviado de Deus ás gerações ... Elle era—cartista!
Se o sr. Herculano escreveu isto, que parece uma blasphemia pavorosa «O espirito de Deus passou pelo meu espirito e disse-me: vae, e faze, resoar nos ouvidos das turbas palavras de terror ...»—é que naturalmente Deus era tambem—cartista.
E assim rompe um livro, tendo por base a mancommunação de um Deus e de um propheta, conchavados para espancarem patuleas a cacetadas de biblia e de rhetorica!
Permitta-se-nos dirigir uma pequena pergunta humilde ao grande historiador:
Se s.ex.ª nos affirma que o espirito de Deus o tocou e lhe disse: Vae, o que acreditamos sob a palavra de s.ex.ª, como ousa s.ex.ª negar que o mesmo Deus tivesse egualmente apparecido a Affonso Henriques e lhe tivesse dito—Vence? Porque, em fim, a verdade é que o milagre que precedeu a victoria de Ourique é exactamente o mesmo que inspirou a Voz do propheta. Ao grande escriptor assim como ao grande rei Deus appareceu e fallou. Se um d'estes cavalheiros nega a visão de outro, não poderá a critica julgal-os suspeitos como officiaes do mesmo officio? Não será plausivel que cada um d'estes Joões Marias Farinas dos divinos cheiros queira para si o privilegio de ser o unico João Maria Farina, authentico e legitimo?
Mais encerra o sobredito livro dos Opusculos:
Primeiro—Uma «consulta apresentada á Academia Real das Sciencias ácerca do estado dos archivos ecclesiasticos do reino e do direito do governo em relação aos documentos ainda n'elles existentes»—questão que se acha resolvida desde 1857. Tem essa actualidade.
Segundo—«Os egressos, petição humilissima a favor de uma classe desgraçada.» Mais: «As freiras de Lorvão», especie de petição em favor da parte feminina da sobredita classe, acto philantropico que declarado hoje, quarenta annos depois da extincção das ordens religiosas, nos obriga a meditar nas razões por que o auctor não aproveitaria este ensejo para peticionar egualmente em favor das familias dos companheiros de Pharaó, victimas da terrivel catastrophe da passagem do Mar Vermelho.
Terceiro—«Theatro, moral, censura», discurso em que o auctor propõe que a censura dramatica não seja eliminada mas sim substituida por «uma lei para o theatro em harmonia com a lei politica da nação»—especie de carta constitucional da monarchia da rua dos Condes e do Salitre. O sr. Herculano quer um jurado especial encarregado de defender a moralidade, punindo com multas pecuniarias e com cadeia todo o delicto dramatico em offensa da moral,—o que nos parece ser, sem a minima duvida, o restabelecimento puro da santissima inquisição, ou a renovação dos jogos da eloquencia, de Caligula, em que o vencido era lançado no Rhodano, sempre que não preferia apagar o seu discurso com a lingua.
Quarto e ultimo—Uma advertencia preliminar, na qual o autor explica que compoz a sua obra com o fim de—matar o tédio das longas noites de inverno na solidão da sua granja. D'onde somos levados a deduzir que os fins da arte para o illustre solitario de Valle de Lobos—no inverno pelo menos—são simples parceiros de jogo, questão de passar tempo: para s.ex.ª a antiga coisa sagrada de Platão substitue—a bisca sueca. O fim moral retira-se, havendo uma perna para o voltarete.
E nada mais se contém no ultimo livro recentemente publicado por aquelle que justamente se considera o primeiro dos escriptores portuguezes!
Esse livro que se não baseia em nenhuma das necessidades da sciencia, da razão ou do sentimento do mundo moderno, caminhando no ar como as pinturas chinezas em que não ha solo, é uma pessima obra. Vem de alto, firma-a um nome prestigioso, está escripta no estylo relimado a que Michelet chama a indigente correcção de Malherbe: tem portanto as condições da voga; é um exemplo funesto. Porque esse livro não instrue, nem ensina, nem esclarece, nem consola ninguem.
Referindo-se ás conferencias do Casino repisa a velha questão catholica e esquiva-se á apreciação da theoria artistica, economica e scientifica da revolução, que essas conferencias propagavam.
Na politica é auctoritario, conservador intransigente. Impõe-nos a carta, como Carlos IX impunha a missa a Henrique de Navarra e ao jovem Condé, depois da Saint-Barthelemy. Nega a revolução democratica com um desdem banal, como quem ignora ou finge ignorar que toda a revolução que se oppõe á corrupção e á miseria, filhas das instituições, não é uma theoria contingente mas sim uma lei fatal. Estava n'este ponto bem mais adiantado, do que s.exª nos quer mostrar que se acha, aquelle velho ministro francez que ha mais de cem annos exclamava: «La légalité nous tue».
Na economia social, sem uma palavra para algum dos principios que constituem o systema de credito e a organisação industrial, preconisa as caixas economicas, escondendo que a questão de coarctar a miseria não é de estabelecer o mealheiro mas sim de crear o trabalho.
Na arte quer a manifestação do pensamento adstricta ás sentenças de um jury tirado da academia das sciencias, da escola polytechnica e de não sei que outros tribunaes regularisadores do direito da palavra, justificando assim aquella definição do sublime dada por Galiani: «a arte de dizer as coisas sem ir para a cadeia»; quando a verdade n'este ponto é que nada ha que mais avilte a intelligencia e o caracter do que o exercicio hypocrita, imposto pela legislação repressiva, de encobrir o pensamento ou de disfarçar a verdade.
No momento actual, quando a Europa inteira, grande martyr, se agita na polemica e no sangue, procurando nobremente e santamente resolver para a justiça o problema do destino dos povos, reconhecendo com Proudhon que a negação da sociedade feita em 93 implíca uma affirmação subsequente que ainda não está feita, e que, depois de desorganisados os privilegios, nos é hoje preciso organisar sólidamente e firmemente o trabalho na paz, no bem estar e na virtude,—n'este momento supremo, um dos mais graves em que se tem achado a humanidade, quando mais do que nunca se precisa para a verdade do concurso de todos os espiritos elevados e rectos—, um philosopho, um pensador educado nos severos estudos historicos, o mais auctorisado dos nossos escriptores, entretendo-se no seu gabinete a reconstituir antigos opusculos banaes e extinctos para passar o inverno, lembra um pouco o imperador Theodosio entregue ás especulações theologicas, e compondo symbolos no gyneceu, quando Genserico estava em Cartago e Attila nas margens do Danubio.
Diz-nos o sr. Alexandre Herculano que está velho, desilludido, desalentado ...
D'onde lhe veiu tanta amargura e tão singular abatimento, que nem os annos nem os desgostos justificam?
Comprehende-se a tristeza d'aquelles que, consagrando a sua vida a uma grande obra, absorvendo-se n'ella, pertencendo-lhe integralmente, se acham repentinamente desacompanhados e sós ao verem a obra terminada. Michelet consumiu quarenta annos a escrever a historia da sua patria. «Pois bem, minha grande França, exclama elle, se foi preciso para achar a tua vida que um homem se tivesse entregado e passasse e repassasse tantas vezes o rio dos mortos, esse homem consola-se, agradece-te ainda, e o seu maior pesar é ter emfim do deixar-te.» Gibbon, tão frio e tão secco, não larga o seu livro sem uma commoção profundamente melancolica: «Pensei que acabava de despedirme do antigo e agradavel companheiro da minha vida.» Oh! sim, comprehende-se bem essa magoa profunda que absorve o homem ao cabo da missão a que elle se dera no mundo! Comprehende-se Alexandre morrendo de tristesa depois de conquistar a Asia, e Alarico depois de tomar Roma; comprehende-se Godofredo de Bulhões, com a sua herculea natureza que resistiu inalteravel ás fomes, ás sedes, ás pestes, ás guerras, a todas as tragedias da cruzada, sossobrando finalmente ao ter de embainhar a espada, e morrendo—por ter chegado!
Mas não se comprehende definhando de tristesa em Valle de Lobos o sr. Herculano, porque elle não venceu, não conquistou, não concluiu a sua obra: abandonou-a apenas, retirou-se, foi-se embora.
Como antigo litterato, historiador, romancista e poeta, s.ex.ª não se póde contristar. Deve consolal-o a vida rural, que elegeu em substituição da vida artistica.
Se o não satisfaz a solução que deu ao seu destino, se no remanso da sua granja, na abundancia, no saudavel exercicio da lavoura, na familia, na saude, na paz, na consideração e no respeito publico, s.ex.ª se sente effectivamente velho, desalentado e triste, creia s.ex.ª então que não é o litterato que ainda soffre, é o agricultor que já começa a padecer. A padecer o que? Esta molestia:—a nostalgia da arte.
A tristeza não é nunca um estado de espirito normal no organismo de um homem são. A tristeza é um symptoma de enfermidade physica ou moral. A tristeza habitual quando se não cura com as pílulas de Radway e com as aguas mineraes, cura-se com uma acção boa. Se com isso não passa, é então uma lesão profunda e mortal.
O homem que durante vinte annos viveu no trabalho intellectual, na applicação, no estudo, na poderosa contensão da arte, escrevendo, publicando, dilatando-se, repartindo-se pelos seus semelhantes, amassando e forneando para elles o divino pão da verdade, nunca mais póde sem perigo retirar-se d'esse meio.
Nos serios trabalhos do espirito consagrados a uma idéa elevada ha uma luz vivificante e serena que não sómente allumia o operario, penetra-o tambem, alimenta-o, conforta-o. A sua obra não é inteiramente d'elle, elle pertence tambem á sua obra. Elle cria-a, torna-a viva, poderosa, immortal á força de amor, de verdade e de justiça; ella, generosa e grata, educa-o, aconselha-o, consola-o, fortifica-o. Os dias passam, tenebrosos ou limpidos, serenos ou revoltos no mundo externo; na immutavel região da arte ha a pacificação permanente. Embebido na doce mocidade eterna da sua obra, o verdadeiro artista, perfeitamente fiel ao trabalho, não sabe nunca se envelhece ou não.
Veja o sr. Herculano aquelles que deixou nas lettras, ha alguns annos, muito mais edosos que elle! Como ainda hoje são novos!
Quem guia, quem governa, quem encaminha hoje no mundo a grande marcha das idéas modernas a que o illustre agricultor de Santarem se oppõe, no seu recente livro de torna-viagem, com epigrammas cacheticos e vetustos? Veja-os s.ex.ª, escute-os, attenda-os: como teem os labios vermelhos, a voz clara e metallica, os cabellos loiros, os musculos fortes, o sangue vermelho, salgado e alegre! Reconhece-os?...
São Victor Hugo, Michelet, Quinet, Thiers, Raspail e Karl Marx.
Companheiros de infancia de s.ex.ª eil-os ahi ainda, na mais perfumada e viçosa flor da edade, entre os setenta e os noventa annos!
Quando uma vez se habitou o paiz luminoso da sciencia e da arte é impossivel o expatriamento para os frigidos climas sombrios dos interesses praticos e positivos. A mão que por vinte annos manejou uma penna, não poderá jámais ageitar-se á rabiça de um arado. Sequestrar-se á sciencia é roubar a sociedade. Para onde quer que te recolhas com a porção de luz e de verdade que tinhas no teu cerebro e que subtrahiste do thesouro commum da humanidade, para onde quer que te escondas, ó triste foragido, irá sempre comtigo, pungindo-te na parte mais nobre do teu ser não contaminada pelo egoismo, o remorso de uma acção má. Debalde procurarás justificar o plano da tua deserção com os desgostos que atravessaram a tua carreira. Desgostos, tu! o filho mimoso da tua patria! a unica gloria official da litteratura do teu paiz! tu sempre lido, sempre gloriado, sempre retribuido! Oh! como se rirão dos teus pretendidos desgostos todos aquelles que tiveram no mundo uma idéa, que se lhe consagraram, que viveram e que morreram por ella!
Pobre homem sem fé! que pensarão do teu martyriosinho de album, da tua pequenina cruz de berloque, aquelles que realmente tiveram um martyrio e uma cruz, onde padeceram e morreram, resignados e austeros?!... Spinoza, que muitas vezes comeu hervas por não ter pão; Campanella preso vinte e sete annos, sendo cinco vezes julgado e soffrendo sete vezes a tortura; João Jacques dormindo n'um fosso por não ter outro asylo; Diderot desmaiando de fome; Proudhon, vivendo com um tostão por dia, caminhando oitenta leguas a pé para ir ver o seu amigo, só, odeado, perseguido, caminhando sem meias, com os pés nús embrulhados em palha dentro dos tamancos das suas montanhas do Jura!
Se o sr. Herculano, agricultor, está triste, volte a ser litterato, restitua-se á sua patria, á sua geração e ao seu tempo.
Se definitivamente não quer ser mais um escriptor, poupe então a nossa sensibilidade ás repetições da historia dos seus desgostos. Como simples proprietario rural os jubilos ou as melancolias do sr. Herculano são absolutamente indifferentes á humanidade.
Quando Quinet publicou a «Historia» das suas idéas, procurando dar sob uma fórma individual a historia moral da geração de que fez parte, á similhança do que parece ser intentado agora pelo sr. Herculano com a publicação dos seus opusculos, Quinet não obedecia ao desejo de servir um editor ou de entreter um inverno; Quinet, colligindo as suas idéas e recompondo o seu passado, arrancava da sua obra uma grande idéa, bella, radiante e fecunda: a coherencia, illuminando um caracter, e fazendo d'elle uma força moral.
Quinet não vinha entristecer-nos com a sua melancolia nem contaminar-nos com o seu desalento.
Se elle reconstituia e publicava os dispersos fragmentos obscuros de antigos trabalhos era exactamente porque d'esse agrupamento e d'essa reunião de idéas espalhadas pelas differentes edades e pelas diversas phases da sua vida sobresahia como um nobre exemplo o luminoso contentamento de uma alma perseverante e forte.
Decepções, chimeras, enganos, o que vem a ser essas coisas? ignoro-o; ahi está a minha vida, dizia cele. O que uma vez amei, em cada dia me pareceu mais digno do amor; de dia para dia adiei a justiça mais santa, a liberdade mais bella, a palavra mais sagrada, a arte mais real, a realidade mais artista, a poesia mais verdadeira, a verdade mais poetica, a natureza mais divina, o divino mais natural. E se me sobrasse tempo para ir mais ao fundo d'aquillo que ignoro, sinto que as coisas que ainda me espantam acabariam por desapparecer. Onde a inquietação se apoderara de mim, o enygma se decifraria por si mesmo. Eu repousaria na luz.
São os homens que podem extrahir do seu passado a lição que encerram essas formosas palavras os que teem direito de vir fallar-nos do seu passado. Os que não teem como lembrança dos seus dias decorridos senão o cansaço, o desalento, a indifferença o o desdem, podem fazer um serviço maior do que escrevel-o; é calal-o.
Concluindo não pediremos ao sr. Herculano que nos perdôe a ousada franqueza com que lhe fallamos. S.ex.ª sabe que a unica irreverencia criminosa diante de urna verdade que se possue consiste unicamente em esconder essa verdade. Que ella provenha do mais obscuro dos miseraveis ou da mais alta e mais competente das actividades, que importa? É preciso abate-a ou deixal-a passar. S.ex.ª conhece o dialogo asiatico de Salomão e de Marculf. Salomão é o grande rei, dotado de todos os dons, bello, omnipotente e sabio; Marculf é um villão-ruim, um rustico insolente e bestial. No emtanto as subtilezas populares do bobo esfarrapado embaraçam e humilham no seu throno o poderoso e sabio rei. Isto prova que a magnanima auctoridade e a sacrosanta lei escripta podem não perder tudo em escutar um simples, roto e despresivel raciocinio plebeu.
Bem sabemos que não somos nós que temos as finas subtilezas ironicas do bobo Marculf. Mas egualmente é certo que por outro lado o sr. Herculano tambem não é inteiramente o filho de David, rei de Israel, o que escreveu o Cantico dos canticos e edificou o templo.
Ao passo que o sr. Alexandre Herculano, historiador, publica opusculos, o sr. João Felix Pereira, opusculista, publica historia.—É a logica do absurdo.
A recente obra de Felix é um resumo de historia romana traduzido do latim. As primeiras linhas d'esta versão bastam para dar aos leitores uma, idéa da obra.
O imperio romano, menor do que o qual em seo principio, ou maior por seo augmento em todo o mundo, de quase nenhum a memoria humana pode recordar-se, tem principio de Romulo; o qual filho de Rhea Silvia, virgem vestal, e, quanto se julgou, de Marte, foi dado á luz com seo ermão Remo, d'um só parto. Elle como andasse roubando entre pastores, chegando á edade de dezoito annos, fundou uma pequena cidade no monte Palatino ...
Tal é Eutropio—traduzido para Felix. Não faltaria agora senão uma coisa: traduzil-o de Felix para Portuguez—se por ventura houvesse alguem no mundo que fosse capaz de advinhar perante a lingua de Felix, qual a grammatica com que se rege Felix, medico, engenheiro civil, agronomo, e auctor de opusculos para instrucção da mocidade!
Não, francamente, ó Felix, vós, que tendes tantos officios—medico, engenheiro civil e agronomo—vós, que sois na sciencia o mesmo que são na musica os homens dos sete instrumentos, que fazem uma orchestra batendo com todas as partes do corpo, vós que egualmente sois medico com a bocca do estomago, engenheiro civil com os cotovellos, agronomo com o nariz e escriptor publico com os calcanhares, porque não deixaes vós de ser, pelo menos, um preceptor da infancia, um escriptor das escolas?!...
Em primeiro logar isso descançaria um pouco o vosso corpo, ó habilidoso João, ó feliz Felix.
Em segundo logar pouparieis á infancia o desgosto de desaprender a sua lingoa lendo nas aulas os vossos escriptos, os quaes a benemerita Junta Consultiva da Instrucção Publica não deixa nunca de approvar, servindo assim na primeira communhão dos que estudam, em vez das sagradas particulas da sciencia, os estercos nauseabundos e venenosos das vossas equarissages litterarias.
A verdade, encyclopedico Felix, é que vós escreveis muito peior do que fallam os botucudos do rio Mucury e os Pelles Vermelhas, no interior dos sertões.
A verdade é que ninguem vos entende.
Se nós houvessemos de ir estudar os rudimentos da historia romana prefeririamos ao trabalho de interpretar o vosso compendio ir directamente estudar a geographia antiga, a ethnologia, a geologia, a linguistica, a archeologia, todas as primitivas fontes da historia; ser-nos-ia mais facil, mais rudimentar, do que analysar e reduzir á grammatica qualquer dos vossos periodos, ir á Asia Menor estudar as epigraphes funerarias sobre as ruinas do templo de Herodes Atticus, interpretar e comparar os textos da escripta hieroglyphica, hierotica e demotica, os documentos originaes bysantinos e orientaes, e as inscripções babylonicas e assyrias gravadas nas estatuas, nos baixo-relevos, nos cylindros e nos amuletos ... Tudo isso, ó João, antes, mil vezes antes, do que procurar entender-vos!
Se porém o nosso conselho vos não apraz, se quereis absolutamente continuar a escrever compendios, em vez de seguirdes outro officio, não nos afflijaes pelo menos, continuando a declarar-nos em cada uma de vossas obras que continuaes sempre a ser medico, agronomo e engenheiro civil! Se tudo isso vos não serve para ganhardes honradamente a vossa vida sem vergonhas da grammatica dos vossos paes e do senso commum dos vossos avós, então ponde unicamente nos vossos livros:
POR
JOÃO FELIX
BIMANE DA ORDEM DOS PRIMATAS
SEGUNDO DARWIN E LAMARCK
O Tribuno Popular, folha democratica de Coimbra, referindo-se em um notavel artigo á recente viagem áquella cidade do S.M. o sr. D. Fernando, escreve estas linhas:
«N'este intervallo a sr.ª condessa de Edlla, e o sr. infante duque de Coimbra, acompanhados pelo sr. visconde do Seiçal e João José de Mello, emprehendiam um passeio notavelmente pittoresco. Dirigiram-se ao caes, entraram n'um pequeno barco, e seguiram rio acima, admirando estas formosissimas margens, então realçadas pela luz do luar, e animadas pela orchestra de mil rouxinoes que de ambas as margens pareciam advinharem os espectadores nocturnos que os escutavam.»
Poderosos ceos! Que teriam feito os rouxinoes para que se entendesse que elles tinham advinhado «os espectadores nocturnos que os escutavam?!»
Cantaram o hymno da carta? Deram vivas á real familia? Perguntaram por Melicio?...
Por Deus! que o Tribuno Popular nol-o diga! Queremos pedir para o peito d'esses passarinhos a commenda de S. Thiago.
Emquanto aos srs. viscondes do Seiçal e João José de Mello, estamos certos de que não deixaram ficar a côrte endividada com a patriotica manifestação dos rouxinoes do Choupal. Sim, ss.ex.'as seguramente responderam aos rouxinoes, desentranhando-se por sua parte nos mais ternos pios, nos mais vigorosos gorgeios ... Oh! nós conhecemos a fidalga bizarria de ss.ex.'as, Pela parte que nos toca não podemos deixar tambem de mandar um garganteado reconhecido ás avesinhas do Mondego. Ora pois: có, có ró, có! por Lisboa agradecida.
Sempre que em cada anno se celebra na cadeia do Limoeiro a ceremonia da communhão aos presos, o senhor procurador regio convida a imprensa a assistir a essa solemnidade, e a imprensa publica no dia immediato que a cadeia está no maior aceio e que o senhor procurador regio é digno dos maiores elogios. Porque? Porque commungaram os presos.
Ha dias lemos que a casa de detenção da comarca de Lisboa estabelecida no antigo convento das Monicas estava no dito «maior aceio» e que o mesmo procurador regio era digno dos referidos «maiores elogios.» Razão: Tinham commungado os presos.
Ora é bom que o publico saiba de quando em quando o que são as prisões portuguezas—quando os presos não commungam.
Nós visitámos a casa de detenção—antes da oitava da Paschoa. Eis o que vimos:
Um predio frio, humido, abafado, sem ar e sem luz, espessas paredes e pequenas janellas, a clausura mais estreita, mais escura, mais humilde. Era no inverno. As paredes rebocadas de novo tinham grandes manchas humidas, esverdeadas. O sol não penetrava em parte alguma do edificio. Uma impressão de bolor e um ar em que se sentiam, resfriadas e fixas, as exhalações peculiares da miseria, a atmosphera das enxovias deshabitadas, as reminiscencias olphaticas dos cheiros emanados das vasilhas de lata em que houve caldo e dos vestidos quentes dos mendigos que apanharam chuva.
Era um domingo. Os rapazes detidos no estabelecimento, na promiscuidade de todas as edades desde os seis annos até aos dezeseis, estavam juntos em um estreito pateo interior, na sombra—porque tambem ali não chegava o sol—frios, com as mãos nos bolsos, encostados aos muros, sentados ou deitados no chão. Ninguem os vigiava. Elles porém estavam quietos—como um rebanho no curral. Alguns tinham escrophulas. Outros tinham os olhos doentes e os cantos da bocca feridos. Eram todos magros, pallidos, anemicos, tristes.
Perguntamos-lhes por que esperavam. Não esperavam nada. Estavam ali. Que faziam? Coisa nenhuma. Porque não cultivavam a quinta annexa ao edificio, metade da qual estava cheia de hervas inuteis? Porque os não deixavam: havia um hortelão. Porque não iam pelo menos passeiar na quinta? Porque era prohibido. Não havia uma gymnastica? Não a havia. Não havia de todos esses regimentos da guarnição de Lisboa um musico que aos domingos lhes ensinasse rudimentos de musica para que tivessem uma charanga? Não havia. Hão havia, pelo menos, um cabo de esquadra que os fizesse marchar ao som de um tambor e lhes ensinasse o exercicio militar? Não havia. Não havia, emfim, terra que remover, pedra que acarretar, lenha que partir, um pau sequer espetado no chão para treparem n'elle, uma escada de mão posta ali para subirem e descerem por ella, uma occasião, um motivo, um pretexto, uma desculpa qualquer para que esses infelizes pequenos se bolissem, se movessem, tivessem alguma distracção, fizessem algum exercicio? Nada, absolutamente nada. As lages do pateo interior da casa, pouco menos estreito que um saguão, coberto de sombra e de frio e sobre as lages os pequenos. Era assim que passavam os domingos.
Nos dias de semana trabalham em officinas terreas, sem soalho, extremamente humidas, no mesmo pateo em que jazem nos domingos. Uns são alfaiates, outros sapateiros, outros esparteiros. Ha sobre isto uma escola de instrucção primaria. Não aprendem mais nada. Nada mais se lhes ensina.
Este instituto tem uma missão especialmente moralisadora. Não ensina moral.
Tem por fim punir e evitar as contravenções da lei. Não ensina a lei.
Tem a obrigação restricta da catechese. Não ha na prisão um padre, um capellão, um perceptor.
Aos domingos um sacerdote diz missa e retira-se. Por essa razão entre as attribuições dos chaveiros lemos esta disposição: «Obrigará os presos a benzerem-se.»
Teem duas refeições por dia. Ao almoço arroz e feijões. Ao jantar feijões e arroz.
Carne fresca ou salgada, de boi, de carneiro ou de porco nunca comem. Nunca bebem vinho.
O rancho é fornecido pela cosinha do Limoeiro. Isto precisa de ser dito duas vezes. O rancho é fornecido pela cosinha do Limoeiro. É o menu da enxovia. Se é mau na cadeia, imagine-se o que poderá ser na casa de correcção!
Dormem, aos grupos de oito, em camaratas, onde ha, em cada uma, oito camas e uma latrina.
Na camarata não ha luz. A porta é fechada por fora á chave.
Não ha vigilancia alguma durante todo o espaço de tempo que decorre dentro d'aquellas podridões, desde que anoitece até que rompe o sol. Apenas, fora do corredor que dá passagem para os dormitorios, dorme um guarda no seu quarto. Este guarda teve a bondade de nos dizer que, sempre que havia desordens nas camaratas, elle intervinha com o rigor da sua auctoridade por isso que, concluiu elle, quem dá o pão dá o ensino.
Cremos piamente que este guarda está convencido de que quem dá o pão em Portugal á infancia criminosa é elle. O ensino pelo menos é exclusivo de sua mercê.
A direcção geral da prisão está confiada a um homem que não sabemos quem é, nem quem foi, nem quem poderá vir a ser. O que sabemos, e isso nos basta, é que esse director ganha—cinco tostões por dia!
Eis a physionomia da casa de detenção da comarca de Lisboa, contornada a traços mathematicos, sem commentarios, sem emphase, sem exclamações doloridas ou sentimentaes, nenhum toque artificial de luz ou de sombra que possa alterar a exacção rectilinea do quadro!
Para isto não ha pedir reorganisação ou reforma. Não se trata de uma velha instituição apodrecida pelos annos. É uma creação nova, que tem apenas alguns mezes de existencia. Dá a medida exacta das forças de sciencia, de civilisação e de moral que o paiz se acha officialmente habilitado para dispender, no dia de hoje, em favor do progresso. Não se póde por em quanto pedir mais nada ao paiz! Eis a sua mais recente prova de capacidade! Eis tudo quanto elle sabe do direito criminal, da hygiene physica e moral das prisões, das modernas colonias penitenciarias, da educação intellectual, da educação moral, da educação religiosa, dos deveres phylantropicos do Estado, da missão paternal do poder para com os orphãos, da organisação do trabalho infantil, de todas as questões finalmente ligadas á creação de um estabelecimento penal da ordem d'aquelle a que nos referimos.
O povo, tranquillo e satisfeito, lê as folhas baratas cheias de elogios estolidos ás mais viciadas e perniciosas instituições do paiz, e julga-se fielmente levado para a mystica terra da promissão pelos homens que o governam e pelos homens que o instruem. De todo o tempo esteve na tendencia popular esta profunda fé na simplicidade ignorante. Os primeiros cruzados que foram á Terra Santa queriam ter por guias uma cabra e um pato; os Sabinos baixaram das suas montanhas conduzidos por um picanço; Cadmus foi á Beotia levado por uma vacca. Em Portugal João Felix, no livro; Melicio, no jornal; e o sr. procurador regio na casa das Monicas, dirigem os espiritos e guiam as consciencias para o ideal. A opinião obedece-lhes.
Vemos em uma conta official que nas obras feitas no convento das Monicas para adaptar o edificio ao fim a que elle hoje se destina, se gastaram seis contos de réis. Junte-se esta quantia á de quinze contos, preço minimo porque poderia ser vendido o convento e quinta annexa e ter-se-ha mais que o sufficiente para fundar em qualquer baldio da Extremadura ou do Alemtejo uma exemplar colonia agricola penitenciaria.
Seis contos de réis, só em obras n'um edificio torto, absolutamente impossivel de adaptação ás necessidades do trabalho, da educação e da hygiene!...
Mas é um desperdicio, que revela a ignorancia mais crassa em similhantes assumptos. Na magnifica colonia agricola de Mettray, perto de Tours, em França, as creanças presas estão divididas por edades e repartidas por casas inteiramente separadas e independentes. Cada uma d'estas casas, de 12 metros sobre 6,66, consta de um pavimento terreo e de dois andares. Na sala do rez do chão está estabelecida a officina. Em cada um dos dois andares ha uma sala, que serve successivamente de dormitorio, de refeitorio, de sala de estudo, de sala de recreação nos dias de chuva, e em caso de necessidade de escola. Dois travessões presos ao muro por uma dobradiça em uma das suas extremidades estão levantados ao longo da parede dos dois lados da porta de entrada. Quer-se preparar o refeitorio, a classe, a sala de estudo? Descem-se estes dois travessões e suspendem-se no muro fronteiro, ficando assim firmes, na altura de uma mesa, aos dois lados da porta, e a todo o comprimento da sala; em seguida descem-se das paredes lateraes pranchas de madeira fixadas n'ellas por meio de dobradiças como os travessões; estas pranchas presas ao muro por um lado prendem-se pelo lado opposto ao travessão por meio de uma cavilha; e estão promptas as mesas. Os bancos levam-se da officina. Se se quer armar o dormitorio, em vez das pranchas com que se formam as mezas, descem-se dos muros as macas em que se fazem as camas. Ao fundo de cada um d'estes dormitorios ha um quarto aberto para a sala em que dorme o chefe da secção, secundado pelo contra-mestre. Os contra-mestres estão alternadamente de quarto no dormitorio, de modo que durante a noite passeia constantemente um guarda no espaço que medeia entre os dois travessões de que fallámos.
Cada um d'estes pequenos predios contendo quarenta e tres pessoas, custou, incluida toda a mobilia, um relogio, toda a roupa de camas, e toda a loiça de lavatorio e limpeza, 8:300 francos, isto é: 1:494$000 réis.
Tres dos predios descriptos seriam muito mais que o sufficiente para recolher todos os presos actualmente existentes na casa de detenção das Monicas.
Temos portanto que em Lisboa se gastam seis contos unicamente em reparos n'um velho edificio monstruoso, quando em Tours se funda para 120 presos um estabelecimento completo, se construe um edificio modelo, provido inteiramente de louça, de roupa e de mobilia, por menos de quatro contos e quinhentos mil réis!
Em quanto ao regime e á organisação interna do estabelecimento portuguez quasi tudo o que existe é erro.
Os presos não cultivam a quinta. Deviam cultival-a. Formar-se-hiam assim hortelões e jardineiros.
Não cosinham, não tecem o estofo dos seus vestidos, não cozem o pão das suas rações, não fazem a mobilia das suas casas. Tudo isso deveriam aprender. Era facil, era economico, era moralisador, dava aos presos novas aptidões, ensinando-os a padeiros, a tec-lões e a cosinheiros,—as noções mais essenciaes á vida.
Não aprendem musica. Deviam aprendel-a. Uma charanga á frente de cem rapazes em marcha faz d'elles cem homens.
Não teem uma bomba de incendios. Deviam tel-a, deviam saber manobrar com ella. Devia-se conceder como um premio aos de melhor procedimento, levarem a bomba aos incendios, permittindo-se por este modo aos condemnados a faculdade de se rehabilitarem sacrificando a sua vida pelos seus similhantes.
Não ha uma mulher dentro da prisão. É uma enorme falta para as desgraçadas creanças de oito a doze annos. A cozinha, a lavanderia, a enfermaria, a rouparia, coisas que alli não existem senão nominalmente, deveriam organisar-se de um modo effectivo com o trabalho dos presos e sob a direcção das irmãs da caridade portuguezas, que encontrariam assim um emprego elevado e digno do seu tempo.
Só as mulheres sabem aconselhar as creanças, convencel-as da virtude; e cumprir esta missão é mais bello e é mais meritorio perante a sociedade e perante Deus do que mendigar por entre velhas fidalgas devotas, embiocadas e inuteis, o pão de cada dia.
Os presos isolados no carcere celular estão na mais absoluta ociosidade fechados n'um quarto escuro. Não ha nada que mais desmoralise, que mais definhe e que mais corrompa. N'estes casos os rapazes deveriam ser obrigados a rachar lenha ou a britar pedra—os exercicios mais saudaveis para os musculos de quem está parado.
Finalmente a casa de detenção das Monicas não é sómente a negação do que devia ser, é mais do que isso, é a affirmação contradictoria de todos os principios oppostos aos principios verdadeiros.
Tal qual está constituido este estabelecimento, temol-o por um foco de apodrecimentos humanos, um seminario de vicios torpes e secretos, um curso accelerado de preparatorios infalliveis para o Limoeiro, para o hospital, ou para o cemiterio.
Uma derradeira observação:
A maior parte dos presos detidos na prisão correcional das Monicas são cumplices do crime de vadiagem.
Ora sendo aquelles presos todos menores, não tendo uma familia, não tendo um officio, não sabendo ler nem escrever, com que direito os pune por não trabalharem o Estado, que lhes não dá trabalho?
Que quer o estado que sejam esses pequenos para não serem vadios?
Quer que sejam medicos, tenentes coroneis, conselheiros do tribunal de contas, escriptores publicos, capitalistas ou banqueiros?
Vamos! respondam-nos! Estamos interrogando sob o caracter mais digno de attenção e de respeito de que se pode alguem revestir. Somos n'este momento os interpretes inviolaveis e sagrados da infancia orphã, desvalida e desamparada. Fallamos em nome de um pequeno que não quer ir para a prisão das Monicas comer os feijões frios do Limoeiro, no que está inteiramente no seu direito. É um innocente.
Todavia ninguem o chama para fazer artigos nos jornaes, ninguem o quer para commandar a Municipal, ninguem o incumbe de tratar uma molestia, de deffender uma causa, de montar uma fabrica ou de construir um navio. Nenhuma viuva rica lhe offerece a sua mão de esposa. Os agiotas quando elle passa levantam as bengalas e rangem os dentes. Não tem uma ponta de trabalho nem um bocado de pão. Finalmente é um vadio. Agora o que elle deseja saber é o seguinte:
O que é que o Estado lhe dá licença que seja desde o momento em que lhe prohibe ser o que é.
Espera-se resposta.
A Republica Portugueza, jornal de Coimbra, exproba-nos a indifferença que temos pela questão politica e pela forma do governo em Portugal, e dirige-nos as seguintes textuaes perguntas:
1.ª «A redacção das Farpas quer a resolução do problema economico, quer que se preoccupem os animos com a questão social; mas sempre quereriamos saber como isso se podia realisar, quando a formula politica é insufficiente para garantir o direito?»
2.ª «O problema social em sua maior amplitude é a realisação pratica da justiça, e sendo a fórma do governo o meio adquado á sua realisação em uma dada epoca, como poderá haver quem imagine a resolução dos principios da justiça actual em uma fórma de governo de ha dois seculos?»
Temos a honra de responder á Republica Portugueza:
1.º Aquillo que a Republica Portugueza chama a formula politica não é insufficiente em Portugal para garantir o direito que cada um tem de estudar e resolver o problema social; essa questão póde-se tratar, com todas as garantias da liberdade, nos livros, nos jornaes, nas camaras, no governo; a unica razão que obsta a que isto se faça é apenas a incapacidade intellectual ou moral dos que tinham obrigação de fazel-o. Depois de estabelecida e firmada a liberdade politica aproximadamente perfeita como ella existe em Portugal, a sociedade nada mais tem que pedir ao principio politico; a sua obrigação é organisar as suas forças industriaes e economicas e o seu systema moral para conseguir, dentro da liberdade que tem, duas coisas de que carece: riqueza e virtude. Dada a liberdade, a questão politica nada mais tem que dar ao povo; se elle pede ainda á fórma de governo o remedio da sua corrupção e da sua miseria, isso não prova senão uma triste coisa: é que o povo não está na Revolução, está apenas na inepcia.
2.º A resolução dos principios da justiça cabe em todas as formas de governo. Turgot, ministro de Luiz XVI, no tempo da monarchia feudal queria exactamente isso: a resolução dos principios da justiça. Sabe a Republica Portugueza quem foi que impediu Turgot? Foi o povo. Não somos nós que o dizemos. Proudhon, cuja auctoridade suppomos que a Republica Portugueza não terá por suspeita, exprime-se n'estes termos:
«Esse reformador rigorista, traido pelo povo, queria todavia a revolução—tomada de alto, feita sem estrepito, consumada quasi sem revolucionarios.»
Ora aqui tem a Republica Portugueza como ha quem imagine, a solução dos actuaes principios revolucionarios em uma forma de governo de ha dois seculos. Quem teve a petulancia de imaginar isso, sem a previa licença da Republica Portugueza, foi Proudhon.
Depois de nos fazer as suas perguntas, a Republica tem a bondade de nos dar os seus conselhos. As perguntas satisfizemos-lh'as. Os conselhos não lh'os acceitamos. A ingenuidade pueril das interrogativas que a folha conimbricense nos dirige, annulla a competencia das admoestações que nos faz.
O folheto brazileiro intitulado Duas palavras aos leitores das Farpas, ultimamente publicado e distribuido em Lisboa a milhares de exemplares, tem por objecto contestar por meio dos processos aliás mais urbanos e mais comedidos, a verdade dos factos que asseverámos ácerca da sociedade e da civilisação do Brazil em um artigo consagrado á emigração portugueza para aquelle imperio.
Se o escriptor brazileiro a quem temos a honra de responder tivesse conseguido o poder alliar o alto espirito de amor patriotico, de que se diz dominado, com a prudencia de discutir simplesmente o criterio das nossas conclusões e não a verdade dos factos em que ellas se baseiam, nós não teriamos duvida em estender affectuosamente o nosso silencio aos pés triumphantes d'este sympathico patriota.
Como, exactamente pelo contrario,
São as nossas illações o que no dito libello se não contesta, e é a verdade dos factos citados o que se combate, denunciando-nos como fabricadores de aleives historicos phantasiados com o fim expresso de ridicularisar o grande imperio,—o que se parece demasiadamente a nossos olhos com a denegação da nossa probidade e com a suspeita de que mentimos,
Soffrerá o auctor do folheto citado que nos permittamos fazer-lhe sentir, em algumas linhas rapidas, que as Farpas não são inteiramente uma creação poetica e phantasista.
Não, nós não temos o distincto prazer artistico de ser As fabulas de Florian, nem tão pouco os Contos de Perrault.
Examinemos a qualidade dos argumentos com que o opusculo a que nos referimos tem a bonhomia de suppôr que nos desdiz. Tomemos tres dos pontos mais importantes para a civilisação do Brazil: A producção e o commercio, a instrucção publica, o trabalho e a industria.
Emquanto á producção e ao commercio nega o auctor que o valor annual das substancias alimenticias importadas pelo Brazil seja, como nós affirmamos, equivalente ao da quarta parte da sua exportação. Para este fim dá-nos a estatistica da importação das substancias alimenticias durante os ultimos annos, attesta que ella é inferior e não equivalente á quarta parte do valor exportado; com tal fundamento accusa-nos de fabricarmos puras invenções; e depois de tres paginas de recriminações acerbas, conclue assim:
«Não quererão decerto considerar como substancias alimenticias o vinho, o chá, o café, o azeite, as bebidas espirituosas e fermentadas etc., porque essas sim talvez reunidas áquellas (peixes, carnes, farinhas, manteiga e sal) dessem essa tal quarta parte da exportação.»
Quer isto dizer:
O Brazil não tem duvida em nos convencer de tudo o que se pretenda a respeito do estado em que se acham as suas forças productivas, bem como a proporção existente entre a exportação e a importação no seu mercado—com uma simples condição—e é: que se lhe concedam alguns pontos de partido na arithmetica do seu calculo. Trata-se, por exemplo, da importação de substancias alimenticias no valor de trinta mil contos annuaes; deseja o Brazil, afim de nos convencer de que illudimos a verdade, que a dita importação seja apenas de dez mil contos ... Nada mais simples! O Brazil vae juntando successivamente as suas parcellas de substancias alimenticias importadas até chegar á prefixada somma dos dez mil contos. D'essa quantia para cima o Brazil começa a considerar as substancias alimenticias, como não sendo—substancias alimenticias.
Registrou a importação do sal, da manteiga, da farinha, dos peixes e das carnes, e achou dez mil contos; faltava-lhe, é verdade, registrar ainda o vinho, o chá, o azeite, as bebidas fermentadas, o vinagre, as fructas, os legumes etc; o Brazil porém espera que nós consideremos estas coisas como não sendo generos alimenticios. Elle pede-nos isto, espera isto de nós, e, para nos convencer de que estamos no erro mais vil e mais torpe, elle não quer outras armas! não precisa senão d'isto: que se lhe admitta que o vinho não é senão, por exemplo, simples producto de gutta-percha! o chá, o azeite, o vinagre, a cerveja ... puros tecidos de algodão! os queijos, os alhos, as cebolas, os figos, as passas ... mera perfumaria!
Pelo que respeita á instrucção publica, diz-nos que o numero dos que sabem ler não está, como nós dissemos, na proporção de 1 para 90 habitantes, mas sim na de 1 para 68. Sómente na estatistica official de que se extráe esse dado, o governo brazileiro não conta, como homens que habitam o Brazil, os escravos, cujo numero pode todavia ser calculado em cerca de tres milhões, não diremos de habitantes, mas, emfim, de cabeças. O auctor accrescenta ainda, para nos convencer dos progressos da instrucção no Brazil que as escolas de instrucção primaria que ali existem são na proporção de—1 para 3:021 habitantes livres; além do que ha ainda no Rio de Janeiro varias corporações scientificas e sociedades sabias, entre as quaes As duas palavras aos leitores das Farpas nos citam as seguintes: associação commercial, sociedade musical de beneficencia, sociedade auxiliadora da industria, associação typographica, instituto pharmaceutico, e finalmente a famosa associação dos guardas livros, sociedade jockey-club, tendo por fim promover o melhoramento da raça cavallar.
É realmente indigno, em vista de similhantes factos, que alguem se tivesse lembrado, como nós, de deplorar a defficiencia da illustração no Brazil, onde ha uma escola para cada 3:021 habitantes livres, e vinte sociedades sabias!
Que nos perdoem os grandes propagadores da sciencia, que nós desconheciamos antes da publicação d'este folheto! Que nos perdoem os senhores musicos, os senhores typographos, os senhores pharmaceuticos, e sobretudo suas senhorias os senhores guarda-livros do jockey-club, encarregados do melhoramento da raça cavalar!
No tocante á industria, aos dados da estatistica official que nós publicamos e dos quaes se deduz que tal ramo da actividade humana é quasi nullo no Brazil, oppõe o nosso contendor as seguintes animadoras palavras extrahidas de um Retrospecto commercial de 1872, publicado no Jornal do Commercio:
«Em quanto a emigração nos não trouxer levas sobre levas de operarios e de artistas, a industria manufactureira conservar-se ha como que apertada em um circulo estreito.»
Logo: nós inventamos os factos para «achincalhar» o imperio. A estatistica official da qual copiamos que em 1859 o numero dos industriaes brazileiros era apenas o da quinta parte dos industriaes extrangeiros residentes no Brazil, é falsa. A verdade suprema ácerca da industria indigena na America brazileira é que: É enorme e poderosissima a força expansiva do seu desenvolvimento. E tanto que, segundo os seus mais enthusiastas apologistas, ella vive «como que apertada em um circulo estreito.»
Do que tão clara e positivamente expuzemos ácerca da organisação viciosissima das differentes colonias agricolas no Brazil, das atrocidades pavorosas da feitoria do Mucury, dos textos tão expressivos que sobre este ponto reproduzimos dos relatorios enviados aos governos da Suissa e da Alemanha pelos seus delegados no Brazil os srs. Tschudi e Avé-Lallemant, acha bem o auctor das Duas palavras aos leitores das Farpas não discutir nem contestar palavra nenhuma. Diz-nos apenas que pediu sobre esse assumpto, o mais importante do nosso artigo, informações officiaes, que publicará logo que lhe cheguem do Rio de Janeiro.
Se espera esclarecimentos que desmintam os factos que nós referimos, não os terá nunca. A verdade é unicamente o que dissemos. As Farpas não fizeram mais do que historiar realistamente, sem declamações e sem objurgatorias, as causas que levaram a Suissa e a Baviera a prohibirem a emigração para o Brazil, e a proclamarem officialmente como catastrophe a colonisação agricola do solo brazileiro por trabalhadores europeus.
Em refutação do que affirmamos sobre a frequencia dos casos de alienação mental no Rio de Janeiro, diz-nos a obra que analysamos e estamos transcrevendo nas suas mais importantes partes, que apenas consta ao seu auctor um facto isolado em abono da nossa affirmativa, sendo certo por outro lado, segundo elle mesmo assevera, que no Rio de Janeiro existe um hospital de doudos sumptuosissimo e talvez no seu genero o primeiro estabelecimento do mundo.
Ora, para aniquilar inteiramente a opinião de que é grandissimo o numero de alienados no Rio de Janeiro, não basta dizer-se-nos que um vastissimo e monumental hospicio de doudos existe n'aquella côrte; importaria certificar tambem que as pessoas que enchem esse edificio estão—em pleno uso das suas faculdades.
O que no entanto se nos não põe em duvida é que esse hospital está muitas vezes cheio. Pois bem, n'esses casos, um nosso compatriota alienado,—como a colonia portugueza não possue estabelecimento especial para o receber—é recolhido na cadeia.
Lembra-nos que, ha cêrca de um anno, lêmos em um jornal a noticia de um d'estes casos; o portuguez doudo, recolhido na cadeia por falta de outro asylo estava á disposição do nosso vice-consul na Praia Grande. Este facto basta para nos indicar qual é a praxe seguida com os portuguezes pobres atacados de alienação mental. É natural que existam mais casos da natureza do que citamos; nós desconhecemol-os, porque nunca tivemos a vantagem de visitar o Brazil, não recebemos informações nem suggestões de ninguem que ali esteja ou tivesse estado: os nossos conhecimentos a respeito do imperio americano são o resultado da leitura dos poucos documentos officiaes publicados em Portugal e dos escriptos de alguns viajantes suissos, allemães e francezes. Se não adoptamos, em vez do testemunho d'estes viajantes o que nos podessem ministrar escriptores brazileiros, a razão é unicamente que os publicistas do Brazil, tão sonoros na poesia, são inteiramente mudos na critica que nos instrua do estado da civilisação na sua patria.
Tocaremos tambem o ponto em que o auctor do opusculo brazileiro contraria a nossa opinião ácerca da inanidade diplomatica do sr. Mathias de Carvalho, actual ministro portuguez junto de S.M. o imperador do Brazil, com o fundamento de que este funccionario tem sabido sempre no seu cargo captivar inteiramente os applausos da nossa colonia.
Se um diplomata deve ser julgado pelos seus actos em serviço do paiz que representa e não pelos applausos que o seu publico lhe confere, o actual ministro portuguez no Brazil é uma pessoa extremamente sympathica, mas inutil. Conseguiu um tratado de extradicção, cuja historia se acha resumida nas seguintes datas que extrahimos do Livro Branco: Em 7 de junho de 1859—começa a negociação o encarregado de negocios interino no Rio de Janeiro. No fim do mesmo anno—prosegue o sr. Mathias de Carvalho. Em dezembro de 1871—principia negociações para um egual tratado o encarregado de negocios do governo hispanhol. Em abril de 1872—terminam as negociações com a Hespanha. Em junho de 1872—é assignado o tratado com Portugal. O diplomata hispanhol consegue em quatro mezes o que o ministro de Portugal só pôde alcançar em tres annos! E ainda se não fez nem o tratado de commercio nem a convenção postal, nem a convenção litteraria!
Se, pelo contrario, não são os actos do funccionario, mas sim os applausos do publico que determinam os merecimentos do diplomata, n'esse caso achamos preferivel ao sr. Mathias de Carvalho—a sr.ª Emilia Adelaide.
Por ultimo declaramos ao auctor do folheto intitulado Duas palavras aos leitores das Farpas, aos leitores das Farpas, e ao mundo, o seguinte:
1.º Nem um só, nem um unico facto asseveramos a respeito do Brazil, que antes de nós não tivesse sido clara e positivamente affirmado na imprensa da Alemanha, da Suissa e da França, por differentes viajantes, entre os quaes citamos especialmente como fonte de todas as nossas informações os srs. Adolphe Dacier, Waldemar Schultz, Elisée Reclus, Tschudi e Avé-Lalemant. Os leitores decidirão quaes affirmações merecem mais fé: se as que são feitas pelos viajantes citados, em livros propriamente scientificos devidamente assignados, e em relatorios especiaes apresentados pelos auctores aos governos dos seus respectivos paizes; se as que nos são propinadas no libello intitulado Duas palavras aos leitores das Farpas, por um patriota brazileiro ... e anonymo!
2.º Não estamos resolvidos a subordinar a opinião de que nos acharmos convencidos, nem á vontade, nem aos conselhos, nem ás ameaças de ninguem. Se Deus não fosse a absoluta verdade, a verdade estaria acima de Deus. Como querem então que a prostremos debaixo dos syllabus do Catete ou das bulas da rua do Ouvidor?!
Se porém, apezar de tudo isto, a joven America brazileira se parece tanto com a rainha Fulvia que lhe seja absolutamente preciso para a sua felicidade varar-nos a lingua com o seu prego de oiro, como fez a Cicero a mulher de Marco Antonio, que a America se não incommode a escrever para isso mais folhetos. Venha o prego. Aqui está a lingua.
As «corridas» do Campo Grande—Extraordinario successo de dandysmo!
Não assistimos, mas lemos que esteve o high-life, o famoso high-life, com o qual temos sempre o infortunio de nos desencontrar!
Estamos todavia d'aqui a vêl-o, a imaginal-o, rico, elegante, bello, no Campo Grande, em volta do lago—o high-life ...
A aristocracia nos seus landeaux, com enormes cocheiros gordos, de barrigas de pernas phenomenaes e bizarras.
A alta finança em carroagens de posta com os senhores na almofada, e os creados, recamados de galões de ouro, dentro da berlinda, immoveis, empoados, descobertos, com os tricornes na mão.
Os diplomatas, nedios, sorrindo na doce bestialidade espirituosa de quem sente no paladar os succos perfumados de uma aza de codorniz truffada, repimpados em daumonts, com uma carvajal nos beiços e uma marta zibelina debaixo dos pés.
A galanteria, com as suas representantes de cabellos côr de manteiga e a pelle especial dos estranhos climas do cold-cream, da decocção indiana aromatica e tonica, e da balneação mucilaginosa do leite de morangos e de ess-bouquet, dentro dos seus broughams ou em pequeninos coupés de flecha e oito molas, levando ao lado no logar devoluto da carroagem um ramalhete de cem francos ou um microscopico kings' charles, descendente, aperfeiçoado em pequenez, da cadellinha que Henrique III trazia mettida na manga ...
Depois os picadores, de librés verdes, os batedores de encarnado, os postilhões, as victorias, as americanas, os poney-chaises ... os grooms em finos cavallos inglezes, nervosos, descarnados, de olhos scintillantes e ventas altas, abertas, redondas, frementes. Os sportmen em breaks ou em dog-cart....
Sente-se o fluxo e o refluxo do grande luxo, a maresia da elegancia. Respira-se entre as arvores um ar empregnado de fina perfumaria, como n'um salão. Vae-se a passo por causa da agglomeração das carroagens e dos cavallos. De quando em quando succede mesmo que os cocheiros se empinam de repente para traz, e que se é obrigado a parar.
Ouve-se então o respirar dos cavallos, o ranger dos arreios e os finos ditos que partem do fundo dos coupés.
De carroagem para carroagem trocam-se as palavras que fazem estremecer, e encontram-se os olhares que fazem scismar.
Por baixo dos guardas-soes de seda branca mostram-se as cabeças loiras das mulheres, que estão de costas para nós, deixando vêr a nascença dos seus cabellos penteados para a nuca, tocados de sol, luminosos como fios de ambar. Cada mulher que passa traz comsigo a excitação particular do seu genero de belleza. Umas reveem as finuras do amor moderno, calculado, scientifico. Outras inclinadas para traz, dormentes, languidas, obrigam a phantasiar as caricias orientaes.
As sedas, cingindo a curva do peito e caindo em pregas quebradas de reflexos, as sedas da moda, de tons verdes aquaticos, dão ás mulheres esveltas a côr das visões dos lagos, das heroinas das legendas druidicas e dos cantos de Ossian.
Sob a palpitação dos leques sentem-se estremecer no espaço correntes aerias de volupluosidade indefinida.
Pela estreitesa das testas, pela espessura dos beiços, pela carne polpuda das pequenas orelhas, pelas frias expressões do olhar indagador e critico, percebe-se porém que essas delicadas creaturas que passam, ondulantes e harmoniosas como sereias, teem o bom gosto pratico de preferirem aos suspiros de Fingal e de outros bardos os camarotes na opera, os fofos coupés, os quentes cachemires, e os finos jantares.
Pela qual razão vae cada um pensando vagamente em se lançar nas finanças, no jogo doa fundos, nas grandes companhias, nos emprestimos ao governo, nos bancos, no dinheiro em fim, no vasto dinheiro, no profundo dinheiro illimitado ...
E em quanto as carroagens esperam ou rodam em volta de nós, os cavalleiros passam, e as toilettes scintillam, a pobre natureza ao longe, nas collinas, parece envergonhada na sombra das suas arvores, na humildade dos seus limos e dos seus musgos, porque ella é verdade que tem os altos montes e os fundos mares, tem o Niagara e o Etna, mas não tem os braceletes de Sampere, as luvas de oito botões, e as rendas de Malines!
Tal é o perfil das «corridas»; tal é o high-life.
Dizem as folhas que elle esteve no Campo Grande, e nós piamente o crêmos.—Pelo que, d'aqui enviamos os nossos parabens ao Collete Encarnado.
Não se inscreveram no Derby lisbonense os Hamilton, nem os Lagrange, nem os Rothschild, nem os Mouchy, nem os Dudley Stuart. Inscreveram-se apenas, com os seus trens, o João Russo e o Chico Perfeito, cocheiros da praça.... Alea jacta est!
Elles partem nos seus fiacres, ao trote.—Montjoie et Saint-Denis!
O Russo venceu o Chico com a distancia do comprimento de uma pileca. Hurrah!
Muito devemos esperar, para a civilisação e para o dandysmo, da boa estreia d'estes hyppicos torneios especialmente destinados a apurarem em Portugal a famosa, a incomparavel, a unica raça ... das tipoias!
Parabéus a todo o Sport europeu, e ao nosso defunto Lagoia!
Hontem no theatro de D. Maria—primeira representação da Magdalena, especie de Dalila, de Octave Feuillet, localisada entre o Arco do Bandeira e o da Rua Augusta, como presente malicioso de Pinheiro Chagas ás curiosidades do chic, na Baixa.
N'este drama ha tres typos principaes:
O amante—Um Hamlet de aldeia, um Conrado, um cavalleiro negro—de Figueiró dos Vinhos. Dandy melancholico, como um Satanaz em uso de figados de bacalhau. Um Alcibiades quebrado. Um pallido cherubim portador de uma paixão e de uma tenia. Typo lamartiniano, o anjo caturra da velha ode, a personalisação do antigo amor lyrico—sob os symptomas lancinantes e urgentissimos da colica.
A noiva—Menina educada no convento. Creada com doces de freiras e com livros de versos. Organisação de ovos de fio e de romances baratos. Amor e dispepsia. Pouco cerebro e muita cuia. Não faz saborosos coscorões, não deita alvas teias de linho nem gordas ninhadas de perus como sua mãe, casta e sabia Penelope. Ella corta a serena tradicção burgueza e rural da familia. Despresa com ascos as conservas do lombo de porco em vinho e alhos. Cultiva a orthographia e a arte poetica com mais disvello, mas menos proveito que aquelle que sua mãe tira do cultivo modesto das alfaces, das finas hervas, dos primores horticolas. Não ama finalmente senão uma coisa—o talento!... Pobre rapariga! desditosa burgueza! que esteril e que perigosa idolatria a tua! O talento!... a divina inspiração!... o supremo encanto!.. Coitada! se acreditas n'isso, estás perdida. A tua imaginação doente entregar-te-ha submissa, humilhada, ridicula, ao primeiro noticiarista de soirées que te appareça, á primeira bas-bleu que te escreva cartas, ou á primeira actriz que te beije e abrace. O talento!... Mas não ha nada verdadeiramente respeitavel senão o trabalho, a abnegação, a perseverança, o sacrificio e a virtude. O talento é uma simples fanfarronada. O talento é uma invenção dos bohemios para substituirem a toilette e a roupa branca. O talento é um falso titulo clandestino de apresentação, fabricado por aquelles que não teem titulos legitimos para que a sociedade os receba. Fazer-se passar como «tendo talento» é um meio de cada um se eximir a que lhe perguntem se «tem caracter.» O talento finalmente é o seguinte typo d'esta peça:
A amante do noivo—Uma actriz que foi educada no convento com a noiva o que, passados annos, a noiva recebe em sua casa com reconhecimento, com adoração, com enthusiasmo, apezar da actriz não ser senão uma lorette; uma artista aux camelias; grande genio de petit-lieu; celebridade baptisada com Champagne, entre rapazes, depois das ceias, em gabinetes reservados. Um martyrio, se quizerem, mas um martyrio que exige um bracelete e uma nota do banco para se estender na sua cruz. Uma paixão, se isso lhes apraz, mas uma paixão Rigolboche, que se concilia com o cancan, que adopta a arte para canalisar o vicio, que nunca chega ao fel do seu calix por que o tem sempre cheio de Malaga ou de pale-ale; que pede uma mortalha, mas talhada por Worth, á Rabagas, com rendas de vinte libras o metro. Uma Magdalena emfim, mas uma Magdalena penetrada do peccado moderno, barato, para todo o mundo, cheirando aos sitios publicos, ao tabaco de fumo, á cerveja azeda e ao gaz extravasado.
O drama. O noivo acha que Tant-de-charmes é mil vezes mais interessante do que La-vertu-même. Por tanto o noivo abandona a noiva virtuosa e corre atraz da amante impudente. A burgueza abandonada vae então chorar aos pés da comica. Esta resolve devolver-lhe o noivo com tanto mais vontade quanto é certo que o noivo é a semsaboria toda d'este mundo na figura insignificante de um provinciano piegas, em primeira mão de conquista, que desmaia de puro amor ao declarar a sua chamma,—de sorte que é preciso gastar tanto com elle em sal ammoniaco para lhe restituir os sentidos quanto elle gasta em rhetorica para os fazer perder aos outros.
O noivo pois regressa para a noiva. A actriz faz uma phrase. E o panno cáe.
Ha n'esta peça uma personagem secundaria, sem acção nenhuma no enredo e no desenlace, para a qual nos parece um bom serviço á moral o chamarmos a attenção do publico. É uma burgueza que apparece no segundo acto em casa da noiva, onde está hospedada a actriz. Essa pessoa, de notavel juizo, que diz coisas justas a respeito das creadas e dos arranjos da casa, apenas sabe que ha na reunião para que a convidaram uma mulher cujos appelidos e cujos diamantes não se sabe d'onde procedem, toma sem mais cogitações o braço de seu marido, deseja á dona da casa o juizo que lhe falta, e retira-se em pleno escandalo.
O publico ri, e tanto na scena como na sala é um pouco apupada esta ménagére, que se declara abertamente incompativel, dentro do mesmo recinto e debaixo dos mesmos tectos, com uma actriz cocodette.
Pois bem: é essa mulher que se vae embora—notae-o bem, minhas queridas burguezas!—é essa mulher que se vae embora, a que ahi, deante de vós, está dando o unico exemplo que deveis seguir. Todas as demais pessoas d'esta peça teem o lyrismo, a eloquencia, a convenção litteraria; só esta é que inteiramente possue a verdade e o juizo.
O que todas vós tendes que fazer perante a concorrencia e o cotejo a que vos queiram sujeitar com as mulheres artistas, celebridades no mundo do theatro ou no demi-monde, é tomardes o braço dos vossos maridos e sairdes com elles.
Os maridos portuguezes estão pessimamente educados; foram creados com as operas de Verdi, com os romances de Chateaubriand, com as poesias de Lamartine e de Musset; teem o systema nervoso exaltado, a imaginação plethorica, o temperamento irritado, e o juizo das coisas praticas derrancado ou extincto.
As creaturas artificiaes, morbidas, irritantes pelos poderosos contrastes do desvergonhamento da alma e das finas delicadezas da pelle, serão sempre as que dominarão os homens corruptos e que os levarão comsigo. Ellas teem um prestigio de vicios triumphantes, de elegantes indolencias, de altos desdens, de serenas voluptuosidades perennes, com que vós, mulheres honestas, dignas, impeccaveis, não podereis nunca luctar.
Vós tendes o sentimento real que ri em grossas gargalhadas ou que incha as palpebras e engrossa a pelle com o correr das lagrimas: ellas teem a sentimentalidade correcta dos pasteis de Latour ou das porcelanas de Saxe—inalteravel mimo de galeria ou de étagère.
Vós tendes a forma das vossas mãos um poueo affastada do ideal de Praxiteles pelos habitos honestos da vida activa, do trabalho; algumas vezes a ponta do vosso dedo está picada pelo bico da agulha: ellas teem as mãos finas, afiladas, pallidas, transparentes, que obrigam a sonhar estranhas caricias e que são o resultado de quinze annos de ociosidade estupida de serralho, de chloroses e de massas de amendoas.
Vós tendes uma passagem de miudos e pacientes pontos n'um dos vincos do setim dos vossos sapatos: ellas teem uns sapatos por noite e umas luvas por dia.
Finalmente vós sois a probidade e o decoro. Ellas são a dissipação e o vicio.
Ora os homens educados pela sociedade, por si proprios, e em grande parte por vós mesmas, minhas senhoras, nas corrupções litterarias e poeticas, nos falsos ideaes epidemicos do sentimentalismo, da melancolia, da paixão, dos amores fataes, os homens assim educados, quando lhes acorda o temperamento e a imaginação, começam—por enjoar a virtude.
Não queiraes reagir. Vede bem. A lucta humilha-vos e deshonra-vos. Evitae-a. O espirituoso drama do nosso amigo Pinheiro Chagas é um grande aviso, maior talvez do que o auctor suppunha: As Magdalenas não sobem as escadas das casas em que ha mulheres honestas.
E então os direitos do talento? E as rehabilitações pelo amor?...
Oh! meus senhores, mas desde 1830 que os romancistas e os dramaturgos pouco mais teem feito do que procurar convencer a sociedade d'esses direitos e d'essas rehabilitações, ao passo que a sociedade tem constantemente e invariavelmente refutado sempre os romancistas e os dramaturgos!
Não lhes parece que vae sendo tempo de darmos a velha questão por discutida?...
Não! não é para que nos tragam o premio da austeridade e da virtude! Não somos nós os que fugimos para a Thebaida, a flagellar o nosso pobre corpo, ao aspecto das peccadoras espirituosas a cujos pés passou a sua vida, em extase, a geração litteraria que nos precedeu. Sómente para que levemos a essas damas a visita da arte, achamos de bom gosto deixar arejar um pouco os tapetes em que estiveram por tanto tempo prostrados os nossos antecessores.
Chegamos do palacio das Janellas Verdes. Vimos de assistir ao leilão do espolio de sua magestade a imperatriz, ultimamente fallecida.
Grandes salões enormes, altos, quadrados, angulosos,—á marquez de Pombal.
Nas salas de honra, estofos de damasco e moveis do primeiro imperio, no estylo chato, parvennu, pretencioso, mas rico, do seculo de Bonaparte, esse Luiz XIV de caserna.
Mesas, sophás, tremós, de fórmas rectangulares, riscados pela regoa, guarnecidos de columnas parallelas, de capiteis de bronze.—O que quer que seja de fortaleza, de baluarte, de ariete, de escudo, e de templo do genio!
As guarnições de chaminé, as taças, os candelabros, os lustres—tudo bronze, macisso, pesado.
As pendulas doiradas são rematadas pela aguia imperial ou por assumptos de fria inspiração bucolica bebida com assucar e agua de flôr de laranja na contrafeita natureza dos parques de Versailles delineados a cordel.
Uma multidão compacta, plebeia, suada, conservando os chapeus na cabeça e os cigarros nos beiços, cuspindo nas alcatifas, limpando com o dedo molhado em saliva o pó das tellas e das estatuetas, ou apoiando a sola da bota nas almofadas das poltronas para tomar notas sobre o joelho, enche os salões e vae deitando os lanços.
O pregoeiro—Uma mesa offerecida pelo imperador Napoleão I, o grande!
Um adelo—Ponha lá uma libra por ter sido d'esse sujeito ... e, em fim, porque é de mosaico!
Os licitantes animavam-se, os preços subiam, os objectos em praça eram rapidamente adjudicados ao maior lanço, e tudo quanto enchia aquellas regias salas ia successivamente passando para o povo que as invadia.
Não era sómente um leilão aquillo, era uma liquidação pronta e solemne dos ultimos restos de um imperio extincto, de um cesarismo arruinado e fallido, de um mundo inteiramente acabado e desfeito.—Extranho espectaculo, de tal modo significativo que era quasi doloroso!
Passa-se aos aposentos particulares da imperatriz.
Lá fóra, nos salões, revelava-se uma epoca poderosa.
Aqui transparece apenas uma individualidade feminil, delicada e modesta.
N'estes quartos em que a viuva de D. Pedro IV se conservou por tantos annos recolhida e occulta n'uma clausura inviolavel, sente-se perfeitamente a sua personalidade em todos os detalhes da existencia. Nenhum aspecto de luxo, de pretenção ou de apparato. O chão é coberto com simples esteiras; todos os cortinados são de cassa branca, e todos os estofos de chita em pequenos ramos de flôres sobre fundos pallidos. Os aposentos estão cheios de étagères de todas as fórmas, com todas as disposições. Pequenas bibliothecas e pequenos armarios, dispostos por toda a parte. Uma infinidade de mezinhas de escripta, de leitura, de costura ou de bordado. Cadeiras de todos os formatos e das mais diversas proporções, sem nenhum estylo, sem genero artistico, sem época, sem o minimo lavor, sem concessão alguma á elegancia ou á simetria—uma visivel exigencia da vida sedentaria e doente, a necessidade physica de mudar a todo o momento de posição, para deslocar a sua dôr, para motivar o seu pequeno exercicio e povoar por si mesma, com as suas diversas attitudes a sua solidão. Defronte das janellas ha pequenos biombos de chita franzida para impedir as correntes de ar, formando uma especie de kiosques, subdivisões minimas de abrigo e de recolhimento. Ha muitas estantes de leitura, mezas de desenho ao crayon ou á aquarella, e uma caixa cheia de lapis aparados, de diversas côres e de differentes numeros. Uma grande secretária, larga pesada, lisa, e defronte d'ella uma enorme poltrona ingleza, estofada de carneira escura, usada, tendo aos pés uma almofada esfarpada e gasta. Era a cadeira em que a imperatriz se sentava ordinariamente, e que se vê em todos os seus ultimos retratos. Sobre uma mesa apparece um Christo, antigo, marchetado, trazido de Jerusalem, deante do qual, por muitas vezes, decerto, se ajoelhou a imperatriz. Ao lado d'esta sagrada imagem e como diversão á gravidade do seu dolorido e pallido aspecto encontrámos dentro de uma caixa aberta um instrumento de uso demasiadamente intimo de Sua Magestade, o qual objecto suppunhamos que não era licito expôr em publico senão como accessorio da scena triumphal do ultimo acto do Malade imaginaire, ou como vinheta illustrativa nas obras de Avicena: ao lado do aphorismo, Medicamen clister nobile est.
E aqui suscita-se-nos o meditar, diante d'esta caixa aberta, quaes serão os principios politicos de suas excellencias os executores testamentarios da fallecida soberana.
Porque, realmente, não nos occorre como os possamos classificar....
Se são republicanos, democratas, socialistas, suas excellencias deveriam saber que nunca se abrem as caixas reservadas da toilette de uma senhora.
Se são monarchicos, deveriam comprehender que n'estes tempos de discussão implacavel é perigoso para o prestigio das testas coroadas denunciar aos povos, por via de uma imprudencia de suas excellencias, que se os soberanos que os governam estão por um lado tanto acima d'elles pelo direito divino, não são por outro lado mais que seus simples eguaes pelo direito therapeutico, e que finalmente pode ser um novo e terrivel argumento inesperado em favor da egualdade dos homens—a constipação intestinal dos principes!
O pregoeiro do leilão é acompanhado pelo sr. barão de S. George, consul da Suecia e representante de Sua Magestade a rainha, irmã da imperatriz fallecida.
O sr. consul faz a historia de alguns objectos postos em praça, garante a sua authenticidade historica, e encarece com tocantes discursos o valor de cada coisa.
S.ex.ª o sr. barão, delegado de sua magestade a rainha da Suecia, em beneficio da qual se faz a venda em hasta publica do espolio de sua irmã, attesta-nos que tal cama é a mesma em que dormia na sua tão breve mocidade sua alteza serenisssima a princeza do Brazil; tal chavena aquella por que Sua Magestade bebia os seus remedios; taes bonecos os mesmos com que a infeliz infanta D. Amelia brincava em pequenina, e que sua mãe conservava como um piedoso penhor de saudade!
Graças a todos estes preciosos esclarecimentos, amavelmente dados por s.ex.ª o consul á multidão dos licítantes, dos adelos, dos ferro-velhos e dos cabeças de pau, Sua Magestade a rainha da Suecia terá a doce consolação—tão sensivel ás almas sublimes—de receber duzentas libras a maior da somma em que haviam sido avaliados os saudosos e queridos despojos d'aquella que duas vezes fôra na terra sua irmã—como mulher e como rainha!
Oh! como deverá ser bom e suave, na ultima estação da vida, quando os rheumatismos rangem nas frias articulações da nossa velha ossada, embrulharmo-nos tremulos na purpura real, no alto do nosso throno,—tendo aos nossos pés os nossos vassallos inclinados e a nossa cova aberta,—fitar serenamente no espaço a branca apparição d'aquella que amamos no mundo e que nos espera entre as estrellas nas esfumadas sombras do crepusculo, e podermos então exclamar em nossa consciencia:
«Sim, ella morreu ... mas abençoado sejas tu, nas alturas infinitas, ó Deus meu e dos meus exercitos, pois quizestes permittir que aquelle objecto que lhe pertenceu e que ella tinha occulto por detraz de uma cortina no seu quarto de lavatorio fosse venturosamente arrematado—por trez mil e seiscentos!»
SCENAS DE RELIGIÃO.—Lemos no Diario Illustrado o seguinte:
«Em additamento á noticia que ontem démos da saida processional do Senhor aos entrevados da freguezia de Santa Justa e Rufina, somos hoje informados que a interessante filhinha do sr. Marcos Maria Fernandes e D. Maria Cecilia da Conceição Almeida Fernandes, proprietarios do acreditado estabelecimento de modista de chapeus e vestidos na travessa de Santa Justa n.º 81, vae tambem n'essa procissão, distribuindo esmolas aos enfermos pobres, que receberem o Viatico, sendo vestida a custa e por generoso e espontaneo offerecimento de seu pae, que é irmão do Santissimo d'aquella freguezia.
«Leva a gentil menina, symbolo de caridade, vestido de faille azul claro, com outro de tulle branco aventalado adiante, com finas pedras, e um manto branco preso na cabeça por um diadema do pedraria e semeado de estrellas de oiro de lindo effeito.
«Esta devoção do sr. Fernandes, que ha quatro annos successivos tem levado a sua filhinha vestida de anjo n'aquelle acto religioso, offerece no presente anno uma novidade elegante, e que decerto será do mais apurado bom gosto, se attendermos ao extremo paternal do sr. Fernandes, e ao esmero e apuro de todos os trabalhos do seu estabelecimento, onde é variadissimo e primoroso o sortimento de tudo quanto respeita a enfeites de senhora.»
Ó dôce Jesus, eterna bondade simples e infinita como o Céo! aqui tendes como elles a comprehendem, na freguezia de Santa Justa e Rufina, a caridade, a pobre e modesta caridade, que vós mandastes definir por S. Paulo com aquella palavra tão inspirada e tão bella.—O amor dos corações puros e das consciencias boas!
Elles entendem-a agora assim: vestida de faille azul claro, com segundo vestido de tulle branco aventalado adiante, com finas pedras e um manto branco preso na cabeça por um diadema de estrellas de oiro de lindo effeito!
Comparae, ó Jesus, a descripção dos vossos antigos anjos feita por Santo Ignacio—incorporeas mentes—com esta descripção que o Diario Illustrado nos apresenta dos vossos anjos modernos!
Que dirão os cherubins, os seraphins e os archanjos, que dirão Miguel, Raphael e Gabriel, elles nus, sem mais toilette que as suas longas azas candidas, ao verem junto de si nas chorêas sidereas o novo anjo—Almeida Fernandes?!
Como ficarão vexados e humilhados no Céo—os outros—quando o cherubim Almeida lhes apparecer com as tranças torcidas a ferro, com vermelhão nos beiços, e o seu vestido aventalado adiante, e contar que foi o papá Fernandes quem o arranjou assim para elle representar diante dos homem a imagem da caridade!
Oh! mas realmente, é um bom quinau dado pelo sr. Fernandes no Creador! Lição terrivel de elegancia e de chic ministrada a todo o reino dos Céos pela Travessa de Santa Justa! Nem a Baixa calcula talvez a grande importancia que isto vae dar ao estabelecimento do sr. Fernandes—no Empireo!
Pela nossa parte não nos maravilhará extraordinariamente que o sr. Fernandes, proseguindo nas suas conquistas sobre o territorio divino, acabe por ajuntar ao seu estabelecimento de modas uma succursal da côrte celeste, e que depois de converter a sua familia em anjos de tulle, elle mesmo acabe por apparecer aos seus freguezes transfigurado em Deus ... de filó!
E então, para nos entendermos com s.s.ª sobre os objectos do seu commercio, teremos, ao entrar na sua loja, de nos ajoelharmos, de batermos no peito e de exclamarmos com attricção verdadeira:
Eu peccador me confesso a Fernandes todo poderoso de que preciso de um par de ceroulas de linho de Irlanda, e por tanto lhe dirijo humildemente minhas fervorosas preces para que desça das alturas e venha a nós—para nos tomar medida. Amen!
Acabamos de ver como os burguezes conservadores entendem a caridade no catholicismo. Vamos ver agora como é que os operarios socialistas entendem os principios do direito perante a revolução.
Ao passo que o Diario Illustrado, folha monarchica e catholica, nos apresenta a religião na menina Almeida Fernandes, o Pensamento Social, periodico revolucionario, expõe-nos, na menina Palmira da Conceição, os direitos do povo.
O Pensamento Social diz assim:
«Teve logar a annunciada sessão da propaganda na associação do trabalho nacional. Estiveram presentes cêrca de 60 companheiras, frequentando a sala durante a sessão proximamente 700 companheiros. Presidiu uma companheira, mantendo-se uma assembléa tão numerosa na melhor ordem. Deu-se n'esta sessão um facto que sensibilisou toda a assembléa; uma companheira, que tem apenas nove annos de edade, como que sensibilisada pelas aspirações da razão e da justiça, em plena assembléa pediu a palavra e pronunciou a seguinte oração, que leu:
«Companheiros e companheiras.—Declaro-lhes que cada vez que tenho de entrar em assumptos de tal natureza, arrasam-se-me os olhos de agua e cobre-se-me o coração de uma nuvem negra; comtudo não posso deixar de levantar a minha debil voz para dirigir duas palavras ás nossas companheiras e companheiros da fabrica de fiação e tecidos lisbonenses. Companheiros e companheiras: dirijo-vos os meus sinceros sentimentos, porque tendo sido bem conhecedora das injustiças que se estão fazendo ás nossas companheiras, e com especialidade ás menores, porque não só são castigadas com o seu diminuto salario, como tambem as maltratam com pancada.
«Ai companheiros e companheiras, não posso deixar de curvar o joelho e pedir ao meu Deus, se estamos em peccado mortal: perdoae-nos. Mas não, que já vou vendo raiar a aurora; continuemos sempre a empregar todos os nossos esforços para que um dia breve estejam reunidos nas nossas dignas associações todos os que vivem do trabalho. Conseguido isto, o que não é muito difficil, e empregando todos a nossa vontade, poderemos dizer que não estamos em peccado mortal, e tambem poderemos dizer que se acabaram os castigos embrutecedores. Peço pois a todos os companheiros e companheiras que empreguemos toda a nossa vontade, energia e dedicação para podermos alcançar o nosso triumpho, que é a emancipação de todos os trabalhadores, isto é, todos os direitos e deveres sociaes. Depois os nossos vindouros nos cobrirão de bençãos por lhes termos creado tão bom dote. Não querendo entreter-vos mais termino pedindo que vos não esqueçaes dos nossos companheiros grevistas.—Palmira da Conceição.»
Esta creança de nove annos de edade que nos declara que os olhos se lhe arrasam de agua e o coração se lhe cobre de uma nuvem negra sempre que lhe tem succedido ter de entrar em assumptos de tal natureza, é uma verdadeira menina benta, um phenomeno! Diremos mesmo: é um milagre, é uma pequena nossa senhora apparecida—da fabrica lisbonense de fiação e tecidos!
Ella é a destinada pelo povo a substituir, como futura deusa da razão, o actual anjo Almeida Fernandes—nas festividades populares.
Ha pequenas differenças:
O anjo Almeida traz-nos a religião e a caridade. A deusa Palmira é a portadora da emancipação dos trabalhadores, dos direitos e deveres sociaes.
O anjo adeja sobre as ruas pacatas da Baixa. A deusa surge no bairro inquieto de Alcantara.
O anjo caminha gravemente—enfunado, crespo de folhos e de rendas, como um peru armado—a passos cadenciados pelas harmonias da phylarmonica Alumnos de Minerva, dando a mão a Fernandes, seu pae carinhoso,e espargindo petalas de rosas, de dentro de um cesto de casquinha, sobre o mundo velho.
A deusa vem ao collo de um companheiro membro da Fraternidade Operaria e clarinete na mesma phylarmonica que bufou, talvez, o mais convicto e consciencioso hymno da carta, atraz da angelica vergontea de Fernandes. A deusa alliando em sua joven personalidade a innocencia da edade que tem com a aspiração philosophica da classe a que pertence, mette um dedo no nariz e aponta com o outro o destino do proletariado na futura organisação social.
O anjo é a religião de barejes, de talagarças e de retalhos de bobinet.
A deusa é a justiça de figuras de rhetorica, de discursos de associação e de erros de prosodia.
O burguez, contente com o seu meio de reacção, distribue ao anjo confeitos e rebuçados de avenca. O operario, satisfeito com o seu plano de resistencia e de revolução, solicito, assôa a deusa.
Ora, francamente, não nos parece que estes sejam os methodos mais efficazes que possam escolher os srs. burguezes e os srs. operarios.
Não será com o seu anjo de vestido «ventalado», com veu branco e pedrarias de lindo effeito, que a burguezia impedirá a passagem á corrente das idéas novas que a assoberbam e intimidam.
Não será tambem com a sua oradora de nove annos, inspirada pela razão e pela justiça, que o proletariado conseguirá convencer-nos da seriedade dos seus direitos ao predominio das sociedades futuras.
O trabalho—bem o sabemos—é uma coisa augusta e sagrada. O commercio—desculpem-nos os senhores proletarios—é tão sagrado como o trabalho. O commerciante que compra a cada um dos que produzem as suas obras, levando-lhes, em troca dos objectos que fabricam os objectos que consomem, faz á sociedade, por meio do estabelecimento do mercado, um serviço tão relevante e tão legitimo como o da producção da mercadoria.
O pae da menina Palmira que faz um chale quando ninguem quer chales e o pae da menina Fernandes que lh'o compra logo, para o vender depois quando lh'o pedirem, são dois cidadãos egualmente uteis e respeitaveis. Se o pae do anjo é puramente ridiculo vestindo a sua filha como uma boneca de vitrine e encarregando o Diario Illustrado de lh'a apregoar como um symbolo de caridade, o pae da deusa é injusto, é ignorante, é perigoso, e é egualmente ridiculo, ensinando á sua filha, para que ella as leia em publico, palavras ôcas de falsa razão e de mal entendida justiça, tão enthusiasticamente preconisadas pelo Pensamento Social, orgão das classes operarias.
Já que fallamos no Pensamento Social notemos que nem sempre nos parece perfeitamente logico este jornal.
Succede que elle guerreia o burguez, o infame burguez, e não cessa nunca de glorificar o operario. É a sua missão. Tem o seu partido. Nada temos que objectar.
Quando se deu, porém, a grève dos surradores, succedeu o seguinte:
Os operarios tinham escolhido para apresentarem as suas propostas a phase da curtição em que os coiros não poderiam ser abandonados sem que apodrecessem nos seus tanques. Por este modo os patrões ou tinham de ceder á grève ou correr o risco eminente de um grande prejuizo. Que fizeram os patrões? Não acceitaram as propostas dos grevistas, associaram-se todos, despediram os operarios, e foram em seguida, elles mesmos, acompanhados de suas mulheres e de seus filhos, de fabrica em fabrica, levantar os cortumes.
Ora é singular que fosse exactamente este momento solemne da existencia dos patrões curtidores o que o Pensamento Social escolheu para os flagellar com as suas ironias e os seus sarcasmos! A verdade é que exactamente n'esse momento é que os burguezes curtidores deixavam de ser burguezes para serem operarios. Parecia-nos que n'esta conjunctura o Pensamento Social não deveria fazer senão o que nós fariamos no seu caso: tirar o chapeu e inclinar-se respeitosamente perante a coragem trabalhadora e digna dos seus altivos e honrados inimigos.
Os operarios na sua inquietação de candidatos á prosperidade baseada na justiça e na virtude, vão mal encarreirados dirigindo o seu movimento de revolução contra os pequenos burguezes que nunca lhes fizeram mal nenhum e que os srs. operarios injustamente odeiam ou desprezam. Os pequenos burguezes—deveriam lembrar-se d'isto os srs. operarios—são na actual organisação social, os alliados naturaes de todos os que trabalham e padecem. Os srs. operarios fariam bem se, em logar de encarregarem a menina Palmira de discretear nos seus congressos, traduzissem n'elles em voz alta esta pagina do seu amigo Proudhon:
«Vós, burguezes, fostes em todo o tempo os mais intrepidos, os mais habeis dos revolucionarios. Sois vós que desde o terceiro seculo da era christã, por meio das vossas federações municipaes, estendestes a mortalha sobre o imperio dos romanos nas Gallias. Sem os barbaros que vieram mudar a face das coisas, a republica, constituida por vós, teria governado a edade media. Fostes vós que, mais tarde, oppondo a communa ao castello, o rei aos grandes vassallos, vencestes o feudalismo. Sois vós em fim que ha oitenta annos, tendes proclamado umas depois das outras todas as idéas revolucionarias, liberdade de cultos, liberdade de imprensa, liberdade de associação, liberdade de commercio e de industria; vós que pelas vossas sabias constituições fizestes justiça ao altar e ao throno; vós que estabelecestes sobre bases indestructiveis a egualdade perante a lei, a garantia legislativa, a publicidade das contas do estado, a subordinação do governo ao paiz, a soberania da opinião. Fostes vós, sós, que fundastes os principios e lançastes os fundamentos da revolução no seculo XIX. Nenhuma das coisas que se tentou sem vós, viveu; nenhuma d'aquellas que vós emprehendestes falhou. Diante da burguezia o despotismo tem curvado a cabeça: o soldado feliz, o ungido legitimo, o rei cidadão, desde que teem tido o infortunio de vos desagradar, teem desfilado diante de vós como phantasmas.»
Lemos em alguns periodicos que o sr. prior da freguezia da Encarnação acaba de furar as orelhas de uma santa que tinha na sua egreja para lhe pôr brincos.
Parece-nos que este senhor ecclesiastico abusa das suas relações com as santas a ponto de proceder com ellas de um modo como não desejaria talvez que ellas procedessem com s.ex.ª ...
Como quer porém que seja, e admittindo-se mesmo que o sr. prior tenha o maior prazer d'este mundo em que lhe façam furos no corpo, entendemos que sua excellencia introduz no culto uma reforma arrojada, posto que extremamente simplificativa, substituindo as antigas manifestações de reverencia e de respeito devidas ás sagradas imagens—as genuflexões, o incenso, a missa cantada, a novena e o panegyrico—pela verruma!
Isto infunde nos fieis um certo desalento, porque começa naturalmente a lavrar entre elles o receio que o sr. prior, adoptando definitivamente o seu novo systema liturgico, resolva de repente, um bello dia—em vez de pregar-lhes sermões—principiar a pregar-lhes pregos!
Isto infunde nos fieis um certo desalento, porque começa naturalmente a lavrar entre elles o receio de que o sr. prior, adoptando definitivamente o seu novo systema liturgico, resolva de repente, um bello dia—em vez de pregar-lhes sermões—principiar a pregar-lhes pregos!
Pede-se aos srs. assignantes das provincias o obsequio do mandarem satisfazer a importancia das suas assignaturas em divida, por meio de estampilhas ou do vales do correio. Correspondencia á calçada doa Caetanos, 30, Lisboa.Caetanos, 30, Lisboa.